A FACULDADE FILOSÓFICA E DE DIREITO

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A FACULDADE FILOSÓFICA E DE DIREITO: uma abordagem da
justiça à luz da filosofia do direito de Immanuel Kant
THE LAW AND PHILOSOPHY FACULTY: one approach of Justice
under the Law Philosophy of Immanuel Kant
Rafael Padilha dos Santos
Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí.
Especialista em Processo Civil.
Mestrando em Filosofia pela UFSC
[email protected]
RESUMO
Immanuel Kant entende que a faculdade filosófica indica o precípuo trabalho do filósofo em submeter
as doutrinas correntes à legislação da razão, permitindo um julgamento com autonomia, segundo
princípios do pensar em geral. Já a faculdade de direito, toma por critério o mandamento legal, se
pautando na lei positiva e, portanto, na utilidade que proporciona ao Estado. O que ocorre é que o
filósofo procura os princípios e os conceitos a priori, enquanto o jurista, na sua prática, se limita ao
conhecimento das leis e de sua aplicação. Resta claro que a filosofia não poderia fazer as vezes do
direito, já que não considera casos empíricos. Contudo, a filosofia é fundamental para examinar se a
atividade do jurista está de acordo com a razão. Portanto, o objetivo do presente estudo é analisar a
faculdade filosófica e de direito, demonstrando as interfaces entre ambas. O método utilizado é o
indutivo, posto que a pesquisa parte dos entendimentos sobre faculdade filosófica e de direito,
passando pela exposição sobre o direito natural e o direito positivo, culminando com a exposição
sobre o ato que deve ser tido como justo pelo jurista e à Justiça no conceito filosófico. O estudo é
realizado pela pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: 1) Filosofia; 2) Direito; 3) Immanuel Kant.
ABSTRACT
Immanuel Kant understands that the philosophical faculty indicates the main work of the philosopher
in submitting the current doctrines to the legislation of the reason, allowing a judgment with autonomy,
according to principles of thinking in general. The law faculty has for criterion the legal order, based in
statutory law e, therefore, in the utility that it provides to the State. The philosopher looks to the
principles and the concepts a priori, while the jurist limits to the knowledge of the laws and its
application. The philosophy could not substitute the right, since it does not consider empirical cases.
However, the philosophy examine if the activity of the jurist is in accordance with the reason.
Therefore, the objective of the present study is to analyze the philosophical faculty and of right, being
demonstrated the interfaces between both. The used method is the inductive one, rank that the
research has left of the agreements on philosophical faculty and right, passing for the exposition on
the natural law and the positive law, culminating with the exposition on the act that must be had as just
by the jurist and to Justice in the philosophical concept. The study it is carried through by the
bibliographical research.
Keywords: 1) Philosophy; 2) Right; 3) Immanuel Kant.
INTRODUÇÃO
Immanuel Kant, em sua obra A Metafísica dos Costumes (Die
Metaphysik der Sitten), publicada em 1797, apresenta um sistema metafísico da
2
fundamentação do direito pela liberdade, como seguimento à arquitetônica da razão
prática encetada nas suas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes
(Grundlegung zur Metaphysik der Sitten), publicada em 1785, e Crítica da Razão
Prática (Kritik der Praktischen Vernunft), publicada em 1788.1
A categoria Metafísica dos Costumes significa o sistema dos
princípios práticos a priori encerrados na razão humana, e que são naturalmente
seguidos na realização das ações racionais. Referindo-se à Metafísica dos
Costumes, esclarece Kant que ela contém: “[...] os princípios que determinam a
priori e tornam necessários o fazer e o não fazer2.” Sua importância é ditada por
Kant ao explicar:
Uma metafísica dos costumes é, pois, indispensavelmente
necessária não só por motivos de ordem especulativa, para
investigar a origem dos princípios práticos que residem a priori na
nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam
sujeitos a toda a espécie de perversão, enquanto falte esse fio
condutor, norma suprema de seu exato julgamento.3
A elaboração da obra A Metafísica dos Costumes espelha o exercício
pleno da faculdade filosófica, pela qual conceitos e princípios são apresentados.
Mesmo tendo esta proximidade da faculdade filosófica, Kant não se descurou em
pensar a atividade do jurista, traduzida na faculdade do direito, e a relação entre o
trabalho do filósofo e do jurista para a promoção da Justiça. A maestria desta
abordagem da Justiça em Kant se deve ao fato de não ter recaído nem em uma
posição dogmática jusnaturalista, nem em uma posição dogmática juspositivista, eis
que não reconhece nem para o jurista e nem para o filósofo uma exclusiva noção de
Justiça.
Assim, o objetivo do presente estudo é analisar a Justiça como um
princípio abstraído da faculdade filosófica e o que o jurista, em sua atividade
profissional, deve entender como justo, sempre buscando identificar de que modo
estas faculdades convergem às pretensões sistemáticas do direito metafísicoracional.
1
Em atenção à característica sistemática da filosofia transcendental kantiana, é possível contemplar
que a A Metafísica dos Costumes recepciona os conceitos já elaborados pelo filósofo alemão na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática.
2
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas de Eson Bini.
Bauru: Edipro, 2003a. A841/ B869, p. 663 (grifo do autor)
3
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes, p 16.
3
1 A FACULDADE DE DIREITO E A FACULDADE FILOSÓFICA
O jurista erudito (Iurisconsultus) é o conhecedor da doutrina do direito
positivo, ou seja, da soma das leis positivas. Quando o versado em direito
(Iurisconsultus), além de conhecer as leis positivas também sabe sobre sua
aplicação aos casos da experiência, denomina-se jurisperito (Iurisperitus), e tal
conhecimento do jurisperito é a jurisprudência (jurisprudentia).4
O jurista, em sua profissão, deve se pautar no que está legalmente
prescrito, não lhe incumbindo apresentar a demonstração racional da sua verdade
ou mesmo procurar fundamentar racionalmente uma contrariedade da lei com a
razão. Por isso, no caso do jurisconsulto e do jurisperito, o critério da justiça não
assenta na razão, mas na lei, como ensina Kant:
O jurista erudito não busca as leis que garantem o meu e o teu (se,
como deve, proceder como funcionário do governo) na sua razão,
mas no código oficialmente promulgado e sancionado pela
autoridade suprema.5
Assim, ao jurista não é dado fazer o uso público de sua razão, por
não ser consentido a ele contradizer a legislação civil. O uso público da razão
significa: “[...] aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande
público do mundo letrado.”6 Com efeito, não é facultado ao jurista exercer o
raciocínio público, mas apenas fazer cumprir o comando legal, que corresponde ao
uso privado da razão, conceituado por Kant ao expor: “Chamo uso privado àquele
que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele
confiado.”7
Deste modo, a profissão do jurista exige que sempre se oriente pelas
leis oficialmente promulgadas, para que as finalidades públicas não sejam
destruídas. Se o jurista procurasse contestar e raciocinar contra o governo, no
exercício de sua profissão, estaria o desrespeitando e promovendo a subversão do
povo, conforme aduz Kant: “[...] os funcionários da justiça, se cedessem à tentação
4
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes, p. 75.
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Traduzido por: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70,
1993, p. 27.
6
Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT, Immanuel. Fundamentação
da metafísica dos costumes e outros escritos. Traduzido por: Leopoldo Holzbach. São Paulo:
Martin Claret, 2003b, p. 13, grifo do autor.
7
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, p. 13, grifo do autor.
5
4
de dirigir ao povo as suas objecções e dúvidas contra a legislação [...] civil, instigálo-iam assim contra o governo.”8
Isto não significa que a pessoa do jurista não pode ser esclarecida,
pois existe a possibilidade do campo da liberdade subjetiva do conhecedor do direito
aumentar, o que ocorre quando ele se coloca na posição de cidadão de todo o
mundo, ou seja, quando não está no exercício da sua profissão. Comenta Heck:
“Para o filósofo crítico, o jurista só é esclarecido quando faz uso público de seu
entendimento, na contramão de toda e qualquer doutrinação, voltado à liberdade
pública e não à mera tutela do povo.”9
Deste modo, precavendo-se de uma leitura precipitada, é necessário
firmar que Kant não propõe uma obediência cega e perene dos juristas ou das
pessoas em geral ao governo, mas, ao invés, procura erigir a liberdade de
pensamento e a liberdade de pluma, permitindo ao cidadão manifestar-se por escrito
no uso público da razão. Conforme enuncia Kant:
Em toda comunidade tem que haver uma obediência, sob o
mecanismo da constituição estatal segundo leis de coação (referidas
ao todo), mas ao mesmo tempo um espírito de liberdade, posto que
cada um, no concernente ao dever universal dos homens, aspira a
ser convencido pela razão ao dever universal dos homens, aspira a
ser convencido pela razão de que essa coação é conforme ao direito,
a fim de não cair em contradição consigo mesma.1011
O que ocorre, em decorrência do uso público da razão, é a
possibilidade de uma oposição entre a faculdade filosófica e a de direito, para
promover o esclarecimento (Aufklärung) e mudanças paulatinas, que, por isso, não
precisam passar por uma revolução popular para acontecer. O esclarecimento
aproxima os funcionários do governo para a verdade. Assim, esses funcionários,
segundo Kant:
[...] mais bem elucidados também quanto ao seu dever, não
encontrarão escândalo algum na modificação da sua exposição, pois
é apenas uma melhor compreensão dos meios para o mesmo fim; e
tal pode muito bem acontecer sem ataques polêmicos e apenas
8
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades, p. 33.
HECK, José Nicolau. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: UCG; UFG, 2000, p. 54.
10
KANT, Immanuel. Teoria y práxis. Traducción y notas de Carlos Correas. Buenos Aires: Leviatan,
1984, p. 70, tradução livre.
11
En toda comunidad tiene que haber una obediencia, bajo el mecanismo de la constitución estatal
según leyes de coacción (referidas al todo), pero al mismo tiempo un espíritu de libertad, puesto que
cada uno, en lo concerniente al deber universal de los hombres, aspira a ser convencido por la razón
de que esa coacción es conforme al derecho, a fin de no caer en contradicción consigo misma.
9
5
causadores de perturbação, dos métodos de ensino até então em
vigor, com a mais íntegra persistência da sua substância.12
Por conseguinte, a faculdade filosófica submete a exame todas as
disciplinas, e não é limitada pelo governo, pois seu compromisso é com a totalidade
das articulações do pensar e agir do homem. Neste sentido, a faculdade de direito,
com relação à faculdade de filosofia, conforme preceitua Kant:
[...] deve aceitar as suas objecções e dúvidas, que ela publicamente
expõe - o que decerto elas poderiam achar oneroso porque, sem
semelhante crítico, teriam podido permanecer sem perturbação no
seu domínio uma vez adquirido, seja sob que título for e, não
obstante, imperar aí de modo despótico.13
Por isso, ao contrário do que faz o jurista em sua profissão, que tem
de se ater ao que é estabelecido como Direito (quid sit iuris), ou seja, naquelas
disposições legais sujeitas a variações e transitoriedades no seu conteúdo no
decorrer do tempo, ou então na aplicação do direito aos casos oferecidos pela
experiência, o filósofo procura se fixar propriamente na fundamentação do Direito,
confiando na razão como critério de desvelamento do que é imune aos fluxos e
refluxos do tempo, legitimando, a partir daí, os princípios a priori do Direito.14 Como
leciona Höffe:
Como ciência independente da experiência, a Filosofia do Direito não
pode substituir nem o legislador nem o juiz ou erudito em Direito. Por
outro lado, estes dependem do filósofo, a saber, da fundamentação
de princípios a priori do Direito, em que a constituição e as leis se
provam como racionais.15
Portanto, é ao filósofo a quem incumbe fornecer um conceito
universal para o Direito, e constituir a base para qualquer produção possível de leis
positivas. Também é do filósofo a tarefa de apresentar resposta à questão: “O que é
Justiça?”. O jurista não conseguiria fazê-lo, a menos que se abstivesse dos
princípios empíricos que fiam sua profissão. De outro lado, o papel do jurista não
pode ser ignorado ou substituído pelo filósofo. Por isso, é necessário fazer distinção
entre uma doutrina do direito positivo e uma doutrina do direito natural, as quais não
podem ser compreendidas como antagônicas entre si.
2 O DIREITO NATURAL E O DIREITO POSITIVO
12
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades, p. 33.
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades, p. 32.
14
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 75-76.
15
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 234.
13
6
A obra A Metafísica dos Costumes é o exemplo de um trabalho que
foi elaborado a partir do exercício da faculdade filosófica racional, pois expõe um
sistema racional do direito, apresentando conceitos e princípios partindo de
vertentes puramente intelectuais. Quanto à faculdade de direito, não se ancora na
razão, mas na autoridade do governo.
Em relação à faculdade de direito, a faculdade filosófica serve para
desenvolvê-la e lhe ser útil, de modo que a atividade do jurista não está livre de
exame filosófico. Verifica-se, assim, que o jurista e o filósofo possuem, cada qual,
uma esfera de atuação que os distingue, mas uma totalidade que os aproxima.
O jurista não persegue a verdade, mas o que está positivado como
direito. Por isso, o jurista não participa da ciência jurídica (jurisscientia), eis que esta
não versa nem sobre o conhecimento das leis positivas, nem à sua aplicação, mas,
ao invés, significa “[...] o conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (jus
naturae) [...]”.16
É possível afirmar que, enquanto o jurista se direciona à doutrina do
direito positivo, o filósofo se ocupa com a doutrina do direito natural. A distinção
entre direito positivo e direito natural não contraria a pretensão do sistema racional
kantiano. Muito pelo contrário, enquanto preocupado em desvelar os princípios a
priori do direito, Kant depara-se com a necessidade de elaborar uma doutrina
sistemática racional do Direito, em contraposição a uma empírica. Tal proposta traz
em seu bojo a distinção entre um direito natural ou racional e um direito positivo ou
empírico. Portanto, a divisão geral dos direitos, quando os direitos são encarados
como preceitos sistemáticos, é realizada em: 1- direito natural ou racional, que é o
direito não-estatutário, apoiado somente em princípios a priori, constituindo um
sistema de leis jurídicas racionais; 2- e direito positivo ou empírico estatutário, que é
aquele que advém da vontade de um legislador, exigindo uma legislação positivada
determinando-o no tempo e no espaço, podendo, por isso, ser verificado apenas no
estado civil.17
Kant concede ao Direito natural o revestimento de um Direito
racional, do que resulta, através de um método rigoroso, uma correção e
16
17
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 75.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 76.
7
esclarecimento do antigo procedimento da Escola de Direito natural, realizando uma
transavaliação racional ao que aquela Escola considerou como histórico, como
ensina Del Vecchio: “É costume designar estas correcções metodológicas dizendo:
com Kant, acaba a Escola do Direito Natural (Naturrecht) e começa a Escola do
Direito racional (Vernunftrecht).”18 Mais adiante, afirma ainda Del Vecchio:
A Kant no campo da Filosofia do Direito cabe o mérito de ter
afirmado o valor puramente racional (regulador) dos princípios do
Direito natural, e, por conseguinte, de ter acabado com a confusão
entre o histórico e o racional.19
Já o Direito positivo, se distingue por conter leis positivas,
caracterizadas pela obrigatoriedade proveniente, não da razão, mas de uma
legislação externa. É um Direito empírico, correlato às leis que existem efetivamente
e que são transitórias e diversas, variando de local para local. Por isso, enquanto o
Direito natural provém da razão, o Direito positivo advém da vontade do legislador.
É possível afirmar, portanto, que Kant não pretende fazer da
condição civil um estado onde exista apenas o Direito natural, nem um estado onde
impere apenas o Direito positivo. Por conseguinte, não propõe nem um sistema
jurídico fundado em um jusnaturalismo dogmático, nem um positivismo dogmático
desvinculado dos fundamentos e princípios da justiça. O que Kant pretende é erigir
o entendimento de que o Direito racional é necessário para fornecer o critério e
legitimação ao Direito positivo. Deste modo, esclarece Nour:
[...] por um lado, o direito positivo deve encontrar seu critério de
justiça e seu fundamento no direito natural; por outro, uma
comunidade não pode reger-se apenas pelo direito natural, que deve
assim fundar um direito positivo.20
Assim, as leis naturais sempre precedem as leis positivas. Mesmo
sendo possível cogitar uma legislação externa que tenha apenas leis positivas, há
necessidade de uma lei natural para fundamentá-las, ao estabelecer a autoridade do
legislador em obrigar outros mediante seu arbítrio.21
18
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Traduzido por: António José Brandão. 5
ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979, p. 127.
19
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito, p. 127.
20
NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant: filosofia do direito internacional e das relações
internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 5.
21
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 67.
8
3 O ATO JUSTO DO JURISTA
O jurista faz como critério do justo e injusto o que está disposto na lei
positiva, colocando os princípios empíricos na base de sua Doutrina do Direito
(Rechtslehre). Neste ponto, torna-se forçoso se precaver de uma interpretação
errônea que poderia conduzir ao entendimento de que a Ciência Jurídica está
lastreada, no seu fundamento, em princípios empíricos e em leis positivas
coercitivas. Para evitar esta leitura equivocada é imperioso compreender que Kant,
ao dizer que o critério do justo e injusto do jurista reside na lei positiva, pretende
atentar ao fato de que o jurista não deve se exceder no exercício de suas funções a
ponto de romper com o que é ordenado pelo Estado, fazendo sucumbir o estado
civil. Elucida Kant:
De facto, os decretos é que primeiramente fazem que algo seja justo,
e indagar se também os próprios decretos são justos é algo que os
juristas têm de rejeitar como absurdo. Seria ridículo pretender
subtrair-se à obediência perante uma vontade externa e suprema sob
o pretexto de que esta não se harmoniza com a razão.22
Neste norte, não é possível perder de foco que, partindo-se da
doutrina do direito positivo nunca se conhecerá o que verdadeiramente é o Justo e o
injusto, sendo que qualquer tentativa neste sentido está fadada a gerar tautologias
ou a remeter ao que as leis de algum país prescrevem ou já prescreveram.23 Assim,
com relação à doutrina do direito positivo sempre permanece oculto o critério geral
de determinação do que é Justo e injusto e, por isso, apregoa Kant: “Como a cabeça
de madeira da fábula de Fedro, uma doutrina do direito meramente empírica é uma
cabeça possivelmente bela, mas infelizmente falta-lhe cérebro.”24 Referido cérebro
é conferido pela faculdade filosófica, proposta por Kant na obra A Metafísica dos
Costumes, responsável por formular o conceito de Justiça.
4 O CONCEITO FUNDAMENTAL DE JUSTIÇA: O TRABALHO DO FILÓSOFO
A Justiça se expressa quando a ação de um indivíduo pode coexistir
com a liberdade do outro, de acordo com uma lei universal. Falar-se que uma ação
22
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades, p. 27-28.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 76.
24
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 76.
23
9
está de acordo com uma lei universal é o mesmo que falar que está de acordo com
a razão jurídica prática, posto que é esta quem confere universalidade à lei. Quando
a ação está em consonância à razão jurídica prática, por respeitar a liberdade
externa, espelha a Justiça. Esta é a concepção da Justiça como uma exigência do
direito. Com relação à ética, a Justiça é concebida como a máxima de ação que
impõe a necessidade de agir em consonância à liberdade externa, conforme diz
Kant “Que eu constitua como minha máxima agir justamente é uma exigência que a
ética me impõe.”25 Tratando da Justiça como exigência jurídica e ética, expõe Kant:
Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de
todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a
liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de
todos de acordo com uma lei universal.26
Assim, a Justiça é a perfeita fruição da liberdade externa pelo
indivíduo, para que assim não haja a invasão da mesma liberdade externa do outro,
engendrando um clima de harmonia entre todos e permitindo a estabilidade na vida
em sociedade. Por conseguinte, a Justiça exige a retirada dos obstáculos que
impedem a expressão da liberdade, pois, como alerta Bobbio:
É necessário, para que brilhe a justiça com toda a sua luz, que os
membros da associação usufruam da mais ampla liberdade
compatível com a existência da própria associação. Motivo pelo qual
seria justo somente aquele ordenamento em que fosse estabelecida
uma ordem na liberdade.27
Neste sentido, para a correta compreensão da Justiça, impende
ressaltar o significado de liberdade externa. Pela sua concepção de Liberdade
Externa, Kant pretende demonstrar a condição para existir, concomitantemente,
liberdade e convivência, de acordo com a razão, constituindo uma comunidade da
liberdade.
A busca da convivência pela liberdade e de acordo com a razão,
primeiro, não seria possível no caso de se pensar em alguns na posição de
senhores, subjugando outros, na condição de escravos, pois a liberdade, para estes
últimos restaria prejudicada; segundo, também não seria possível no caso de se
pensar em uma liberdade ilimitada, eis que a suscetibilidade para sujeição e a
25
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 77, grifo do autor.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 76.
27
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Traduzido por: Alfredo
Fait. 4 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 73.
26
10
conseqüente violação da liberdade permanece. Resolvendo este problema,
conjugando a convivência e a liberdade sem contradições, Kant apresenta sua
concepção de Liberdade Externa como o uso externo do arbítrio, que coexiste com a
liberdade de todos, de acordo a uma lei universal.28 Destarte, o conceito de
liberdade externa, conforme concebido por Kant (1984, p. 41, tradução nossa), diz
que:
[...] cada um tem direito a buscar sua felicidade pelo caminho que lhe
aprouver, desde que ao aspirar semelhante fim não prejudique a
liberdade de todos os demais com que pode coexistir com a
liberdade de cada um segundo uma lei universal possível (isto é, com
tal que não prejudique esse direito do outro).29
A injustiça expressa justamente o contrário, por corresponder a uma
ação que fere o outro na sua Liberdade, como ensina Kant: “[...] tudo que é injusto é
um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais.”30
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso da atividade do filósofo, voltada à verdade, demonstrar a
atividade do jurista em descompasso à razão, pelo fato da lei positiva estar em
desacordo com o direito natural, não deve-se admitir um direito à resistência. Kant
defende que a lei positiva deve, mesmo assim, ser obedecida, e, mais ainda, que é
um imperativo obedecer à autoridade atualmente no poder.31 Portanto, Kant não
acolhe a validade racional ou a legitimidade da resistência enquanto Direito. A razão
nega o Direito de resistência principalmente porque, como ensina Hansen:
[...] não se pode resistir à autoridade do legislador porque a
universalização da máxima da desobediência implicaria na
eliminação da própria legislação e do todo o direito, inclusive de um
possível direito de resistência.32 33
28
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, p. 238-239.
[...] cada uno tiene derecho a buscar su felicidad por el camino que le parezca bueno, con tal que al
aspirar a semejante fin no perjudique la libertad de los demás que puede coexistir con la libertad de
cada uno según una ley universal posible (esto es, con tal que no perjudique ese derecho del otro).
KANT, Immanuel. Teoria y praxis, p. 41.
30
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 77.
31
TERRA, Ricardo. A política tensa: idéia e realidade na filosofia da história de Kant. São Paulo:
Iluminuras, 1995, p. 96.
32
HANSEN, Gilvan Luiz. Facticidade e validade da desobediência civil no Estado Democrático
de Direito. 2003d. Thesis (Doctorate in Philosophy), p. 138.
33
Para maiores considerações a respeito, ver: HANSEN, Gilvan Luiz. Facticidade e validade da
desobediência civil no Estado Democrático de Direito. p.133- 139.
29
11
Kant é avesso às revoluções, ao levante popular, e propugna, em
seu lugar, o Esclarecimento (Aufklärung), a partir do qual o homem pode sair de sua
menoridade, ou seja, daquele estágio em que o indivíduo é incapaz de fazer uso de
seu entendimento sem a orientação de outrem.34 Entende ser melhor o caminho das
reformas do que o das revoluções, tendo como lema: “Sapere aude! Tem a ousadia
de fazer uso de teu próprio entendimento [...]”.35 Portanto, sustenta que os
movimentos revolucionários não produzem mudança de mentalidade, pois não
passam de ações violentas que apenas fazem o poder mudar de mãos, conforme
explica Kant: “Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal
ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, mas jamais produzirá a verdadeira
reforma do modo de pensar”.36
A revolução conduz ao estado de natureza, destrói os fundamentos
do Estado e, por isso, é contrária tanto ao Direito positivo quanto ao Direito natural,
eis que este último preceitua a saída do estado natural e a entrada no estado civil,
além de conter os princípios a favor da Constituição civil. Por isso, Kant propõe uma
obediência ativa, traduzido no princípio da razão prática que afirma: “[...] o poder
legislativo presentemente existente deve ser obedecido, seja qual for a sua
origem.”37
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Traduzido
por: Alfredo Fait. 4 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Traduzido por: António José
Brandão. 5 ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979.
HANSEN, Gilvan Luiz. Facticidade e validade da desobediência civil no
Estado Democrático de Direito. 2003d. Thesis (Doctorate in Philosophy).
HECK, José Nicolau. Direito e moral: duas lições sobre Kant. Goiânia: UCG; UFG,
2000.
34
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, p. 115.
35
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, p. 115.
36
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, p. 117.
37
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, p. 161.
12
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos adicionais e notas:
Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003a.
______. O conflito das faculdades. Traduzido por: Artur Mourão. Lisboa: Edições
70, 1993.
______. Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung). In: KANT,
Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos.
Traduzido por: Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003b. p. 115-122.
______. Teoria y práxis. Traducción y notas de Carlos Correas. Buenos Aires:
Leviatan, 1984.
NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant: filosofia do direito internacional e das
relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
TERRA, Ricardo. A política tensa: idéia e realidade na filosofia da história de Kant.
São Paulo: Iluminuras, 1995.
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