A “Roda de Leitura Reflexiva”

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OFICINAS TERAPÊUTICAS:
A “Roda de Leitura Reflexiva”
Atividade realizada nas comunidades terapêuticas
Renata Bomfim
(Escritora e arteterapeuta)
2014
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AS OFICINAS TERAPÊUTICAS
Renata Bomfim1
A emergência de uma nova forma de cuidado psicossocial na clínica da dependência química
Durante muito tempo o paradigma dualista cartesiano dividiu mente e corpo, colocando-os
como unidades que funcionam separadamente. Essa dicotomia perpassou variados campos do saber
humano, especialmente, aqueles relacionados à saúde, e fez com que as instituições reproduziram o
paradigma da exclusão, promovendo a doença e perpetuando estigmas e preconceitos. Mas,
mudanças podem ser sentidas, e sentimos a emergência de um novo paradigma que reconhece que a
unilateralidade do pensamento não dá conta da complexidade da complexidade humana. Como
descreveu Edgard Morin (2005, p. 59), “cada ser humano é um cosmos, cada indivíduo é uma
efervescência de personalidades virtuais, cada psiquismo secreto uma proliferação de fantasmas,
sonhos, ideias. [...] Cada um traz em si possibilidade de amor e da devoção, do ódio, da vingança e
do perdão”. A condição humana é multidimensional, e abarca tanto a unidade, quanto a
multiplicidade, e esse é o princípio da nossa identidade.
As equipes profissionais têm reconhecido a importância dos tratamentos que consideram o
ser humano na sua totalidade, dessa amenira, buscado articular ações que inter-relacionem as partes
psíquica, física, social e espiritual, dos usuários dos serviços de saúde, propiciando situações de
cuidado que o respeite na sua integridade e cidadania. Essas ações estão de acordo com a
Organização Mundial de Saúde (OMS), que preconiza ser a saúde um estado de equilíbrio
biopsicossocial.
O parentesco entre o movimento antimanicomial e as ct’s.
Questões relacionadas ao tratamento do dependente químico vinculam-se de forma estreita à
luta antimanicomial, movimento que despontou na década de 1980 e mobilizou familiares, usuários,
e trabalhadores da saúde mental com o intuito de lutar pela criação de uma Política de Saúde Mental
Brasileira. Observamos que o desejo, ─ utópico para alguns ─, de pôr fim aos manicômios e
construir novas formas de atenção para os portadores de saúde mental, se tornou realidade. Nesse
1
DOUTORA EM LETRAS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO/UFES, MESTRE EM LETRAS PELA UFES,
ARTISTA PLÁSTICA PELA UFES. ESCRITORA E ARTETERAPEUTA NO CENTRO DE ACOLHIMENTO PARA PESSOAS COM
DEPENDÊNCIA QUÍMICA DO ESPÍRITO SANTO/ REDE ABRAÇO. SITES: www.letraefel.com/ www.sersustentavel.org
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novo milênio, observamos variados avanços nas formas de cuidado, que se direcionam para a
reinserção psicossocial e respeito aos direitos humanos.
Variadas experiências exitosas contribuíram para com a construção dessa nova clínica em
saúde mental, na qual os usuários, antes asilados, destituídos de direitos e privados do exercício de
sua cidadania, passaram a ter suas vozes ouvidas, e a participar ativamente da rede de políticas
públicas. Os portadores de transtorno mental contam, na atualidade, com serviços como os CAPS I,
II, III, álcool e drogas, CAPSad e infanto-juvenil CAPSi. Os CAPS III e os CAPSad III funcionam
24 horas. Essas conquistas no campo da saúde mental não seriam possíveis, também, sem a criação
de leis que assegurassem os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais graves, e esses
direitos foram extensivos aos transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas2.
Compreendemos que a simples transposição dos modelos de atenção em saúde mental, os
CAPS, para o território da atenção em dependência química, especialmente o tratamento realizado
dentro das Comunidades terapêuticas, não seria viável por variados motivos. Primeiramente, por
que as comunidades terapêuticas, embora tenham se beneficiado com o movimento da luta
antimanicomial, não derivam desse, entes, tem a sua origem, como a conhecemos, segunda metade
do século XX.
O ministro luterano americano Frank Buchman, foi um dos pioneiros no tratamento da
dependência química no modelo comunitário, ele fundou a First Century Christian Felowship,
organização religiosa que pregava um retorno à inocência da igreja cristã primitiva. Essa
organização religiosa concebiam os transtornos mentais e o alcoolismo como sinais de “destruição
espiritual”. Buchman incluía nas práticas da First Century Christian Felowship, “a ética do trabalho,
o cuidado mútuo, a orientação partilhada, e os valores religiosos da honestidade, da pureza, do
altruísmo e do amor, o autoexame, a reparação, e o trabalho conjunto” (KEER-CORRÊA;
MAXIMIANO, 2013, p. 39). Observemos que, no germe da ideia das comunidades terapêuticas está
a religiosidade, o trabalho conjunto, o autoexame e uma serie de valores que se mantém até hoje.
O movimento criado por Buchman se expandiu e alcançou outros países. Foi na Escócia que surgiu
o termo “comunidade terapêutica”, criado pelo psiquiatra Maxwell Jones. Às práticas criadas por
Buchman, Jones acrescentou a humanização da equipe cuidadora, buscando novas formas de ajudar
os seus pacientes, ele procurou desmistificar a autoridade dos profissionais, com o intuito de
2
A política de saúde mental compartilha com as práticas de redução de danos e com a tradição da ética médica o
mesmo princípio fundamental. Qual seja: que acima de qualquer juízo sobre comportamentos e crenças de usuários de
drogas e/ou pacientes, deve estar a defesa da vida e o direito à saúde. Essa é a finalidade última do cuidado clínico ao
usuário/paciente (KEER-CORRÊA; MAXIMIANO, 2013, p. 24).
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diminuir as resistências e aproximá-los daqueles que necessitavam de tratamento. Maxwell Jones é
reconhecido como “precursor do conceito fundamental de comunidade como método de tratamento
de substâncias psicoativas” (KEER-CORRÊA; MAXIMIANO, 2013, p. 40). À abordagem de
mutua ajuda, foram agregadas novas abordagens como a motivacional e a prevenção de recaída. Em
1959, na Califórnia, Estados Unidos, Charles (Chuck) Dederich deu início do programa Synanon, a
partir das experiências vivenciadas no movimento Alcoólicos anônimos3 (AA). A Comunidade
terapêutica Synanon, além das vertentes espiritual e filosófica, integrou no seu programa os doze
passos e as doze tradições, bem como as abordagens terapêuticas e filosóficas vigentes na época,
como o existencialismo e a psicanálise. Nesse modelo o objetivo era, além de manter a pessoa
sóbrio, levá-la a mudar de vida. Buscando afastar as pessoas em tratamento das influencias que as
levavam ao consumo de drogas, o Synanon oferecia aos dependentes em tratamento, um ambiente
residencial de 24 horas. Desde então surgiram novas CT’s com programas mais articulados, como a
CT Daytop Village, 1963. Os modelos surgidos na América do Norte foram transplantados para a
Europa, América Latina, África e Ásia, e grande parte desses tinham como modelo o Programa
Synanon, e se desenvolveram com a participação de líderes comunitários, membros do clero,
políticos e profissionais de saúde. Segundo Keer-Corrêa e Maximiano (2013, p. 41), as gerações
subsequentes de CT’s conservaram muito dos elementos propostos pela Synanon, entretanto,
variadas alterações foram se processando e dando forma a modelos diferenciados de CT’s.
Observamos que as CT’s, desde a sua nascente, apresentam flexibilidade nas suas propostas,
o que facilitou com que na década de 1970, elas se multiplicassem sem qualquer tipo de
regulamento. A precariedade de algumas CTs chamou a atenção para a necessidade de se
estabelecer padrões básicos de funcionamento. Em 2001, a Agencia Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), adotou a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 101, regulamento
técnico para as comunidades terapêuticas. Nesse mesmo ano, 2001, a Secretaria Nacional sobre
Drogas (SENAD) realinhou a política vigente no país, surgiram daí novas Resoluções, como a RDC
nº 3, de 2005.
3
Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, em 1931, tratou por meio da psicanálise de um alcoolista, Roland Hazard,
banqueiro americano. Não alcançando os resultados satisfatórios, sugeriu que esse buscasse uma “experiência
religiosa”. Roland, então, buscou apoio em um movimento evangélico (o Oxford Group) e conseguiu se livrar de sua
dependência. Então, dentro do Oxford Group, surgiu um subgrupo de alcoolistas que, posteriormente, fundaram o
Alcóolicos anônimos (AA), em 1935, em Akron, Ohio. As raízes religiosas continuam presentes, desde então, nesse
movimento de tratamento a dependência. O “AA”, cresceu rapidamente e estima-se que exista hoje 98.710 grupos em
1.989.124 membros, em 150 países diferentes. No Brasil, há cerca de 6.000 grupos com 121.000 membros. Hoje, o
grupo que mais cresce é o “NA”, Narcóticos anônimos, o grupo possui mais de 300.000 membros. O Brasil tem
aproximadamente 15.000 membros (Sistema para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas:
Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento /SUPERA, 2001-b, p. 21)
4
Novos tempos para as comunidades terapêuticas (CT’s)
Vivemos um momento singular da história das comunidades terapêuticas, no qual, aos
moldes do movimento antimanicomial, a sociedades se mobiliza e exige de seus governantes
atitudes e leis que potencializem e consolidem esse serviço de utilidade pública. O ano de 2011 foi
importante para esse movimento, pois variados grupos sociais uniram forças para estabelecer
diretrizes comuns para as comunidades terapêuticas.
Desde o século XIX o interesse científico pela questão do uso das drogas se intensificou, e
deu origem a variadas teorias, uma delas preconizava que “o comportamento dependente resultava
de instintos subconscientes”, já outra, essa da década de 1940, chamada “teoria do reforço”, surgiu
da união entre a psiquiatria e a psicologia. Por meio de experimentos com chipanzés, essa teoria
buscava provar que após receberem drogas por um período, os chipanzés as pediam aos
pesquisadores. Essa pesquisa com macacos mostrou que o uso de drogas causa modificações
cerebrais, e que cada uma das substâncias psicoativas age de maneira particular no cérebro4.
Os circuitos cerebrais nos quais as drogas de abuso agem e provocam modificações se
chamam “Sistema de recompensa cerebral”, esses não são os mesmos circuitos responsáveis pela
memória e pelas emoções.
As drogas estimulantes, as anfetaminas, a cocaína, e mesmo doses baixas de álcool,
desencadeiam um processo chamado “sensibilização”, que faz com que o usuário se torne
intolerante. Nos estados de abstinência das drogas, há uma redução dessa percepção no usuário,
consequentemente do prazer, o que leva a pessoa à fissura e ao desejo do reuso da droga. Além dos
prejuízos neurológicos, o uso de drogas e álcool ocasiona uma série de doenças: o álcool afeta
quase todos os sistemas do organismo, especialmente o fígado; a cocaína agride, entre outros, o
sistema respiratório, assim como o crack e a maconha; os inalantes causam danos à medula óssea,
nervos e rins, além de problemas sociais como conflitos familiares, acidentes de trânsito,
vandalismo, problemas no trabalho, de ordem financeira, homicídios, suicídios, entre outros.
4
Cada droga tem seu mecanismo de ação particular, mas todas as drogas de abuso agem, direta ou indiretamente, em
um mesmo local do cérebro: uma via de circuitos neuronais responsável pelo sistema de recompensa cerebral.
Normalmente essa região do cérebro é estimulada quando sentimos prazer determinado por causas físicas, comer, por
exemplo, ou por estímulos ambientais agradáveis, como olhar para uma paisagem bonita ou escutar uma música da qual
gostamos (2011, p. 3).
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A complexidade do tema
O enfrentamento da dependência química, enquanto questão complexa, exige a utilização de
variadas abordagens. A arte funciona como mediadora da expressão subjetiva e, no campo da
terapêutica, essas ações repondem por variados nomes, —terapias expressivas, arteterapia, emoção
de lidar, entre outras —, e vem se mostrando efetivas e capazes de gerar menor resistência no
dependente em recuperação.
A Anvisa, por meio da RDC 29, de 2011, prevê que as comunidades terapêuticas tenham
atividades lúdicas nos seus plenos terapêuticos. Essas “atividades lúdico-terapêuticas” já são uma
realidade em ongs, hospitais, clínicas, CAPS, empresas, e outras instituições, entretanto,
observamos que muitas comunidades ainda não depertatram para a importância dessa ferramenta
como tratamento, lançando mão dela, apenas, como forma de passar o tempo e sem regularidade
temporal.
A arte, no contexto terapêutico, é compreendida como uma manifestação humana, um fazer.
Essa visão contrapõe ao olhar romântico sobre o artista que é visto, desde o renascimento, como
alguém diferenciado, detentor de uma “inspirada” divina. Para o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung,
“Fazer arte é produzir um estado em que o sujeito comece a fazer experiências com o seu próprio
ser, um ser em que nada mais é definido, rígido, petrificado, é produzido um estado de fluidez, de
transformação, de vir a ser”.
Observemos que, desde os primórdios da cultura, o ser humano interage com a natureza
plasmando a sua vontade na matéria bruta e comunicando sobre a sua subjetividade. O homem
registrou nas cavernas cenas do seu cotidiano, —símbolos, deuses, demônios—, e estas
manifestações nos falam, ainda hoje, trinta e cinco mil anos depois, sobre a forma da sua existência
naquela época. A arte contém uma linguagem universal, ela propicia um canal singular de expressão
dos afetos, fantasias e sonhos humanos. A criação para o homem é uma necessidade, é dessa forma
que ele vivencia a sensação de estar contido num espaço, e de ter um outro espaço contido dentro de
si. As criações revelam as experiências dos indivíduos diante de propostas e valores existentes
dentro de sua determinada sociedade.
Através dos materiais plásticos começam a surgir, de forma simbólica, os "não ditos", e
esses conteúdos passam a ser integrados pela consciência.
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Para que o indivíduo se beneficie terapeuticamente com as técnicas da arte ele não precisa
ter habilidades artísticas especiais. Qualquer pessoa pode ser acolhida numa proposta lúdicaterapêutica a partir do seu desejo e da habilidade do facilitador dessa atividade.
Uma das abordagens que amparam as atividades lúdicas terapêuticas é a arteterapia. A
arteterapia é um importante suporte teórico e prático para essas atividades. Ela é uma modalidade de
tratamento terapêutico onde os materiais plásticos atuam como veículos facilitadores da expressão
humana. Neste contexto, o “fazer” possibilita a expressão do não verbalizável. Através da
arteterapia temos como aferir academicamente o desenvolvimento do indivíduo, acompanhar as
suas criações e de auxiliá-lo onde encontre dificuldades. Esse aporte teórico também facilita a
leitura das produções.
Variados recursos expressivos como: tintas, canetas, papeis, argila, dança, música, etc.,
podem ser trabalhados a partir de variadas técnicas da arte, objetivando que o participante inicie um
processo de autoconhecimento e crescimento pessoal. O autoconhecimento demandada que a pessoa
reflita sobre a vida, sobre o estar no mundo, e esse “olhar para dentro” deve ser acompanhado por
um profissional capacitado, um facilitador e acompanhante do processo desse ser humano.
O Sistema para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas:
Encaminhamento, Intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento (SUPERA) (2001-b, p.
13), ressalta que “o desconforto psicológico pode ser reduzido pelo progressivo autoconhecimento”
pois o paciente “tem uma melhor oportunidade de diminuir ou parar o uso de drogas”, entretanto, o
tratamento não terá a mesma eficácia “se uma boa relação com o terapeuta não for devidamente
desenvolvida “, e nem bem manejada. É nesse contexto que a relação entre pessoa ou grupo e
facilitador, também se vê facilitada, pois a arte se apresenta como um mediadora da expressão. No
campo das oficinas lúdicas- terapêuticas, vale destacar o trabalho pioneiro da psiquiatra brasileira
Dra Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1946. Dra. Nise
inseriu a pintura, a modelagem e a xilogravura na sessão de terapia ocupacional do hospital, em
substituição a métodos de tramento corriqueiros na sua época, como o eletrochoque e lobotomia, e
chamos a nova abordagem: “Emoção de Lidar”. Esse trabalho, reconhecido internacionalmente,
atesta o potencial terapêutico das práticas artísticas, capazes de revelar o mundo psíquico dos
pacientes e de produzir melhoras na sua saúde. Acerca desta experiência, Mário Pedrosa (1947),
crítico de arte, escreveu: “Uma das funções mais poderosas da arte — descoberta da psicologia
moderna—, é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado
anormal”. O uso terapêutico da arte tem se difundido em larga escala no Brasil e no mundo.
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No campo da dependência química, a prática de atividades lúdicas-terapêuticas visa ampliar
as atividades de prevenção e tratamento por meio da sensibilização e conscientização das pessoas.
O Sistema SUPERA (2011, p. 9), ressalata que “a capacidade de utilizar várias técnicas
combinadas e uma boa dose de criatividade são fundamentais para o correto atendimento destes
pacientes (dependentes de drogas), além de um conhecimento teórico sólido”. As atividades lúdicas
permitem que pensamentos, sentimentos, e comportamentos que geram problemas para a pessoa
sejam modificados, gerando na pessoa um novo entendimento
Nas práxis das atividades lúdicas terapêuticas, ou das oficinas terapêuticas, como
costumamos chamá-las, as abordagens variadas contribuem para o entendimento dos processos
criativos e motivacionais dos participantes.
OFICINAS TERAPÊUTICAS
As oficinas terapêuticas acontecem no contexto da arteterapia como uma importante
ferramenta de produção e análise terapêutica. A palavra “oficina” possui variadas acepções, entre
elas: “lugar onde se verificam grandes transformações” e “lugar onde se exerce um ofício”, ou
seja, uma ocupação (trabalho) de ordem manual e/ou intelectual. A oficina terapêutica engloba estes
significados, abrindo para o indivíduo espaços de expressividade e de criação livre e espontânea.
Essa prática possibilita que, ao produzir, o indivíduo produza a si mesmo, e se perceba de forma
mais integrada.
As múltiplas possibilidades da linguagem da arte, permitem que o real seja trabalhado por
meio do simbólico, essas atividades são também profiláticas, evitando o adoecimento, além de
propiciarem a pessoa uma suplência subjetiva. Lúdicas e não invasivas, as oficinas terapêuticas
evitam que muitos afetos e silêncios sejam somatizados, ou seja, que sentimentos se transformem
em sintomas e doenças corporais, além de possibilitar que os seus participantes recuperem o
equilíbrio perdido, a autonomia, que voltem a sonhar, a se interessar pela vida, pelas pessoas e por
si mesmo. Os conflitos internos e externos vivenciados pelo dependente químico podem se projetar
a partir do material utilizado em oficina, e a partir daí os afetos podem ser elaborados e catalisados.
O Ministério da saúde, através da portaria 189, de novembro de 1991, regulamentou e
instituiu as oficinas terapêuticas como uma sendo importantes atividades extra hospitalares de
socialização e reinserção social. Os trabalhos nas oficinas terapêuticas potencializam as relações
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horizontais. A partir dessas atividades, tanto pacientes, quanto equipe técnica, interagem em um
ambiente de aprendizagem e diálogo que levam ao desenvolvimento da autonomia do paciente,
passo importante para que esse se reconheça como cidadão. As oficinas terapêuticas não objetivam
formar artistas, antes, elas visam mas possibilitar que o participante amplie os seus recursos
expressivos. As oficinas terapêuticas ainda ajudam o participante a lidar com a sua realidade
objetiva a partir do campo simbólico5. As oficinas terapêuticas fomentam os comportamentos
saudáveis em grupos, fazem das atividades importantes ferramentas de união do grupo, e espaço
propício para a prospecção de um futuro sem drogas.
As oficinas terapêuticas de Leitura: “Roda de Leitura Reflexinva”
As oficinas terapêuticas contribuem com o tratamento dos acolhidos nas suas variadas
fases. Na primeira fase, na qual se trabalha o “acolhimento” e o “autocuidado”, o acolhido precisa
se adaptar à rotina da comunidade e aderir, de forma efetiva, ao projeto terapêutico e social.
Questões relacionadas ao autocuidado passam a fazer parte da reflexão diária, e a pessoa passa a se
reconhecer como responsável por suas ações e escolhas. Nesse momento, no qual o acolhido deve
lidar com a fissura e a abstinência, torna-se imperativo desenvolver trabalhos motivacionais que o
ajude a lidar com a frustração, bem como, o ajude a direcionar as prioridades na vida.
A leitura de textos literários pode contribuir para com a organização psíquica do indivíduo, para
que esse repense as suas ações e prospecte uma nova forma de viver. Atividades aparentemente
simples como escolher um livro, lê-lo sozinho ou de forma compartilhada, podem auxiliá-lo nesse
processo. Nesse espaço de produção livre e espontânea da Roda de Leitura, a pessoa será
incentivada a refletir sobre os seus valores, e a dar um significado diferente às experiências vividas,
de forma que sua história de drogadicção e de sofrimento passe a ser encarada como um período a
ser superado. Essa experiência será acolhida pelo grupo que será um importante apoiador no
processo de mudança de comportamento.
O espaço das oficinas terapêuticas, marcadamente dialógico, facilita o enfrentamento das
emoções e o aumento da resiliência, e as atividades grupais são um reforço importante nessa fase,
5
Vale destacar que a representação não é uma mentira, e nem uma ilusão, antes, ela é uma realidade outra, que lança o
produtor/expectador em um mundo intersticial, paralelo, onde tudo é possível, até mesmo as grandes mudanças de rumo
na vida.
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pois o acolhido encontra forças nas histórias de vida de outros acolhidos, ele vê que não está
sozinho.
Na segunda fase, intitulada “Planejamento”, na qual o acolhido passa a pensar na sua vida sem
as drogas, é momento de planejar, de formular objetivos e estabelecer metas. Nessa fase é
importante leituras que reforcem a compreensão da importância da mudança de hábito e da adoção
de hábitos salutares, trabalhos que elevem a autoestima e forneça aos acolhidos, ferramentas que
facilitem o diálogo e a capacidade de restabelecer vínculos sociais. Trabalhos que fortaleçam a
resiliência podem estar vinculados a outros que objetivem a aceitação de uma rotina de trabalho,
estudo, etc. A literatura é um recurso importante. A reflexão a partir de variados textos (contos,
histórias, crônicas, poesias, etc.), bem como a escrita de textos, ou a reescrita da própria história e
de experiências vividas. Essa atividade pode associar-se a outras como a música, o psicodrama, a
pintura.
A terceira fase, intitulada “reinserção”, trata de uma questão fundamental e complexa, visto que
o acolhido encontra-se em fase de voltar ao convívio social e familiar. É importante que nessa fase
os trabalhoas leituras tenham como foco fortalecer a pessoa para lidar com preconceitos e estigmas
sociais que fazem parte do universo da drogadicção, é tempo de reforçar a identidade saudável da
pessoa, e tempo de interação. Oficinas lúdicas advindas da leitura de textos auxiliarão na expressão
das preocupações com a vida que o acolhido terá fora da comunidade e junto á familia e a sociedade
e na externalização de seus sonhos. Após a roda de leitura reflexiva os acolhidos que desejarem,
poderão, ainda, se expressar via a pintura, o desenho, a modelagem, a escrita, o psicodrama, a
dança, o teatro, entre outras técnicas artísticas.
Pressupostos básicos:
As Oficinas terapêuticas possuem função eminentemente terapêuticas, ou seja, todas as ações
nelas desenvolvidas tem como objetivo principal, potencializar o processo de recuperação do
acolhido nas três fases descritas. É importante destacar que essas atividades devem ser incentivadas
e não impostas. As oficinas terapêuticas devem ser caracterizadas como espaços de livre expressão
que privilegiem o binômio fala/escuta, bem como, devem acontecer em clima de aceitação e não
julgamento. O espaço das oficinas terapêuticas deve:

Fortalecer a resiliência, para que o participante se mantenha em abstinência e não recaia,
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
Auxiliar na reelaboração de vivências tristes e, até mesmo, traumáticas;

Fomentar a inter-relação entre os participantes e a troca de experiências,

Levar o participante a reconhecer e a lidar com suas sensações e sentimentos, ajudando na
identificação dos padrões de comportamento, para a mudança dos mesmos.
Segundo Miller e Rollnick (2011, p. XII), no campo terapêutico “nada funciona para todo
mundo”, é por isso que diferentes estratégias contribuem com para com a adesão do paciente ao
tratamento. A Resolução RDC 29, da ANVISA, prevê que no parágrafo único do seu artigo 1º que,
“o principal instrumento terapêutico a ser utilizado para o tratamento de pessoas com transtornos
decorrentes de uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas deverá ser a convivência entre
os pares”. Em consonância com tal proposição, a oficinas terapêutica intitulada “Roda de leitura
reflexiva”, busca oferecer aos participantes um espaço propício para o convívio, tendo como
mediador da expressão subjetiva, as técnicas da arte narrativa e a literatura.
A RODA DE LEITURA REFLEXIVA
A Roda de Leitura Reflexiva é uma ação educativa que propõe a utilização de textos
literários como mote para a reflexão, objetivando o despertamento para mudanças de pensamentos,
hábitos e comportamentos, bem como, para fomentar o desenvolvimento de variadas outras
atividades lúdicas com os acolhidos das comunidades acolhedoras conveniadas pelo Governo do
Estado.
A RDC 29, de 30 de junho de 2011 (ANVISA), prevê que as comunidades acolhedoras
ofereçam diversificadas atividades lúdicas terapêuticas para os acolhidos em tratamento. A Roda de
Leitura Reflexiva faz parte de um conjunto de oficinas terapêuticas que a equipe de projetos
especiais, do Projeto Terapêutico e Social, está desenvolvendo junto às comunidades acolhedoras.
Convém destacar que essa ação sucede um período de vistas e de diálogos com dirigentes das
comunidades, equipes técnicas e acolhidos.
A expressão narrativa, matéria da qual é feita a roda de leitura reflexiva, permeia a nossa
vida social, exemplo disso são as conversas que temos no cotidiano, essas são práticas discursivas
importantes: são linguagem. Entretanto, a expressão narrativa contida nos textos literários se
colocam para além das conversas, abrem para os indivíduos um importante campo dialógico que
abarcam as práticas do falar e do escutar.
É através da linguagem que o ser humano distingue, qualifica e nomeia. A literatura é a
linguagem carregada de significado, um ato criador que utiliza a palavra como forma de expressão e
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desempenha um papel na formação intelectual e sensível da pessoa. A literatura não tem a função
de educar, ela é uma arte, entretanto, ela influi fortemente em todos os aspectos da educação
humana em três áreas vitais: atividade, inteligência e afetividade. A literatura educa a sensibilidade
reunindo a beleza das palavras e das imagens que elas evocam.
É no contexto terapêutico da dialogia que se insere a Roda de Leitura Reflexiva. Nela,
variados textos, entre eles clássicos que são tesouros de diferentes tradições e culturas contribuem
para o desenvolvimento da competência comunicativa e, no caso do dependente químico em
recuperação, essa atividade funciona como um fortalecedor de um importante fator de proteção: a
convivência entre os pares. A leitura reflexiva possibilita a aquisição de vocábulos, conceitos, a
revisão de valores, e desenvolve o gosto pela leitura e pela escrita.
A narrativa no campo terapêutico
Trabalhar com narrativas no campo terapêutico pressupõe a possibilidade de fazer valer a
dimensão da autoria e da autonomia. A narrativa é um caminho para o conhecimento de si e do
mundo, tendo como mediadora privilegiada a cultura. Um texto é capaz de abarcar múltiplas vozes
sociais, o que faz com que os discursos se pluralizem, fomentando a horizontalização das relações
discursivas. A vinculação das práticas de leitura no âmbito terapêutico objetiva a sensibilização do
olhar para a diversidade/multiplicidade existente no mundo, propiciando o exercício da cidadania e
da solidariedade.
Não devemos perder de vista que a lógica cartesiana/linear, aplicada à saúde, —tomemos
como exemplo a lógica manicomial —, negou o uso da palavra, esse olhar institucionalizou a
proibição do ir e vir, e a violação de variados direitos sociais e políticos. Mas vivemos a emergência
de um novo paradigma, que reconhece e respeita a complexidade e a singularidade humana.
A Roda de leitura Reflexiva oportuniza ao acolhido das comunidades um espaço para
reflexão sobre si mesmo e sobre o estar no mundo, bem como, sobre as mudanças positivas que
podem acontecer na sua vida, a partir do momento no qual se implica no tratamento. A Roda de
Leitura Reflexiva abarca atividades como:






A leitura de variados textos,
A reflexão crítica;
A leitura de imagens e de sons (músicas);
A narração e a construção de histórias;
A estruturação de bibliotecas nas comunidades;
A realização de atividades como sarais, apresentações e exposições.
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Essa atividade lúdica terapêutica abarca, também, variadas possibilidades de inserção para o
participante, independentemente do seu estado cognitivo, da sua escolaridade, nível social, credo,
ideologia, nacionalidade, orientação sexual, etc. Além da abertura para a fala espontânea, a Roda e
leitura reflexiva:
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


Ajuda a desenvolver a escuta reflexiva e o senso crítico;
Privilegia o uso da imaginação como forma de criação;
Potencializa o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais para o aprendizado
como a memória, atenção, o pensamento, a percepção, e a imaginação;
Facilita a transmissão da cultura;
Desperta a curiosidade, a interatividade e a cooperação.
Favorece o gosto pela leitura e pela escrita de histórias (inclusive da própria história),
Promove a participação ativa e reflexiva do indivíduo no grupo.
Entre outros objetivos, a Roda de Leitura Reflexiva propõe realizar intervenções literárias
como os varais de poesia, que poderão ser exibidos nos encontros familiares e outros eventos da
comunidade, a realização de recitais poéticos, podendo, inclusive, culminar em publicações de
revistas, livros, informativos, etc., desde que acordado entre as partes envolvidas (acolhido,
comunidade, equipe técnica). Esse projeto aspira, potencializar as relações interpessoais, bem como,
fomentar a estruturação de uma biblioteca em cada comunidade terapêutica.
Outra ação da Roda de leitura é convidar escritores para que ministrem palestras, e minicursos
para os acolhidos. A essas atividades artísticas se associarão outras como o teatro, o
desenho/pintura, a música, etc.
É fundamental que os textos da Roda de leitura Reflexiva (livros, histórias, poesias, contos,
etc.) transmitam aos participantes um sentimento de respeito e dignidade pela pessoa de acordo com
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e para além do humano, esse respeito se estenda
para todas as formas de vida, fortalecendo valores como a justiça, a paz, a solidariedade, a
igualdade e a sustentabilidade.
Livros, revistas, fotografias, jornais, entre outros suportes textuais, serão utilizados nas
“Rodas”, e explorados nos variados gêneros literários: poesia, conto, romance, novela e crônica.
Destacamos a importância de que esta atividade tenha, como mediadora, uma pessoa da equipe
técnica da comunidade, pois questões importantes surgidas durante a “Roda” sejam acolhidas e
devolvidas enquanto intervenção terapêutica. Ressaltamos, também, que a mesma deve acontecer
em clima de amistosidade e respeito. Nas Rodas de Leitura Reflexiva, a fala do participante é
opcional.
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No Centro de Acolhimento para Pessoas com Dependência química do Espírito Santo, as
Rodas de Leitura são preparadas por nós e enviadas para as comunidades via e-mail, para que sejam
desenvolvidas pela equipe técnica (assistentes sociais, monitores, psicólogos) junto aos acolhidos.
Os textos também são levados pelas equipes de referencia das comunidades terapêuticas e
ministradas por eles, esses também são trabalhados por nós, semanalmente, em variadas
comunidades, de forma que semanalmente os acolhidos tenham contato com o mundo literário. Já
foram apresntados textos de Guimarães Rosa, Carlos Drummond Andrade, Cora Coralina, Renata
Bomfim, maria Lúcia Dal Farra, Patativa do Assaré, Teodorico Boa Morte, Bernadette Lyra, entre
outros escritores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BERNARDO, PatríciaPinna. A prática da Arteterapia: correlações entre temas e recursos. São
Paulo: Ed. Do Artista, 2008.

CAPACITAÇÃO PARA COMUNIDADES TERAPÊUTICAS— conhecer para cuidar melhor:
Curso para Líderes, Voluntários, Profissionais e Gestores de Comunidades Terapêuticas;
organizadores Florence Kerr-Corrêa, Vitore André Zilio Maximiano — Brasília: Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas, 2013.

GONÇALVES, Óscar F. Psicoterapia Cognitiva narrativa. Campinhas/SP: Editora Psy, 1998.

MILLER, William R.; ROLLNICK, Stephen. Entrevista Motivacional: preparando as pessoas
para a mudança de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artmed Editorial, 2001.

UNGER, Mangabeira Roberto. Paixão. São Paulo: Boitempo, 1998.

GONÇALVES, Miguel; HENRIQUES, Margarida Rangel, Terapia Narrativa da Ansiedade. 2.
Ed.Coimbra: Quarteto Editora, 2002.

Efeitos de Substâncias psicoativas no organismo: módulo 2/ coordenação do módulo Roseli
Boerngen de Lacerda. 4.ed. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011.
(SUPERA; Sistema para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas:
Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento/ Coordenação geral
Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte, Maria Lúcia Oliveira de Souza Formigoni).

Encaminhamento de pessoas dependentes de substâncias psicoativas: módulo 5/ coordenação do
módulo Flávio Pechansck. 4.ed. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011-b
(SUPERA; Sistema para detecção do uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas:
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Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento/ Coordenação geral
Paulina do Carmo Arruda Vieira Duarte, Maria Lúcia Oliveira de Souza Formigoni).
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