Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 1), 1999 Vacanti e col Relato de caso Tromboembolismo recorrente em paraplégico com lesão Tromboembolismo Pulmonar Recorrente em Paciente com Lesão Medular Luciano J. Vacanti, João J. Rodrigues, Cláudio H. Fisher, Sandra F. Delsin, Hermes T. Xavier Santos, SP A presença de lesão raqui-medular é responsável por uma alta incidência de trombose venosa profunda (TVP) e, conseqüentemente, uma maior freqüência de tromboembolismo pulmonar (TEP), com relatos de 70 a 100% dos casos 1. A extensão da obstrução vascular pulmonar é provavelmente o fator determinante mais importante da disfunção ventricular direita, a qual resulta num pior prognóstico e com maior risco de recorrência e óbito 2. Portanto, pacientes com este quadro são excelentes candidatos para a terapia trombolítica. Na suspeita clínica de TEP, quando há visibilização inequívoca do trombo e em conjunto com sinais ecocardiográficos de sobrecarga de ventrículo direito, isto permite o início do tratamento, incluindo trombólise 3. Relatamos o caso de um paciente paraplégico, com achados ecocardiográficos peculiares, no qual tivemos a oportunidade de avaliar duas diferentes abordagens terapêuticas para o mesmo quadro clínico. Relato do Caso trombo em AD, multilobulado, com grande mobilidade, com pedículo aparentemente livre e se projetando parcialmente para o VD na diástole (fig. 2). Ao Doppler, discreto refluxo tricúspide estimando a pressão sistólica máxima de artéria pulmonar em 70mmHg, revelando também: hipertrofia de ventrículo esquerdo (HVE) moderada com discreta ectasia de aorta ascendente. Fração de ejeção 74% e de encurtamento 36% (tab. I). O paciente evoluiu com hipotensão arterial, revertida com infusão de cristalóides. Iniciada heparinização plena, mantendo o TTPa em 1,5 a 2,5 vezes o valor basal e no 5º dia iniciada anticoagulação oral, mantendo-se o TAP em 1,5 a 2 vezes o valor basal. Ao 8º dia do início da terapêutica foi repetido o ecocardiograma, revelando desaparecimento das imagens de trombos, fluxo pulmonar com entalhe mesossistólico, sugestivo de hipertensão pulmonar, não sendo possível estimá-la e a presença de moderado déficit de VD (tab. I). Recebeu alta e foi mantido o RNI em 2 a 2,5 vezes o valor basal. Após dois meses do quadro inicial, realizou novo Paciente de 52 anos, era paraplégico em membros inferiores devido a trauma raquimedular por acidente automobilístico há 17 meses. Submetido sem sucesso, a cirurgia, de descompressão medular há nove meses. Aproximadamente dois meses após a cirurgia evoluiu com quadro de dispnéia súbita e síncope, sendo internado em outro serviço e diagnosticado provável tromboembolismo pulmonar (TEP). Na ocasião foram realizados dosagem enzimática com aumento da DHL e eletrocardiograma (ECG), que demonstrou alterações secundárias da repolarização ventricular em parede anterior, por provável sobrecarga ventricular direita, inexistentes em seu último ECG de seis meses atrás (fig. 1). A radiografia de tórax revelou elevação da cúpula frênica esquerda com obliteração de seio costo-frênico por reação pleural. O ecocardiograma transtorácico demonstrou aumento importante do ventrículo direito (VD) e moderado do átrio direito (AD), importante déficit do VD, apresentando a veia cava inferior dilatada. Imagem sugestiva de grande Sancor – Pronto Socorro Cardiológico de Santos Correspondência: Luciano J. Vacanti – Av. Cel. Joaquim Montenegro, 81/22 – 11035-001 – Santos, SP Recebido para publicação em 12/2/98 Aceito em 14/10/98 Fig. 1- Eletrocardiograma de 12 derivações realizado na 1ª admissão do paciente, revelando presença de onda Q em D3 e aVF, onda s em D1 e aVL, onda T invertida em D3 e de V1-V4, além de complexos QRS de baixa voltagem. 71 Vacanti e col Tromboembolismo recorrente em paraplégico com lesão Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 1), 1999 Fig. 2 – A) Ecocardiograma realizado na 1ª internação, revelando trombo em átrio direito; B) após dois meses, normal; C) na 2ª internação com abaulamento do septo interventricular para o ventrículo esquerdo e dilatação das câmaras direitas; D) após dois meses, normal. ecocardiograma, revelando apenas HVE discreta, a função contrátil de ambos os ventrículos, e ausência de hipertensão pulmonar ou trombos (tab. I e fig. 2). Após seis meses da internação foi suspenso o anticoagulante oral para nova cirurgia ao nível de coluna lombar e três semanas após o paciente evoluiu novamente com dor torácica, dispnéia e sinais e sintomas de baixo débito. O ECG mostrava o mesmo padrão do anterior e o ecocardiograma revelava a presença de trombo em tronco de artéria pulmonar com hipertensão pulmonar estimada em 75mmHg, além de comprometimento do VD (tab. I e fig. 2). Foi administrada estreptoquinase 250.000UI em 30min, seguida por 100.000UI/h durante 24h. A anticoagulação oral foi reiniciada após a infusão do trombolítico, ocorrida sem complicações. Recebeu alta no 7º dia de internação e foi mantido o RNI em 2 a 2,5 vezes o valor basal. 72 Ao 10º dia o ecocardiograma não demonstrou a presença do trombo e a pressão arterial pulmonar (PAP) foi estimada em 37mmHg. Após um mês havia uma hipocinesia discreta de VD e sem sinais de hipertensão pulmonar ou trombos (tab. I e fig. 2). Discussão A maioria dos êmbolos pulmonares resulta de trombos que se originam das veias profundas dos membros inferiores e pelve. Quando o trombo se desloca de seu sítio de formação, ele flui através do sistema venoso para a circulação pulmonar e, mais freqüentemente, oclui um ramo principal da artéria pulmonar. A presença de lesão raquimedular é responsável por uma alta incidência de trombose venosa profunda (TVP) e, conseqüentemente, uma maior freqüência de TEP, com relatos de 70 a 100% dos casos 1. Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 1), 1999 Vacanti e col Tromboembolismo recorrente em paraplégico com lesão Tabela I - Medidas ecocardiográficas do paciente na fase aguda do tromboembolismo pulmonar e controle após anticoagulação isolada ou trombólise associada a anticoagulação Parâmetros 1 2 3 4 5 6 VD dd VE dd VE ds Delta D FE PAP 36 40 26 36 74 70 36 47 29 39 77 -- 22 49 27 41 72 30 47 21 44 29 34 64 51 22 47 32 32 60 37 75 VD dd - diâmetro diastólico do ventrículo direito; VE dd - diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo; VE ds - diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo; Delta D - fração de encurtamento; FE - fração de ejeção; PAP - pressão sistólica estimada da artéria pulmonar. A extensão da obstrução vascular pulmonar é provavelmente o fator determinante mais importante da disfunção ventricular direita. Quanto maior a obstrução, maiores a PAP, a liberação de substâncias vasoconstrictoras e a hipoxemia que, por sua vez, aumentam ainda mais a resistência vascular, resultando em hipertensão pulmonar. O súbito aumento na PAP é refletido na elevação da pós-carga e tensão da parede do VD, seguida de distensão e dilatação desta câmara, promovendo desvio do septo interventricular para o ventrículo esquerdo, reduzindo seu enchimento e, conseqüentemente o débito cardíaco 2. Estes achados foram documentados pelo ecocardiograma e com resolução após o tratamento, nas duas ocasiões. O TEP deve ser suspeitado em pacientes hipotensos quando há evidência ou fatores predisponentes para TVP, na presença de sinais de insuficiência ventricular direita (IVD), tais como: distensão de veias jugulares, ritmo de galope, taquicardia, taquipnéia, especialmente quando associadas de alterações eletrocardiográficas como: bloqueio de ramo direito completo ou incompleto, onda s em D1 e aVL >1,5mm, Qs em D3 e aVF, mas não em D2, âQRS além de 90º, ou indeterminado, baixa voltagem precordial e onda T invertida em D3 e aVF ou de V1 a V4 3. Numa série de 49 pacientes consecutivos com TEP pelo menos três destes sinais eletrocardiográficos estiveram presentes em 76% deles 4. O ECG de nosso paciente também revelou: QS em D3 e aVF, mas em D2, bloqueio incompleto de ramo direito e onda T invertida de V1 – V4. No nosso paciente, além das alterações eletrocardiográficas, pudemos observar dispnéia, hipotensão arterial e síncope, sugerindo quadro de TEP maciço, provavelmente com obstrução >50% da vasculatura pulmonar. Em geral a presença de dispnéia, síncope ou cianose refletem um quadro de TEP mais ameaçador. Os achados ecocardiográficos de utilidade diagnóstica são: visibilização direta do trombo (raro), dilatação do VD, movimento anômalo septal, regurgitação da válvula tricúspide, dilatação da artéria pulmonar e ainda a redução do colapso inspiratório da veia cava inferior 5 . No caso em questão pudemos observar a presença de todos estes sinais ecocardiográficos, inclusive a visibilização do trombo nas duas internações. Pacientes com IVD após TEP, como neste caso, têm pior prognóstico e podem estar sob maior risco de recorrência e óbito, quando comparados com aqueles com função ventricular direita normal 6. A despeito de não termos realizado estudo de perfusão ou angiografia, o nosso caso, provavelmente, tratava-se de um TEP maciço, pelo fato de apresentar sinais clínicos e laboratoriais de IVD, baixo débito cardíaco, porém, com rápida resposta hemodinâmica favorável, apenas com a infusão de volume e sem a necessidade de drogas vasoativas. Parece que esses pacientes estariam mais propensos a TEP recorrentes e fatais apesar da anticoagulação e, portanto, com maior tendência atual de tratamento primário do TEP através de trombolíticos ou intervenção mecânica 6. A terapêutica primária reduz o trombo e o impacto hemodinâmico da embolia, com prevenção da liberação contínua de serotonina e outros fatores neuro-humorais, que agravam a hipertensão pulmonar, além da possibilidade de dissolução das fontes emboligênicas na pelve e veias profundas que, quando combinada com a anticoagulação, auxilia na prevenção da recorrência 7. Existe uma tendência a aplicar a trombólise nos casos com diagnóstico não invasivo, sem a angiografia, o que reduz a incidência de complicações de sangramento, particularmente hematomas no sítio da cateterização. Nos dois serviços em que este paciente esteve internado, o estudo de ventilação e perfusão não esteve disponível e seria necessária a sua remoção para uma clínica de radiologia, em uma UTI móvel. Na suspeita clínica de TEP quando há visibilização inequívoca do trombo no átrio ou VD ou na artéria pulmonar e em conjunto com sinais ecocardiográficos de sobrecarga de VD, isto permite o início do tratamento, incluindo trombólise ou cirurgia, especialmente se os outros exames complementares não estiverem disponíveis ou contra-indicados 3 .Como não havia dúvidas diagnósticas e a necessidade da terapêutica apropriada era iminente, optamos na primeira ocasião pela heparinização plena. Devido a uma cirurgia extensa há dois meses, pelo hipotético risco de fragmentação do trombo descrito e ainda pela estabilização hemodinâmica apenas com a infusão de volume, optou-se pela conduta clássica, não sendo utilizado trombolítico. Na segunda internação, em razão da última cirurgia realizada ter sido de menor porte, bem como do receio da evolução do quadro para um cor pulmonale, optou-se pelo uso do trombolítico, sem a realização do estudo de ventilação e perfusão ou angiografia, pelas razões já expostas. Goldhaber e col 7, num estudo com 101 pacientes, comparando heparina isoladamente com trombólise associada à heparina, concluíram que no 2º grupo havia melhora da função ventricular direita, redução do diâmetro diastólico final do VD e ainda melhora na perfusão pulmonar, todos esses parâmetros com significância estatística. Os autores ressaltaram que o subgrupo de pacientes com hipocinesia ventricular direita, devido ao alto risco de eventos adversos com o uso isolado da heparina, pareceu ser de excelentes candidatos para a terapia trombolítica. Ao contrário da trombólise no infarto agudo do miocárdio, limitada 73 Vacanti e col Tromboembolismo recorrente em paraplégico com lesão às primeiras 12h do quadro inicial, no TEP os pacientes com 6 a 14 dias do início dos sintomas beneficiaram-se igualmente do tratamento. Em que pese a recomendação atual ser de trombólise para os casos com TEP moderados ou maciços, resguardadas as contra-indicações, como doença vascular cerebral, cirurgia recente ou trauma, tivemos a oportunidade de avaliar duas diferentes abordagens terapêuticas para o mesmo quadro clínico, num único paciente, em ocasiões distintas. Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 1), 1999 Embora tenhamos obtido resultados similares, não podemos comparar os dois tratamentos em virtude de se tratar de um caso isolado. Portanto, em virtude dos dados disponíveis e na ausência de contra-indicações, a terapêutica de escolha nestes casos deve ser sempre que possível a trombólise. Agradecimentos À UTI Cardiológica do Hospital Ana Costa. Referências 1. 2. 3. 4. 74 Green D, Lee MY, Lim AC et al - Prevention of thromboembolism after spinal cord injury using low-molecular-weight heparin. Ann Intern Med 1990; 113: 571-4. Lualdi JC, Goldhater SZ – Right ventricular dysfunction after acute pulmonary embolism. Pathophysiologic factors, detection, and therapeutic implications. Am Heart J 1995; 130: 1276-80. Goldhaber SZ, Morpurgo M - Diagnosis, treatment, and prevention of pulmonary embolism. JAMA1992; 268 : 1727-33. 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