Pró-Reitoria de Graduação Curso de Serviço Social Trabalho de Conclusão de Curso A GARANTIA DE DIREITOS DA PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA ACOLHIDA NA UNAF-DF: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO Autora: Juliana Oliveira de Souza Silva Orientadora: Profª. Msc. Maria Valéria Duarte de Souza Brasília – DF 2015 JULIANA OLIVEIRA DE SOUZA SILVA A GARANTIA DE DIREITOS DA PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA ACOLHIDA NA UNAF-DF: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO Artigo apresentado ao curso de graduação em Serviço Social da Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Profª Msc. Maria Valéria Duarte de Souza. Brasília – DF 2015 Artigo de autoria de Juliana Oliveira de Souza Silva, intitulado: “A garantia de direitos da pessoa em situação de Rua acolhida na UNAF-DF: uma Reflexão a partir da experiência de Estágio”, apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Católica de Brasília, em 11 de junho de 2015, defendido e aprovado pela banca examinadora abaixo assinada. _______________________________________ Profª. Msc. Maria Valéria Duarte de Souza Orientadora Curso Serviço Social – UCB _______________________________________ Prof.ª MSc. Késia Miriam Santos de Araújo Banca Examinadora Curso Serviço Social- UCB _______________________________________ Profª. Drª. Luciana de Castro Alvares. Banca Examinadora Curso Serviço Social – UCB Brasília – DF 2015 Dedico este trabalho a todxs que se encontram pelo mundo em situação de Rua, em busca de trabalho, direitos, igualdade, respeito, justiça, paz, amor e superação. AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente a Deus pelo dom da vida! Agradeço de todo o coração ao Senhor, pois sem Ele nada na minha vida teria sentido. Agradeço também a grandeza da sua Misericórdia e pela Providência Santíssima, sempre tão próxima e redentora, atuante, capaz de realizar o imaginável, o impossível na minha vida. A Ti Senhor Deus toda honra e toda glória, agora e para sempre, amém! Agradeço a meus pais, meus irmãos, familiares, todos que torceram por mim! Em especial à Fernanda pela ajuda e acolhida. Também deixo aqui a minha homenagem, o meu agradecimento, o meu carinho ao meu esposo Antonio Marcos, parceiro, amigo e confidente, que me deu todo o suporte, montou toda uma estrutura de apoio e de ajuda pra que eu pudesse me dedicar, me ausentar na realização deste trabalho, acreditando em mim, apostando na minha capacidade e me incentivando a avançar. Essa vitória é sua também! Agradeço a compreensão, o carinho, a paciência recebida das minhas filhas: Giovana e Manoela, que são a extensão do meu coração, a alegria e a paz que tenho comigo! Vocês são a razão da minha vida! Agradeço também a minha orientadora Maria Valéria por ter aceitado o convite de orientação, pelo constante apoio, pela paciência, pela forma como conduziu a orientação, com presteza e principalmente pelo constante empoderamento para que eu conseguisse concluir essa etapa importante na minha vida! Muito obrigada por TUDO! Eu me sinto feliz e contemplada imensamente pela graça de ter conseguido cursar Serviço Social na Universidade Católica de Brasília-UCB. Estudar pra mim sempre foi um sonho, uma paixão, e se mais vidas eu tivesse mais vezes cursaria esse curso maravilhoso! Agradeço aos professores, mestres e amigos que são o exemplo de força, coragem, inteligência, sabedoria, que acrescentaram muito à minha vida, muito mais que conteúdo acadêmico, mas, sobretudo inspiração, admiração, respeito, amizade, carinho. Muito obrigada a todos os professores que tive o prazer de conhecer, que participaram ativamente na construção do meu saber e deixou todo um legado que vou levar pra vida toda! Em especial agradeço a Diretora e professora Karina Figueiredo, aos demais professores: Erci Ribeiro, Késia Araújo, Luciana Alvares, Helga Hendler, Maria Liz, Erondina, Luís Delgado, Paulo Quermes, Claudia Quermes, Judith Cavalcanti, Ozanira Ferreira, Cilene Lins, Cássia Guimarães, Carla Fernanda, Carlos Alberto, Valícia, Warberson, Ricardo Gonçalves, Fábio Félix, Carla Christie, Frei Márcio, José Lisboa (in memoriam), Rubens. Enfim a todos que contribuíram para meu crescimento pessoal, profissional e acadêmico. Agradeço a Ellen, e à Vanusa que foram mais que especiais, sempre tão gentis, solícitas e muito prestativas. Muito Obrigada Meninas! Agradeço aos amigos que tornaram mais lindo esse momento de aprendizagem e também mais especial e feliz: Marcos Oliveira, Fábia Laureano, Ana Paula Almeida, Luciana Vieira Entre tantos outros. Agradeço a minha supervisora de Estágio Aparecida do Carmo, e também a Elizabeth, que estiveram dispostas a me receber e a me orientar na prática do estágio. Propondo reflexões e contribuindo significativamente na minha formação. Agradeço a todos os usuários acolhidos na Unidade de acolhimento para adultos e famílias-UNAF-DF que permitiram acompanhar de perto o seu caso, e conhecer parte de sua história. Pra todos vocês o meu respeito, as minhas orações, o meu desejo de superação e vitória. Moço peço licença Eu sou novo aqui Não tenho trabalho, nem passe, eu sou novo aqui Não tenho trabalho, nem classe, eu sou novo aqui Eu tenho fé Que um dia vai ouvir falar de um cara que era só um Zé Não é noticiário de jornal, não é Não é noticiário de jornal, não é Sou quase um cara Não tenho cor, nem padrinho Nasci no mundo, sou sozinho Não tenho pressa, não tenho plano, não tenho dono Tentei ser crente Mas, meu Cristo é diferente A Sombra Dele é sem Cruz, dele é sem Cruz No meio Daquela Luz, Daquela Luz E eu voltei pro mundo aqui embaixo Minha vida corre plana Comecei errado, mas hoje eu tô ciente Tô tentando se possível zerar do começo e repetir o play Não me escoro em outro e nem cachaça O que fiz tinha muita procedência Eu me seguro em minha palavra Em minha mão e minha lavra. (Meu Mundo é O Barro- O RAPPA, 2008). 7 A GARANTIA DE DIREITOS DA PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA ACOLHIDA NA UNAF-DF: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO JULIANA OLIVEIRA DE SOUZA SILVA1 Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar reflexões acerca da garantia de direitos da proteção social na sociedade capitalista voltada para o segmento populacional de pessoas em situação de rua, que estão acolhidas na UNAF/DF- unidade de acolhimento para adultos e famílias do Distrito Federal. Este artigo é uma produção histórica e social, para tanto, procurou-se fundamentar o estudo de seu objeto a partir de uma abordagem de análise documental da instituição estudada, aliado à escuta qualificada, a observação participante, e das práticas vivenciadas no campo de estágio. O material de pesquisa utilizado como base de estudo foi o diário de campo confeccionado no período de estágio, além de dados e informações dos relatórios, também elaborados no campo de estágio supervisionado I e II, durante 1º e o 2º semestre de 2014. Este estudo também contou com a análise bibliográfica sobre a temática. Dessa forma o artigo propõe mostrar parte da realidade percebida na unidade de acolhimento, analisar as políticas sociais no contexto da sociedade capitalista direcionada a esse segmento populacional, descrever os serviços e os atendimentos oferecidos aos usuários na unidade, e as contradições nas garantias de direitos observadas no campo de estágio supervisionado. Palavras-chave: População em situação de Rua. Capitalismo. Política de Assistência Social. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho acadêmico de conclusão de curso-TCC foi motivado a partir da experiência de estágio curricular obrigatório na Universidade Católica de Brasília-UCB, realizado na unidade de acolhimento para adultos e famílias em situação de rua no Distrito Federal- 2UNAF-DF e da perspectiva de suscitar algumas reflexões a cerca das garantias de direitos dos acolhidos na unidade, no tocante as políticas sociais. Diante da leitura da realidade expressa no período do estágio curricular foi possível verificar que os usuários acolhidos na unidade apresentam demandas bem complexas e diferenciadas, com características únicas e específicas, peculiares no âmbito do Distrito Federal, exigindo assim mais que um olhar crítico, sob sua condição, mas também uma política que contemple esse segmento populacional na superação desse fenômeno. No que se refere à relevância, do tema abordado, infere-se que este poderá subsidiar o conhecimento e o debate sobre a realidade do perfil da população em situação de rua acolhida na unidade e também das condições da forma como são implementadas as políticas públicas direcionadas às pessoas em situação de rua acolhidas na UNAF-DF. Dessa forma é possível também buscar avaliar e implementar políticas sociais voltadas para o perfil desse segmento social acolhido na unidade com mais embasamento teórico e metodológico, visando a materialização dos objetivos do projeto ético-político do serviço social e na garantia de direitos. O referencial teórico adotado para compor a base deste estudo está segmentado em vários autores, por categorias, entre eles: População em situação de Rua (PEREIRA, 2009; 1 Estudante do curso de Serviço Social da Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected] 2 A Unidade de acolhimento está localizada na QS 09 lote1/7- Aguas Claras- Areal- Taguatinga- DF. 8 SILVA, 2009; GATTI; PEREIRA, 2011) Política social (BEHRING; BOSCHETTI, 2011; FALEIROS, 2006), Assistência Social (PEREIRA, 2008; YAZBEK, 2007). Em termos metodológicos, além da revisão bibliográfica, foi realizada a análise documental dos programas desenvolvidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – (MDS), Secretaria de Estado de Desenvolvimento Humano e Social do Distrito Federal – 3SEDHS, operacionalizadora da Política de Assistência Social no Distrito Federal e seus respectivos programas e ações. Além disso, os supracitados materiais: diário de campo confeccionado no período de estágio, além de dados e informações dos relatórios, também elaborados no campo de estágio supervisionado I e II, durante 1º e o 2º semestre de 2014. Assim, o presente artigo foi estruturado em sete tópicos: O primeiro, a referida introdução; o segundo tópico refere-se à pobreza e a população em situação de rua, tocando em questões como o preconceito, a criminalização, o estigma e a vergonha que a população em situação sofre constantemente; na sequência três tópicos subdivididos: 2.1- narra o surgimento da população em situação no mundo, e sua origem nas primeiras formações societárias pré-capitalistas; o 2.2- aborda a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva e descreve a sua formação consequências pela não absorção completa da mão de obra no mercado, 2.3- trata da Criminalização da Pobreza e do Darwinismo Social, e faz um apontamento para casos de violência e aborda teórica e historicamente onde e quando foram difundidas as ideologias de ordem burguesa e liberal, que criminaliza e “justifica” as práticas violentas O terceiro tópico situa o capitalismo e a população em situação no Brasil, fazendo um resgate histórico da sociedade brasileira escravocrata que passando à liberdade, sofreu com a limpeza étnica, com práticas higienistas e também na manutenção e reprodução da exclusão na divisão social do trabalho; O quarto apresenta uma análise da Política de Assistência Social, bem como apresenta os mecanismos que o Estado lança mão para enfrentar as desigualdades sociais. São apontados os avanços na garantia de direitos, conforme explicitados na Constituição Federal/88, na PNAS- Política de Assistência Social, na LOAS- Lei Orgânica, no SUASSistema Único de Assistência Social; Também este tópico foi subdividido em mais dois subtítulos: 4.1- descreve as redes socioassistenciais; e o 4.2 destaca a Política Nacional para a População em Situação de Rua e trata dos princípios norteadores da política. O quinto aborda a questão da Política de assistência social para a população em situação de Rua no Distrito Federal. Dessa forma, pretende-se fazer um levantamento da rede e dos principais serviços que o DF dispõe para atender a População em situação de Rua; O sexto dispõe de uma analise crítica observada no campo de estágio Supervisionado, que foi realizado na Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias em Situação de Rua- UNAF, no período do primeiro e segundo semestre do ano de 2014; e por último: o sétimo, que traz as considerações finais. 3 A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Humano e Social do Distrito Federal é órgão estratégico da administração direta do Governo do Distrito Federal, responsável pela execução das políticas de Assistência Social, Transferência de Renda e de Segurança Alimentar e Nutricional, da gestão do Sistema Único de Assistência Social e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no âmbito do DF; É regida pelas disposições do Decreto nº 33.187, de 8 de setembro de 2011 e Decreto nº 33.668, de 21 de maio de 2012, por seu Regimento Interno e legislação complementar. A Secretaria por objetivo garantir e efetivar o direito à proteção social para a população em situação de vulnerabilidade e risco social, por meio da oferta de serviços e benefícios que contribuam para o desenvolvimento social no Distrito Federal. . 9 2 POBREZA E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA A problemática da população em situação de rua ocupa hoje destaques nas manchetes de jornais e em muitos noticiários. Não exatamente com o enfoque na reflexão sobre quais condições vivem estas pessoas, ou mesmo para nos situar quanto à implementação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento e a superação desse fenômeno. Infelizmente, para muitos, essa temática sempre está vinculada a naturalização da sua condição desfavorável na sociedade capitalista; e à meritocracia, que julga em si os méritos próprios do indivíduo, dissociando toda a conjuntura histórica, econômica, política, social e de outras ordens, desse sujeito que segundo a visão meritocrática, não “fez por merecer” uma posição social melhor a que ocupa na sociedade. O preconceito direcionado a esse grupo populacional é antigo assim como o surgimento do próprio fenômeno, que se iniciou com o desenvolvimento das primeiras cidades pré-industriais e permanece ainda mais latente na nossa sociedade. No que se refere ao preconceito e a discriminação que esse segmento enfrenta quase que diariamente, destacam-se três grandes vertentes que contribuem para que essa exclusão social permaneça sem o seu correto enfrentamento. A primeira é a ideia que se passa no imaginário da sociedade, de que a vida na rua, sobre tais condições precárias, sub-humana e violenta seja uma escolha pessoal de vida, ou mesmo uma condição a qual muitos acreditam que este segmento populacional fez por merecer estar ali, não se esforçando o bastante para superá-lo. (PEREIRA, 2010). A segunda é a própria atuação do Estado, que pela implementação de políticas paliativas, de cunho repressor, policialesco e até higienista atua na manutenção de uma política pública segregacionista, excludente, injusta, focalizada que não atende as reais demandas desse segmento populacional, porque defende a expansão do Capital e favorece a classe burguesa, conservadora e dominante, deixando alheios a própria sorte todos que se encontram em situação de vulnerabilidade extrema, como é o caso da rua. (FALEIROS, 2006) E a terceira: não menos importante, é que esse segmento populacional (sendo usuário ou não de alguma política social) enfrenta a vergonha e a baixa autoestima quanto a sua cidadania por estarem associados à pobreza. A vergonha existe e perdura por muito tempo como uma ferida psicológica que nunca pode se curar. As pessoas falam da dor, das humilhações diárias e dos constrangimentos frequentes os quais eles se esforçam para evitar (WALKER, 2014). É importante deixar claro que estas três vertentes não se excluem uma das outras, mas que todas são vivenciadas em conjunto na mesma proporção de complexidade. Para Lavinas (2003) a pobreza possui definições diversificadas. Podendo ser generalizada, com significado de falta de renda ou pouca renda e em um sentido mais criterioso, como é um estado de carência e privação, que pode colocar em risco a própria condição humana. A que se dizer que no Brasil a pobreza, assim como em outros países, é um fenômeno antigo (PEREIRA, 2008), que antecede até mesmo ao capitalismo. A pobreza ao longo da história, assume diversas formas de expressão, de concepção ideológica, utilizando-se vários recursos de enfrentamento, reconhecendo-se cada vez mais a necessidade de um controle maior e por fim a sua causa estrutural. Em relato a uma entrevista ao Boletim do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS/CEAM/UnB) que traz em sua capa o pobre sendo criminalizado por sua pobreza, a Professora Potyara Pereira enfatiza em uma de suas falas que: O estigma da pobreza é um fato real e cruel porque profundamente injusto e alienante. É desesperador constatar, no Brasil de hoje, a generalização do ódio ao pobre, fomentado pela grande mídia de massa, que reproduz à exaustão [...] de que o 10 pobre tem culpa de sua condição social e, por isso, deve ser punido. [...] O pior é que a maioria dos pobres acaba por acreditar nesse mantra antissocial, sem perceber que se sentir vergonhado de sua condição é arcar com um “pecado” que não é seu; é isentar o sistema capitalista de qualquer responsabilidade pela sua existência; é legitimar as desigualdades sociais [...] (PEREIRA, 2014, p.6-7). Nenhuma das perspectivas acima assinaladas vincula a existência de pessoas em situação de rua às contradições inerentes ao modo de produção capitalista. Assim, faz-se necessário compreender como a dinâmica do Capital originou a questão social e todas as suas expressões. 2.1 CAPITALISMO E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO MUNDO O fenômeno da população em situação de rua não é um fenômeno recente. Podemos dizer que é um fenômeno social antigo, que teve sua origem nas primeiras formações societárias pré-capitalistas. De acordo com Santos e Bevilacqua (2012) há registros, por exemplo, de pessoas vivendo na rua em praticamente todas as civilizações da antiguidade: Egito, Grécia, Roma, China. Contudo é no advento do capitalismo que este processo deixa de ser uma ilustração de um modo de vida, para caracterizar-se um problema social de massa. E as transformações desse novo modelo econômico alteram definitivamente o tamanho e a proporção do contingente populacional, de pessoas vivendo sobre as condições de fome, escassez e miséria. E a partir de um resgate histórico fica evidente que a transição do modelo feudalista para capitalista é a causa estruturante para início e manutenção até os dias atuais dessa condição de precariedade, incivilidade e espoliação (SPOSATI, 2009). Essas transformações sociais tiveram maior impacto a partir do século XVII, quando se observou um crescimento exponencial do número de indivíduos obrigados a viverem às ruas em condições degradantes de extrema miséria e fome. Huberman (1986) relata em seu livro a História da Riqueza do Homem que ¼ da população pernoitava nas ruas da cidade de Londres na década de 1630. Já no século XIX o escritor Jules Gabriel Janin descreve Paris como uma cidade sitiada por esfomeados: A Paris da noite é assustadora; é o momento em que a nação noturna se põe em marcha. [...] o terror é grande, terrível, imenso. E o ouvido reconhece o ruído surdo da patrulha cinza que começa sua caçada desesperada. Esta é a população fervilhante e furtiva que Paris deixa viver nos becos pavorosos dissimulando-a bem atrás dos museus e dos palácios. (JANIN apud PEREIRA; GATTI, 2011, p. 14). A pobreza e a miséria chegaram a níveis alarmantes também em outras cidades europeias, como Londres, por exemplo, que em meados do século XIX contava com uma população de cerca de dois milhões de habitantes e a população em situação de rua, chegava a mais ou menos cento e cinquenta mil pessoas. As crises econômicas, cíclicas, que é própria do capitalismo, iniciada na expansão comercial e no aumento da extração de pedras preciosas, acarretando a inflação dos preços, criou um contingente de pessoas que não participam efetivamente do processo de geração de riqueza e nem de sua justa distribuição. Assim a pobreza só é acentuada a partir desse novo modelo societário quando interfere diretamente nas condições de vida do trabalhador e nas suas relações sociais. 11 No feudalismo, o trabalhador era o camponês que vivia em regime de servidão em uma economia baseada na agricultura na qual a relação de dependência era mútua entre o senhor feudal e seu servo. Huberman (2010, p.5) descreve duas importantes características dessa relação servil no feudalismo: Primeiro a terra era dividida em duas partes, uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele, enquanto a outra era dividida em muitos rendeiros camponeses, e segundo, a terra era cultivada não em campos contínuos, mas pelo sistema de faixas espalhadas [...] outra característica marcante- é o fato de que os camponeses não só trabalhavam as suas terras, mas também a propriedade do senhor. Os trabalhadores sobreviviam do plantio e da colheita nas terras feudais, lá podiam podia trabalhar e também prestar serviços à nobreza, com isso garantiam sua subsistência e a proteção militar. E apesar de trabalharem muito e não dispor de nenhum conforto ou qualidade de vida, típicos da época, esses trabalhadores estavam assim satisfeitos, porque o seu trabalho garantia os mínimos necessários para sua sobrevivência e de sua família. [...] durante a idade média, não se podia encontrar conforto em parte alguma, mas alimento em toda parte. Numa época em que quase toda a população vivia a partir do solo, a pobreza e as maneiras rudes podiam coexistir, mas as necessidades mais básicas do homem podiam ser supridas. É raro a terra não fornecer o suficiente para amainar a fome de quem quer que nela trabalhe. A população era pobre, mas vivia. Hoje, a maioria é mais feliz, mas morreria de fome caso não houvesse a caridade pública (TOCQUEVILLE, 2003 apud LOPES, 2010, p. 23-24). Com a expulsão dos trabalhadores das terras feudais e a destituição dos meios de produção, esses camponeses tornaram-se “livres” para venderem a sua força de trabalho, o que acabou por acarretar num crescente pauperismo da classe trabalhadora. Pois muitos foram excluídos da nova conjuntura social. O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação; sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros. (MARX, 1984, p.341). Esse processo de acumulação do Capital, como um processo de transição econômica e social foi um movimento paradoxal na história do surgimento do Capitalismo, porque se deu em um momento em que a liberdade dos trabalhadores da servidão nos feudos, os obrigou a tornarem vendedores de sua força de trabalho e por tanto de si mesmos (Marx, 1996). Sendo assim é possível afirmar que esse fenômeno população de rua possui relação direta com as mudanças no mundo do trabalho e é uma expressão da questão social. Este fenômeno é resultante de um processo histórico no qual o trabalhador é dissociado dos meios de produção, acarretando uma migração compulsória, o êxodo rural, em busca de oportunidade para venda e exploração de sua força de trabalho pelos burgueses nas primeiras indústrias manufatureiras. 2.2 SUPERPOPULAÇÃO RELATIVA OU EXÉRCITO INDUSTRIAL DE RESERVA Com a expansão das relações capitalistas a nascente indústria manufatureira não conseguiu absorver toda a mão de obra, gerando um excedente na produção e reprodução da superpopulação relativa de trabalhadores afetando as relações sociais e produtivas, 12 ocasionando assim um forte impacto da população pobre nas grandes cidades e também uma mudança da ideologia do trabalho que intencionalmente passou a ser o centro da vida e o único meio de subsistência do trabalhador que deslocado do seu locus natural se viu obrigado a vender sua força de trabalho a quem quisesse dela (sua força) dispor. Toda essa massa de ex-camponeses, sem ter o que comer, onde se abrigar, como trabalhar, o quê e onde produzir, “converteram-se rapidamente da condição de desempregados, para uma imediata massa de esmoleiros, assaltantes, vagabundos em parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias” (MARX, 1996, p.356). Para Marx esse processo inicial do capitalismo, foi um dos métodos mais violentos, em consonância a expropriação, a violência e a fraude e consequentemente um crescente e intenso processo de pauperismo da classe trabalhadora. Para Lavinas (2003, p. 26) o surgimento da pobreza como questão social está concomitantemente associado ao surgimento das grandes cidades: A moderna sociedade capitalista em gestação necessitava imperiosamente integrar o proletariado e forjar a classe trabalhadora. O primeiro conflito derivado da necessidade da integração se dá na disputa pela apropriação do espaço urbano, na luta pela moradia e pelo controle dos novos lócus de produção. Por isso mesmo, a pobreza, enquanto questão nasce com o selo urbano. Citando Marx (1988b) é possível perceber que a destituição dos meios de produção aliada à falta de capacitação desses trabalhadores e a não absorção da mão de obra rural pelo mercado de trabalho tornou-se a causa principal do agravamento do pauperismo na era do capital. Os que foram expulsos de suas terras não foram absorvidos com a mesma rapidez com que se tornaram disponíveis seja pela incapacidade da indústria, seja pela dificuldade de adaptação repentina ao um novo tipo de disciplina de trabalho. Dessa forma, “muitos se transformaram em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maioria dos casos, por força da circunstancias”. (MARX, 1988b, p. 851). Esse pauperismo é a parte da superpopulação relativa composta dos aptos para o trabalho, mas que não são absorvidos pelo mercado. E os que foram absorvidos transformaram-se em assalariados sem direitos. Esse mesmo fenômeno é chamado por Marx, como “aquela parcela da classe trabalhadora que perdeu a condição de sua existência, a venda da força de trabalho e por isso vegeta na base da caridade pública”. (Marx, 1988 b: p, 759). Por essa razão institui-se que a partir da questão social, que é inerente ao Capitalismo, o contingente populacional, marginalizado e excluído do sistema de produção e reprodução capitalista, sobra-lhe apenas os espaços públicos, como espaço de existência e sobrevivência. Desse modo o fenômeno população de rua é uma expressão inconteste das desigualdades sociais, resultantes das relações sociais capitalistas, que se processam a partir do eixo, capital/trabalho [...]. Nesse contexto o aprofundamento do desemprego e do trabalho precário constitui fator relevante da expansão da superpopulação relativa ou exército industrial de reserva. (SILVA, 2009, p. 115). Para Silva (2009) a “libertação da servidão” e da coerção corporativa foi um dos movimentos históricos que transformou produtores rurais e camponeses em assalariados, quando não, um exército de reserva de mão de obra. Marx e Engels afirmam em sua obra que é pelo trabalho que o ser humano se distingue dos outros animais: 13 Podem-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião, e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de subsistência e esse passo à frente é a própria consequência de sua organização corporal ao produzirem indiretamente sua própria vida material. (MARX; ENGELS apud SILVA, 2009, p. 38-39). Por isso o trabalho é tão importante e valorizado pelo homem. Mas aqui se entende o trabalho como transformador da natureza, pela sua importância de satisfazer às necessidades humanas básicas e não o trabalho alienante, de caráter aviltante ou mercadológico por sua essência. Desse modo Silva (2009) retoma a ideia de Marx e Engels, quando descreve o trabalho como atividade consciente dos seres humanos de transformação da natureza, orientada para o fim de satisfazer a suas necessidades, sejam elas as necessidades de reprodução da vida material ou outras necessidades. Essa afirmação conduz à compreensão do trabalho, na condição de atividade concreta do processo de trabalho, como uma condição básica de toda a história da humanidade, uma vez que a sociedade não para de consumir nem de produzir, pois as necessidades sociais e as formas de satisfazê-las são produtos históricos (MARX, 1988 apud SILVA, 2009 p. 42). Há que se entender que o trabalho assim como a própria relação social, é inerente ao homem. Porque faz parte da sua natureza transformar e criar, por meio da produção. Mas de uma produção coerente, suportável ao meio ambiente, de forma que a necessidade seja sanada, e não o inverso, quando se cria excessos. Estes excessos a que me refiro são as mercadorias, os lucros, a riqueza produzida não socializada, além de um número cada vez maior de trabalhadores explorados e também de desempregados eximidos de seus direitos sociais. A crítica aqui fundamentada se baseia na lógica marxista, e está na exploração do homem pelo homem. Porque no modo de produção capitalista, o trabalhador possui apenas a sua força de trabalho para vendê-la, enquanto que o burguês, o capitalista, por sua vez, possui o controle dos meios de produção e os produtos do trabalho, adquiridos de forma injusta e perpetuados na reprodução dessas relações sociais. Principalmente porque o lucro desejado pelo capitalista depende da exploração da mão de obra do trabalhador, pela mais–valia. Sendo assim a relação entre o capital e o trabalho é uma relação de exploração do primeiro em relação ao segundo (SILVA, 2009). Dessa forma é o trabalho vivo que gera a mais-valia e esse é o fundamento da sociedade capitalista, “produzir mais-valia é a lei absoluta desse modo de produção” (MARX, 1988 apud SILVA, 2009, p. 75). Apesar dos lucros serem gerados pela exploração da mais-valia, depende direta e/ou indiretamente da existência de uma superpopulação relativa, de um exército de reserva, ou melhor, da existência de desempregados na classe trabalhadora. Essa população relativamente supérflua ou exército industrial existe sob as formas de população flutuante, ora repelidos, ora atraídos pelo mercado de trabalho (SILVA, 2009). A dinâmica do Capital é, portanto da mesma forma que o trabalhador precisa vender sua força de trabalho para viver, o capitalista precisa comprá-la para enriquecer. E mais, o Capital pressupõe trabalho assalariado, e o trabalho assalariado pressupõe o Capital. Eles se condicionam e se reproduzem reciprocamente. (MARX, 1988 apud SILVA, 2009, p.75). E em consonância à essa lógica do mercado e da dinâmica do capital, vemos até os dias de hoje, o modo comercializado da força de trabalho, sendo negociado muitas vezes por setores que deveriam proteger o trabalhador e não lança-lo a própria sorte como historicamente se tem feito. 14 É importante também fazer um contraponto das alterações que o próprio capitalismo vive e revive a fazer por conta das suas crises econômicas, crises essas inerentes ao próprio modo de produção. Inclusive o processo de transição do capitalismo industrial, para os demais, até chegar ao modo financeiro, especulativo e de financeirização que conta com esforços do sistema financeiro internacional, com teorias neoliberais bem mais vorazes, que ditam regras e apontam cortes e privações de alguns bens e serviços essenciais, como se tem visto agora com a política de austeridade determinada e defendida pelo fundo monetário internacional- FMI, forçando privatizações e práticas intervencionistas cada vez maiores de retração nos direitos já conquistados, desregulamentação de direitos sociais, flexibilização de leis trabalhistas, ou seja, reestruturação no modo produtivo, para readequação do ciclo produtivo do capital (SILVA, 2009, p. 84). 2.3 CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA, DARWINISMO SOCIAL, DISCURSO E PRÁTICAS DE ÓDIO E VIOLÊNCIA A criminalização da pobreza é uma estratégia antiga direcionada aos que não foram incorporados ao mercado de trabalho, temporária ou permanentemente. Por essa razão criouse uma legislação repressiva, além da disseminação de ódio e violência que vemos até os dias atuais. (FALEIROS, 2006). Marx (1984) afirma que, por volta do século XVI “o pecado de vagabundagem” deveria ser corrigido da seguinte forma: Henrique VIII, 1530: eles os vagabundos devem ser amarrados atrás de um carro açoitados até que o sangue corra de seu corpo; em seguida devem prestar juramento de retornarem a sua terra natal ou ao seu lugar onde moraram nos últimos três anos e serem postos a trabalhar. (...). Aquele que for apanhado pela segunda vez por vagabundagem deverá ser novamente açoitado e ter a metade da orelha cortada; na terceira reincidência, porém o atingido, como criminoso grave e inimigo da comunidade, deverá ser executado (MARX, 1984 apud PEREIRA 2010, p. 5). A justificativa para tal estratégia funda-se também em uma criação ideológica para aqueles que não se adequam aos moldes industriais, fabris, de exploração, para que fossem criminalizados, considerados responsáveis por sua própria condição, e ainda receberem qualificações pejorativos que trazem consigo a expressão do preconceito e o estigma direcionadas às classes mais pobres ou desempregadas. Dessa forma infelizmente essas concepções equivocadas atravessaram séculos e perduram até os dias atuais, como vimos recentemente no discurso de um 4vereador, que afirmava sem nenhum constrangimento ou pudor que “mendigo não deveria votar, mas virar ração pra peixe”. Essa onda de ódio e violência propagada gratuitamente também chega as vias de fato nas ruas dos grandes centros urbanos, em casos de crimes bárbaros, dotados de frieza como execuções com alto requinte de crueldade, como é o caso mais comum e antigo, atear fogo às pessoas que estão dormindo ao relento, no banco de uma praça, de uma parada de ônibus, sendo vistas não pela sua condição de vulnerabilidade mas como possíveis ameaças. Sobre essa realidade Brasília tem em sua história, além das manchetes do dia-a-dia, o caso do índio Pataxó, Galdino Jesus dos Santos, que no ano de 1997, veio a Brasília para participar de uma comemoração do dia do índio e foi assassinado com solução inflamável e fogo ateado em seu corpo, enquanto dormia em uma parada de ônibus, por cinco jovens de 4 Frase polêmica dita pelo Vereador do partido PT do B, José Paulo Carvalho de Oliveira, conhecido como Russo, do Município de Piraí, Rio de Janeiro, disse na tribuna no momento da comemoração dos 25 anos da Constituição Brasileira de 1988, no dia 05/10/2013. 15 classe média alta, sob a alegação de que não sabiam se tratar de um índio, mas pensavam que era um mendigo. Nessa concepção equivocada de mundo, supostamente esses jovens admitiram que o mendigo merecia morrer. Não só esse pensamento, mas também o comportamento é reflexo do imaginário social que as pessoas têm desse segmento populacional de naturalizar e criminalizar a pobreza e não contentes, ainda resolvem “intervir”, com falas preconceituosas, práticas violentas, desprezo e ainda extermínio. Diante dos exemplos citados, não só a sociedade, mas também o Estado adota práticas não muito coerentes, pois acaba negando ou violando os direitos ou mesmo adotando práticas higienistas, de políticas focalizadas, segregacionistas que reforçam o caráter moralista da sociedade do capital. Historicamente não só essas práticas, como os termos utilizados desde o início foram difundidos pela ideologia liberal, que vê no individuo a resposta para todas as suas questões. Desse modo, rotular as pessoas de “mendigos”, “preguiçosos” e “vagabundos” por sua vez culminou em uma das formas mais violentas de tratar a pessoa em situação de rua, porque a isola do contexto social da pessoa e enxerga nela só uma parte da realidade. E mais, esses termos trazem consigo o moralismo e a criminalização da pobreza e o crime de ódio. Analisando a questão da criminalização dos considerados inaptos para a reprodução dos modelos sociais hegemônicos, percebemos que a disseminação dessa ideologia burguesa de cunho liberal, esteve aliada à ética do trabalho junto com o Darwinismo social. A chamada ética do trabalho fundamenta uma moral, ou seja, um conjunto de valores predominante do século XIX e perdura até a atualidade. Foi escrita por Max Weber, prega em seus propósitos que o trabalho é uma atividade edificante e benéfica espiritualmente, independente das condições a que esse trabalho se realiza e principalmente, se aquele que trabalha se reconhece no fruto de seu trabalho (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 60). Aliada à ética do trabalho, também o Darwinismo social, contribuiu para criminalização da pobreza. Este por meio da apropriação teórica e ideológica de estudos sobre a origem das espécies, feita por Charles Darwin, naturalista inglês, na primeira metade do século XIX, foi utilizado por Herbert Spencer e Thomas Malthus para que o indivíduo assim, como as espécies fossem avaliados e definidos por mecanismos de seleção natural, por seus méritos próprios. O argumento principal dessa ideologia era de que os mais fracos deviam perecer, e o Estado não deveria intervir na sociedade em favor dos mais fracos, isto é, a fraqueza aqui conhecida era para aqueles que não são ou não estejam aptos para vender a sua força de trabalho para exploração do Capital. Os mais fracos descritos por Malthus e Spencer são os pobres. Mesmo porque nessa concepção a riqueza (e também a pobreza) dependeria única e exclusivamente do esforço individual (FALEIROS, 2006, p. 14). Para essa concepção, a pobreza seria um desiquilíbrio entre a produção e a população. Por esta razão o indivíduo era julgado e culpado de sua situação. Para eles e muitos economistas e estudiosos da época, e até atuais, essa ideologia era que tanto a pobreza quanto a riqueza, seriam um fenômeno natural, e não o resultado de um tipo de um modelo econômico existente (FALEIROS, 2006). Malthus em seus estudos, demostrava sua forma liberal de pensar, quando afirmava incisivamente que o indivíduo era responsável por si mesmo. Na sua concepção não se devia despender recursos com os pobres dependentes ou “passivos”, mas vigiá-los e puni-los. (BERING; BOSCHETTI, 2011, p. 61). 16 Além das ideologias liberais5, algumas legislações repressivas que determinam algumas práticas violentas, como nos relata Faleiros (2006, p. 12): Assim, os considerados vagabundos e mendigos, eram açoitados, ou em caso de reincidência, se lhes marcava com ferro e os condenava a morte (coação direta e indireta ao trabalho) foram proibidas as esmolas não identificadas como tais. Aliada às práticas repressivas e culpabilizadora da pobreza, a violência disseminada a esse segmento populacional reforça ainda a onda de preconceito e também naturalização a violência. A superexposição à violência, seja proveniente de outros moradores de rua, de pessoas da sociedade civil, seja do próprio Estado (que deveria protegê-los), é uma das facetas mais difíceis da vida da população de rua. [...] Conclui-se que a violência contra a população de rua é a concretização do preconceito, da discriminação, da ignorância e da intolerância de grandes parcelas da sociedade. (PEREIRA, 2009, p.84-85). 3 CAPITALISMO E POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL O fenômeno da população em situação de rua no Brasil parte do mesmo princípio iniciado na Europa. Ele surge ao longo do desenvolvimento capitalista no país, quando começa o processo de industrialização e modernização dos meios produtivos. A partir das mudanças nas relações produtivas e no modelo econômico do país, ocorre uma transformação social, visto que a pobreza apesar de também estar presente no Brasil desde sua colonização e também nas áreas rurais, só atingiu a sua forma mais cruel e desumana, com o processo de industrialização e urbanização no país. Essa transição impactou fortemente as desigualdades sociais, por diversos motivos, aumentando o número de pobres e de indigentes. O primeiro motivo é que na virada do século XIX para o século XX, o Brasil estava deixando de ser escravocrata para se inserir a economia capitalista. Essa mudança de sistema provocou alterações econômicas e sociais, já que teve que ressignificar o mundo do trabalho, que passou de trabalho escravo, para tornar livre o trabalhador para que ele pudesse vender sua força de trabalho. De acordo com Pereira (2008, p.37-38), a nova condição do negro alforriado agora era essa: Os escravos que foram libertos da escravidão, não tiveram seus direitos e nem sua cidadania garantida. Estes foram abandonados pelo Estado, sem acesso à terra ou a casa própria, que não conseguiam se fixar em nenhuma atividade laboral e, devido a esses fatores, vivia em meio à ignorância, a miséria, e a dependência dos grandes produtores ou fazendeiros. Os escravos alforriados precisavam ser incentivados a ver o trabalho como algo fundante da vida, algo positivo e sagrado, independente de ganhos e vantagens materiais. Na verdade, essa ideologia fundante da ordem capitalista só remetia o interesse de inserir uma mão de obra barata e o aumento de seus lucros: Para tanto o conceito de trabalho precisava se despir de seu caráter aviltante e degradador- característico de uma sociedade escravista- e ganhar uma valorização positiva. Era preciso incutir uma nova ideologia do trabalho- sobretudo entre os que carregavam nas costas a experiência da escravidão-tentando articular a mesma aos 5 doutrina baseada na defesa da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal. 17 conceitos de ordem e progresso que inspiravam a recém-criada republica. Era necessário fazer com que o liberto amasse o trabalho em si, independentemente das vantagens materiais que pudessem daí advir. Era fundamental transmitir ao liberto que trabalho é o valor supremo da vida em sociedade, que o mesmo é o elemento característico da vida “civilizada” (VALADARES, 1990 apud LOPES, 2010, p. 29). A partir desta nova simbologia, o trabalho assalariado passou a ser o centro da vida humana, e a classificar a sociedade como trabalhadores, que se distanciavam da miséria e com aqueles que não queriam vender sua força ao mercado, esses ficaram conhecido por vadios, lembrados como pessoas que estavam “viciadas ao ócio”. O povo brasileiro que era composto por índios, negros e mestiços, apesar de representarem mais de 65% da população, foram alvo de preconceito, pois eram vistos como parasitas inúteis e vagabundos e alvo também da covardia por serem excluídos do direito de exercer sua cidadania e de ocupar os espaços produtivos, ainda que sob as condições de trabalho precário e agora assalariado (PEREIRA,2008). O Estado Brasileiro começa então a se preocupar não com os níveis de pobreza e muito menos com as condições sub-humanas do trabalho escravo introduzido no país sobre o pretexto de modernização, mas com a possibilidade de criar uma classe média negra poderosa e independente, que conseguia se empregar nas fábricas e nas indústrias nascentes. Para impedir essa suposta possibilidade, a reação foi outro golpe na democratização de acesso a oportunidades no país. Iniciou-se um processo de incentivo à imigração europeia, a fim de instaurar uma limpeza étnica, sob o pretexto de criar no Brasil um ‘povo de verdade’. A modernização do Brasil remontou as práticas antigas de injustiça social, com a junção da ideologia liberal de culpabilização dos pobres, com o Darwinismo social associada a ideologia do embranquecimento do povo brasileiro. Para Maricato (2013) o Brasil continuou excluindo e segregando racial e economicamente o seu povo. Para a autora o país mantinha o mesmo modelo arcaico: A urbanização foi fortemente influenciada por esses fatores: a importância do trabalho escravo (inclusive para a construção e manutenção dos edifícios e das cidades), a pouca importância dada à reprodução, da força de trabalho mesmo com a emergência do trabalho livre, e o poder político relacionado ao patrimônio pessoal. (MARICATO, 2013, p.18). A defesa da ideologia do embranquecimento da população brasileira é perceptível nas declarações eugenistas da época feitas pelo Dr. Rubião Meira: A raça negra, você sabe tão bem quanto eu, está desaparecendo gradualmente (...) tornando-se extinta, e há cidades neste país onde raramente se acham negros, estando eles a ser substituídos por imigração estrangeira. Estrangeiros têm nos dado toda sua energia trabalhando arduamente, batalhando com extraordinário fervor, elevando nossa nação, modificando nosso caráter, contribuindo sem sombras de dúvida para o nosso progresso. (RUBIÃO, apud PEREIRA, 2008, p.38-39, grifo nosso). Aliado a esse movimento de transição do modelo econômico, outro fator de total relevância é a forma como foram criados e posteriormente ocupados os novos centros urbanos, que no País se deu em um processo também contraditório e violento. Considerando o universo das Américas, o Brasil já apresentava cidades de grande porte desde o período colonial, mas é somente a partir da virada do século XX que o processo de urbanização da sociedade começa a se consolidar com transformações sociais mais profundas (MARICATO, 2013). 18 De acordo com Pereira (2008) os primeiros centros urbanos se deram a partir da criação e da concentração dos locais de trabalho, fábricas, oficinas, comércios nos centros da cidade, e também no mesmo local, foram construídas de forma desordenada, irregular e sem planejamento algum do Estado, os domicílios, as residências, as habitações coletivas para abrigar os trabalhadores. Essas moradias foram idealizadas para abrigar as famílias e os trabalhadores. As condições de moradia eram muito precárias, não apresentavam condições mínimas de saneamento básico ou higiene. O Rio de Janeiro foi considerado a Capital das epidemias, pelas condições insalubres de péssimas condições sanitárias e habitacionais. Esses cortiços como eram conhecidos, serviram de reduto da mão de obra barata, e posteriormente ao mercado imobiliário, já que sob pressão da elite e com ações integradas, o governo utilizou de práticas violentas para fazer uma higienização nas cidades, o que consequentemente desencadeou outros fatores acometidos a classe trabalhadora e mais pobre. Segundo Pereira e Gatti (2011) as práticas higienistas apontadas pelo governo, contava com o apoio de grupos empresariais, especuladores imobiliários, que lucravam com o aluguel e a venda de imóveis de habitações valorizadas após a expulsão dos pobres das zonas centrais. O governo brasileiro praticava ações violentas e criminosas, como incêndios e derrubadas de barracos com pessoas ainda dentro da moradia, vacinação compulsória, esterilização obrigatória de mulheres pobres. Aliados a estes procedimentos, o Estado ainda seguia fechando cortiços, criando campanhas de enfrentamento de epidemias e de combate aos locais de moradia insalubre, com a pretensa ideia de moralizar a pobreza e criar um povo de verdade. Há que se dizer que o moralismo e a hipocrisia do Estado e das elites da época tinham o apoio dos meios de comunicação. Que ao invés de denunciar ou se opor a essa prática, fortalecia e disseminava a campanha de caráter moralista, retirando de suas casa a classe trabalhadora, para depois aumentarem seus lucros e desabrigarem grande parte da população. Em consequência da desapropriação de suas moradias, esses indivíduos passaram a ocupar lugares centrais, criando novas formas de habitação, como as favelas, em lugares afastados, nas periferias da cidade e ainda fazendo da rua o seu local de moradia permanente ou provisoriamente. É nesse contexto de desassistência e de violação de direitos que se constitui no Brasil o fenômeno da população em situação de rua, iniciado, mantido e naturalizado. 4 AS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL No Brasil a assistência social assume caráter de política pública a partir da Constituição de 1988 ao compor juntamente com as políticas de saúde e previdência o sistema de seguridade social. Essa nova concepção reconhece a assistência como direito do cidadão e dever do estado. Dessa forma, configura-se um grande avanço social e histórico no país, pois a assistência social, historicamente confundida com a caridade ou filantropia, assume estatuto de um direito universal, garantindo a quem dela precisar, sem a obrigação de contribuição, rompendo assim com a antiga lógica da 6cidadania regulada. 6 Trata-se, portanto, de uma concepção da política social como privilégio e não como direito. Wanderley Guilherme dos Santos afirma: “por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontramse, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras, são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei” (SANTOS, 1979, apud PEREIRA, 2008, p. 43 ). 19 Dentre os seus avanços no marco regulatório da cidadania e democracia, o país buscou também enfrentar os problemas sociais por meio de políticas públicas e sociais com a implementação da lei orgânica da assistência social- LOAS, elaborada em 1993, que regulamenta os artigos 203 e 204 da Constituição Federal/88. Em seu artigo primeiro a LOAS define assistência social como: “Um direito do cidadão e um dever do Estado é política de seguridade social não 7 contributiva, que prevê os mínimos sociais , realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas”. (BRASIL, 1993). Dessa forma a LOAS preconiza que a gestão da política e a organização das ações devem ser articuladas em um sistema descentralizado e participativo entre todos os entes federativos. De encontro à efetivação de diretos também a PNAS- Política Nacional de Assistência Social elaborada e implementada em 2004 demarca sua especificidade no sistema público não contributivo-descentralizado e participativo, tendo por função a gestão do conteúdo especifico da assistência social no campo da proteção social brasileira. A PNAS tem como público usuário: “Cidadãos e grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade e riscos, tais como a: famílias de indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar; grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias de alternativas diferenciada de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social”. (BRASIL, 2005). Dessa maneira a Política de assistência social se expressa na materialidade do conteúdo da assistência social, atuando na proteção social no âmbito da seguridade social em todos os tipos de proteção, seja básica, especial, de média e alta complexidade e toda a rede de serviços socioassistenciais. (BRASIL, 2004). A proteção social básica8 tem por objetivo 7 A noção de mínimos sociais segundo Pereira (2008) é muito heterogênea, pois varia de acordo com a lógica, o modelo de proteção social adotada. Podendo ser ampla, concertada e institucionalizada. Contudo são mais facilmente verificáveis em países capitalistas centrais-geralmente definidos com recursos mínimos, destinados a pessoas incapazes de prover por meio do seu próprio trabalho a sua subsistência. Seu financiamento advém de fonte orçamentária e seu funcionamento prevê obrigações e contrapartidas entre os seus beneficiários, o Estado e a sociedade. (PEREIRA, 2008, P. 16). 8 A Proteção Social Básica atua por intermédio de diferentes unidades. Dentre elas, destacam-se os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e a rede de serviços socioeducativos direcionados para grupos específicos, dentre eles, os Centros de Convivência para crianças, jovens e idosos. O CRAS é uma unidade pública estatal descentralizada da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Ele atua como a principal porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (Suas), dada sua capilaridade nos territórios. É o responsável pela organização e oferta de serviços da Proteção Social Básica nas áreas de vulnerabilidade e risco social. Entre os seus serviços estão ações de proteção básica, e também a função de gestão territorial da rede de assistência social básica, promovendo a organização e a articulação das unidades a ele referenciadas e o gerenciamento dos processos nele envolvidos. 20 prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. É destinada à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza. (BRASIL, 2004). A Proteção Social Especial é a modalidade de atendimento, dentro do sistema único de assistência social - SUAS, que oferta serviços, programas e projetos especializados, destinados às famílias e pessoas que estão em risco pessoal e social, com seus direitos violados, ameaçados ou sem acesso a eles, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e/ou psíquico, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, trabalho infantil, entre outros. (BRASIL, 2004). Dessa forma a Proteção Social Especial tem por objetivo principal contribuir para prevenir que situações de violações de direitos sejam agravadas e potencializar recursos para reparar situações de risco pessoal e social, violência, fragilização e rompimento dos vínculos familiares, comunitários e/ou sociais. A proteção social especial se divide em: proteção social especial de média complexidade e de alta complexidade. De acordo com a política nacional de assistência social (PNAS, 2004), a proteção social especial de média complexidade presta “serviços que oferecem atendimento às famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não sofreram cisão”. Esse é um serviço de rede muito específico, pois demanda um atendimento especializado e uma maior articulação entre os órgãos de defesa de direitos (ministério público, defensoria pública, juizados, conselhos etc.) e outras políticas públicas setoriais (tais como saúde, educação, habitação, entre outros). (BRASIL, 2004). Para esta modalidade, são ofertados serviços e atendimentos que requerem maior estruturação técnico-operacional, e atenção especializada e também individualizada, e ou de acompanhamento sistemático e monitorado, tais como: Serviço de orientação e apoio sociofamiliar; Plantão social; Abordagem de rua; Cuidado no domicilio; Serviço de habilitação e reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência; Medidas socioeducativas em meio-aberto (prestação de serviços à comunidadePSC e Liberdade Assistida-LA). (BRASIL, 2004, p. 38). A Proteção Social Especial de Alta Complexidade, - PNAS/2004, define que os serviços prestados a essas demandas sejam ofertadas em “Unidades de Acolhimento” (conhecidos como abrigos institucionais, repúblicas, albergues, casas de passagem, residência inclusiva, casas lares etc.) às pessoas e/ou famílias afastadas temporariamente de seus familiares e/ou comunidade, buscando garantir a proteção integral, assegurando local para repouso, alimentação, higiene, segurança, atendimento psicossocial e etc. Dentre os seus objetivos, o destaque está a promoção, a reintegração familiar/comunitária das pessoas que se encontram nessas unidades e auxiliar na reconstrução de uma vida autônoma ou, na impossibilidade, proporcionar acolhimento em outras instituições que ofereçam o Serviço de Acolhimento numa modalidade de longa permanência. Os serviços ofertados pela proteção social especial visam garantir a proteção integral como moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que 21 se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar ou comunitário. Tais como: Atendimento integral institucional; Casa Lar; Republica; Casa de passagem; Albergue; Família substituta; Família acolhedora; Medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade; E Trabalho Protegido. 4.1 A REDE SOCIOASSITENCIAL A rede socioassistencial é um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos que supõe a articulação entre todas as unidades de provisão de proteção social. Para o público em situação de rua cabe a proteção social especial, que tem por objetivo a reconstrução de vínculos familiares e comunitários. Este opera por meio da oferta de: a) Rede de serviço de atendimento domiciliar, albergues, abrigos, moradias provisórias para adultos, idosos, garantindo a convivência familiar e comunitária; b) Redes de serviços de acolhida para crianças e adolescentes, como repúblicas, casas de acolhida, abrigos e famílias acolhedoras; c) Serviços especiais de referencia para pessoas com deficiências, abandono, vitimas de negligencia, abusos e formas de violências; d) Ações de apoio à situação de risco circunstancial, em decorrência de calamidade pública e emergencial. O acompanhamento da pessoa em situação de rua atendida é outro ponto problemático, já que só ocorre em alguns centro de referências de assistência social-9CREAS e, mesmo assim, apenas se o indivíduo ou sua família pertencerem ao território de abrangência do centro de referência ou se aceitar o acolhimento em alguma instituição do DF. Para a população em situação de Rua especificamente esses serviços demonstram uma atenção a sua demanda, pois é a porta de entrada para uma rede de acesso socioassistenciais ou mesmo o passaporte para exercício de sua cidadania e retomada da sua autoestima e também autonomia, pois o acesso a um lugar de repouso, com direito a alimentação e banho, além de revigorar o físico, repercutem positivamente também na autoestima desses indivíduos. Muito embora saibamos que isso não é tudo, mas é um primeiro passo, sanar demandas que emergem e são vitais para a vida humana. Além disso, outros instrumentos 9 O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) configura-se como uma unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.). A oferta de atenção especializada e continuada deve ter como foco a família e a situação vivenciada. 22 serão utilizados no encaminhamento a rede socioassistenciais que promoverão melhoria e de vida e garantia de direitos. Um importante mecanismo aliado à prestação desse serviço de atendimento é a abordagem social, que promove a atenção e por meio deste primeiro contato, através dela é possível viabilizar e proporcionar acesso a outros benefícios, e também indicar, encaminhar viabilizar para outras redes e serviços, pois, muitas vezes a pessoa em situação de rua não consegue ou mesmo não sabe de seus direitos, onde e como recorrer, além da falta de informação, há também o sentimento de vergonha e impotência diante da sua realidade vivida. É através da abordagem de rua que se consegue se aproximar do usuário e trazê-lo para as ações e programas que desenvolvam projetos de acesso às políticas públicas. Dessa maneira, é possível compreender ainda que minimamente, uma parte da realidade vivida por esse segmento populacional, para propor um conjunto de ações com redes articuladas que viabilizem condições de acesso à rede de serviços e a benefícios assistenciais, previdenciários, políticas públicas de saúde, preventivas, inclusive iniciar o processo de saída das ruas e também possibilitar a superação de sua situação. Dessa forma essa atuação pode ser considerada uma facilitadora da cidadania que permite não só identificar famílias e indivíduos com direitos violados, como também a natureza dessas violações, sob quais condições em que vivem essas pessoas, como principalmente propor estratégias de sobrevivência, procedências, aspirações, desejos e relações estabelecidas com as instituições; Sendo assim o serviço de acolhimento institucional é um serviço ofertado em diferentes tipos de equipamentos, cada um com suas características peculiares, específicas para o seu público, uns desenvolvidos para abrigar mãe e filho, crianças, outro, para atender a demandas de idosos, que são as Instituições de longa permanência-ILP, outras unidades de acolhimento para adultos e famílias. O fato é que todos estes têm em comum é que são destinados às famílias e /ou individuo com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, em situação de vulnerabilidade social extrema que não permite garantir um teto, ou mesmo acesso a proteção integral. 4.2 POLÍTICA NACIONAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA Para assegurar o direito de acesso às políticas públicas e a execução dos serviços da proteção social especial, o Decreto N.º7.053 de 23 de Dezembro de 2009, institui a Política Nacional para População em Situação de Rua, e em seu paragrafo único do artigo primeiro define a população de rua como: Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos, familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporária ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009). Essa definição que trata o parágrafo único do artigo primeiro substitui o termo ‘morador de rua’ pela terminologia população em situação de rua. A mudança no termo configura uma preocupação com o conteúdo ideologia que a palavra carrega. Dessa forma o termo ‘em situação’ de rua atribui ao fenômeno um caráter processual e transitório, não identificando o individuo diretamente com a rua, mas com uma circunstancia adversa que pode ser passageira e também reversível (PEREIRA, 2010). Mesmo porque ninguém, nenhum ser humano nasceu para morar ou viver na rua. E o termo “morador de rua” além de trazer uma conotação taxativa de cunho pejorativo, não 23 representa de fato com totalidade esse segmento populacional. Já que muitas pesquisas demonstraram que esses indivíduos não residem na rua, mas permanecem nestes locais por diversos motivos. Sejam eles, dificuldades financeiras, desabrigamento, migração, quebra de vínculos familiares, etc. (PEREIRA, 2010). Estão elencados no artigo 5º do Decreto os princípios que tratam da política nacional que trazem além do principio da igualdade e equidade: I. II. III. IV. V. Respeito à dignidade da pessoa humana; Direito à convivência familiar e comunitária; Valorização e respeito à vida e à cidadania; Atendimento humanizado e universalizado; Respeitos as condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência. Dessa forma esse decreto assinado pelo Ex-Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva no ano de 2009, traz em sua proposta criar subsídios para implementação de políticas públicas com vistas à efetivação dos direitos sociais garantidos como proteção social a todos os indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidades e extrema pobreza e que por algum motivo, muitas vezes contingenciais estão em situação de rua. Essa é uma forma encontrada pelo poder público de subsidiar a promoção dos diretos civis, políticos, econômicos e sociais, culturais e ambientais (BRASIL, 2009), na construção de uma sociedade mais justa e solidária, buscando romper com a invisibilidade e com a cultura de naturalização da pobreza, para além de responsabilizar o poder público, também sensibilizar e fazer um chamamento ao debate, ao estudo, e o engajamento não só da esfera pública, como de entidades da sociedade civil em parceria com o próprio segmento populacional, que é a parte mais interessada, para ouvir, dialogar, propor e avaliar e monitorar as políticas direcionadas a efetivação e promoção de direitos e superação desse fenômeno. Essa política busca ser implementada de forma descentralizada, e articulada entre a União e os demais entes federativos, por meio de instrumento próprio, que definirá os atributos e as responsabilidades. Podendo ser estendida as entidades públicas e também privadas, por meio de convênios. 5 POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO DISTRITO FEDERAL A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Humano e Social do Distrito Federal é um órgão estratégico da administração direta do Governo do Distrito Federal, responsável pela execução das políticas de Assistência Social, Transferência de Renda e de Segurança Alimentar e Nutricional, da gestão do Sistema Único de Assistência Social-SUAS e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no âmbito do DF; Entre seus objetivos estão garantir e efetivar o direito à proteção social para a população em situação de vulnerabilidade e risco social, por meio de serviços e benefícios que contribuam para o desenvolvimento social no Distrito Federal. No Distrito Federal os serviços de Proteção Social de média complexidade são direcionados a população em situação de Rua no DF por meio de serviços socioassistenciais ofertados pelos centros 10Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua - CENTRO POP. Atualmente há duas unidades em funcionamento. 10 As duas unidades são divididas entre as cidades: Brasília: SGAS 903, Conj. C Asa Sul- DF. E em Taguatinga no endereço: QNF 24 AE nº 02. 24 O CENTRO POP possui capacidade para atender cerca de 100 pessoas por dia e funciona de segunda a sexta-feira, das 8 às 17h. Os seus serviços visam contribuir para a construção de novos projetos de vida, promovendo atividades que colaborem para o desenvolvimento da autonomia e da sociabilidade, fortalecendo os vínculos familiares e o convívio comunitário. A unidade conta com uma equipe composta por educadores, agentes, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem do serviço Consultório na Rua, da Secretaria de Saúde, que realizam atendimento. A UNAF – é uma Unidade pública estatal da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda – SEDEST, da Proteção Social Especial (PSE) de Alta Complexidade, que está prevista na Política Nacional de Assistência Social-PNAS e na Tipificação Nacional dos serviços Socioassistenciais aprovado pela resolução CNAS N.º 109, de 11 de novembro de 2009. Os serviços ofertados pela unidade são direcionados ao acolhimento temporário para adultos e famílias que se encontram em situação de rua e desabrigo por abandono, migração e ausência de residência ou pessoas em trânsito e sem condições de autossustento que esteja fora de seu núcleo familiar de origem ou de sua residência, que esteja precisando de acolhimento provisório. A unidade foi inaugurada em 15 de setembro de 1990, com seu funcionamento 24 horas por dia, para atender pessoas em situação de rua e desabrigo por abandono, migração e ausência de residência, ou pessoa em transito e sem condições de autossustento. Entre seus serviços prestados estão a acolhida, a escuta qualificada; a oferta de alimentação, materiais de higiene pessoal, e local para repouso. Atendimento psicossocial individual e em grupo, orientações e encaminhamento para redes de serviços, viabilização de acesso à documentação civil, saúde, educação, cultura e demais políticas públicas. Completam-se ainda atividades de convívio social que estimulem a participação em atividades na rede pública e privada e atividades que estimulem o resgate dos vínculos familiares e comunitários. O objetivo principal dos Serviços de Acolhimento é promover a reintegração familiar/comunitária das pessoas que se encontram nessas unidades e auxiliar na reconstrução de uma vida autônoma ou, na impossibilidade, proporcionar acolhimento em outras instituições que ofereçam o Serviço de Acolhimento numa modalidade de longa permanência. Além do perfil de desemprego, há ainda outros perfis não menos complexos que demandam cuidados e atenção redobrada. São pessoas em situação de rua, famílias inteiras com crianças e adolescentes, idosos, deficientes físicos, pessoas com transtornos mentais, pessoas em situação de dependência química, e com rompimento de vínculos familiares. Suas demandas apresentadas à unidade são de diversas naturezas: busca por direitos previdenciários, trabalhistas e também a serviços médicos e de saúde pública, além do traço marcante de imigração, a procura de emprego e oportunidades. O GDF também buscou um novo conceito para os serviços de abordagem oferecidos pela secretaria de Desenvolvimento e humano, com o título de Cidade Acolhedora que pretende difundir a partir da ampliação do Serviço de Abordagem Social, garantir apoio, orientação e acompanhamento a famílias e indivíduos em situação de rua em todo o DF. Esse Serviço busca possibilitar à população em situação de rua os seguintes benefícios: 25 Reinserção familiar e no mercado de trabalho; Retorno aos estados de origem; Aumento no número de famílias e pessoas atendidas nos serviços de acolhimento; Aceitação de tratamento de drogadição na rede de saúde pública e em instituições parceiras; Diminuição significativa de pessoas usando o espaço público como moradia e/ou pontos de consumo de drogas; Encaminhamento para a rede socioassistencial; acesso à documentação civil; Inclusão no Cadastro para Programas Sociais; Acesso a benefícios de transferência de renda, entre outros. Em sua equipe de atuação, o serviço conta com a participação dos facilitadores, que têm como principal objetivo a criação de vínculos dessa população com a equipe técnica. O Cidade Acolhedora atua inclusive durante a noite, permitindo a intervenção em casos de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, fenômeno predominantemente noturno, bem como no comércio informal que ocorre em bares e em locais de grande incidência de tráfico. Além disso, funciona como estratégia de busca ativa para cadastramento dessa população em situação de rua, visando a garantir seu acesso a direitos socioassistenciais. A rede para o atendimento da população em situação de Rua do Distrito Federal foi ampliada e conta além dois Centros de Referência Especializados para População de Rua, o CENTRO POP Brasília e Taguatinga, nove Centros de Referência de Assistência Social (CREAS), quatro Unidades de Acolhimento para pessoas em situação de rua (Unidade para Crianças e Adolescentes (Plano Piloto), Para Idosos (Taguatinga Norte), Mulheres (Taguatinga Sul), Adultos e Famílias (Areal), além de 28 equipes de Serviços de Abordagem Social). 6 EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO O primeiro aspecto que se destacou durante a experiência de estágio foi a precariedade da estrutura física da Unidade. Seja no tocante às condições de alojamento, seja nos espaços destinados ao atendimento à conservação das instalações, que já demonstra o peso do tempo (a unidade foi inaugurada em 1990) e da falta crônica de manutenção. Este aspecto pode demonstrar o real lugar que a política de Assistência Social e, em particular, os serviços destinados à população em situação de rua ocupam no âmbito das prioridades do poder público. A concepção de “política social pobre para pobres” parece estar materializada em um ambiente que traduz a aridez existencial e a desproteção social dos que ali acorrem. A Unidade apresenta condições insalubres, com infestação de percevejos, ratos, etc. A questão da higiene é complexa, pois a firma terceirizada limpa apenas os locais de acesso coletivo, como o banheiro e o refeitório e faz a coleta de lixo. A limpeza dos quartos que servem de alojamento é de responsabilidade exclusiva do usuário. Isto concorre para que os usuários façam eles mesmos a higienização do local. E embora exista um serviço de almoxarifado para fornecer alguns itens como produtos de limpeza, higiene e cobertores a maioria destes está sempre em falta. O que se pode constatar junto aos profissionais que compões o quadro de servidores e é que a equipe de serviço social e de outros profissionais que atuam na unidade é composta por 01 médico psiquiátrico; 06 assistentes sociais; 04 psicólogos; 10 agentes sociais de nível médio; 08 agentes administrativos de nível médio; 02 almoxarifes de nível médio, 43 auxiliares básicos; 03 motoristas; 48 trabalhadores terceirizados que prestam serviço de vigilância, 14 pessoas terceirizados da limpeza diurna e 06 profissionais em alimentação, para 26 ajudar a servir as refeições. Embora o fornecimento da alimentação seja de uma firma terceirizada. Outro fator relevante é que na Instituição tanto os psicólogos como os Assistentes sociais fazem o mesmo atendimento, recebem o usuário, fazem a acolhida, preenchem um questionário que servirá para compor a pasta do usuário. Seguindo esta mesma dinâmica, dessa forma também é feita a construção do seu PIA- Planejamento Individualizado de Atendimento, que é feito em conjunto com o usuário acolhido na unidade. Não há uma interdisciplinaridade e nem a multidisciplinariedade no atendimento, inclusive os usuários confundem as profissões ou não sabem a diferença das mesmas. Acredito que um profissional formado em psicologia talvez não tenha acesso a um arcabouço teórico que contemple questões sobre a questão social e nem uma visão crítica, que permita refletir, empoderar o usuário, mas atender sob outra perspectiva. Outro aspecto limitou-se ao incômodo relativo às condições de trabalho, uma vez que o espaço físico precário se revela desestimulante, especialmente para os que trabalham em regime de plantão. Entretanto, não foram identificadas, entre os profissionais, uma preocupação explícita com as condições de permanência dos usuários, uma vez que se parte do princípio de que a Unidade é pensada para um tempo restrito de permanência (no máximo, 90 dias no período de um ano, dependendo da demanda que o acolhido apresenta, esse período pode ser flexibilizado, podendo esse prazo ser prorrogado, isto é, quando envolve algum tratamento de saúde ou a espera de tramitação de processo judicial, ou mesmo reduzido se ficar comprovado mau comportamento, conforme explicitado no regimento interno da própria instituição). A restrição do tempo de permanência parece ser um dos principais focos da atenção no atendimento. Há uma preocupação explícita por parte dos profissionais em cobrar do usuário a busca por alternativas fora da Unidade. Entende-se que a limitação do prazo de permanência faz parte da própria concepção do atendimento. Porém, as cobranças diuturnas para que o usuário passe o menor tempo possível tende a resvalar para um tom moralista e culpabilizador no atendimento. Este aspecto, aliás, é frequente na abordagem aos segmentos populacionais atendidos pelas políticas sociais. Ainda permanecendo no imaginário social a cultura do favor, segundo a qual o usuário de tais políticas, por “não estar pagando” deve contentar-se com o que lhe for oferecido e não reclamar quando nada lhe é oferecido. No atendimento à população em situação de rua, conforme explicitado no primeiro capítulo, essa postura por parte dos agentes públicos que operacionalizam a política social direcionada a este segmento, é ainda mais presente. No contexto específico da UNAF, percebeu-se que o discurso moralizante é mais presente quando se trata de usuário “reincidente”, ou seja, aquele usuário que retorna à Unidade após ter lá estado em outro período. Tal “reincidência” é considerada um sinal de que aquele usuário não “deu certo” na tentativa de reconstruir sua vida, o que, com frequência, é considerado como incapacidade ou “falta de força de vontade” para tomar um caminho próprio e “não ficar dependendo do poder público”. A situação envolvendo usuários com dependência química é ainda mais complexa. Demandando mecanismos e redes institucionais que viabilizem um tratamento e acompanhamento psicossocial, a inexistência ou insuficiência desses serviços tensionam ainda mais a permanência na Unidade, pois dependem de vaga em outras redes socioassistenciais, inclusive no Centro de Atenção Psicossocial- Álcool e drogas- CAPs- AD, já que demanda acompanhamento e nem sempre o usuário termina o tratamento que começou. Por diversos fatores, tais como desistência, falta de vaga na rede, e dificuldade para translado. A UNAF é destinada a adultos e famílias, podendo abrigar também crianças e adolescentes, desde que estes estejam acompanhados de seus pais ou responsáveis. 27 A permanência de crianças e adolescentes revela outro quadro de precariedade institucional relativo à inexistência de atividades direcionadas para este público. Cotidianamente, pode-se constatar um número considerável de crianças que ficam ociosas, sem nenhuma atividade de caráter pedagógico ou lúdico. Por vezes, por falta de profissional especializado ou de espaço, crianças e adolescentes são inseridos aleatoriamente para compor os grupos que é direcionado aos adultos. É importante ressaltar que atividades que propiciem o intercambio intergeracional devam ser estimuladas, porém, considera-se que seria necessário também viabilizar atividades pensadas para as criança e adolescentes, voltadas principalmente para sua formação e construção da sua identidade. Um aspecto que também chama atenção é a presença frequente, entre o perfil dos usuários atendidos na UNAF, de idosos, muitas vezes doentes ou mais debilitados, com alguma deficiência/limitação física ou motora. Este segmento também não são acompanhados e não recebem tratamento ou qualquer cuidado especifico nas suas alocações. Eles dependem da ajuda de outros colegas para tomar banho, ser medicados. A Unidade tem como perfil médio de usuário homens em idade laborativa. Por conta disso, seu próprio Regimento Interno já deixa claro que não se trata de um espaço onde o usuário receberá cuidados em seu artigo 4º, inciso III o referido Regimento explicita como um dos objetivos institucionais: III. auxiliar os usuários no desenvolvimento de condições para independência e o autocuidado. Porém, a precariedade das condições de permanência já dificulta este autocuidado, se considerados os usuários em “condições normais”, isto é, sem enfermidades ou outras limitações que comprometam suas capacidades físicas, motoras e psicológicas. Quando tais capacidades são comprometidas, seja pela idade, dependência química ou outras enfermidades, o usuário permanece em uma situação extremamente vulnerável, uma vez que, como já foi dito, a insuficiência ou inexistência de redes socioassistenciais para onde possam ser encaminhados dificulta ainda pais o tempo de permanência na instituição. Sobre os usuários do sexo masculino em idade laborativa que buscam a UNAF, muitos chegam a Brasília com o sonho da “capital de oportunidades”. Sobre este segmento a pressão por encontrar uma alternativa à permanência na unidade ainda é maior, pois, em tese, se gozam de boa saúde e são jovens, nada há que os impeça de conseguir e aproveitar as “oportunidades”. Em outro sentido, sobre este usuário recai o peso da condição de migrante; aquele que saiu de seu lugar de origem e que veio somar-se aos muitos que aqui já chegaram e que, não raro, são tidos como um “peso” para o Distrito Federal. Dada essa realidade os usuários se sujeitam a qualquer tipo de trabalho, sob quaisquer condições, sem garantias, proteção. Relegados a própria sorte de encontrar um bico ou um serviço temporário. Mas comumente os trabalhos precarizados, subempregos em condições de exploração maior que a normal. Sobre este aspecto vale ressaltar que, no tocante à abordagem do usuário, alguns profissionais comportam-se como “administradores” da unidade. A garantia de direitos assume como que um lugar secundário diante da necessidade de se manter a “ordem” no espaço da instituição. Esta busca por manter o “caráter ordeiro” do espaço institucional não é claramente explicitada, mas pode-se inferir que, por tratar-se de uma instituição voltada para pessoas em situação de rua, migrantes e pessoas em transito no DF, parte-se da premissa de que seriam “naturalmente” avessos às assim chamadas normas de civilidade. Esta tendência é perceptível na conduta de alguns profissionais que “investem” mais naqueles usuários cujo comportamento é considerado mais “aceitável”, o que evidencia, no caso dos assistentes sociais, concepções que remontam aos primórdios da profissão, quando um dos objetivos da intervenção profissional era a “reforma do caráter”, dividindo os usuários da instituição entre “pobres merecedores e pobres não merecedores”. 28 Um ponto visível de tensão entre o usuário e os profissionais diz respeito ao direito à segunda via dos documentos. A não existência de equipamento público para a realização desse serviço (obtenção de segunda via de documentos) próximo à Unidade dificulta ou mesmo inviabiliza seu acesso à maioria dos usuários da UNAF. Isto porque os usuários, a maioria migrantes, por não conhecer a cidade, ou mesmo não ter dinheiro para custear a passagem, acabam por não ter como tirar a segunda via de documentos, ou mesmo pela distancia a que são chamados a caminhar para acessar este serviço, acabam protelando até outro momento que, por sua vez são necessários para procurar emprego. O usuário vê-se então, sem documentos, sem emprego e pressionado pela instituição a encontrar este emprego para que dali saia o mais rápido possível. Diante de todas as questões e situações aqui apresentadas, pode-se inferir que, na Unidade aqui enfocada, as práticas de seus profissionais, sejam eles de nível médio ou superior, há uma clara presença de concepções meritocráticas e moralizantes devido à condição da população usuária atendida. O individualismo de cariz liberal, segundo o qual o indivíduo é o único responsável por suas vitórias ou seus fracassos está no fundamento das concepções dos que atuam nas políticas sociais voltadas para a pessoa em situação de rua. Há que se colocar então a pergunta: É possível construir uma sociedade verdadeiramente democrática e emancipada enquanto permanecerem tais concepções? 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das reflexões apresentadas neste trabalho, pode-se concluir que as Políticas Sociais no Estado Capitalista direcionada à População em situação de Rua, que se encontra acolhida na Unidade de Acolhimento para Adultos e Famílias-UNAF-DF, se mostram ineficazes, porque é regulada pelo Estado burguês, e também porque opera com práticas higienistas e com o atendimento de alguns profissionais direcionado aos usuários sob a perspectiva do preconceito, discriminação e de culpabilização da pobreza. A política social do Estado capitalista da forma como vem sendo gerida, conciliando interesses antagônicos (PEREIRA, 2008) acaba não atendendo quem de fato precisa ter o seu direito garantido, cumprindo apenas o papel de manter a ordem vigente de exploração e apropriação da riqueza produzida. Dada a essa realidade é possível perceber que os mecanismos e os aparelhos do Estado são criados apenas para controle e não para uma efetiva garantia de direitos. Percebe-se ainda que para a manutenção do ideário elitista e de ordem burguesa que os mínimos sociais são “garantidos” nas piores condições, como foi demonstrado neste trabalho pela especificidades da estrutura física e das condições da unidade. As políticas públicas obedecendo a ofensiva neoliberal se mostram reduzidas, com encurtamento no atendimento passando de garantia universal à focalizada, restringindo o acesso e por vezes aumentando a exclusão. Tendo em atendimentos as instalações precárias, recursos limitados, escassos e atendimento permeado da lógica burocrática e estigmatizante, que aliada à concepção positivista, reformuladora do caráter e moralista, de criminalização da pobreza, reforçado ainda pelo cariz neoliberal, de que cada um é responsável por si, conclui-se que a política não contempla o direito de cidadania, mas favorece a lógica de caridade e favor, reforçando ainda a exclusão e o preconceito. Dessa forma o Estado por meio desses atendimentos atua reproduzindo a lógica de repressão, pois não garante os direitos sociais de todos, que são previstos na Constituição Federal de 1988, mas atua de forma arbitrária, viabilizando políticas assistencialistas, genéricas, precárias e excludentes, focalizadas e restritivas. Diferente de quando o Estado investe, ou mesmo deixa de cobrar juros de dividendos, ou solvendo dívidas, favorecendo à 29 isenção fiscal das grandes empresas ou interferindo nas crises econômicas, injetando dinheiro para salvar instituições privadas, como por exemplo, os bancos, favorecendo a lógica do mercado. As políticas ofertadas na UNAF-DF que deveriam garantir direitos são implementadas ainda de forma higienista, que ao invés de agir na resolução do problema, com práticas efetivas de combate à pobreza, ou de reinserção social, acabam por adotar medidas paliativas, determinando prazos para acolhimento na Instituição, sem ao menos garantir a reinserção do usuário, seja na família, na comunidade, ou mesmo ao mercado de trabalho. Esse modelo de política está focalizado apenas em garantir os mínimos para substência humana, e por esse motivo, reduz todos os planos e projetos de políticas emancipatórias às necessidades biológicas do ser humano. Dessa forma, reduzir as necessidades humanas à comida e água somente, é no mínimo subestimar e ferir a dignidade humana que possui também outros ideários a serem conquistados. Diante do exposto faz-se necessário um o chamamento à sociedade civil, a população de rua e aos movimentos sociais, para juntos, questionar e propor politicas públicas, quebrar as barreiras do silêncio, do individualismo e do preconceito e ademais cobrar a efetividade de políticas públicas que contemple a acessibilidade, inclusão social e empoderamento para o surgimento de novos atores sociais e o correto enfrentamento, garantindo bens e serviços públicos a de qualidade, com vistas à superação desse fenômeno. O desenvolvimento da autonomia dos sujeitos implica apropriação pela consciência da necessidade que está escrita na história (BOURDIEU, 1992 apud FALEIROS, 2010, p. 62). Cabe salientar a necessidade do empoderamento e fortalecimento dos sujeitos de direitos, que se encontram em situação de rua e do público acolhido na-UNAF-DF, que se dá não só em relação à lei, mas principalmente no questionamento da lei, e das desigualdades de renda e poder. (FALEIROS, 2010). E apesar do Estado capitalista garantir as políticas sociais sob essa perspectiva, de reprodução do capital é necessário romper com a lógica burguesa de culpabilização da pobreza ou manutenção do status quo, pois a atuação e o exercício profissional do assistente social deve ser pautado no projeto ético-político comprometido com o usuário, priorizando antes de tudo a garantia de direitos dos mesmos. Aos assistentes sociais também é importante buscar aprofundar os seus conhecimentos sobre o fenômeno e o perfil das pessoas que estão acolhidas na unidade, para conhecer e propor estratégias que possibilitem o atendimento das necessidades e interesses dessa população, defendendo com primazia a responsabilidade do Estado com vias de universalização das políticas públicas e no acesso amplo e com qualidade de todos os serviços públicos para essa população. PERSON OF RIGHTS GUARANTEED IN STREET SITUATION RECEPTION IN UNAF-DF: A REFLECTION FROM THE STAGE EXPERIENCE Abstract: This article aims to present reflections about the Social Protection rights guaranteed in Capitalist Society focused on the segment of Population People in street situation, who are accepted in the UNAF / DF Home Unit for Adults and Families Federal District . This article is a historical and social production, therefore, sought to justify the study of its object from a document analysis approach of the studied institution, together with qualified listening, participant observation, and the practices experienced in the training field . The research material used as a basis for study was the diary made in Stage period, as well as data and information from reports, also elaborated in the field Supervised Internship I and II, for 1st 30 and 2nd half of 2014. This study also included the literature review on the topic. Thus the article proposes to show part of the reality perceived in the Host Unit, analyzing the social policies in the context of Capitalist Society directed to this population segment, describe the services and care offered to users in the unit, and the contradictions in rights guarantees observed the training field supervised. Keywords: Population in street situation. UNAF -DF. Capitalism. Social Assistance Policy. 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