Fascínio ou Abstinência Digital na Arquitetura Metropolitana?

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Fascínio ou Abstinência Digital na Arquitetura Metropolitana?
Pedro Luís Alves Veloso
Introdução
O presente texto se propõe a situar a informatização da arquitetura como um campo
potencial para o enfrentamento dos desafios de grande complexidade, a exemplo das
metrópoles e de suas situações limites.
Grosso modo, por informatização se compreende a codificação das diversas
atividades humanas em dígitos binário abstratos (bits), indiferentes a qualquer significado, e
a utilização de máquinas abstratas (computadores) que isentam o homem do domínio dessa
“linguagem”. Evidentemente, essa não é uma definição estritamente tecnológica, mas
cultural. Afinal, a informatização responde não só à existência de uma estrutura social, na
qual a articulação da informação assume uma posição crítica, como também coloca em
questão interferências específicas nas diversas modalidades de produção do conhecimento
– a exemplo do projeto de arquitetura.
Em ambas as acepções da informatização encontra-se um dilema bastante
pertinente à prática da arquitetura nas grandes metrópoles. Frente às diversas variáveis no
âmbito do planejamento do espaço, do tempo, dos movimentos e dos eventos
metropolitanos, torna-se bastante atraente a experimentação com as novas tecnologias.
Nessa escala de atuação, não apenas as questões de expansão e alteração da estrutura e
da infraestrutura existentes, como também as relativas à prevenção e reação frente aos
conflitos e imprevistos instigam novos modos de ação arquitetônica. Tal proposta torna-se
ainda mais latente quando se evidencia que uma das principais características dessa
tecnologia é o aumento hiperbólico da capacidade de “manipulação” e processamento de
informações.
Entretanto, frente a um desafio tão amplo, nota-se, especialmente no contexto
brasileiro, um clima propício a uma polarização ideológica empobrecedora. Em outras
palavras, a relação entre arquitetura e informatização corre o risco de se desequilibrar para
dois extremos: por um lado o do fascínio, associado ao uso lúdico da tecnologia, e por outro
lado o da abstinência consciente, associada pura e simplesmente à negação do desafio.
Polarização Digital
Nos últimos 20 anos, paralela à difusão da tecnologia informático-digital, uma
importante parcela das investigações e experimentações arquitetônicas vem se situando,
explicitamente,
sob
a
égide
desta
tecnologia.
Na
atualidade,
as
arquiteturas
autoproclamadas ‘digitais’ se situam em uma relação de contraponto e diferenças frente ao
paradigma moderno, pressupondo uma visão historicista do próprio presente.
No início do século XX, os desafios sociais e artísticos da arquitetura estavam
atrelados ao enfrentamento de uma condição tecnológica pautada na produção industrial. A
tecnologia industrial propiciou um aumento na capacidade de manipular a matéria por meio
de máquinas automáticas, atribuindo à arquitetura não apenas o desafio de se afirmar
esteticamente por meio das novas técnicas de produção, como, principalmente, o desafio de
se afirmar perante uma sociedade modificada pela produção industrial.
Em pleno século XXI, considerando estar superado o tema da industrialização e
esgotadas as querelas linguísticas pós-modernas, as arquiteturas digitais se afirmam, com
seu pragmatismo, como postura legítima frente a um presente distinto. Essa postura da
contraposição historicista incorre no risco do dogmatismo ao eleger aspectos específicos de
um momento histórico e situá-los como os legítimos balizadores da expressão cultural.
É evidente no presente texto que (para o bem ou para o mal) se considera a
informatização como um fenômeno cultural em consolidação e não uma mera opção ou
capricho. Entretanto, ao se colocar a tecnologia como condição de legitimidade da inovação,
as diversas experimentações da arquitetura digital acabam tendo como premissa a
capacidade de expressar o potencial abstrato da tecnologia e não necessariamente o
aumento da capacidade de negociar com os desafios da realidade concreta. Quer dizer, o
fascínio tecnológico arrisca a situar a disciplina como uma prática estritamente tributária da
pesquisa tecnológica. Nesse caso, suas proposições acabam se restringindo apenas a um
material
exclusivo
para
revistas,
simpósios,
workshops,
exposições
e,
apenas
incidentalmente, para o enfrentamento dos desafios contemporâneos.
Se a produção e o debate cultural promovido pelas arquiteturas digitais situam-se,
predominantemente, nos países expoentes no desenvolvimento dessa tecnologia, no
cenário brasileiro essas manifestações ainda são incipientes. A arquitetura brasileira anda
em descompasso com o fascínio tecnológico, de modo que tanto a pesquisa quanto a
experimentação digital ainda mantêm-se fora dos principais debates e manifestações. A
posição da arquitetura brasileira tende, em grande parte, a uma posição de manutenção dos
paradigmas modernos, restringindo a inovação à retomada de temas disciplinares já
estabelecidos e, normalmente, atrelados à tecnologia industrial.
Nesse caso, uma técnica específica é tida como referência constante para o
desenvolvimento do repertório formal e metodológico adequado. A manutenção de um
paradigma arquitetônico pressupõe também, dado o seu forte conteúdo ideológico, a
manutenção dos próprios instrumentos tradicionais de projeto. Afinal, tais instrumentos
estão atrelados aos procedimentos tradicionais de criação arquitetônica, estabelecendo uma
reciprocidade entre “o que” criar e “como” criar.
Nesse sentido, vale citar uma das definições de desenho consagradas na arquitetura
brasileira. Como afirma Vilanova Artigas:
(...) se de um lado [o desenho] é risco, traçado, mediação para
expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica
construtiva, de outro é desígnio, intenção, propósito, projeto humano
no sentido de proposta do espírito. Um espírito que cria objetos
novos e introduz na vida real.1
Ao defender o desenho como linguagem comum e conciliadora entre a técnica e arte,
tal posicionamento o reconhece como a possibilidade de controle sobre a natureza e sobre
as máquinas, perante as necessidades e desejos do homem. Desse modo, ele está
associado à própria iniciativa humana de construção de sua realidade. Esse posicionamento
é fundamental para se compreender a importância dos croquis e, mesmo, dos desenhos
técnicos como elementos privilegiados na disciplina. Interessa, aqui, reconhecer que o
desenho manual é tido como reduto da criatividade arquitetônica, sendo considerado, por
muitos, como o gesto mais representativo de atividade de concepção e constituição do
espaço arquitetônico. Projetar é, nessa acepção, sinônimo de pensar com o desenho, ou
seja, não só o desenho representa a profissão, como é o elemento que permite realizar suas
atribuições. A ilustração mais fiel dessa relação pode ser dada pela persistência dos ateliês
de projeto e, principalmente, pelas imagens dos arquitetos brasileiros consagrados, em
apresentações, em aulas e, principalmente, no desenvolvimento de seus trabalhos.
Consequentemente, a informatização da concepção arquitetônica é tomada como
fato indesejado, que viria estabelecer rupturas com as relações simbólicas já legitimadas no
metiér arquitetônico e com as estruturas produtivas plenamente satisfatórias para a prática
vigente. Se as arquiteturas digitais mais radicais tendem a reconhecer no modelo digital um
substituto para o gesto manual, no caso brasileiro ocorre o oposto. O modelo é
1
ARTIGAS, João B. V. Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. p.73.
explicitamente subutilizado e restrito à aceleração dos processos de criação e aumento de
eficiência produtiva de uma prática já consolidada.
Em suma, enquanto o fascínio tecnológico das arquiteturas digitais tende a uma
aceitação acrítica das tecnologias e, no extremo, a uma indiferença à própria arquitetura, a
subutilização informática tende não apenas ao desconhecimento dos seus limites, mas
também de suas possibilidades.
Polarização Digital no Simpósio do Centro Universitário Senac
Visando dar uma dimensão concreta a essa polarização ideológica que acompanha o
enfrentamento da informatização, aqui vale citar um exemplo recente. No 2o Simpósio de
Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac (São Paulo, 2010) 2 , ocorreu um
inusitado encontro entre dois profissionais, cuja produção é bastante qualificada e
reconhecida – os arquitetos Vinicius Andrade e Enric Ruiz-Geli. No discurso de ambos sobre
a informatização da arquitetura, é possível identificar elementos dessa polarização.
Ruiz-Geli é um artista catalão e é o arquiteto fundador do escritório Cloud9. Em
termos gerais, suas propostas perpassam os seguintes tópicos: (1) nova tecnologia – nova
sensibilidade; (2) utopia / realidade; (3) novos formatos; (4) construindo o digital; (5)
arquitetura de ficção3. Vistas todas as proposições em conjunto, fica evidente a posição do
digital como elemento que catalisa a arquitetura, estabelecendo a superação do status quo e
a proposição de obras até então limitadas à imaginação.
Iniciada sua apresentação, seus propósitos se fazem ainda mais claros.
Em primeiro lugar, ele defende a condição diferenciada de uma sociedade de
espetáculo. Essa definição acompanha toda sua apresentação, por meio de termos díspares
como: “geração Star Wars”, “geração complexa” ou “cultura pop”. Sem qualquer citação à
crise europeia ou quaisquer outras restrições correntes, suas definições situam a inovação
como uma necessidade estrutural do homem, da sociedade e da cultura.
Em seguida, a própria definição de arquitetura é construída de modo muito peculiar.
Ruiz-Geli afirma que “a vida é performance” e, logo depois, que a “arquitetura é
performance”.
2
o
“2 Simpósio de arquitetura e Urbanismo: Habitar em trânsito – desafios para as cidades do século XXI”. O evento foi
realizado pelo curso de graduação em arquitetura e Urbanismo do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Centro
Universitário Senac, Campus Santo Amaro, São Paulo, 3/11/2010). Todas as referências utilizadas no exemplo foram
registradas pelo próprio autor e conferidas em vídeo institucional. Para saber mais, ver: Disponível em:
<http://www1.sp.senac.br/hotsites/campus_santoamaro/arquiteturaUrbanismo/index.html>. Acessado em 02/2011. 3
Disponível em: <http://www.e-cloud9.com/>. Acessado em 1/2011. Inicia-se uma sequência de imagens sobre seus projetos e experimentações, a
exemplo de sua Villa Nurb ou seu edifício Media-TIC. Ruiz-Geli demonstra a plena utilização
dos modelos e simulações tridimensionais como modo de almejar a complexidade formal de
seus projetos, desenvolvendo soluções extremamente customizadas. Nesse percurso, sua
ideia de performance transita da possibilidade da façanha ou espetáculo à própria
capacidade técnica. O digital é visto, portanto, como possibilidade de manipular a
complexidade no projeto, associando a performance de milhares de dados à proposição de
componentes arquitetônicos customizados. Desse modo, para Ruiz-Geli, a existência de
uma cultura diferenciada e a disponibilidade técnica se colocam como necessidade de uma
arquitetura excepcional. Como demonstram suas propostas, a ficção se realiza pela
tecnologia digital.
Imagem 1. Enric Ruiz-Geli
Na apresentação seguinte, o arquiteto Vinícius de Andrade apresentaria os projetos
de seu escritório: Andrade Morettin Arquitetos. Visivelmente impressionado e incomodado
pelas ideias e projetos do antecessor, propõe, logo de início, e de modo improvisado,
reformular sua palestra. Em seguida, tornando explícito seu propósito, realiza sua
consideração: “(...) principalmente me chamou muito a atenção a diferença talvez, entre
aquilo que a gente vive, nossa realidade local e o que eles estão vivendo lá”.
De aí em diante, seus esforços se concentram em destacar uma condição brasileira
distinta. Sem fazer qualquer referência à plena ascensão econômica nacional ou ao
aquecimento da construção civil, Andrade retrata o Brasil pela indisponibilidade de recursos.
Consequentemente, reivindica uma arquitetura caracterizada pela ausência e simplicidade.
Esse é o mote que segue ao longo da apresentação de seus projetos, da modesta
residência R. R. à luxuosa residência nos jardins e ao personalizado edifício do conjunto
Aimberê.
A simplicidade impõe-se transversalmente em seu discurso e em suas arquiteturas.
Está nos seus desenhos técnicos e nas formas propostas. As poucas referências aos
modelos digitais não são associadas ao desenvolvimento da arquitetura, restringindo-se ao
aumento de eficiência de representação das propostas. Andrade destaca, nas diversas
imagens, a pertinência de uma “boa geometria” que, além de assegurar o correto
desempenho do edifício, deve reivindicar o mínimo de esforço construtivo. Em detrimento da
inovação, a função se coloca como elemento que deve justificar qualquer iniciativa formal ou
metodológica. Em detrimento da customização, Andrade defende o uso de componentes “de
prateleira”, isto é, a repetição e racionalização, mesmo que, paradoxalmente, em
arquiteturas luxuosas, complexas e customizadas.
Interessa notar que, em todas essas atitudes, a experimentação com a tecnologia
digital é situada em contraponto à simplicidade e economia. O bom desenho e a boa
geometria, aliados ao paradigma industrial da produção em massa, são os únicos recursos
possíveis para uma boa arquitetura no Brasil. Nesse sentido, ao associar o uso do digital ao
espetáculo ou a novos conteúdos arquitetônicos, prontamente ele é negado como excesso.
Imagem 2. Vinícius Hernandes de Andrade
Cumpre destacar aqui que ambos os arquitetos não são profissionais antigos, mas
arquitetos que se formaram e iniciaram sua ascendente prática profissional recentemente.
Há aqui impressionantes semelhanças cronológicas: os arquitetos têm a mesma idade
(nasceram em 1968) e seus respectivos escritórios foram fundados na mesma época
(aproximadamente em 1997).
Apesar disso, há, neles, duas relações arquitetônicas distintas quanto à técnica: um
preza pela customização, criação e fabricação digital, enquanto, o outro pelo “bom desenho”
e padronização industrial. Para Ruiz-Geli, o digital deve reivindicar a inovação formal e
metodológica, rompendo com as diversas predisposições disciplinares. Para Andrade, o
digital é um excesso a uma arquitetura já consolidada entre a tradição do desenho e a
industrialização. Para o primeiro, a incorporação tecnológica indica novos caminhos,
necessários à expressão de uma cultura complexa. Para o segundo, tal incorporação remete
a desestabilização de um equilíbrio econômico, formal e metodológico da arquitetura, sendo,
portanto, alheio às demandas da sociedade.
Reforça-se, assim, a polarização frente à digital - do fascínio ao repúdio.
Por uma Interpolação Digital
Colocam-se, aqui, as duas posturas como evidência da complexidade da
informatização da arquitetura. Não se trata das únicas posturas possíveis, mas de uma
corrente tendência à polarização ideológica.
A informatização deve ser vista com cautela, escapando tanto de uma relação de
neutralidade entre técnica e criação (a tecnologia não interfere na concepção da arquitetura),
quanto de uma relação de simples causalidade (a tecnologia molda a concepção da
arquitetura). Não adianta considerar o meio digital “em si” um artifício que instaura uma
revolução na arquitetura e nem, por outro lado, considerá-lo apenas mais um instrumento.
Como afirma o professor Stan Allen, “o computador não é somente mais um instrumento,
mas é, contudo, um instrumento – um instrumento com capacidades, restrições e
possibilidades muito específicas”4.
Nesse tênue equilíbrio entre as novas disposições tecnológicas e os desafios
arquitetônicos é que alternativas devem ser propostas. Ao interferir nas estruturas de
pensamento, a tecnologia digital pode, de fato, contribuir não apenas para tornar os
processos de projeto mais rápidos e eficientes, como para reestruturar o modo como se
concebe e se experimenta a arquitetura.
No caso brasileiro e, especificamente no caso paulistano, a polarização se
caracteriza como uma atitude de indiferença. Afinal, o enfrentamento de uma mancha
urbana que abriga aproximadamente um décimo dos brasileiros é, no mínimo, um desafio
excepcional para utilização da tecnologia. Como atuar em uma situação complexa e
4
ALLEN, Stan. Practice: architecture technique + representation. New York: Routledge, 2009. p.74.
contraditória onde o êxito econômico e a inserção em circuitos globais de economia se
colocam em contraponto a uma eminente desigualdade social e urbana? O que fazer
quando a vitalidade, multiculturalismo e energia urbana se chocam com a defasagem de
serviços públicos, a insuficiência de infraestrutura e as fraturas na paisagem?
Torna-se evidente que São Paulo incita modos de projeto que utilizam a tecnologia
para ampliar as possibilidades de diálogo, participação e atuação arquitetônica. Questões
como forma complexa ou expressão tectônica se colocam em segundo plano ante a
possibilidade de se modelar e simular diversos aspectos da metrópole (impacto ambiental,
social, iminência de catástrofes, desempenho de infraestrutura, etc.), integrando-os a
qualquer iniciativa projetual. E mais, com sua capacidade abstrata, a tecnologia digital pode
ser utilizada em prol da compreensão da cidade como um sistema aberto e em constante
mutação, estimulando estratégias de projeto alimentadas não apenas pelas predisposições
dos projetistas, como também pelo comportamento e participação de diversos agentes
urbanos.
É possível que a grande capacidade de processar informações possa ser sinônimo
não apenas de maior atuação na escala metropolitana, como também de uma consciência e
democratização do próprio processo urbano. Ou talvez essa seja apenas mais uma previsão
idealista. De qualquer modo, frente às questões colocadas, é inegável que nem o fascínio
nem a abstinência digital são atitudes urbanas experimentais.
Pedro Luís Alves Veloso. Arquiteto e Urbanista formado pela FAU/UnB (2006). Mestre pela FAU/USP (2011).
Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac (2010-2011). Dedica-se à teoria da arquitetura,
teoria do projeto e à interferência das tecnologias digitais na produção arquitetônica.
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