1 O TEXTO COLETIVO COMO MEDIAÇÃO DO ENSINO ENQUANTO PESQUISA Elisângela André da Silva Maria do Socorro Lucena Lima Resumo O presente texto parte de uma análise da sociedade contemporânea, situando a educação como práticas social enxarcada por valores próprios deste mundo dito globalizado. As políticas educacionais gestadas a partir de 1990 trazem fortes marcas do ideário neoliberal e situam os professores como os agentes responsáveis pelo sucesso das propostas educativas orquestradas pelos organismos internacionais. Compreendemos a docência como práxis e defendemos a necessidade de que cada professor investigue as determinantes que interferem no seu trabalho e possa, a partir dessa tomada de consciência, posicionar-se criticamente diante do que a sociedade espera de sua profissão. Assim, reconhecemos a relevância da articulação entre ensino e pesquisa nos processos de formação e exercício da docência. Com o objetivo de refletir sobre os limites e as possibilidades da formação do professor pesquisador, buscamos através de uma abordagem qualitativa, articular referenciais teóricos de Charlot (2008), Contreras (2002), Imbernón (2002), Libâneo (2006), Stenhouse (1975) a uma experiência pedagógica desenvolvida na Universidade, identificando reais condições de desenvolvimento dessa postura pedagógica. Palavras-chave: Contemporaneidade. Políticas Educacionais. Formação. Professor pesquisador. Résumé Le présent texte part d’une analyse de la société contemporaine, en situant l’éducation comme pratique sociale replète pour valeurs propes de ce monde dit globalisé. Les politiques éducationnelles gérées depuis 1990, apportent fortes marques du idéal neolibéral et situent les professeurs comme les agents résponsables pour le succès de las propostes éducatives orchestrées pour les organismes internationaux. Nous comprenons l’enseignante comme praxie et défendons la necessité de que chaque professeur fasse des investigations à propos des déterminants qui interfèrent dans son travail et puisse, depuis cette prise de conscience, se positionner d’une forme critique devant du que la société espère de sa profession. Aisin, nous reconnaissons l’importance d’articulation entre l’enseignement et la recherche dans les procès de formation et exercice de l’enseignante. Avec l’objectif de reflechir à propos des limites et des possibilités de la formation du professeur rechercheur, nous recherchons à travers d’un abordage qualitatif, articuler références théoriques de Charlot (2008), Contreras 92002), Imbernón (2002), Libâneo (2006), Stenhouse (1975) à une expérience pédagogique developpée dans l’Université, en identifiant reales conditions de developpement de cet attitude pédagogique. Mots-clé: Contemporain. rechercheur Politiques Éducationnelles. Formation. Professeur 2 O TEXTO COLETIVO COMO MEDIAÇÃO DO ENSINO ENQUANTO PESQUISA Introdução A compreensão da docência no contexto da sociedade contemporânea tem levado inúmeros pesquisadores a se debruçar sobre as políticas educacionais vigentes e sobre o papel do professor como agente responsável pela consolidação, em última instância, das propostas estruturadas para os diferentes níveis de ensino. Pensar a profissão nos leva a pensar também na formação inicial que tivemos e na formação que continuamente buscamos. Nos elementos que conferem a esse processo o título de qualificação profissional, superando, evidentemente a compreensão de qualificação como mera coletânea de títulos acumulados. A articulação entre ensino e pesquisa tem sido apresentada como possibilidade de construção significativa de conhecimentos necessários à docência, mas também como elemento de promoção do desenvolvimento profissional docente. Com o objetivo de refletir sobre os limites e as possibilidades da formação do professor pesquisador, buscaremos considerar como norte para nossas reflexões as seguintes questões: é possível articular ensino com pesquisa? Por que pensar no professor como pesquisador? Que ganhos a formação e a profissão professor têm a partir desse referencial? Para buscar respostas a estes questionamentos nos debruçamos sobre as elaborações de Charlot (2008), Contreras (2002), Freire (2006), Imbernón(2002), Libâneo (2006), Stenhouse (1975), entre outros .O estudo das idéias dos autores apresentados é complementado pela análise de uma experiência pedagógica vivenciada na Universidade Estadual do Ceará, que anuncia a relevância e a viabilidade do ensino enquanto pesquisa na formação de professores. A educação na contemporaneidade A educação, compreendida como práxis, guarda relação indissociável com as formas de organização da sociedade e com os valores políticos, econômicos, culturais e sociais vigentes em um determinado contexto histórico. Nesse sentido, para pensarmos a educação na sociedade contemporânea precisamos identificar algumas das principais marcas que caracterizam o modo de pensar, de viver e de conviver do homem contemporâneo. 3 Entre os traços mais marcantes da contemporaneidade podemos citar a globalização e a revolução científico-tecnológica, que imprimem à sociedade um novo modo de instituir as relações com o tempo, com o espaço, com os valores e com as dimensões da individualidade e da coletividade no contexto das relações sociais. Concordamos, com D’ávila (2008, p.34) quando a mesma afirma que a aceleração na velocidade das informações também modifica as relações humanas e passam a constituir-se como égides da vida urbana: a pressa, a superficialidade das relações, os conflitos morais, os conflitos paradigmáticos nas ciências, os valores sociais e individuais. A globalização, primeiro dos traços citados por nós, se constitui como uma das estratégias de fortalecimento do sistema capitalista e tem como principal característica diminuição de fronteiras econômicas entre os países que constituem redes de fluxo de mercadorias e serviços, e configuram-se como blocos econômicos integrados (GONÇALVES E MACÁRIO, 2009). A perspectiva de desenvolvimento mútuo das nações que se interrelacionam neste mundo dito globalizado não consegue se expressar em países como o Brasil, de forma mais abrangente. Os principais reflexos facilmente identificados no contexto brasileiro, a partir da década de 19901 são: dependência e vulnerabilidade externa, decorrente de acordos internacionais que demandam o estabelecimento de agendas de compromissos envolvendo as políticas públicas; desnacionalização de ramos fundamentais da economia doméstica, como telefonia, eletricidade e abastecimento de água, entre outros; índices elevados de desemprego e agravamento de questões sociais como a violência, a criminalidade e a desmoralização da política. No que se refere às influências deste contexto na definição das políticas educacionais, as principais mudanças decorrem das novas lógicas neoliberais, impondo a sua versão da modernização econômica e social. A dinâmica estabelecida pelo binômio globalização-neoliberalismo na sociedade é mais ampla que a compreensão restrita desta forma de relacionamento entre os países, sob uma perspectiva fundamentalmente econômica. Charlot (2008, p.20) resume este processo da seguinte forma: 1 Período considerado como marco histórico da reestruturação da economia e do estado nacional pelas elites conservadoras brasileiras (Gonçalves e Macário, 2009). 4 Primeiro, tornam-se predominantes as exigências de eficácia e qualidade da ação e da produção social, inclusive quando se trata de educação. Em segundo lugar, essas exigências levam a considerar o fim do ensino médio como o nível desejável de formação da população em um país que ambiciona enfrentar a concorrência internacional e a abrir as portas do ensino superior a uma parte maior da juventude. Por um efeito de feedback, crescem as exigências atinentes à qualidade do ensino fundamental. Em terceiro lugar, a ideologia neoliberal impõe a idéia de que a “lei do mercado” é o melhor meio, e até o único, para alcançar eficácia e qualidade. Multiplicam-se as privatizações, inclusive, em alguns países, em especial no Brasil, as do ensino, quer fundamental, quer médio, quer superior ainda mais. De modo geral, a esfera na qual o Estado atua diretamente reduz-se. O Estado recua, em proveito do “global” e, ainda, do “local”, beneficiado pelo recuo do Estado. A dinâmica acima descrita é referendada no Brasil através da adesão à agenda estabelecida por ocasião da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jontiem (Tailândia), no ano de 1990, que tinha como foco a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem mediante o cumprimento de sete artigos estabelecidos na declaração mundial assinada pelos países participantes, dentre os quais destacamos: universalizar o acesso à educação e promover a eqüidade; concentrar a atenção na aprendizagem; ampliar os meios e o raio de ação da educação básica e propiciar um ambiente adequado às aprendizagens. A educação, neste mesmo documento, é situada como elemento que pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional (UNESCO, 1990, p. 1). Nesse sentido, podemos verificar que dentro das agendas internacionais a educação passa a figurar como política prioritária e como indicativo de desenvolvimento das nações. Assim, de acordo com a declaração mundial de educação para todos, a evolução dos indicadores educacionais passa a ser elemento de controle externo das políticas sociais nacionais e figurar como uma das preocupações centrais dos governos. A política educacional brasileira, a partir dos anos 90, caracteriza-se por ser induzida por este e outros acordos. A preocupação com a universalização da Educação Básica (que incidiu inicialmente sobre o ensino fundamental e mais recentemente sobre a educação infantil e o ensino médio) veio acompanhada de estratégias de busca pela qualidade do ensino ofertado. Peroni (2007) situa entre as estratégias de controle do governo federal sobre o trabalho pedagógico e seus resultados na escola brasileira, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o estabelecimento do 5 Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Tais estratégias permitem a centralização de decisões referentes aos conteúdos curriculares e a descentralização de ações de promoção dos mesmos, que ficam a cargo da escola, sob o princípio da gestão democrática da escola pública. (LDB 9394/96, Art. 3º, Inciso VIII). O professor, nesse contexto, é conclamado a ser agente de mudanças e sujeito responsável pelo desenvolvimento de uma proposta curricular alinhada às políticas educacionais vigentes e, por conseqüência aos interesses da sociedade dita globalizada. Tal estatuto conferido aos professores necessita ser analisado de forma crítica para que não se compreenda este profissional como o grande responsável pelos sucessos e fracassos da educação nacional. Faz-se necessária a apreensão do contexto mais abrangente para que se possa identificar de forma mais clara o papel do professor, assim como os limites e as possibilidades da docência na sociedade contemporânea. A formação do professor pesquisador Fala-se muito hoje em educação de qualidade. No entanto, o conceito de ensino de qualidade envolve diferentes setores, com diferentes interesses, o que deixa muitas vezes certa ambiguidade em relação aos critérios explícitos de caráter pedagógico, ético, cultural e social. A educação busca preparar o cidadão, a formação da consciência – um projeto bem diferente do que a racionalidade mercantilista apregoa. Na racionalidade mercantilista, a cultura ou o conhecimento codificado não são referências valiosas para dirigir a procura de algum tipo de racionalidade; o conhecimento sobre o aluno, sobre suas formas de aprender, sobre as consequências dos métodos pedagógicos, tampouco; a não ser que o modelo do mercado considere que toda a população é exaustivamente ilustrada ou possui um senso comum bem fundamentado, sendo capaz de apreciar corretamente as virtudes do modelo de educação a ser escolhido. (SACRISTAN, 1999, p.248) Nesse contexto, marcado pelas grandes e rápidas mudanças sociais, Libâneo (2006) explica que é solicitado aos professores o exercício do papel de agentes de transformação e que as escolas incluam nas suas práticas o desafio de passar para o aluno a cultura do mundo contemporâneo. Espera-se que estes profissionais, com os seus saberes, valores e experiências, contribuam na tarefa de melhoria da qualidade do trabalho escolar, da aprendizagem dos alunos. Aos professores tem sido cobrada, ainda, a responsabilidade de ultrapassar suas atribuições no plano individual, no sentido de agir coletivamente no nível institucional, enfrentando essas novas demandas requeridas 6 pelas situações de ensino, onde se fazem necessárias a competência do conhecimento, a sensibilidade ética e a consciência política. Sobre a necessidade da preparação dos professores para a realização deste trabalho de redefinição social junto aos alunos e das instituições Libâneo (2006, p.15) nos diz que a transformação da prática docente decorre da ampliação da consciência deste sobre essa mesma prática. E acrescenta: A formação docente é um processo permanente e envolve a valorização identitária e profissional dos professores. A identidade do professor é simultaneamente epistemológica e profissional, realizando-se no campo teórico do conhecimento e no âmbito da prática social. O mundo passa por constantes evoluções nos setores científico, tecnológico e econômico. Estas transformações, características do mundo globalizado, geram inquietações nos profissionais do mundo inteiro, pois o mercado de trabalho passa a exigir uma mão-de-obra qualificada, uma formação de boa qualidade e uma constante capacitação dos trabalhadores. O profissional docente não se situa à parte desta realidade política neoliberal, cabendo ao mesmo preocupar-se em uma constante reflexão e qualificação do seu fazer pedagógico. Diante das mudanças em âmbito mundial, o professor precisa refletir sobre a concepção de seu ato pedagógico e questionar-se sobre a sua formação. O trabalho docente não se caracteriza apenas pela transmissão de ideias e conhecimentos, mas, sim, por um trabalho que proporciona uma educação transformadora, reflexiva e crítica. Nesse sentido, Stenhouse (1975, p. 156) afirma que o professor deve apresentar uma pré-disposição para examinar a própria prática de maneira crítica e sistemática, pois a estes pertence a função de reflexão e de desenvolvimento curricular: (...) o desenvolvimento curricular de alta qualidade, efetivo, depende da capacidade dos professores adotarem uma atitude de investigação permanente do próprio ensino. A posição do professor, em seu campo de atuação, é de construção do conhecimento do aluno, como um agente transformador de mudança do desenvolvimento do processo educacional do discente. É ainda de agente dinâmico e flexível, preocupado em adquirir conhecimentos e estratégias de ensino que possibilitem ao aluno uma educação formadora crítica e reflexiva. Imbernón (2002, p. 39) explica ainda que o processo de formação deve dotar os professores de conhecimentos, habilidades e atitudes para desenvolver profissionais reflexivos ou investigadores. 7 O professor deve formar-se com a capacidade de refletir sobre sua prática educacional e sobre sua docência, com o propósito de construir da sua identidade profissional docente. Assim, busca-se a formação de um professor que analisa seus conceitos, sua prática, e pode intervir na sociedade. (IMBERNÓN, 2002). Indagar sobre o sentido das reformas no campo da educação significa fazer as mudanças de forma consciente e o fato de tornar-se um sujeito reflexivo e investigador, um agente capaz de interpretar e resolver situações complexas no seu fazer docente diário. Faz-se necessário que este profissional afaste de si o conceito de professor tradicional, que tem como função principal apenas transmitir o conhecimento aos alunos. Concordamos com Imbernón (2002, p. 41) quando afirma que um aspecto relevante na capacitação profissional é a atitude do professor realizar as fases da docência, ou seja, planejar sua tarefa pedagógica, não apenas como técnico, mas como intelectual mediador de aprendizagem, prático reflexivo, que tem a possibilidade de provocar a participação dos alunos, a cooperação da comunidade e a construção do conhecimento. O professor, que o contexto atual precisa, é aquele que ensina e aprende, que é sujeito da sua atividade profissional e da sua formação. Assim, nos aproximamos das idéias de Stenhouse (1975), por acreditarmos que a melhoria do ensino é processo de desenvolvimento, pois não decorre do mero desejo e sim do aperfeiçoamento, refletido, da competência de ensinar; e este se processa através da eliminação gradual de aspectos negativos, identificados através do estudo sistemático sobre a atividade docente. O olhar pensante e sensível do professor pesquisador A apreensão da realidade que nos cerca se dá, inicialmente, por uma inquietação proporcionada pelo olhar, no momento em que aquilo que julgamos aparentemente normal passa a ser enxergado de forma diferente e curiosa. É neste movimento que o mundo passa a ser constantemente explorado e desvelado, gerando novas formas de compreensão e de intervenção por parte da humanidade. O olhar, portanto, é ferramenta indispensável no processo de investigação e pesquisa dos fenômenos naturais e sociais. É a partir dele que vêm historicamente surgindo perguntas, inquietações e descobertas que proporcionam o desenvolvimento das diferentes ciências. No entanto, é importante destacarmos que este olhar não se dá de forma despretensiosa, reduzida a simples percepção dos fenômenos. É uma ação 8 complexa, historicamente constituída e, portanto, resultado de um processo de aprendizagem e de escolhas. É, em outras palavras, o olhar de pesquisador. A constituição da identidade do professor como pesquisador passa pelo reconhecimento de seu inacabamento enquanto pessoa, fato que nos conduz à compreensão de que tal constituição é um processo de reformulação contínua e consciente, que implica, inclusive, uma forma de intervenção no mundo, como afirma Sales (2004, p. 91): Se nós somos aquilo que nos tornamos, significa que podemos nos transformar em algo diferente do que fomos um dia e do que somos hoje. Assim, na medida em que o professor se transforma gradativamente em um profissional que pesquisa e compreende criticamente sua realidade, seu olhar passa por um processo de transformação que lhe permite visualizar de forma mais ampla e sistemática os fenômenos educativos, compreendendo-os à luz de diferentes determinantes. Essa postura possibilita, de acordo com Contreras (2002, p. 185) desentranhar a origem histórica e social do que se apresenta como “natural”. A crítica, elemento essencial do olhar investigador, possibilita a dúvida e o questionamento de conceitos, valores e hábitos presentes nas relações sociais das quais a educação faz parte. Sem este elemento, o olhar se torna apático, frio e descomprometido com as transformações. Dessa maneira, concordamos com Ghedin e Franco (2008, p.80) ao compreendermos que para instaurar um processo de transformação, convém educar o olhar noutras direções. Nesse sentido, o olhar sobre o fenômeno educativo precisa considerar a complexidade do mesmo e lançar luzes sobre aspectos que consideramos essenciais, como a historicidade que situa a educação como prática social construída pela humanidade, que ao mesmo tempo modifica os sujeitos e é por eles modificada; as práticas escolares, que são compreendidas de forma distinta pelos sujeitos que delas participam, a partir de representações sociais diversas, o que implica na busca constante de sínteses entre fatores de caráter objetivo e subjetivo por parte dos pesquisadores; o fenômeno educativo e sua dinamicidade, que demanda do olhar do pesquisador o preparado para o imprevisto, para desordem aparente e a capacidade de elaboração de categorias de análise a partir desse contexto. Para lidar com esta complexidade, o professor pesquisador precisa desenvolver não só aspectos referentes a técnicas e métodos investigativos, mas a sensibilidade para captar mensagens presentes em diferentes sinais manifestos no chão da escola, como olhares, silêncios, atritos, envolvimento, indiferença, entre outros tantos. Assim, a 9 sensibilidade de quem investiga, apresenta-se como pergunta através dos órgãos dos sentidos, como anuncia Cortella (2008, p. 07): quando estico o ouvido para perceber um som, é a pergunta da audição (...) quando dirijo meus olhos para enxergar uma cena, é a pergunta dos meus olhos, que querem ver uma diferente paisagem e a procuram inquietos. O olhar abre caminho para a percepção, para a interpretação e a compreensão dos fatos e fenômenos, que analisados dialeticamente nos ajudam a compor uma compreensão da realidade. Essa atividade está ligada a uma intencionalidade que, longe de ser neutra, expressa ao mesmo tempo quem somos, de onde falamos, em que acreditamos e por que pesquisamos. Assim, ratificamos a fala de Freire (2006, p. 32) quando o mesmo afirma: Pesquiso para constatar, constatando intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. Ao lançarmos nosso olhar sobre o mundo, saímos de nós mesmos e nos projetamos em um território desconhecido com o objetivo de desbravá-lo, simultaneamente lançamos para dentro de nós esse mundo, agora com o objetivo de desbravarmos a nós mesmos, nossas crenças, nossos valores e, sobretudo, nossa forma de estar neste mesmo/diferente mundo. A construção de textos coletivos como postura metodológica para a formação do professor pesquisador A docência no ensino superior e a investigação constante das idéias que circulam em torno do professor pesquisador tem nos possibilitado a formulação de vivências pedagógicas que evidenciem os ganhos obtidos pelos estudantes em formação e pelos docentes através da articulação entre o ensino e a pesquisa. A construção de textos coletivos é uma dessas vivências. A partir da análise dos passos que compuseram essa experiência, buscaremos evidenciar os elementos que agregam significado às aprendizagens constituídas nesse caminho. A referida experiência se deu na disciplina Desenvolvimento Profissional Docente, constituinte do currículo do Curso de Especialização em Formação de Formadores, promovido pela Universidade Estadual do Ceará. O objetivo principal desta disciplina é a reflexão sobre a formação contínua dos professores como elemento de Desenvolvimento Profissional. Assim, a maioria dos profissionais que constituem a 10 turma já acumula experiência como formador e busca neste espaço a ressignificação de suas práticas. A experiência de construção do texto coletivo se deu em 08 passos sobre os quais nos debruçaremos a partir de agora. 1º Passo: Estudo de referenciais teóricos sobre profissionalização docente e ensino como pesquisa2. A etapa inicial da disciplina promoveu ampla discussão da docência como trabalho e da articulação indissociável do ensino e da pesquisa. Nesse momento foi apresentada a sistemática de trabalho a ser desenvolvida para que todos compreendessem a importância de seu envolvimento em todas as etapas do processo. 2º Passo: Produção individual do memorial de formação. Neste momento os professores tiveram a oportunidade de revisitar suas experiências, destacando vivências que contribuíram positiva ou negativamente em suas formações enquanto pessoas e enquanto profissionais. A constituição da identidade do educador é elemento central, tanto para a compreensão de seu modo de se posicionar frente às questões que envolvem sua profissão, quanto para a identificação de possibilidades de mudanças. 3º Passo: Socialização dos memoriais e identificação de elementos comuns nas histórias de vida e formação dos professores. Propusemos a formação de trios para a socialização das histórias de vida e mapeamento dos pontos comuns. Através dessa atividade, os professores puderam refletir melhor sobre a influência das políticas educacionais no processo de formação de cada sujeito pertencente e a percepção das dimensões individuais e coletivas da identidade. 4º Passo: Definição do tema de interesse. A definição e exploração do tema escolhido por cada grupo promoveu o reconhecimento da necessidade de articulação entre as elaborações mais específicas, situadas nas experiências cotidianas dos alunos, a contextos mais abrangentes, a partir da contribuição de autores. A dimensão prática da docência surge como importante elemento tanto para elaboração, como para o enriquecimento de teorias educacionais. (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008). 5º Passo: Produção de versões preliminares do texto. Na medida em que a disciplina avançava e o estudo do referencial teórico proposto na ementa se concretizava, os alunos iam produzindo versões preliminares dos textos, que incorporavam tanto os conteúdos estudados em sala, quanto as contribuições trazidas 2 O estudo desses referenciais teóricos ocorreu no desenvolvimento da disciplina e gradativamente foram sendo incorporadas às elaborações dos grupos e às versões preliminares de seus textos. 11 por nós, na condição de docentes, e pelo próprio grupo, através dos levantamentos bibliográficos realizados por cada aluno. 6º Passo: Apresentação da versão final do texto. No encerramento da disciplina, os trios apresentaram suas produções em forma de comunicação oral. Assim, a divulgação dos resultados completou o ciclo dessa experiência, promovendo o exercício da pesquisa como uma possibilidade extremamente significativa de formação. Ao final dessa experiência tivemos a satisfação de assistir trabalhos com temáticas diversas, abordadas com todo rigor científico que caracteriza a pesquisa acadêmica. Os depoimentos dos alunos deram destaque à construção processual das elaborações acerca das temáticas estudadas, ao sentimento de recompensa por se reconhecerem, a partir daquele momento como intelectuais capazes de produzir conhecimentos científicos e de satisfação com o aproveitamento da disciplina, que possibilitou tanto a melhor compreensão da docência, como de cada um na condição de sujeito histórico em permanente processo de mudança. Considerações O desenvolvimento da política educacional brasileira, a partir do final do Século passado teve como marca a interferência de organismos internacionais, que induziram o país, por exemplo, a estabelecer a universalização da Educação Básica como uma de suas metas prioritárias. A preocupação com a qualidade do ensino a ser ofertado de forma massiva veio acompanhada de estratégias de controle do governo federal sobre o trabalho pedagógico, concretizada na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e no estabelecimento do sistema oficial de avaliação da Educação Básica (SAEB). Tendo seu trabalho alienado pelas diferentes instâncias de gerenciamento da Educação, o professor é desafiado constantemente a pensar sobre sua profissão e os desafios postos cotidianamente à docência. Para compreender melhor seu papel na sociedade o professor deve buscar estratégias que o possibilitem situar a sua ação individual ao contexto mais amplo da educação nacional, percebendo a favor de quem materializa seu trabalho. A articulação entre ensino e pesquisa, nos espaços de formação inicial e continuada de professores pode contribuir de maneira ímpar na constituição da 12 profissionalização docente. Vários são os autores que discutem essa possibilidade, ora posicionando-se contra, ora a favor, como é o caso de Charlot e Stenhouse. A experiência vivenciada nos bancos da Universidade Estadual do Ceará, no curso de especialização em Formação de Formadores, e mais especificamente na disciplina Desenvolvimento Profissional Docente, demonstra, a partir dos resultados obtidos que a perspectiva do professor pesquisador é extremamente válida, viável e necessária ao fortalecimento da identidade profissional dos educadores. Referências Bibliográficas BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394, de 06 de março de 1996. Brasília. CHARLOT, Bernard. Formação de professores: a pesquisa e a política educacional. In: PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN, Evandro. (Orgs.) Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002, p.89-108. CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. CORTELLA, Mario Sérgio e CASADEI, Silmara Rascalha. O que é pergunta? São Paulo: Cortez, 2008. (Coleção tá sabendo?). DÁVILA, Cristina. Formação docente na contemporaneidade: limites e desafios. In Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Salvador, v. 17, n. 30, jul./dez. 2008. P. 33-42. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra, 2006. GHEDIN, Evandro e FRANCO, Maria Amélia Santoro. Questões de método na construção da pesquisa em educação. São Paulo, 2008. (Coleção docência em formação – série saberes pedagógicos). GONÇALVES, Daniele Nilim e MACÁRIO, Epitácio. Brasil: crise social e educação. In SEAD/UECE. Sociologia da Educação. Fortaleza: RDS Editora, 2009. IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: forma-se para a mudança e a incerteza. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção questões de nossa época). LIBÂNEO, José Carlos; OLIVEIRA, João Ferreira de; TOSCHI, Mirza Seabra. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2006. (coleção docência em formação. Série saberes pedagógicos). 13 SALES, Josete de Oliveira Castelo Branco. Identidade e fazer docente: dois movimentos que se cruzam. In LIMA, Maria Socorro Lucena e SALES, Josete de Oliveira Castelo Branco. Aprendiz da prática docente. 2ª Ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2004. (Coleção Magister) PERONI, Vera. Política educacional e o papel do estado no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003. OLIVEIRA FORMOSINHO, Julia. A pesquisa ação e a construção do conhecimento significativo. In PIMENTA, Selma Garrido e FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pesquisa em Educação: possibilidades investigativas/formativas da pesquisa-ação. Vol.2. São Paulo: Loyola, 2008. SACRISTAN, José Gimeno. Poderes Instáveis em Educação. Tradução: Beatriz Afonso Neves. Artmed, Porto Alegre, 1999. STENHOUSE. L. An introduction to curriculum research and development. London: Heineman, 1975. _____. Investigación y desarrollo del curriculum. 3ª. Ed. Madrid: Morata, 1991. _____. La investigación como base de la enseñanza. 3ª. Ed. Madrid: Morata, 1996.