Fraturas expostas do tornozelo: avaliação do tratamento em

Propaganda
FRATURAS EXPOSTAS DO TORNOZELO: AVALIAÇÃO DO TRATAMENTO EM ONZE PACIENTES
Fraturas expostas do
tornozelo: avaliação do
tratamento em onze pacientes*
ANTONIO FRANCISCO RUARO1, ALEXANDRE THADEU MEYER1, JOSÉ ANTONIO GARCIA AGUILAR1
RESUMO
Os autores analisam 11 pacientes portadores de fraturas expostas do tornozelo, ocorridas entre setembro de
1993 e fevereiro de 1997. O tratamento se embasou nos
princípios clássicos das fraturas expostas, com irrigação
abundante, desbridamento rigoroso, estabilização da fratura e antibioticoterapia. Enfoque especial foi dado para
a documentação de todo o atendimento realizado ao paciente, desde sua admissão no pronto-socorro, com fotografias (Polaroid), radiografias, prontuário completo. Todo
o serviço prestado foi amparado em uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar atuante e em protocolos que
orientaram o tratamento mais adequado efetivado ao paciente. Todas as fraturas tiveram estabilização interna,
com exceção de um paciente com fratura grau IIIB de
Gustillo e Anderson, que utilizou fixador externo. O objetivo do estudo foi verificar que a fixação interna realizada na grande maioria dos pacientes apresentou evolução satisfatória, comprovando a literatura, pela qual nas
fraturas expostas do tornozelo existe menor tendência a
infecção, com maior estímulo para as sínteses internas de
imediato.
SUMMARY
Open fractures of the ankle: assessment of the treatment in
eleven patients
The authors analyzed 11 patients with open fractures of
the ankle between September 1993 and February 1997. The
* Trab. realiz. na Clín. de Fraturas, Ortop. e Reabil. Umuarama Ltda. e Hosp.
Cemil, Umuarama, Paraná.
1. Méd.; Membro Tit. da Soc. Bras. de Ortop. e Traumatol.
Endereço para correspondência: Antonio Francisco Ruaro, Rua Walter Kreiser, 3.434 – 87503-710 – Umuarama, PR. Tel. (044) 622-1870.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
treatment performed was the classical procedure carried out
in open fractures: deep irrigation, complete debridement,
stabilization of the fracture, and antibiotic therapy. The authors gave special emphasis to the documentation of the patients since their admission to the emergency ward, made
with Polaroid pictures and X-rays. Complete files of the patients were kept. The whole study was carried out under the
protection of the Hospital Infection Control Committee. All
fractures were submitted to an internal fixation surgery, except for one patient with IIIB degree (Gustillo and Anderson), who was submitted to an external fixation. The purpose
of this study is to show the good results achieved with internal fixation, without infection, stimulating this kind of method of treatment.
INTRODUÇÃO
As fraturas do tornozelo estão entre as injúrias mais comuns tratadas pelo traumatologista(9,18,19,21,23). A incidência,
bem como a gravidade destas fraturas, vem aumentando progressivamente nas últimas três décadas, como conseqüência
de uma população mais idosa e mais ativa(13), o mesmo ocorrendo com as fraturas expostas do tornozelo, que estão entre
as lesões expostas mais freqüentes do sistema músculo-esquelético e que resultam de quedas em terrenos irregulares
ou escorregadios, de quedas de altura e de acidentes automobilísticos(9).
As fraturas do tornozelo remontam à antiguidade(23). Evidências de fraturas consolidadas do tornozelo foram encontradas em múmias do antigo Egito(23). No Século V antes de
Cristo, Hipócrates recomendava que as fraturas fechadas fossem reduzidas através de tração do pé e as fraturas expostas
não deveriam ser reduzidas, senão o paciente morreria de
“inflamação e gangrena” dentro de sete dias(23). No Século
XVIII, os trabalhos demonstravam a alta incidência de de457
A.F. RUARO, A.T. MEYER & J.A.G. AGUILAR
formidades e perda de função; alguns chegaram a afirmar
que estas “violentas fraturas-luxações” poderiam ser curadas somente através de amputação primária(23).
Dois grandes avanços na história da medicina, ocorridos
também no Século XVIII, permitiram a evolução para os
conceitos atuais no tratamento das fraturas expostas. O primeiro foi descoberta de Ignac Fülop Semmelweis(14), médico
húngaro, sobre os cuidados de assepsia, criando o protocolo
para o atendimento das parturientes, em um hospital de Viena, o que permitiu diminuir a mortalidade de mais de 30%
para 1,2%. “A partir de hoje, 15 de maio de 1847, todos os
médicos e estudantes que venham da sala de dissecção devem lavar as mãos no recipiente com água e cloro que está
na entrada”. O segundo foi a descoberta pelo médico e bacteriologista inglês Alexander Fleming(14), que, ao cometer um
erro de técnica, sem querer, descobriu a penicilina.
Atualmente todas as fraturas expostas do tornozelo são tratadas cirurgicamente, tendo como propósito restaurar a anatomia e principalmente a função do tornozelo tão precoce e
completamente quanto possível(5,19).
A decisão crucial no tratamento das fraturas expostas do
tornozelo está na escolha do material de estabilização que
melhor se ajuste, com menor incidência de complicação e
maior possibilidade de restauração da função, em menor tempo, já que dispomos, para a estabilização, de vários métodos, entre eles: aparelhos gessados, tração, fixação bipolar,
osteossíntese interna e fixação externa(5,23). Qualquer que seja
o método escolhido, este deve satisfazer certos critérios: não
deve comprometer ainda mais tecidos moles já lesionados;
deve manter o comprimento do osso; deve produzir bom alinhamento dos fragmentos ósseos, especialmente se existir
traço de fraturas(5).
A forte tendência atual está entre a fixação interna de imediato ou o uso de fixadores externos e, por vezes, a associação dos dois(5,7,12,13,23).
O temor da infecção deu origem à opinião tradicional aceita, de que a fixação interna imediata em fratura exposta é
contra-indicada. Esta atitude tem mudado nos últimos tempos. O prognóstico melhorou consideravelmente, baseado em
conceitos modernos no tratamento da fratura exposta, tais
como(5,6,11): a) desbridamento precoce, meticuloso e rigoroso; b) irrigação abundante da fratura exposta do tornozelo;
c) antibioticoterapia ou antibioticoprofilaxia adequada(6,11);
d) fechamento primário retardado – permanência das feridas
abertas, ou incisões contralaterais, de cobertura e drenagem.
A literatura tem demonstrado excelentes resultados com a
síntese interna de imediato nas fraturas expostas do tornoze458
lo, indicando ainda que os índices de infecção não se diferenciam das fraturas fechadas(5,13). Nas fraturas tipo IIIB e
IIIC, em decorrência das lesões sobre os tecidos moles, existe tendência à utilização dos fixadores externos(3,5,13).
É objetivo deste trabalho verificar os resultados com a fixação interna de imediato nas fraturas expostas do tornozelo, já que esta se constitui no melhor e mais confortável método de estabilização, preenchendo o princípio orientador do
tratamento das fraturas, segundo o qual “vida é movimento,
movimento é vida”(1).
A fixação interna permite a mobilização completa, ativa,
indolor e resulta em um retorno rápido do suprimento sanguíneo normal ao osso e tecidos moles. Também aumenta a
nutrição da cartilagem articular pelo líquido sinovial e, quando combinada com sustentação parcial do peso, diminui grandemente a osteoporose pós-traumática, ao restaurar o equilíbrio entre a reabsorção de osso e a formação de osso(1).
Uma fixação interna satisfatória é obtida somente quando
a imobilização externa é supérflua e quando é possível a mobilização completa, ativa, dos músculos e articulações. Este
é o objetivo principal da AO e é melhor alcançado pela fixação interna estável durante o processo de reparação óssea(1).
Também neste trabalho enfocamos a preocupação com todos os aspectos legais relacionados com o atendimento da
fratura exposta, já que o resultado final poderá ser diferente
do esperado pelo paciente, abrindo-se, dessa forma, espaços
para questionamentos, entre eles o jurídico(17).
Cabe ao hospital e ao médico fazer prova do correto atendimento prestado, com a documentação e a anotação de todas as ocorrências e intercorrências, com fotografias e radiografias da fratura exposta, com protocolo de atendimento,
seguindo conceitos clássicos desde a admissão no hospital
até a alta definitiva, respaldado por uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar atuante(17).
MÉTODO
Todos os nossos pacientes foram atendidos de acordo com
protocolo arquivado e registrado no Livro Ata da CCIH aprovado pelo corpo clínico com a rotina de todos os serviços
prestados, embasado na literatura e experiência de outros
serviços, com a seguinte sistematização:
A) Avaliação inicial do paciente, em geral feita no pronto-socorro: • Avaliação do estado geral – segundo normas do
ATLS – ao mesmo tempo em que se faz a venopunção, com
administração de fluidos e antibióticos já padronizados(6,11) –
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
FRATURAS EXPOSTAS DO TORNOZELO: AVALIAÇÃO DO TRATAMENTO EM ONZE PACIENTES
(cloranfenicol, cefalotina sódica, cefalexina monoidratada,
gentamicina e outros, quando necessário, mediante justificativa), com profilaxia do tétano, quando necessária; • Rápida
história clínica do paciente, obtida do próprio paciente ou
familiares, quando possível;
B) Avaliação intermediária, no pronto-socorro ou centro
cirúrgico: • Tomada de radiografias; • Tomada de fotografias;
C) Avaliação no centro cirúrgico: • Preparação para o desbridamento; • Limpeza mecânica com tricotomia do membro; • Irrigação abundante – tendo como máxima “se pouco
é bom, muito será melhor”; • Uso de garrotes, evitando o seu
uso; quando necessário, por 10 a 15 minutos no máximo; •
Desbridamento rigoroso, na seqüência, pele, tecido celular
subcutâneo, músculo, osso, com inspeção da articulação,
nervos e vasos; • Estabilização óssea, com utilização de síntese interna, para as fraturas grau I, II, IIIC; para as fraturas
grau IIIB e IIIC, utilização de fixadores externos; • Tratamento da ferida, com fechamento primário retardado em geral ao redor do quinto dia; fechamento primário, como medida de exceção, somente em algumas fraturas grau I, pelo
fato de que em ferimento aberto não incide gangrena gasosa.
MATERIAL
Entre setembro de 1993 e fevereiro de 1997, foram tratados 11 pacientes portadores de fraturas expostas do tornozelo, com seguimento médio de 22 meses, com o mínimo de 6
meses e o máximo de 4 anos. Dos 11 pacientes, seis eram do
sexo masculino e cinco do sexo feminino. A idade média foi
de 43 anos, variando de 17 a 68 anos. O lado mais acometido
foi o direito, com sete fraturas; quatro foram do lado esquerdo. A causa determinante da fratura, em seis casos, foi a queda em terreno irregular ou escorregadio, quatro por acidente
automobilístico e um caso por queda de altura.
Com relação ao tempo decorrido entre a lesão e o atendimento no hospital, dez casos foram atendidos na primeira
hora da lesão (considerados pela Comissão de Controle de
Infecção Hospitalar como potencialmente contaminados,
quando atendidos com até dez horas de evolução) e um caso
foi atendido com 12 horas de evolução (considerado como
contaminado, quando com mais de dez horas de evolução)(17).
A classificação utilizada foi a de Gustillo e Anderson, sendo
que dois casos apresentavam lesão grau I, cinco casos apresentavam lesão grau II, três casos lesão grau IIIA e um caso
lesão grau IIIB.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
Todo o atendimento se orientou na sistematização de tratamento da fratura exposta já esquematizado, com ênfase na
irrigação abundante, no desbridamento rigoroso, estabilização e antibioticoterapia. O paciente com fratura exposta grau
IIIB foi o único, de imediato, a fazer estabilização com fixador externo do tipo monoplanar, com duas barras paralelas
colocadas lateralmente; apresentava área cruenta com perda
de pele e tecido celular subcutâneo com aproximadamente
oito centímetros de diâmetro, tendo feito cobertura com enxerto livre de pele total ao redor do 14º dia do pós-operatório, com evolução satisfatória. Todas as demais fraturas fizeram síntese interna, com placa na fíbula em nove pacientes;
em apenas um caso com fratura oblíqua ao nível da sindesmose foi possível a fixação com três parafusos corticais. O
maléolo tibial foi fixado com parafusos esponjosos e/ou maleolares, sendo que em oito pacientes utilizaram-se dois parafusos e, em dois, apenas um. Em dois casos (uma fratura
grau I, uma grau II), imediatamente após a síntese, fez-se o
fechamento primário; todos os demais fizeram o fechamento
primário retardado ao redor do quinto dia, com exceção do
paciente com fratura grau IIIB, que fez o fechamento no 14º
dia. Em dois casos, por instabilidade da tibiofibular, fez-se a
sua fixação com parafuso cortical; em um deles, com 45 dias
do pós-operatório, o parafuso foi retirado, já que transfixava
a fíbula e a tíbia em suas duas corticais; no outro paciente, o
parafuso transfixava a fíbula e se prendia somente à cortical
lateral da tíbia, não transfixando a cortical medial; não obstante a descarga do peso do paciente, conforme informes da
literatura(5), até o momento (com dois anos de evolução) o
parafuso não se quebrou, ocorrendo adaptação pela não rigidez do parafuso e sua mobilidade ao nível da cortical lateral
da tíbia.
Um paciente com fratura exposta grau I que fez síntese
interna apresentou, no pós-operatório imediato, distúrbio psiquiátrico, deambulando com apoio sobre o membro operado, com perda da estabilização, recidiva da luxação e deiscência da sutura; neste caso, na seqüência, achou-se prudente nova intervenção cirúrgica, com retirada do material de
síntese, nova irrigação, desbridamento e estabilização com
fixador externo, ocorrendo evolução satisfatória.
Todos os pacientes com síntese interna foram imobilizados no pós-operatório em tala gessada, deambulando, tão logo
possível, sem apoio. Com quatro semanas, foram imobilizados em bota gessada com apoio por mais 15 dias, quando
iniciaram exercícios para ganho de mobilidade.
459
A.F. RUARO, A.T. MEYER & J.A.G. AGUILAR
RESULTADOS
Com relação aos resultados, foi objetivo do trabalho verificar se todos os pacientes não desenvolveram infecção em
nível articular ou ósseo, em especial naqueles que fizeram
síntese interna, como também no único caso que foi reoperado. Não ocorreu pseudartrose. Todos evoluíram sem dor, com
marcha sem claudicação, satisfeitos com os resultados obtidos. Um caso com fratura exposta grau II, um caso com fratura exposta grau IIIA e o paciente com fratura exposta grau
IIIB apresentaram limitação dos movimentos de flexo-extensão, inversão e eversão do tornozelo em limites não significativos, entre 10 e 15 graus.
Griffiths & Thordarson(7) estabeleceram duas categorias
de complicações nas fraturas do tornozelo com acometimento do pilão: as complicações maiores, que foram definidas
por McFerran’s e que exigiram reintervenção cirúrgica, e as
menores, que não necessitaram de reintervenção cirúrgica.
Com fundamentos nestas complicações, tivemos uma complicação maior, que necessitou de nova cirurgia, com troca
de síntese interna por fixador externo, embora a causa determinante fosse o distúrbio psiquiátrico. Com relação às complicações menores, tivemos infecção superficial nos dois pacientes que se utilizaram do fixador externo e limitação dos
movimentos de flexo-extensão e pronossupinação em três pacientes.
DISCUSSÃO
O atendimento das emergências em muito se diferencia do
atendimento às cirurgias eletivas. Segundo Glenn Terry(22),
da Clínica Hughston, em Columbus, Georgia, nas cirurgias
eletivas o paciente convive com o médico e muitas vezes
tornam-se amigos; já nas emergências, por não haver essa
amizade prévia, pode ocorrer incompatibilidade emocional
entre ambos. Nas fraturas expostas, e aqui vale para as expostas do tornozelo, além de dor existem outras variáveis,
com riscos até mesmo de amputação ou da própria vida do
paciente, ocorrendo uma situação de stress tanto para o médico quanto para o paciente. O médico dominante, sabedor
destas dificuldades, deve coordenar este relacionamento, procurando melhorá-lo.
As primeiras CCIHs surgiram nos EUA, em 1958, estimuladas pela Associação dos Hospitais Americanos, com o objetivo de proteger o paciente, mas também o hospital e o
médico, que, com os dados e indicadores fornecidos, poderiam defender-se de uma acusação de negligência, imperícia
460
e imprudência. A obrigatoriedade das CCIHs somente surgiu
em 1965, com famoso caso ocorrido nos EUA, em que o
hospital e o médico foram condenados, em uma reparação
de danos(17,20).
O médico e o hospital, ao prestar atendimento a uma fratura exposta, no caso tornozelo, devem estar respaldados pela
presença de uma CCIH atuante, que apresente rotina e protocolo, arquivados e registrados no livro ata da CCIH, portanto aprovado pelo corpo clínico e baseados na literatura e experiências de outros serviços; nada pode ser empírico. Esta
CCIH também deve mostrar indicadores estatísticos de infecção dentro dos limites aceitáveis. Agindo dessa maneira,
tanto o hospital quanto o médico estarão mais imunes aos
efeitos de uma eventual ação penal e civil para reparação de
danos(17).
As fraturas expostas do tornozelo requerem o emprego dos
mesmos princípios de tratamento de fraturas expostas aplicado em qualquer parte do esqueleto(13,23), com orientação
específica no tornozelo (articulações), para reconstituir o mais
rápido a congruência articular(13). O prognóstico nas fraturas
expostas é determinado principalmente pela quantidade de
tecidos desvitalizados e pelo nível e tipo de contaminação
bacteriana(5,19). As fraturas expostas do tornozelo, por não
apresentarem grandes espaços virtuais que permitam a formação de grandes hematomas, que são avasculares e meios
de cultura, e por não disporem de concentração de tecido
muscular, que quando necrótico também é meio de cultura,
tendem a evoluir com menor percentual de infecção, aceitando melhor a síntese interna(5). O Prof. Napoli, em seu trabalho sobre “Osteossíntese Imediata nas Fraturas Expostas”,
publicado em 1968, já observou, correlacionando os resultados com o tipo de síntese, que os melhores foram obtidos nas
osteossínteses com parafuso, ressaltando que este método de
síntese foi empregado predominantemente nas fraturas expostas do tornozelo(16).
O Dr. Michael W. Chapman orienta para uma seqüência
objetiva e didática no tratamento da fratura exposta(5), com a
qual concordam inúmeros autores(17,19,21,23).
Normalmente, o atendimento do paciente com fratura exposta do tornozelo se divide em:
Primeiro estágio – Em geral feito no pronto-socorro.
Venopunção com cateter de grande calibre, com administração de volume e antibiótico, já previamente selecionados(2,5,6,11).
Avaliação do estado geral: em toda fratura exposta, sobretudo grau III, devem ser avaliadas todas as condições que
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
FRATURAS EXPOSTAS DO TORNOZELO: AVALIAÇÃO DO TRATAMENTO EM ONZE PACIENTES
colocam em risco a vida do paciente. O curso desenvolvido
pelo ATLS (Advanced Trauma Life Suport – Suporte Avançado de Vida no Trauma)(2) fornece ao médico um método
seguro e confiável para o controle imediato do paciente traumatizado, ao que se inclui a reanimação e estabilização do
paciente em obediência a prioridades definidas. O conhecimento básico necessário para se avaliar com rapidez e precisão as condições do paciente, com o – A (Air Way) – B (Breathing) – C (Circulation) – D (Disability) – E (Exposure/Environment), é prático e objetivo: inicialmente, avaliam-se as
vias aéreas, com controle da coluna cervical do paciente; a
seguir, a capacidade respiratória; na seqüência, a circulação,
com seu controle, a procura de hemorragias ocultas em tórax, abdômen e sistema geniturinário, as condições neurológicas e, finalmente, a exposição do corpo com controle do
ambiente, quando, com o paciente totalmente despido, identificam-se todas as lesões sobre o corpo, ao mesmo tempo
em que deve existir preocupação com a hipotermia.
Rápida história clínica obtida com o paciente ou familiares, à procura de doenças (diabetes melito, história de AIDS,
distúrbios da coagulação), reações alérgicas, uso de medicamentos, tais como cortisona, proteção contra o tétano, etc. O
sistema imunológico comprometido pode impelir a amputação precoce em paciente com fratura exposta tipo IIIC, em
vez de arriscar uma infecção grave que poderia ameaçar a
vida(5).
Segundo estágio – Pode ser feito no pronto-socorro ou
centro cirúrgico, tendo em vista o conforto do atendimento e
o estado geral do paciente.
Terceiro estágio – No centro cirúrgico.
O atendimento propriamente dito da fratura exposta encontra respaldo, por unanimidade, em toda a literatura médica e se embasa em: irrigação abundante, desbridamento rigoroso e estabilização da fratura.
IRRIGAÇÃO ABUNDANTE
• Preparação para o desbridamento – Limpeza mecânica
rigorosa ao redor da área de exposição, a qual, de preferência, deve estar protegida com gaze ou compressas esterilizadas, com água corrente abundante e solução anti-séptica tipo
iodo, em todo o membro que apresenta a fratura exposta,
com eventual tricotomia. Em fraturas com médio e alto nível de contaminação, pode-se fazer limpeza, também com
água corrente, da área de exposição, procurando a remoção
de corpo estranho e líquidos acumulados(5,19,21).
• Irrigação propriamente dita – Com troca de luvas e proteção do membro com campos esterilizados, inicia-se a irrigação com soro fisiológico abundante, tendo-se como assertiva os ditos populares “se um pouco faz bem, muito fará
muitíssimo mais” e “a solução para a poluição é a diluição”.
A importância da copiosa irrigação foi enfatizada por Gustillo e associados, que demonstraram que em uma série de
pacientes que fizeram irrigação com menos de dez litros de
soro fisiológico, verificou-se maior índice de infecção e em
uma série em que se utilizaram mais de dez litros o índice de
infecção foi menor. Alguns autores, a exemplo do Dr. Chapman, utilizam antibióticos nos últimos dois a quatro litros de
soro fisiológico (50.000 unidades de bacitracina por dois litros de solução) e fazem irrigação mesmo durante o desbridamento(5); em nossa série, não os utilizamos.
Tomada de radiografias.
Tomada de fotografias da área de exposição, de preferência com Polaroid, já que no pós-operatório imediato é possível mostrar e discutir com familiares o grau e riscos da lesão.
Classificação da fratura. A mais amplamente aceita e citada na América do Norte e na maior parte do mundo é a de
Gustillo e Anderson(1,5,8,17,18,21,23), preenchendo as características de orientar o tratamento, fornecer o prognóstico e ser
aparentemente simples, para que diferentes examinadores
classifiquem a mesma fratura no mesmo grupo, o que para
alguns autores é questionável(4). A classificação de Gustillo e
Anderson considera a área de exposição, o nível de contaminação, o grau de lesão de partes moles e de cominuição da
fratura.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
DESBRIDAMENTO
O uso do garrote ou torniquete no desbridamento da fratura exposta é controverso; para alguns autores, deve ser evitado ao máximo, produz estase venosa e impede a ação do
antibiótico, com danos aos tecidos já isquêmicos; entretanto, para outros, sua utilização por dez minutos mais ou menos, seguida por sua liberação, resulta em vasodilatação e
rubor capilar da pele distal ao torniquete, o que dá uma boa
indicação da viabilidade da pele. Deve ser utilizado quando
necessário, no controle de uma hemorragia grave, quando
um coágulo for removido durante o desbridamento(5,19).
O desbridamento sistematizado inicia-se com a pele e
t.c.s.c., fáscia, músculo, osso com exploração articular e vasos. Pequenos ferimentos puntiformes ou estrelados são ex461
A.F. RUARO, A.T. MEYER & J.A.G. AGUILAR
cisados de forma elíptica. Se necessário, fazer incisão prolongável que proporcione desbridamento efetivo, com visibilização da articulação, quando se procura corpo estranho e
mesmo fragmento livre por fratura subcondral. Excisar as
porções desvitalizadas, evitando o excesso, ao contrário do
que ocorre com o músculo, que se constitui no principal meio
de cultura; quando na dúvida, se o músculo é viável ou não,
segundo Brave, deve ser sempre retirado, de maneira a permanecer sangrante; o julgamento da vitalidade do músculo
está baseado no quarteto salientado por Gregory: cor, consistência, contratilidade e capacidade de sangrar; o músculo
que, ao ser pinçado, não ressaltar imediatamente para sua
forma normal, deve ser ressecado. Pequenos fragmentos ósseos podem ser preservados, desde que não estejam fortemente contaminados; fragmentos maiores tenuamente inseridos e importantes na reconstrução óssea podem ser conservados, desde que adequadamente limpos(5,7,19,20,23).
ESTABILIZAÇÃO ÓSSEA
A estabilização óssea do tornozelo é de fundamental importância para a recuperação de sua função o mais rápido
possível; irá permitir(3,5,13,19):
• Restabelecimento do bom alinhamento das estruturas
neurovasculares, com melhora do retorno venoso e linfático,
reduzindo o edema, favorecendo a proliferação e crescimento invasivo de capilares, com melhora na vascularização óssea e dos tecidos moles; isso, por sua vez, facilita a difusão
de nutrientes, anticorpos e antibióticos;
• Restauração do comprimento do membro, reduzindo o
espaço virtual e a formação de hematomas, que é avascular e
meio de cultura;
• A estabilidade permite reabilitação muscular e a movimentação articular, o que facilita o retorno precoce à função.
Salter e associados demonstraram que a restauração precoce
do movimento articular através de boa estabilização permite
boa cura da cartilagem e previne a rigidez articular;
• Em pacientes politraumatizados, a estabilização permite mobilização precoce, com prevenção de escaras, complicações embólicas e pulmonares.
Preenchendo todas essas características, temos no arsenal
atual dois excelentes métodos de estabilização: a fixação interna e a externa(3,5,9,12,13,19,21,23). A fixação interna apresenta
grande tendência de indicação, por ser muito mais confortável, porém é mais suscetível à infecção; já o fixador externo
tem sua indicação quando o risco de infecção for mais alto,
porém, além de ser desconfortável ainda nas fraturas com462
plexas e com grandes feridas, a aplicação pode ser demorada, promove a fixação de unidades musculotendinosas, dificulta cirurgias reconstrutivas, ao impedirem a mobilização
de retalhos, e evoluem com infecção dos pinos.
Na literatura(13), as fraturas do tornozelo expostas graus I,
II e IIIA são tratadas com osteossíntese interna; já as fraturas
IIIB e IIIC, pela lesão de partes moles a tendência é de se
utilizar o fixador externo associado à síntese interna mínima
na reconstrução principalmente das superfícies articulares,
tendo o fixador externo a função além de estabilizar, promovendo o alinhamento anatômico, também desenvolver a ligamentotaxia(3,7,13).
Uma vez feita a opção pela síntese interna, a estabilização
se inicia pelo maléolo externo, que é o mais importante do
ponto de vista biomecânico(9,13,18,21); com a colocação de placa, o acesso ao maléolo é direto, com adaptação de placa
terço-tubular de pequenos fragmentos com parafusos corticais e maleolares. A opção do material de síntese pode ser
por implantes bioabsorvíveis, que apresentam resultados semelhantes aos parafusos metálicos, com a vantagem de reduzirem a prevalência de irritação dos tecidos moles e serem
absorvíveis(10). Quando existir grande porose do fragmento
distal, é aconselhável a adaptação da placa na face posterior
da fíbula, não sendo mesmo necessários parafusos no fragmento distal para se obter estabilização satisfatória(13). No
maléolo medial, é possível a colocação de dois parafusos, de
preferência esponjosos, para impedir a rotação do pequeno
fragmento fraturado. Quando há instabilidade da tibiofibular
distal, facilitando uma diástase, um parafuso transfixando a
fíbula e a tíbia deve ser colocado, para dar rigidez à montagem(18). Existindo apenas lesão do ligamento deltóide, não é
necessária a sutura, apenas a orientação para que suas extremidades fiquem justapostas(12); alguns autores preferem a
inspeção medial, não só para reparação do ligamento, mas
também para examinar a articulação e promover sua irrigação ou lavagem com soro, para retirada de fragmentos ósseos ou cartilaginosos, que às vezes estão soltos dentro da
articulação(18).
Quarto estágio – No centro cirúrgico.
O fechamento primário é raramente realizado de acordo
com a literatura; quando realizado, deve observar os seguintes cuidados(5,19): • Ferimento original sem grande potencial
de contaminação e fratura produzida por acidente de pequena energia; • Irrigação e desbridamento satisfatoriamente realizados; • Vascularização e inervação do membro normal,
com bom estado geral do paciente; • O ferimento deve ser
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
FRATURAS EXPOSTAS DO TORNOZELO: AVALIAÇÃO DO TRATAMENTO EM ONZE PACIENTES
fechado sem tensão; • O fechamento da ferida não deve criar
espaço morto.
As fraturas tipo I muitas vezes satisfazem esses critérios,
porém os ferimentos são tão pequenos que, por vezes, não
justificam seu fechamento(5,19).
O fechamento primário retardado é o preferido para a grande maioria dos autores(5,19,21,23); deve ser feito no quinto dia.
No adulto sadio, a evolução das feridas até o quinto dia é a
mesma, quer tenha sido ou não fechada primariamente, desde que o fechamento seja obtido antes do quinto dia; a resistência das feridas aos 14 dias é comparável àquela fechada
no primeiro dia(5,19). O fechamento primário retardado reduz
ao mínimo o risco de infecção anaeróbica e produz a melhora das defesas locais, permitindo mais segurança no fechamento(5,19). Caso exista dúvida, promove-se novo desbridamento, com adiamento do fechamento retardado da ferida.
Quando não for possível o fechamento primário ou primário retardado por sutura direta, existem várias alternativas de
fechamento, que em geral não são feitas na fase aguda, tais
como incisões de relaxamento, enxertos de pele de espessura parcial ou total e retalhos (retalho fasciocutâneo local,
retalho muscular pediculado local, retalho muscular pedicu-
lado distante e retalho microvascularizado livre)(5,15). A escolha da técnica para a cobertura da área de exposição em
tornozelo e pé se inicia sempre com a mais simples, com
ênfase nas específicas necessidades do paciente e na recuperação da função da região acometida(15).
CONCLUSÕES
1) No tratamento da fratura exposta do tornozelo, também com o objetivo de efeito médico-legal, o hospital deve
conter CCIH atuante e o prontuário do paciente deve estar
completo, apresentando inclusive fotografias da área de exposição no momento da admissão.
2) A antibioticoterapia, a irrigação abundante, o desbridamento rigoroso e a estabilização adequada são condutas
capitais no tratamento da fratura exposta do tornozelo.
3) A tendência atual na estabilização da fratura do tornozelo é de síntese interna de imediato para as fraturas grau I,
II, e IIIA de Gustillo e Anderson. Para as fraturas IIIB e IIIC,
a utilização do fixador externo associada à fixação interna
mínima (quando necessário) é a conduta recomendável.
4) O fechamento primário do ferimento raramente é realizado; a tendência atual é do fechamento primário retardado.
REFERÊNCIAS
1. Allgöwer, M., Müller, M.E. & Perren, S.M.: “Aspectos básicos da fixação interna”, in Müller, M.E., Allgöwer, M., Schneider, R. et al: Manual
de osteossíntese, São Paulo, Manole, 1993. Cap. 1, p. 1-20.
8. Gustillo, R.B. & Anderson, J.T.: Prevention of infection in the treatment
of a thousand and twenty-five open fractures of long bones. J Bone
Joint Surg [Am] 58: 453-458, 1976.
2. Alexander, R.H., Ali, J., Aprahamian, C. et al: “Análise geral do curso:
objetivos, história, conceitos do programa ATLS/SAVT para médicos”,
in Alexandre, R.H., Ali, J., Aprahamian, C. et al: Suporte avançado de
vida no trauma/Advanced trauma life support, Brasil, Impresso com
recursos do acordo de cooperação técnica Brasil/PNUD Projeto BRA90/032, 1996. p. 9-16.
9. Henning, E.E.: “Fraturas do tornozelo e do pé”, in Herbert, S. & Xavier,
R.: Ortopedia e traumatologia – Princípios e prática, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995. Cap. 39, p. 550-555.
3. Baumhauer, J.F. & Trevino, S.G.: “Pilon fractures”, in Myerson, M.:
Current therapy in foot and ankle surgery, St. Louis, Mosby, 1993. p.
258-263.
4. Brumback, R.J. & Jones, A.L.: Interobserver agreement in the classification of open fractures of the tibia. J Bone Joint Surg [Am] 76: 11621166, 1994.
5. Chapman, M.W.: “Fraturas expostas”, in Rockwood Jr., C.A., Green,
D.P. & Bucholz, R.W.: Fraturas em adultos, São Paulo, Manole, 1993.
Vol. 1, Cap. 3, p. 221-262.
6. Gomes, M.M.: “Infecção em traumato-ortopedia”, in Ferraz, E.M.: Manual de controle de infecção em cirurgia, São Paulo, EPV, 1982. Cap.
14, p. 165-172.
7. Griffiths, G.P. & Thordarson, D.B.: Tibial plafond fractures: limited internal fixation and a hybrid external fixator. Foot Ankle Int 17: 444448, 1996.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
10. Hovis, W.D. & Bucholz, R.W.: Polyglycoide bioabsorbable screws in
the treatment of ankle fractures. Foot Ankle Int 18: 128-131, 1997.
11. Marangoni, D.V. & Ferraz, E.M.: “Antibioticoprofilaxia”, in Zanon, U.
& Neves, J.: Infecções hospitalares. Prevenção, diagnóstico e tratamento, Rio de Janeiro, Medsi, 1987. Cap. 33, p. 919-938.
12. Michelson, J.D.: Current concepts review – Fractures about the ankle. J
Bone Joint Surg [Am] 77: 142-149, 1995.
13. Michelson, J.: “Fractures of the ankle”, in Lutter, L.D., Mizel, M.S. &
Pfeffer, G.B.: Foot and ankle – Orthopaedic knowledge update, Illinois, American Academy of Orthopaedic Surgeons, 1994. Cap. 13, p.
193-203.
14. Morais, I.N.: Erro médico, São Paulo, Santos-Maltese, 1991. Cap. 2 e 8,
p. 29-33 e 125-126.
15. Myerson, M. & Papa, J.: Soft tissue coverage in the management of foot
and ankle trauma – Part II. Contemp Orthop 22: 1991.
16. Napoli, M., Fazzi, A. et al: A osteossíntese imediata nas fraturas expostas. Rev Bras Ortop 3: 25-50, 1968.
463
A.F. RUARO, A.T. MEYER & J.A.G. AGUILAR
17. Ruaro, A.F., Nascimento, C.C.R. & Kayamori, C.H.G.: Comissão de
Controle de Infecção Hospitalar: direitos e deveres. Rev Bras Ortop 30:
237-240, 1995.
18. Salomão, O., Carvalho Jr., A.E. & Fernandes, T.D.: “Fraturas do tornozelo e pé”, in Salomão, O. & Carvalho Jr., A.E.: Pé e tornozelo, São
Paulo, IOT-HC-FMUSP, 1994. p. 42-45.
19. Schwartsmann, C.R.: “Fraturas expostas”, in Herbert, S. & Xavier, R.:
Ortopedia e traumatologia – Princípios e prática, Porto Alegre, Artes
Médicas, 1995. Cap. 40, p. 570-573.
464
20. Silva, E.L.: “Aspectos Jurídicos da Infecção Hospitalar”, in Zanon, U.
& Neves, J.: Infecções hospitalares. Prevenção, diagnóstico e tratamento, Rio de Janeiro, Medsi, 1987. Cap. 2, p. 47-48.
21. Sisk, T.D.: “Fraturas da extremidade inferior”, in Crenshaw, A.H.: Cirurgia ortopédica de Campbell, São Paulo, Manole, 1989. Vol. 3, cap.
44, p. 1694-1703.
22. Terry, G.: “Malpractice” gera crise nos Estados Unidos. Bol SBOT (19)
(janeiro/fevereiro): 2, 1994.
23. Vander Griend, R.A., Savoie, F.H. & Hughes, J.L.: “Fraturas do tornozelo”, in Rockwood Jr., C.A., Green, D.P. & Bucholz, R.W.: Fraturas
em adultos, São Paulo, Manole, 1993. Vol. 2, Cap. 23, p. 1945-2000.
Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 6 – Junho, 1998
Download