Evocação de Raúl Prebisch — latino-americano e homem do mundo Fernando Pedrão1 ―Las fallas fundamentales del sistema vigente radican en la apropriación privada del excedente y en las decisiones individuales acerca de lo que se hace com él‖. Raul Prebisch O exército dos Andes A obra de Prebisch hoje transmite a impressão de uma linguagem antiga, como do século XIX, e uma inquietação totalmente atual, à frente das gerações mais novas de latino-americanos que perderam sua identidade e sucumbiram a novas ondas de alienação. Raul Prebisch foi latino-americano, argentino e tucumano, mas acima de tudo foi um homem do mundo que colocou a América Latina no debate mundial da economia. Ocupou um espaço insubstituível na história moderna da luta da América Latina representando uma ideologia emocional de um desenvolvimento econômico politicamente autônomo da região latino-americana. Historicamente representou uma ponte entre as contradições da elite burguesa argentina, um projeto chileno de modernização e uma necessidade de encontrar um fio condutor de linguagem que reunisse os latino-americanos. Transitou entre os efeitos da crise de 1930, os da mudança de hegemonia mundial consequente do fim da Segunda Guerra Mundial e das ditaduras latinoamericanas. Sua carreira foi um empenho em uma luta pela independência econômica da América Latina reconhecida como essencial para sua real liberdade política. Desde jovem procurou esse fundamento latino-americano Doutor e Docente Livre pela UFBA, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais, professor da Universidade Salvador. 1 1 movendo-se no ambiente do poderio ocidental vitorioso do após guerra ao tempo em que fazendo-se herdeiro das tradições republicanas espanholas. Sua oposição ao sistema internacional de exploração econômica e subordinação política está presente desde seus primeiros trabalhos. Mas essa espécie de ideologia emocional tinha outra conexão cultural em uma relação com a tradição ibérica. Estava viva para todos a participação latino-americana na guerra civil espanhola e Prebisch se cercou desses republicanos na construção da CEPAL. Havia ali uma fonte de inspiração e a valorização de tradições que teriam um papel especial na aproximação entre os latino-americanos. Como já dissemos em outra oportunidade, a CEPAL de Prebisch tinha uma relação muito especial no jogo entre a tradição e a modernização. 2 A teoria da relação centro-periferia tinha o duplo caráter de explicar o mecanismo do subdesenvolvimento e de manifestar a luta pela restauração prosperidade que se esgotou na primeira guerra mundial. 3 da Por meio das primeiras teses da CEPAL construiu-se uma imagem de América Latina com a cara dos países do sul e com uma reconhecida ignorância dos demais países, desde o Brasil até o México. O desenvolvimento de relações entre os latino-americanos foi uma tarefa abraçada com vigor pela CEPAL, que promoveu a criação da ALALC, o Pacto Andino e os projetos da Bacia do Prata. Essa luta envolveu uma complexa e intensa atividade diplomática, como atividade de governo e no âmbito internacional, com relacionamentos sempre difíceis com o governo norte-americano, que basicamente não estava disposto a absorver um pensamento nacionalista latino-americano tacitamente não alinhado com os Estados Unidos ou mesmo anti-americano. A possibilidade de construir um discurso latino-americano a partir do 2 O pensamento da CEPAL, Salvador, UFBA/OEA,1988. 3 Ver O pensamento da CEPAL, PEDRÃO, RODRIGUEZ, MARINHO, BALTAR (1988). 2 âmbito internacional enfrentaria, igualmente, os nacionalismos latinoamericanos com suas rivalidades regionais e com seus conflitos de classe. O chamado ―capitalismo progressista‖ de Prebisch seria na realidade uma alternativa reformista à revolução mas certamente um freio aos interesses norte-americanos. Esse quadro se tornaria mais difícil quando passou a enfrentar outras versões de internacionalismo na America Latina e que se apresentavam como alternativas consistentes para conter os descontentamentos populares. A expansão de partidos democratas cristãos na década de 1960, com indisfarçável apoio alemão, democracia cristã chilena, que adiante ganharia força na enfrentaria suas próprias contradições e seria objeto de uma sucessão de dissidências, à esquerda e à direita, desde a facção liderada por Jorge Ahumada que promoveu a chilenização do cobre até as mais conservadoras e burocráticas que se instalaram nas Nações Unidas. O reformismo original da CEPAL se cindia entre uma esquerda chilena que foi apoiar a revolução cubana e que ingressou no governo de Allende e uma linha democrata cristã que chegou a ver com simpatia o golpe de 1973. Os espaços políticos e diplomáticos de Prebisch estavam cerceados no ambiente da decepção com a Aliança para o Progresso e no da nova onda de golpes de Estado iniciada no Brasil e continuada na Argentina. A análise da atividade política diplomática não pode realmente ser fechada sem integrar os processos latino-americanos com os do mundo ocidental em seu conjunto, especialmente considerando que esses processos latinoamericanos transcorreram durante a Guerra Fria. Entende-se por que Prebisch foi levado a tentar articulações que permitissem transferir a CEPAL para o México, mesmo contra a vontade da maior parte de seus colaboradores 4. É preciso reconhecer o mérito da biografia de Prebisch escrita por Edgar Dosman (2011) que desenha a linha de continuidade entre a formação familiar e a juventude de Raul Prebisch e sua atividade voltada para a America Latina. Esse trabalho mostra a fragilidade da base com que contou em sua audácia diplomática e em sua criatividade no mundo internacional, ao tempo em que oferece uma explicação da disciplina férrea com que esse trabalho foi feito. 4 3 O trânsito de sua formação de economista ricardiano a sua aproximação com a esquerda keynesiana foi essencial em sua obra, mas no final da vida se identificava com teses marxistas sobre o subdesenvolvimento.5 A insatisfação da elite argentina em cujo ambiente se formou carregava um tipo de americanidade diferente daquela dos países vizinhos mas continuava com a visão do Vice- Reinado do Rio da Prata que se considerava detentor da responsabilidade pela independência que tinha sido o motor do Exército dos Andes de San Martin. A compenetração do papel político da economia que se acumulou no ambiente da análise burguesa do desenvolvimento nas Nações Unidas tornou-se mais visível e foi posta em cheque quando o avanço político de setores de social democracia encontrou resistências muito mais profundas por parte das alianças das oligarquias com o grande capital internacional. Diferenciando-se do discurso tecnicista da corrente keynesiana, Prebisch que vinha de uma história pessoal de dissidência com a oligarquia trazia uma compreensão política do contexto econômico. Já não era somente a rebeldia dos ―intelectuais técnicos‖ como as demissões de Gunnar Myrdal e de Celso Furtado, mas a constatação de que o fundo ideológico do planejamento encontrava uma oposição política real. O seminário realizado no Lago Como na Itália em 1959 mostrou uma divisão essencial entre ―desenvolvimentistas‖ como os da velha guarda da CEPAL e liberais conservadores já representando contestatória da CEPAL.6 uma reação contra a linguagem A luta em torno do contexto político do planejamento se colocou desde o início da CEPAL que conviveu com Apresentando-se como não marxista Prebisch termina por desenvolver uma análise substitutiva daquela análise do subdesenvolvimento que aponta à relação necessária entre o controle do excedente – mais valia captada – e a distribuição da renda. 6 O próprio Prebisch se refere com ironia ao menosprezo dos acadêmicos norte-americanos pela suposta ―indigência teórica‖ do trabalho da CEPAL, seguramente sem imaginar uma correspondente rejeição por parte dos latino-americanos ao pragmatismo e ao conservadorismo norte-americanos. Com suas críticas ao monetarismo norte-americano a CEPAL inaugurou uma vertente de crítica interna no sistema do capitalismo periférico que teria desdobramentos na esquerda no Chile, no Uruguai, no México, na Venezuela além de influir no planejamento no Peru. 5 4 governos autoritários pouco propensos a aceitar a racionalidade de políticas de desenvolvimento. Dificuldades com os governos conservadores da Argentina e do Chile seriam inesperadamente compensadas pelo apoio brasileiro em Quitandinha mas continuaria a relação multifacetada e difícil com o poderio norte-americano engajado em ações em longo prazo de predomínio na região. 7 Algo essencial acerca de Raul Prebisch foi sua vitalidade e capacidade de se superar, com uma atualização incessante de seu discurso sobre o subdesenvolvimento. Ao longo de uma tumultuosa relação entre participação política e engajamento internacional a carreira de Prebisch pode ser dividida em cinco períodos. O primeiro foi o de sua formação acadêmica até sua vida profissional, que culminou com a criação do Banco Central da Argentina. 8 O segundo de sua passagem pela CEPAL, de 1948 a 1963, quando elaborou sua primeira obra teórica. O terceiro período, quando empreendeu a criação da UNCTAD por conta da qual se foi para Delhi. O quarto, quando voltou ao Chile, dessa vez para dirigir seu projeto predileto que foi o Instituto Latino-americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES) no qual se aposentou. Finalmente, já retirado de funções continuou batalhando por uma frente unida de política de desenvolvimento latinoamericana defendendo a tese de uma cooperação latino-americana em torno de projetos industriais. A CEPAL foi essencial no apoio às iniciativas de planejamento nacional no Uruguai, na Bolivia, no Peru, na Venezuela e deu uma contribuição valiosa no Brasil. Abriu frentes de trabalho em planejamento agrícola, industrial, dos transportes e principalmente em comercio internacional. As pesquisas Os meandros dessa movimentação diplomática estão minuciosamente apresentados na obra de Edgar Dosman que combina riqueza de detalhes com sensibilidade para perceber os limites dentro dos quais foi preciso trabalhar para ampliar margens de movimento. Percebe-se que a luta diplomática por independência política latino-americana ganhava status de representação mundial quando o prestigio da CEPAL passou a outras regiões periféricas. Mas está claro que os norte-americanos desejavam neutralizar a CEPAL desde os primeiros anos 50 quando foram surpreendidos pelo Estudo de 1949. 88 Até agora a principal fonte sobre esse primeiro período é o trabalho de Joaquim Miguel Couto – dissertação e tese de doutoramento — feitas sobre pesquisa original exaustiva. 7 5 sobre a brecha no comércio internacional fundamentariam a proposta de uma cooperação em torno do comércio. A saída de Prebisch e dos integrantes da ―velha guarda‖ no início da década de 1960 concluiu aquele primeiro período, tendo lugar outro, da década seguinte, quando se desenhou uma sociologia do desenvolvimento, com trabalhos de Medina, Cardoso, Faletto, Quijano, Solari, e uma proposta de teoria do subdesenvolvimento com os trabalhos de Sunkel, Paz, Rodriguez. Em seu retorno Prebisch finalmente publicaria Capitalismo periférico, crisis y transformación (1981) que marca uma mudança de rumo em suas idéias e uma ruptura com o discurso inicial da teoria de relações entre centro e periferia. A Obra de Prebisch na CEPAL , coligida por Adolfo Gurrieri, reúne seus trabalhos mais famosos e O pensamento da CEPAL de Octavio Rodriguez constitui uma síntese dos aspectos técnicos da obra da Primeira CEPAL, que foi o período fértil que contou com as contribuições de Jorge Ahumada, Carlos Oyarzun, Julio Melnick, Pedro Mendive, Santiago Macario e vários outros. Prebisch foi um trabalhador incansável e rigoroso com seu próprio trabalho e com o dos demais. Jamais considerou caso fechado nenhum de seus trabalhos. No segundo semestre de 1970 empreendeu uma obra gigantesca, com a colaboração de vinte intelectuais e técnicos, que foi interrompida mas que deveria substituir o Estudo econômico da América Latina de 1949, que a seu ver estava completamente superado pelo conhecimento acumulado naquele período. Entre suas primeiras formulações de uma teoria de relações desiguais entre centro e periferia, de 1949 e seu último artigo de 19819 há uma clara mudança de posição no relativo às relações de causalidade política do processo econômico que deve ser revisada. Mas em toda sua obra o eixo dinâmico da acumulação de capital conduzida pelos países dominantes vinha de seu controle do comércio internacional, que funcionava como bomba de sucção para favorecer as empresas e os governos dos países dominantes. No entanto Prebisch tornouRaul Prebisch, La periferia latinoamericana en el sistema global del capitalismo, Santiago, Revista de la CEPAL, abril, 1981 9 6 se um grande desconhecido porque suas idéias foram reduzidas a chavões e sua contribuição para a polêmica fundamental do subdesenvolvimento raramente é exposta em seus elementos essenciais. Para uma apresentação singela das idéias de Prebisch destacam-se três pontos fundamentais que são a questão dos mecanismos desfavoráveis de comércio, a metáfora do equilíbrio e a dinâmica da periferia.10 Os mecanismos desfavoráveis de comércio A condição de periferia surge de uma formação histórica que combina o parasitismo ibérico com a exploração organizada pelo Império Britânico mediante um comércio mundialmente controlado. Pode-se falar de colonização indireta, um estilo que foi aperfeiçoado pelos norte-americanos. O parasitismo colonial se baseou no uso de trabalho indígena para obtenção de minerais preciosos e usando a escravidão para produzir mercadorias mundiais. O parasitismo deu lugar à criação de elites nacionais alienadas sempre a serviço de poderes externos. Nesse ambiente favorável a exploração britânica se organizou para usar – direta e indiretamente – trabalho para produzir matérias primas para indústria, transformando a periferia em espaço auxiliar de expandir e controlar o mercado europeu. O sistema da exploração britânica alcançou seu apogeu com a integração dos sistemas de infra-estrutura que foi fundamental para aprofundar o aproveitamento dos sistemas periféricos. A Grã Bretanha colocou-se como núcleo fabril central de um sistema que mobilizava grandes quantidades de materiais e necessitava vender seus produtos. Com elevados coeficientes de importação e de exportação o sistema britânico transferia impulsos de demanda para as suas diferentes periferias em um jogo de desigualdades administradas. Há diversas explicações do ocaso desse império 11, mas cabe entender que se trata de uma combinação de fatores políticos, econômicos, Não é uma escolha aleatória. Reporta-se a uma longa conversa com Prebisch em abril de 1974 na Secretaria das Nações Unidas, depois do bloqueio ao trabalho iniciado em Santiago, quando ele fez uma súmula do que considerava sucessos e fracassos e defendia a necessidade de continuar a escrever e debater. 11 Ver John Strachey El fin del império (1976). 10 7 tecnológicos e de escala de mercado que se anunciavam desde o fim do século XIX 12 e se consolidaram após a primeira guerra mundial. A substituição do Império Britânico pelo poderio ascendente dos Estados Unidos teve conseqüências nefastas para o comércio mundial, em primeiro lugar por seus baixos coeficientes de exportação e de importação e em segundo lugar por ser uma potência que concorre com suas próprias áreas de controle econômico. Com os Estados Unidos o sistema mundial do capital torna-se mais excludente e passa a subordinar as economias periféricas a condições inferiorizadas de trabalho. Crescem os fluxos de comércio bilateral e aumenta a dependência frente ao mercado norte-americano. Mas é preciso retirar a teoria do comércio desigual de sua aparente imobilidade. O comércio se transforma junto com as transformações do sistema sócio-produtivo. As pesquisas realizadas no ambiente do ILPES na década de 1970 apontavam às fontes históricas do desenvolvimento do comércio internacional que indicavam a necessidade de outra teoria da organicidade do processo econômico. A metáfora do equilíbrio O fantasma da inflação, herdado do desastre da década de 30, deu lugar a uma fixação da política econômica controlada pelo Fundo Monetário Internacional com o paradigma do equilíbrio com as duas acepções de equilíbrio monetário e da proporção de fatores. A primeira foi enquadrada por Myrdal (1932) e por Hicks (1937) e Hansen (1945), em que o primeiro colocava o equilíbrio como um estado de relações intertemporais e os outros dois se obstinavam em pretender que o modelo IS-LM representasse um equilíbrio entre esfera real e esfera financeira. O equilíbrio como e enquanto proporção de fatores, em um contexto microeconômico, representaria as condições de participação de empresas em mercado (ECKAUS, 1964) antecipando a argumentação neoclássica pós-keynesiana. O equilibrio como 12 Ver John A. Hobson Imperialismo (1976). 8 proporção de fatores é o equilíbrio instantâneo fundamental à análise neoclássica que ficou consagrada nos trabalhos de Paul Samuelson e Robert Solow na década de 1960. Esse debate atingia o cerne do pensamento sobre planejamento em que se precisava realizar esse ajuste entre a mobilização de recursos reais e o financiamento. Tinha tudo a ver com o problema da conversão de valor em preços, essencial ao planejamento, em que se contou com Rubin (1980) e adiante com Dostaler (1980 ). As interpretações desse tema no plano da política econômica se bifurcaram entre os que aceitavam a quebra do equilíbrio para alcançar desenvolvimento e os que consideravam o equilíbrio como um pré-requisito indispensável para políticas de desenvolvimento sustentáveis. Prebisch denominou esse debate de falso dilema (Obra completa, vol. II, pp.9). Continuou apoiando o modelo de planejamento adotado por Ahumada nos cursos da CEPAL, que era uma combinação do modelo Harrod-Domar com o modelo de relações inter- industriais de Leontief. Esse modelo constituía uma grande simplificação porque supunha condições invariantes de taxa de juros e de câmbio. Mas poderia ser usado como artifício ou como boneco de mecano como dizia Joan Robinson. A insistência nessa quantificação apressada comprometeu tentativas de planejamento nacional como na Bolívia em 1961 e no Peru em 1962, quando se revelou fútil a tentativa de fazer econometria como ginástica com dados precários. Na CEPAL e logo no ILPES insistiriam nessa mesma econometria sem base prática que já tinha dado lugar a pesadas críticas a Tinbergen, Haavelmo e demais holandeses e nórdicos. Essa controvérsia prosseguiu até os primeiros anos 70 quando tomou a forma de análise de sensibilidade proposta por Oscar Varsawski e vários colaboradores, notadamente por Norberto Gonzalez líder dos estudos sobre a brecha comercial dos países subdesenvolvidos. Mas os problemas centrais da formação de capital e dos seus usos sociais foram enfrentados pelo próprio Prebisch em seu Capitalismo periférico (1981) e por Celso Furtado em seu Formação de capital e desenvolvimento econômico (1952;1981). vertente que se apresentou no campo da análise A outra econômica do subdesenvolvimento no espaço do ILPES foi representada pelo trabalho de 9 Osvaldo Sunkel, Pedro Paz e Octavio Rodríguez, que derivou em um estudo geral do problema e em uma síntese do pensamento da CEPAL inicial, ficando entretanto em um ponto anterior às mudanças do próprio Prebisch. A dinâmica da periferia A virada no pensamento de Prebisch sobre os processos do subdesenvolvimento — já não só sobre os mecanismos de desigualdade — começou com a publicação de Rumo a uma dinâmica do desenvolvimento latino-americano (1963)13 quando passou a focalizar em fatores ―além de circunstanciais ou transitórios‖. Começou uma linha de argumentação sobre a relação orgânica entre o modo de acumulação de capital e o padrão de distribuição da renda, ligando os movimentos internos e os internacionais da desigualdade. A chamada insuficiência dinâmica do desenvolvimento na América Latina não poderia ser atribuída à falta de capital quando se reconhecia que essa grande região continuava exportando capital para o centro da economia mundial. Por derivação tornava-se necessária uma revisão critica da chamada cooperação internacional, reconhecidamente um instrumento de interesses dos países condutores do processo de acumulação de capital. Passa-se a falar de controle de tecnologia e não mais de um progresso técnico genérico tal como ainda aparece na teoria de inspiração keynesiana. Não se trata de um progresso técnico positivo ou negativo em relação com a sustentação da taxa de crescimento do produto social mas de um instrumento central do poder econômico. Nessa perspectiva o controle da tecnologia é inseparável da cooperação internacional entre países ricos e não ricos e funciona como uma cadeia de transmissão entre a cooperação de caráter não lucrativo e as vendas de equipamento e de prestação de serviços. 13 No original Hacia una Dinâmica del desarrollo latinoamericano, (México, Fondo de Cultura Econômica, 1963). 10 A tese de Prebisch sobre a dinâmica da desigualdade parte da constatação de que as periferias da economia capitalista mundializada têm modos próprios de dinamismo, derivados de sua interdependência desigual com os centros da economia mundial. Como derivada desse argumento entram as relações entre as nações integrantes da periferia que passam a ser seu principal mecanismo de defesa. Há uma relação essencial entre a concentração de capital, a apropriação privada do excedente e a absorção de força de trabalho. Esta última reflete as condições de distribuição da renda que, inversamente, descrevem o controle social do excedente. Desde trabalhos anteriores Prebisch já tinha recuperado o conceito ricardiano de trabalho redundante, que colocaria o desemprego como determinado pelo sistema social de produção e não propriamente por tecnologias. Estas em si seriam inertes e sua aplicação seria politicamente determinada. Assim, haveria limites críticos do sistema econômico que apareceriam no plano político. Ao apontar as conseqüências negativas do comportamento das elites periféricas no que elas se associam ao capital internacional explorador Prebisch insistiu na necessidade de uma política de desenvolvimento que ultrapasse os limites da economia e contemple os aspectos políticos. A novidade com as idéias de Prebisch sobre a dinâmica da periferia é que elas apontam a uma circularidade dos processos do capital na periferia que se desloca de modo diferente às do centro, por razões econômicas e políticas. As relações de causalidade incorporam elementos da esfera política junto com os da esfera econômica. Abandona-se o mecanismo de reprodução linear que formou a base do planejamento, adota-se uma visão de composição => circularidade => heterogeneidade, tornando-se necessária uma teoria da ação social complexa. Subentende-se que a renovação tecnológica tem efeitos indiretos maiores que os diretos, que é um modo de aceitar a tese de Gunnar Myrdal sobre mecanismos de causação circular cumulativa. As escolhas em política econômica 11 O miolo controverso da obra de Prebisch tendeu a ser diluído nas leituras burocráticas posteriores e em críticas acadêmicas simplificadoras. Sem recuar diante da alternativa de estatização dos meios de produção Prebisch escolhe uma ação reguladora do Estado sobre os usos do excedente por considerar a democracia indispensável (1981; pp.46). É sua opção pelo que chamou de capitalismo progressivo que seria uma opção não violenta de mudança mas que tinha perspectivas cada vez menores. O ponto central da sua proposta estaria em uma crítica do ―mito da virtude reguladora do mercado‖ (pp.49) que tornaria necessária uma teoria da transformação social. Daí que sua teoria do desenvolvimento se consolida como uma teoria do uso social do excedente, que tem conseqüências em uma teoria do planejamento como e enquanto ação do Estado sobre a distribuição da renda. No entanto para Prebisch não se trata de uma ação apenas ideológica senão de uma conclusão prática sobre os limites da concentração da renda que levariam a uma crise insuperável do sistema. No entanto não era ingênuo sobre as possibilidades reais do planejamento, cuja eficácia depende dos atores do processo social da política econômica (1981; p.144). O mecanismo central do capitalismo age em desfavor das nações periféricas que deverão superar condições de dependência. Há uma dependência cultural e outra ideológica que será preciso reverter. A teoria da transformação defendida por Prebisch será de uma transformação orgânica inseparável de um fundamento ético. A luta pelo desenvolvimento será em todo caso social e terá que romper com a hegemonia cultural dos países centrais. A originalidade das teses de Prebisch frente aos seus contemporâneos – considerando que ele pertenceu ao momento do após guerra — consistiu em considerar que a desigualdade se propaga através dos mecanismos de dependência que convergem em aprofundar as desigualdades na periferia. Segundo ele esse processo é estimulado pelos ciclos, que ao favorecer exportações de produtos primários, estimuladas por preços favoráveis, aumenta o montante do excedente ampliando o ciclo da exploração. 12 Estamos, portanto, diante de um processo contraditório que assume as duas caras de variações no montante da exploração e de aumento progressivo da taxa de exploração no sistema em seu conjunto. Diante da opção de estatização dos meios de produção Prebisch escolhe uma ação reguladora do Estado sobre os usos do excedente por considerar a democracia indispensável (p.49) que tornaria necessária uma teoria da transformação social. Tal teoria da transformação social propõe-se substituir a do desenvolvimento porque se remete à dinâmica do sistema do capital em seu sentido mais amplo. Refere-se ao problema da apropriação do excedente no sistema em seu conjunto, compreendendo os países centrais e os periféricos, que se revela contraditória com a reprodução do capital. Sua originalidade estará em substituir a referência ideológica por uma visão de organicidade do sistema. O crescimento do excedente que Prebisch (pp.109) não é mais que o aumento da taxa de mais valia, que por sua vez depende do sistema de exploração. Daí que sua teoria do desenvolvimento se consolida como uma teoria do uso social do excedente, que tem conseqüências em uma teoria do planejamento como e enquanto ação do Estado sobre a distribuição da renda. No entanto, para Prebisch não se trata de uma opção apenas ideológica senão de uma conclusão prática sobre os limites da concentração de renda que levariam a uma crise insuperável do sistema. ―La portada colonial‖ 14 A obra da CEPAL causou indisfarçável ciúme por parte de grande parte da academia saxônica, basicamente conservadora, e por seus discípulos latinoamericanos. Parecia quase uma insolência que alguns intelectuais latinoamericanos desafiem, ou pior, ignorem os preceitos das grandes universidades norte-americanas e européias e não reconheçam sua Em julho de 1970 foi oferecido a Prebisch um almoço no restaurante La portada colonial que reuniu amigos e inimigos e foi saudado por aqueles que tramavam sua saída da CEPAL. 14 13 hegemonia15. As críticas seriam no sentido de invalidar a posição contestatória e não somente de questionar suas teses específicas. Os movimentos políticos da segunda metade da década de 60, inaugurados com o golpe de Estado no Brasil e seguidos dos golpes na Argentina, na Bolívia, no Peru, corresponderam a uma adesão da democracia cristã chilena ao golpismo com conseqüente pressão sobre a CEPAL. Antes mesmo do golpe que derrubou Allende, o golpe liderado por Ongania que derrubou o presidente Ilya em 1967 fechou as portas da Argentina para um regime democrático, excluindo Prebisch que ajudara os Radicais. O isolamento das nações latino-americanas aparecia gradualmente nos regimes retrógrados da América Central. Nos anos seguintes a expansão da Democracia Cristã, com financiamento alemão que chegava através da Venezuela e do Equador, tomava a forma de uma versão mais conservadora no Chile e a CEPAL tornava-se uma prenda cobiçada pelos quadros intelectuais dessa corrente política para sua legitimização. Desde então o pensamento de Prebisch e da primeira CEPAL tem sido objeto de diversas simplificações que os reduziram a um suposto modelo, isto é, a um corpo de idéias imobilizado, a uma visão simplificadora da indústria e a um economicismo primário. Em outras obras Prebisch aparece como simples colaborador de pessoas que sequer participaram dos principais trabalhos da CEPAL 16. Na realidade e no essencial a CEPAL foi um centro ―fomos acusados de indigência intelectual por mais de um professor norte-americano‖ diz Prebisch (pp. ) 16 Duas das injustiças acumuladas por ―cepalinos‖ posteriores referem-se a Celso Furtado e a Anibal Pinto Santa Cruz. Na realidade o primeiro incorporou-se à CEPAL antes de Prebisch e teve sua principal participação nas Análises e projeções da economia do México e na do Brasil, chegando com uma linha doutrinária definida em obras anteriores ( PEDRÃO, 2009). A pressão do governo do México contrariado pela análise crítica de Furtado e sua saída impediram que ele participasse da bifurcação da CEPAL na década de 60 entre teoria econômica crítica e sociologia da dependência. Como já mostrei antes (PEDRÃO, 2011), o perfil teórico de Celso Furtado se desenha em seus artigos da década de 1950 e toma sua forma acabada em seu Prefácio a uma nova Economia Política. Aníbal Pinto não foi parte da equipe inicial da CEPAL e veio a destacar-se em trabalhos a partir da década de 1960 (PEDRÃO, 2006). Os dois colaboraram de perto com Prebisch no que se pode considerar como a polêmica central do desenvolvimento, Celso Furtado por ter trazido a visão do subdesenvolvimento como processo (FURTADO, 1959) e Anibal Pinto por representar a defesa do conceito de heterogeneidade do capital (ANIBAL PINTO, 1967; 1978). Houve uma interrupção da produção teórica e no inicio dos anos 70 quando o debate sobre o modelo 15 14 de pensamento para o qual Prebisch trouxe, como professores ou como conferencistas figuras como Nicholas Kaldor, Thomas Balogh, Hollis Chenery, Albert Hirschman e muitos outros. Quanto ao economicismo – que interpreto como redução da análise social aos termos de uma análise econômica não histórica – há um contencioso a ser esclarecido. Há um defeito indiscutível de ter-se descuidado da historiografia latino-americana. A principal influência intelectual sobre Prebisch na CEPAL foi de José Medina Echevarria, filósofo e sociólogo espanhol, declaradamente weberiano, que conduziu o estudo de Análise e projeções do desenvolvimento da Bolívia em 1959 priorizando a relação entre a moderna estrutura de classes sociais e a hierarquia colonial. O desenlace do golpe de 1973 foi a ocupação da CEPAL por economistas conservadores, na sede e nas subsedes, e o fim até mesmo da versão conservadora da teoria da dependência. Referências bibliográficas AGARWALA, A.N.;, SINGH, S.P., The economics of underdevelopment, Oxford, Galaxy, 1963. BID/INTAL, Raul Prebisch, el poder, los princípios y la ética del desarrollo, Buenos Aires, 2006. COUTO, Joaquim Miguel, O pensamento de Raul Prebisch, Dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. DOSMAN, Edgar, Raul Prebisch (1901-1986) a construção da América Latina e do Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, Centro Internacional Celso Furtado/Contraponto, 2011. DOSTALER, Gilles,Valor y precios, México, Terra Nova, 1981. 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