FORMAÇÃO ESTÉTICO-CULTURAL, CATARSE E EDUCAÇÃO EM THEODOR ADORNO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Tamiris Souza de Oliveira PPGE/NEPEFIL/UFES/FAPES [email protected] Robson Loureiro PPGE/NEPEFIL/UFES [email protected] Resumo O artigo expõe o resultado parcial de análises preliminares de uma pesquisa de mestrado que se propõe a realizar o tratamento teórico-filosófico do conceito de catarse e como este se vincula à formação estético-cultural. O objetivo é apontar possíveis desdobramentos da relação desse conceito no âmbito das teorias e práticas educacionais. Apesar de o conceito de catarse não ser desconhecido dos estudiosos da educação e da estética, nossa hipótese é que há poucos trabalhos publicados, no campo educacional, tendo como referencial teórico autores da Escola de Frankfurt, em especial com foco na teoria estética do filósofo alemão Theodor Adorno. Nesse primeiro momento fazemos uma introdução à temática da pesquisa, com uma reflexão já desenvolvida sobre formação e formação estético-cultural em Adorno. Dessa análise preliminar infere-se que o objetivo desse autor é a formação ominilateral que não isola o indivíduo de si mesmo e nem da sociedade. Introdução O presente trabalho é o resultado parcial de uma pesquisa de mestrado, ainda em andamento no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE/UFES) e se insere no campo dos fundamentos teóricos da educação, especificamente, a filosofia da educação. Elege como foco de investigação a relação entre teoria educacional crítica e formação estéticocultural. Tendo em vista a análise do conceito de catarse, presente na teoria estética do Filósofo alemão Theodor Adorno, para dimensionar a discussão sobre formação estético-cultural no espaço escolar, a pesquisa objetiva contribuir para o 2 desenvolvimento de uma teoria educacional crítica que contemple um projeto de formação estético-cultural amplo e a contrapelo da indústria cultural. Dentre os teóricos frankfurtianos, Adorno é um dos destaques no que se refere às reflexões sobre estética e, juntamente com Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos formularam a categoria indústria cultural, cuja tese central afirma que a indústria cultural é uma das formas de o sistema capitalista estender a lógica do trabalho à dimensão do lazer, a fim de massificar e tornar mercadoria todos os bens culturais, conservando assim a lógica do fetiche da mercadoria. A Escola de Frankfurt é conhecida por criticar os processos de danificação da subjetividade e a supervalorização, presente na sociedade capitalista, de formas pragmáticas de existência e submissão à razão instrumental. Por isso, também é conhecida por acreditar na potencialidade crítica da razão de pensar a si mesma. O primeiro contato com as obras da Escola de Frankfurt ocorreu dentro do NEPEFIL (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Filosofia) do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo em 2009. A partir dessa aproximação surgiu o desejo de pesquisar sobre a formação estética, em particular a relação entre arte, cultura, indústria cultural e educação. Ou seja, a necessidade de se dialogar acerca de reflexões sobre a influência da indústria cultural no processo educativo e a relação da significação e apropriação dos produtos midiáticos e de promoção da cultura como instrumentos que possibilitam o acesso a um determinado tipo de saber-ser, ser-saber. Mas, por que a preocupação com a formação estético-cultural? A nosso ver, a formação estética e a apropriação crítica da cultura são demandas educacionais. Contudo, talvez, tratar dessa dimensão formativa no âmbito da escola carregue uma dose de desafio, uma vez que essa temática nem sempre é abordada de forma crítica, fora dos cânones estabelecidos e tornados lugar comum. Na medida em que vivemos em uma sociedade fundada na lógica do mercado, com princípios calcados na troca, na velocidade da produção e do consumo, a preocupação com a formação omnilateral tem como objetivo oferecer aos sujeitos o acesso às diversas facetas expressas no acervo cultural da humanidade. Assim, por meio de um processo educativo crítico pode-se produzir, no ambiente escolar, aquelas condições de possibilidades que visa combater a lógica do mercado. Em outras palavras, a apreensão é por um processo de mediação contínua entre cultura e natureza que tem como objetivo a reconciliação não forçada entre cultura e civilização, pois a 3 [...] formação cultural é um longo processo histórico de mediação e de continuidade que visa à humanização do homem na sua racionalidade, sensibilidade, corporeidade, materialidade; visa humanizar o homem, suas relações e o mundo biológico, material (PUCCI, 1998, p. 111). Teoricamente, a escolha pelo conceito de catarse se faz na medida em que no trato da dimensão sensível e formativa das subjetividades, esta é uma categoria que historicamente tem um potencial de reflexão concentrado para se pensar a formação e a experiência estética. E, no que concerne à apropriação crítica da cultura, na teoria estética de Adorno, esse parece ser um conceito chave. Em linhas gerais, a ideia da pesquisa é prosseguir com a discussão sobre o conceito de catarse na área educacional, já iniciada por pesquisadores vinculados à Teoria Educacional Crítica (TEC). No entanto, esse projeto pretende expor as possíveis contribuições da definição adorniana do conceito de catarse para o âmbito educacional e, dessa forma, intenciona buscar indícios para reflexões sobre a noção de apreciação e de formação estético-cultural no campo da educação. Como dito, o estudo tem como meta prosseguir a discussão sobre o conceito de catarse iniciada no âmbito das Teorias Educacionais Críticas (TECs). Consiste na ideia de pensar quais os desdobramentos/desafios que o conceito adorniano de catarse possui para a teoria educacional crítica, em especial para a formação estética? Quais os elementos teóricos presentes no tratamento desse conceito, tanto para a TEC como para a filosofia estética de Adorno? E a partir das respostas a essas questões, quais os possíveis desdobramentos teóricos para o âmbito da educação escolar? É possível afirmar que na relação com os produtos da indústria cultural o sujeito consiga desenvolver a dimensão catártica? Em que sentido isso é possível? Em síntese, o objetivo principal da pesquisa é contribuir para o desenvolvimento de uma teoria educacional crítica que contemple um projeto de formação estéticocultural ampla e que caminhe a contrapelo da indústria cultural. Para isso, a pesquisa visa aprofundar os estudos sobre a Teoria Crítica da Sociedade (TCS), em particular o conceito de catarse presente filosofia estética de Theodor Adorno, relacionando-o a uma teoria educacional crítica. Trata-se de uma pesquisa de cunho teórico-bibliográfico que pretende realizar um levantamento de literatura e análise sobre os fundamentos teóricos da educação, elegendo como foco a relação entre teoria educacional crítica e formação estético- 4 cultural. Em um primeiro momento nossa intenção é mapear a produção acadêmica em torno dessa temática e do conceito de catarse publicado em três periódicos Qualis A1. Ao eleger a catarse como principal foco de análise, delimita-se o problema de pesquisa e pretende buscar, a partir desse conceito, elementos para pensar a formação estético-cultural. Com isso, a pesquisa opera com três hipóteses básicas: (H1) o conceito de catarse de Adorno pode ser profícuo no estabelecimento de pontos de interseção entre a teoria educacional crítica e a teoria psicanalítica ressignificada a partir da filosofia social desse Filósofo; (H2) esse conceito (catarse) também desafia a escola a se colocar a contrapelo de mecanismos semiformativos da indústria cultural e também pode orientar no tratamento pedagógico crítico de conteúdos culturais transformados em mercadorias; (H3): a partir desse diálogo pode-se pensar a apropriação crítica da cultura e também as relações entre o processo catártico e as investiduras da indústria cultural no âmbito da educação formal. Como reflexão inicial, cabe ao presente trabalho expor algumas considerações sobre a Teoria Crítica da Sociedade (TCS) da Escola de Frankfurt (EF), alguns dados biográficos de Theodor Adorno e apontamentos gerais sobre a EF para, em seguida, relacioná-los com as discussões educacionais e a formação estético-cultural. Nesse sentido, o que se apresenta são breves considerações cujo escopo é introduzir a temática da pesquisa. Assim, o próximo item apresentará uma reflexão já desenvolvida na pesquisa, qual seja: formação e estética em Theodor Adorno. 1 Formação e Estética em Theodor Adorno Para esse trabalho limitamo-nos em descrever as primeiras considerações sobre a Escola de Frankfurt e sua importância enquanto Escola filosófica. Em relação a Adorno, detivemo-nos em sua relação com a EF e como a sua filosofia se insere nas discussões sobre educação e formação estético-cultural. A EF é um marco na história da filosofia alemã, por se tratar de um contingente peculiar que muito contribuiu na constituição do marxismo ocidental. Marcada, sobretudo pelo exercício da crítica e pelo movimento de contradição na forma de pensar, ela é precursora da vertente denominada TCS, termo cunhado pelo Filósofo alemão Max Horkheimer. 5 A Teoria Crítica da Sociedade, em contraposição à Teoria Positivista, ampliou sua já inicial vertente marxiana. Ela leva em consideração a filosofia clássica idealista (Kant e Hegel) alemã, a crítica iconoclasta de Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Marquês de Sade, a teoria psicanalítica iniciada por Sigmund Freud, a sociologia de Max Weber e as contribuições de Sociólogos e Filósofos que já despertavam para o diálogo crítico com essa tradição. E é esse alargamento teórico que possibilitou a tradição da TCS discernir, nas chamadas ciências humanas (psicologia, sociologia, história, etc.), o potencial crítico da teoria: a razão crítica de si mesma (MAAR, 1995). De acordo com Loureiro (2006), a EF sem dúvida impulsionou uma nova forma de pensar a sociedade moderna dentro da filosofia ocidental contemporânea, principalmente com suas observações sobre as esperanças ingênuas despertadas pelo esclarecimento (Aufklärung) e a desconfiança em relação à racionalidade técnicoinstrumental ampliada pela burguesia. A razão instrumental e a ação pragmática dessa classe social seriam as principais fontes dos problemas contemporâneos. Para a Teoria Crítica, a sociedade administrada mina seu potencial emancipador na medida em que reproduz uma vida danificada por meio de sua racionalidade instrumental, e que “[...] por mais que a racionalidade tivesse empreendido esforços para libertar o homem do pensamento mítico, este permanecera preso ao nexo da própria racionalidade” (JAY, 1988, p. 36). Os frankfurtianos nos alertam da impossibilidade de pensar uma sociedade que não pensa a si mesma, uma vez, que “[...] as relações sociais não afetam somente as condições da produção econômica e material, mas também interagem no plano da ‘subjetividade’, na qual originam relações de dominação” (MAAR, 1995, p. 19). E que o esclarecimento pregado pela sociedade moderna converteu-se em mito, que precisa ser negado por meio do pensamento crítico. Nesse sentido, a dimensão crítica da Escola de Frankfurt manifesta-se na negação/rejeição dos princípios instrumentais e pragmáticos da sociedade burguesa, cujo ideal cientificista (positivismo, neopositivismo), pragmatista e neopragmatista, amplia as forças da sociedade administrada que visa a docilidade e o controle de homens e mulheres para fins de reprodução do sistema. Dentro da discussão sobre a sociedade do capitalismo tardio há, direta ou indiretamente, análises que tratam da questão educacional. De forma mais evidente, dentre os autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno é 6 aquele que talvez mais se destaca pelo conjunto de reflexões e aproximações entre cultura, formação cultural e filosofia da educação (LOUREIRO, 2006). Theodor Wiesengrund Adorno nasceu em 11 de setembro de 1903 em Frankfurt e faleceu no dia 06 de agosto de 1969. Filho único de um comerciante de vinhos judeu, abastado e instruído, Oskar Wiesengrund, e de sua esposa católica, Maria Calvalli Adorno. Sua infância e adolescência foram marcadas pela música, sob influência da mãe, cantora profissional, e da tia Agathe, irmã de sua mãe e companheira de lar, uma pianista talentosa. Precoce em termos musicais e intelectuais, Adorno foi encorajado a desenvolver seus dotes em ambas as direções. Aos quinze anos, foi introduzido na filosofia clássica alemã por um amigo da família, Siegfried Kracauer, quatorze anos mais velho que ele, com o qual deu início ao habito semanal de ler Critique de Kant. Com Kracauer, que logo iria tornar-se um dos mais notáveis críticos e um grande teórico do cinema, Adorno aprendeu a decifrar os textos filosóficos como documentos da verdade histórica e social. (JAY, 1988, p. 26) Adorno ingressou na Universidade de Frankfurt com apenas 17 anos, para estudar filosofia, musicologia, psicologia e sociologia. Aos 21 anos de idade, em 1924, ele defendeu sua tese de doutorado, intitulada A transcendência do objeto e do noemático da fenomenologia de Husserl, sob orientação do professor Hans Cornelius, que também foi orientador de Max Horkheimer. Também em meados de 1924, iniciou os estudos de crítica e estética musicais que se tornaram seu próprio domínio. Em 1931, então com 28 anos, Adorno obteve sua Habilitation para ministrar aulas na Universidade de Frankfurt, com a tese Kierkegaard: a construção da estética, orientada por Paul Tillich. Aprovado no exame, no mesmo ano Adorno tornou-se professor de filosofia na Universidade de Frankfurt e, concomitantemente, passou a ser um dos principais colaboradores do Instituto para Pesquisa Social, posteriormente denominado Escola de Frankfurt. Após esse breve detour biográfico, a seguir, por meio de alguns comentadores da TCS, situamos a filosofia crítica de Adorno dentro das discussões educacionais, em especial na temática sobre formação estético-cultural. Adorno não se dedicou exclusivamente às questões educacionais. Atualmente, pode-se afirmar que, no meio educacional, suas reflexões filosóficas têm sido de grande relevância, em particular “[...] a defesa intransigente de um modo de pensar que não se entrega diante das facilidades de um raciocínio condicionado a permanecer na superfície 7 do dado imediato” (PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA; ZUIN, 1999, p. 109), típico do pensamento positivista, o que torna sua filosofia carregada pela permanente crítica imanente dos objetos e das relações que estes estabelecem. Dentre as publicações adornianas sobre educação, destacam-se o grande número de conferências e entrevistas sobre diversos temas culturais realizadas entre 1959 e 1969. Parte considerável dessas conferências foi proferida em programas de Rádio, na Alemanha. Dentre elas: A educação após Auschwitz (1965) e a entrevista Educação e emancipação (agosto de 1969) (cf. PUCCI; RAMOS-de-OLIVEIRA; ZUIN, 1999). O livro Educação e Emancipação (1995) de Theodor Adorno trata exatamente de um conjunto de palestras e entrevistas sobre educação traduzidas por Wolfgang Leo Maar, professor da UFSCar. O livro, à primeira vista, se considerarmos apenas o título, tende a ser uma afirmação, no entanto, um ponto de interrogação, a nosso ver, teria também um lugar especial. Porque, segundo Leo Maar (1995), para Adorno a educação não é indispensavelmente um fator de emancipação. O significa dizer, que para Adorno, a crítica é permanente, não possui um ponto final. Ou seja, não existe um tempo ou espaço do ideal imaginário no qual seja possível se privar do movimento crítico do pensamento. Ao associar o pensamento social de Adorno com a educação, que também é um objeto social, encontramos a relação de sua teoria social com as questões educacionais, que segundo seu pensamento deve se pautar no movimento crítico. E, dessa forma, não é precipitado incluí-lo no eixo das tendências educacionais consideradas críticas. Já que é a crítica imanente que marca a produção filosófica de Adorno. A rigor, desde os primórdios, na ideia de cultura estavam presentes, complementar e contraditoriamente, a dimensão emancipatória e repressora, ou seja, a tensão entre a perspectiva autônoma e adaptativa. De acordo com Pucci (1998, p. 90), a “[...] Bildung (cultura) revela a tensão entre as dimensões: autonomia, liberdade do sujeito e sua configuração à vida real, adaptação.” Esse caráter contraditório da Bildung, portanto dialético, diz respeito tanto ao aspecto de autonomia e emancipação dos sujeitos, como também ao caráter de acomodação integrativa ou adaptação. Esses dois elementos, que constituem a formação cultural, ora se aproximam, ora se distanciam. A tensão entre os polos é um processo do qual não há como se desprender. O momento de integração é importante, pois alguma adaptação é necessária. No entanto, o problema aparece quando dessa tensão o polo positivo (submissão à realidade dada, adaptação) sobrepõe-se ao elemento 8 negativo (liberdade, autonomia do sujeito) e a adaptação torna-se quase que hegemônica, pois, como afirma Adorno, no ensaio Teoria da semiformação (1996, p. 2): “[...] nos casos em que a cultura foi entendida como conformar-se à vida real, ela destacou unilateralmente o momento de adaptação, e impediu que os homens se educassem uns aos outros”. Adorno teceu críticas contundentes à sociedade moderna, pautada na lógica do capital, que na tentativa de dominar a natureza investe no progresso tecnológico e tende a tornar os seres humanos empobrecidos de humanidade. Na busca de uma redenção vinculada ao progresso, o problema da sociedade atual é considerar-se esclarecida sem sê-la. Isso porque o desenvolvimento científico não tem conduzido, necessariamente, à emancipação, precisamente por estar vinculado à uma determinada formação social enrijecida que se reproduz incondicionalmente. O quadro mais avassalador dessa situação é o capitalismo tardio de nossa época, embaralhando os referenciais da razão nos termos de uma racionalidade produtivista pela qual o sentido ético dos processos formativos e educacionais vaga à mercê das marés econômicas. (MAAR, 1995, p. 16) Tendo em consideração que as relações sociais não afetam somente as condições da produção econômica e material, mas também atuam na dimensão subjetiva da sociedade, na qual se configuram como relações de dominação, para Adorno, vivemos uma crise da formação que não seria apenas a consciência de si, ou a conscientização, pois, dessa forma, poder-se-ia cair em um subjetivismo demasiado. Portanto, na concepção adorniana, consciência é a experiência objetiva na interação social e na relação com a natureza, ou seja, trabalho social. Nesse sentido, a formação perpassa pelo trabalho social, no qual se articula objetividade e subjetividade. Adorno não é contra a modernidade ou à racionalidade, em si mesmas. Sua crítica está na incapacidade que, a partir de determinado momento histórico, a racionalidade moderna perdeu sua capacidade autorreflexão crítica e de não proporcionar, de fato, uma experiência formativa dialética que seria, para o filósofo, a própria razão. Na crise da formação, o que prevalece é a semiformação, que é uma vivência restrita ao caráter afirmativo da lógica vigente (MAAR, 1995). A semiformação é a base social de uma estrutura de dominação. No entanto, o processo de manipulação é feito graças aos artifícios da indústria cultural, categoria cunhada em 1947 no livro Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos de 9 Adorno e Horkheimer. Segundo os autores, é a i.c que, embasada política e esteticamente no modo de produção capitalista, converte toda a cultura em mercadoria. É a indústria cultural que atua no plano da subjetivação social. Ela trava a experiência dialética, que tem como premissa o não-idêntico, em prol da uniformização da sociedade administrada. É nesse contexto, do sempre igual, que Adorno e a Teoria Crítica da Sociedade entram como forma de pensar e combater a realidade social. Porque quando tudo é produzido para a permanente manutenção afirmativa da lógica capitalista e se perde a dialeticidade das relações sociais, é que se pode pensar a partir, e com Adorno, uma dialética negativa: torna-se o que é pela relação com o que não é, ou seja, por meio da não identificação e recusa de determinada verdades produzidas. Enfim, pensar a realidade por meio do pensamento crítico. No âmbito da Teoria Crítica da Sociedade, afirma-se que atualmente a liberdade, uma das condições para a formação, passou a ser a reprodução e a expressão do existente. Por conseguinte, as dimensões emancipatória e autônoma da cultura encontram-se submergidas na lógica da razão instrumental vigente na sociedade capitalista. Nesse sentido, pelo fato de os produtos culturais deixarem de ser valores de uso e se tornarem quase que apenas valores de troca, integrados à lógica do mercado a tendência é que a formação estético-cultural se converta em uma semiformação socializada. A subjetividade passa a ser formada pelas “mercadorias culturais”. Ou seja, a ideologia dominante substitui a consciência pelo conformismo, porque dificilmente esta ordem é confrontada, pois ela cria uma sociedade inteiramente adaptada, onde se premia o mais adaptado, já que a formação se congela em categorias fixas, que promove e favorece uma formação regressiva e individualista (ADORNO, 1996). Em outros termos, o que se observa atualmente é o recrudescimento do caráter adaptativo da cultura. Por isso, de acordo com Pucci (1998), a intenção de Adorno, com o conceito de dialética negativa, é destacar que a formação estético-cultural autêntica tem como fim o sujeito autônomo. A educação, portanto, é um fator importante nesse processo formativo, pois enquanto esclarecimento, ela é o momento subjetivo do processo de conhecimento, é a dimensão criativa e sensível da razão. A educação é a formação que ocorre em processo de contraposição à semiformação, pois é uma “[...] busca que atinge o homem e a sociedade enquanto um todo, em sua capacidade subjetiva/objetiva, nas condições ideais e materiais de reagir, de se contrapor e de 10 direcionar a perspectiva da emancipação” (PUCCI, 1998, p. 112). Em última análise, em função do forte apelo da racionalidade instrumental hegemônica, esvazia-se o caráter emancipador da cultura. Eis, então, a necessidade de uma crítica dialética que transcenda a cultura/ideologia vigente. Mas, por que formação estético-cultural? O termo estética possui sua origem etimológica em grego (Aisthesis), e significa “sensação”, “percepção sensorial”, "faculdade de sentir", "compreensão pelos sentidos", "percepção totalizante", ou, percepção imediata da realidade por meio dos sentidos. A discussão sobre estética transcende o aspecto do belo em si. Mais do que uma ciência, a estética pode ser considerada um campo da filosofia moderna cuja reflexão intencional relaciona-se à suposta tensão entre razão e sensibilidade, faculdades que fazem parte de uma mesma unidade estrutural e diz respeito ao corpo (EAGLETON, 1993). Ela abrange as diversas facetas da existência, ou seja, estende-se ao mundo subjetivo dos humanos, às formas de ver, sentir e perceber o mundo objetivo e subjetivo. A formação estética seria, então, o processo pelo qual a faceta cultural e artística é tomada como objeto de reflexão e apropriada/sentida de forma subjetiva pelo sujeito produtor e fruidor de cultura. Contudo, a manipulação da arte e a dominação do homem na sociedade contemporânea nos fazem perceber que a formação, aquela apropriação subjetiva da cultura, se perde e a nossa compreensão de mundo tende a ser formatada conforme interesses alheios. Em lugar de uma formação plena de sentidos tem-se a semiformação que “[...] carreia a debilidade em relação ao tempo, o enfraquecimento da memória. Aprisionada nos limites da vivência, a semiformação acomete a relação do sujeito com o mundo e brutaliza a consciência, por ser um incentivo à não reflexão.” (LOUREIRO, 2006, p. 179) No entanto, apenas apreciar é insuficiente, é preciso um movimento de conhecer/apropriar-se, para, enfim, fruir/produzir arte/cultura de forma crítica. Como enfatiza Pucci (citado por LOUREIRO, 2006), a experiência estética oferece aos sentidos humanos uma dimensão de conhecimento e ao entendimento uma dimensão de sensibilidade. O contato com uma cultura que foge dos padrões pragmáticos da sociedade requer uma apreciação mais elaborada. Todavia, a educação, ou o acesso a ela, por si só não gera emancipação, tampouco indivíduos autônomos. Para tanto, um olhar menos ingênuo, concomitante a uma elaboração do passado (elevar ao nível do consciente os 11 cacos da história individual e coletiva, que foram reprimidos ao longo do tempo) são imprescindíveis (LOUREIRO, 2006). Esse movimento, de pensar de forma históricodialética os elementos que engendram os sentidos humanos a um estado perceptivo que educa o sujeito na construção de sua própria subjetividade e emancipação está na base da filosofia de Adorno. Assim, o objetivo não é apenas educar para a fruição de uma cultura, de uma arte mais sistematizada, contrapondo-se aos preceitos adotados pelos meios de comunicação de massa que requerem o imediatismo, a banalização do critério de entendimento, a superficialidade e o esvaziamento da historicidade da existência individual e coletiva. Trata-se de se esforçar para compreender o movimento histórico e dialético da realidade na qual esses meios, próprios da i.c., se inserem e buscar outra possibilidade, que não a massificada, de produção e fruição cultural e artística. 2 Considerações finais preliminares No que tange a relação da Teoria Crítica da Sociedade de Adorno com a educação, pode-se inferir que o escopo é a formação do ser omnilateral. Em muitos aspectos a Filosofia adorniana faz par com a Paidéia clássica, ou seja, aquele tipo de formação preocupada com a educação total, aberta e que não isolava o indivíduo. Nesse caso, o humano culto é aquele de espírito aberto e livre e a cultura viva e formativa é aquela aberta para o futuro, mas com bases sólidas no passado (ABBAGNANO, 1998). E, ser culto é não se fascinar diante do novo, tampouco dele se afastar, mas saber considerá-lo em seu justo valor. Em tese, o indivíduo culto deveria ser capaz de vincular o “novo” àquilo que supostamente é passado (velho) e poder, nesse diálogo, expressar semelhanças e diferenças. Após essa breve análise sobre o processo formativo da dimensão estéticocultural, a partir da Teoria Crítica da Sociedade de Adorno, nosso intuito é avançar e ao mesmo tempo limitar o foco para o conceito de catarse presente na teoria estética de Adorno. Dentre os muitos conceitos elaborados por esse Filósofo, a escolha da catarse se justifica pela atenção a ela dispensada, na medida em que relaciona a indústria cultural como desveladora e manipuladora do potencial formativo daquele conceito. Principalmente no que se refere à faceta de identificação/empatia (Einfühlung) exacerbada que acaba por prejudicar o distanciamento crítico no processo de semiformação. Acarretando com isso a permanente manutenção do sistema. Nesse 12 sentido, optar estudar esse conceito se torna um artifício para pensar uma formação estético-cultural ao revés dos apelos da indústria cultural. Esse trabalho representa apenas o início de uma parte dos estudos, em nível de mestrado, sobre a relação entre educação e formação estética a partir da filosofia de Adorno. O próximo passo é desvendar a importância do conceito de catarse na teoria estética de Adorno e, dessa forma, dar continuidade à pesquisa. 3 Referências ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de filosofia. [tradução de Alfredo Bossi]. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ADORNO, Theodor Wiesengrund. Teoria da Semiformação. (Traduzido por Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu). Educação e Sociedade. Campinas, n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, p. 388-411. EAGLETON, Terry. Ideologia da estética. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. JAY, Martin. As ideias de Adorno; tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. LOUREIRO, Robson. Da teoria crítica de Adorno ao cinema crítico de Kluge: educação, história e estética. Florianópolis: PPGE/UFSC, 2006. Tese de doutorado. Disponível em: <http://www.tede.ufsc.br/teses/PEED0577.pdf >. Acesso em: 14 de junho de 2006. MAAR, Wolfgang Leo. Á guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa. In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. (Tradução de Wolfgang Leo Maar). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 11-28. PUCCI, Bruno. A Teoria da Semicultura e suas contribuições para a Teoria Crítica da Educação. In: ZUIN, A. A. S. Pucci, Bruno. Newton Ramos-de-Oliveira (Orgs). A educação danificada: Contribuições à Teoria Crítica da Educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; São Carlos, SP: Universidade Federal de São Carlos, 1998. p. 89-115 PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis, RJ : Vozes, 1999.