O PORTUGUÊS BRASILEIRO NAS CARTAS DE MÁRIO DE ANDRADE A MANUEL BANDEIRA Driély Oller Oyama Maria Aparecida Torres Morais1 Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas [email protected] Resumo Neste artigo investigamos aspectos da colocação dos pronomes clíticos no português brasileiro com base na produção epistolar de Mário de Andrade e com base no livro intitulado A gramatiquinha de Mário de Andrade de Edith P. Pinto. Investigamos ainda as principais ideias do autor sobre a variedade do português falado no Brasil, em comparação com o português europeu e com o que prescreviam as gramáticas normativas. Como se sabe, Mário de Andrade tinha um projeto de escrever uma gramatiquinha da variedade brasileira. Fizemos a nossa descrição da colocação dos clíticos, a partir do levantamento dos mesmos em estruturas simples e complexas, em diferentes tipos de contextos verbais e diferentes tipos de constituintes em posição pré-verbal. Nosso corpus foi constituído de um conjunto de cartas trocada entre o autor e Manoel Bandeira, reunidas na obra Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira organizada por Marcos Antonio de Moraes (2000). Investigamos ainda as ideias de Mario de Andrade a respeito do português brasileiro. Assim, através desta pesquisa foi possível perceber que o autor interessava-se pela variedade linguística que observava na fala das pessoa, nas diferentes situações do cotidiano. Além disso, os resultados quantitativos provenientes da coleta dos dados, revelou que, em sua escrita epistolar, Mário de Andrade apresentava usos da colocação pronominal que fugia aos padrões normativos, entre eles, os clíticos em posição inicial absoluta e a próclise ao verbo principal nos contextos verbais com Aux + V. Palavras Chaves: Mário de Andrade; português brasileiro; cartas; gramatiquinha da fala brasileira, clíticos. Abstract In this article we investigate the placement of the pronominal clitics based on the letters of Mario de Andrade, a very famous Brazilian author, collected in the book untitled Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira, organized by Marcos Antonio de Moraes. Our main objective was to describe the aspects of the placement of clitics in different types of sentences and verbal contexts, in order to find out if the writer incorporated the syntax of Brazilian Portuguese which is very different from European Portuguese in this aspect. The data collected showed that the author incorporated the main aspects that differentiate the two varieties, in particular, the placement of clitics in absolute first position, the placement of clitics in proclisis to the main verb, independently of the preverbal context, and the placement of clitics in proclisis to the non-finite verb in the Aux+ V complexes. As we know the author had a project to write a grammar of the Brazilian variety inspired on the oral speech of common people. He never realized it. But his finds were collected by Edith P. Pinto in the book A gramatiquinha de Mário de Andrade. We used also this material to discuss the ideas of Mario de Andrade. Key words: Mário de Andrade, Brazilian Portuguese, gramatiquinha, clitics 1 Docente da Área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (DLCV/USP) SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP Introdução Neste artigo sistematizam-se os resultados encontrados durante no projeto de iniciação científica, intitulado: O português brasileiro nas cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. A pesquisa realizada entre agosto de 2013 a agosto de 2014. Esta investigação recebeu o apoio financeiro da RUSP. Uma das preocupações de Mário de Andrade ao longo de sua carreira era representar o Brasil em sua literatura. Para isso era necessário também representa-lo através da língua. Mário de Andrade reconhecia o valor das obras de J. Ribeiro e A. Amaral, ambas descrevendo as variedades populares do português brasileiro e, com esse conhecimento, criticava os literatos de sua época por serem idealistas e não práticos, principiando por não fazer o que convidavam a fazer, ou seja, a usar as formas brasileiras. Segundo Mário, eles não tiveram coragem. “Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna” (ANDRADE apud PINTO, p. 313). Assim Mário de Andrade começou a desenvolver o projeto da Gramatiquinha da fala brasileira. Com esta pesquisa foi possível observar se Mário de Andrade incorporava a variedade brasileira coloquial em sua escrita. Objetivos A presente pesquisa tem, pois, dois objetivos relacionados. O primeiro é fazer uma apreciação das ideias de Mário de Andrade sobre o falar brasileiro, tais como apresentadas na Gramatiquinha de Mário de Andrade de Edith Pimentel Pinto e em cartas do autor a Manuel Bandeira, retiradas da coleção Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira organizada por Marcos Antonio de Moraes (2000). O segundo é apresentar um estudo descritivo e quantitativo de um aspecto gramatical, a saber, a colocação pronominal, com base num conjunto selecionado das Cartas Com relação ao segundo objetivo, o da colocação pronominal na variedade brasileira da língua portuguesa em cartas de Mário de Andrade, buscamos realizar uma investigação na ordem dos clíticos pronominais em estruturas com formas verbais simples, ou seja, com verbo flexionado, e formas verbais complexas, ou seja, com auxiliar flexionado e forma verbal nominal. Utilizamos ainda outros trabalhos que discutem a colocação pronominal em outros autores e com base em corpus diferenciado, entre eles, Torres Morais & Ribeiro (2005) e Santos (2010). Como dissemos, com esses objetivos, pretendemos, a partir do cotejo de nossa amostra com as ideias marioandradianas sobre a variedade brasileira, avaliar se e como o autor utiliza o português brasileiro em sua escrita epistolar. Materiais e Métodos Entre os anos de 1924 e 1929, Mário de Andrade dedicou-se a um projeto que visava sistematizar aspectos gramaticais das variedades encontradas na língua portuguesa falada no Brasil. Com isso começou a desenvolver a Gramatiquinha da Fala Brasileira. Seu objetivo era reconhecer a existência de uma variedade na fala brasileira e legitimar seu uso na literatura nacional. Para Mário de Andrade a literatura tinha um papel fundamental na consolidação da variedade brasileira. Em outras palavras, o autor acreditava que a literatura seria um veículo para a aceitação e consolidação das diferenças linguísticas que separam a variedade brasileira da variedade europeia, considerada superior pela pressão normativa. Mário de Andrade abandonou o projeto por volta de 1929. Entretanto o autor não destruiu as anotações que seriam destinadas à gramatiquinha. Assim elas puderam ser resgatadas, organizadas e interpretadas posteriormente por Edith Pimentel Pinto, em seu livro intitulado A Gramatiquinha de Mário de Andrade usamos para ter acesso às ideias de Mário de Andrade sobre o português brasileiro, doravante PB. Para observar o uso do pronome clítico por Mário de Andrade, empreendemos uma análise de orações retiradas das cartas do autor a seu amigo Manuel Bandeira. Nessas cartas, igualmente, encontramos algumas ideias de Mário de Andrade sobre a língua portuguesa. Entretanto para recolher tal material nossa principal fonte foi o livro A gramatiquinha de Mário de Andrade, já mencionado acima. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP Na primeira parte deste trabalho foi feito um fichamento da obra organizada por Edith Pimentel Pinto, para que assim tivéssemos acesso aos documentos deixados por Mário de Andrade para a composição de sua gramatiquinha. Desse fichamento selecionamos apenas os trechos que interessavam à nossa pesquisa, a saber: questões gerais sobre língua portuguesa, contraposição de Brasil e Portugal; e a colocação pronominal de pronomes clíticos. Em seguida fizemos uma seleção arbitrária de cartas do Mário de Andrade dentro do livro Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira a fim de analisá-las quanto à colocação dos pronomes clíticos em lexias verbais simples e compostas. Arbitrária, pois o nosso único critério foi selecionar duas cartas de cada ano, sempre que possível. Resultados Apesar de reconhecer que a gramática adotada no Brasil não representa o povo brasileiro. Mário de Andrade não opunha Brasil a Portugal, assim como fazia o Movimento Modernista. Ele apenas reivindicava uma apropriação das características brasileiras. Ou seja, Mário de Andrade reivindicava apenas: “escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa” (ANDRADE apud PINTO, p. 331). Sobre a questão da colocação pronominal, Edith Pimentel acredita, baseada nos grifos que Mario de Andrade fizera no seu exemplar da Gramática Secundária de Said Ali, que o escritor tinha sido influenciado pela ideia do filólogo e gramático histórico de que a prosódia brasileira é que dera origem à colocação pronominal brasileira, diferenciando-a da lusitana (PINTO, p. 206). Fato é que Mário de Andrade reconhecia a próclise como característica do PB. E fez uso da colocação proclítica em suas cartas, o que o leva a ser criticado pelo uso excessivo da mesma. Esta pesquisa mostra, de fato, uma clara preferência de Mário de Andrade pela posição proclítica. Em nosso estudo, vimos que o autor formula uma única regra, que se refere ao uso enclítico nas sentenças imperativas, considerando ainda os casos de eufonia. “Como norma única de colocação se poderia pelo estudo de nossa fala aconselhar assim. Na fala brasileira, salvo casos especiais de eufonia (a possuí-lo pra não falar ‘a o possuir’, ‘mandar-me-ás etc.) o pronome se antepõe sempre ao verbo menos nas frases de caráter mais ou menos imperativo psicologicamente” (ANDRADE apud PINTO, p. 208). Mas, como visto nesta pesquisa, Mário de Andrade utiliza a próclise em orações imperativas: (a) Me mande todos os artigos do Tristão (C. 80) (b) Me abrace e conte coisas daí. (C. 143) (c) Me mande de novo registrado, faz favor. (C. 335) Cabe ressaltar, neste resumo, dois aspectos da colocação pronominal encontrados na escrita de Mário de Andrade, ambos ausentes das variedades do português europeu (PE): (i) a próclise em casos de formas verbais simples, em que o verbo é o elemento inicial, como nos exemplos abaixo: a. Me esqueci de mostrar as tendências psicológicas extra-artísticas (C. 128) b. Se lembra que você me falou que pela importância que Ci tinha no livro (C. 209) c. Lhe mando este artigo assombroso do Ehrenburg (C. 414) (ii) pronome clítico colocado entre o complexo verbal sem hífen, Interpretado como próclise ao verbo principal, por exemplo: a. Devia me queixar pra eles (C. 105) b. vão me confundir com os patriotas de merda (C.171) c. Quando algum moço e são muitos me escreve ou vem me falar que “me adora” (C. 221) Conclusões Através desta pesquisa foi possível perceber que Mário de Andrade tinha uma profunda percepção das diferenças entre PB e o PE , mesmo sendo um leigo em assunto de língua portuguesa, como ele mesmo faz SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP questão de enfatizar diversas vezes. Mário de Andrade revela-se sensível também ao fato de a linguagem literária utilizar-se de normas europeias distanciando-se assim da língua falada no Brasil. A fim de comprovar a variedade brasileira e credenciar o uso da mesma pela literatura, Mário de Andrade se lança ao projeto da Gramatiquinha da fala brasileira. Através desta pesquisa foi possível perceber que para atingir esse objetivo Mário de Andrade foi além da gramatiquinha, pois, além de pesquisar sobre a variedade brasileira, passa a utilizá-la em sua escrita epistolar. Correndo o risco de ser acusado, como o foi, de não escrever corretamente. A gramatiquinha da fala brasileira era mais um projeto que auxiliaria a divulgação dos ideais modernistas, de apropriação de características brasileiras. Mas é através de sua prática linguística que Mário de Andrade difundiria o uso da variedade brasileira do português para a literatura. Referências Bibliográficas MORAES, Marcos A. de. Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira. 2. Ed. São Paulo: Edusp/IEB, 2000. Volume 1. TORRES MORAIS, Maria Aparecida. RIBEIRO, Ilza. Contraste da Sintaxe dos Clíticos no Português Europeu e Português Brasileiro. In: Linha D´Água. no 17. São Paulo. Humanitas FFLCH-USP. 2005. pp 21-48 PINTO, Edith P. A Gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. 4. Ed. São Paulo: Duas Cidades, 1990. 462 p. SANTOS, Daniely C. de O. Análise diacrônica da colocação pronominal nas variedades brasileira e europeia do português literário: um estudo segundo o conjugado “variação-mudança & clitização”. 2010. 280 f. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2010. SIICUSP 2014 – 22º Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP