A rota para a estabilidade fiscal

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A rota para a estabilidade fiscal
Se quisermos entender onde estamos, precisamos entender onde estivemos.
Isso é especialmente verdade se quisermos escapar dos enormes déficits
fiscais que estão sendo administrados por muitos governos. Esses déficits não
são resultado da estupidez de governo; são principalmente uma consequência
e uma resposta ao comportamento privado.
Não podemos ignorar essa conexão.
A diferença entre poupança interna e investimento é igual à conta corrente da
balança de pagamentos (em si o inverso da conta de capital). A poupança
interna e o investimento podem ser divididos, por sua vez, entre setor privado e
governo. A soma das contas privadas, governamental e externa, deve ser igual
a zero. Mas ainda é possível perguntar como fazem isso e, em particular, que
comportamento aciona os padrões específicos e níveis de atividade que
vemos. Na crise atual, fazer essa pergunta é particularmente revelador.
Num gráfico, analisei os principais países de alta renda. A eles acrescentei
Espanha e Irlanda, já que a "grande bolha de crédito" da década de 2000
afetou os dois países de forma profunda. Começo com 2006, o ano anterior ao
começo da crise. Naquele ano, dois países superavitários do exterior Alemanha e Japão - acumulavam um superávit do setor privado de perto de 8%
do PIB. O setor privado francês acumulava um pequeno superávit, assim como
o da Itália. Reino Unido, Irlanda e Espanha tinham enormes déficits privados,
sendo que os dois últimos eram gigantescos.
No Japão e na Alemanha, parte do superávit privado financiou os déficits
governamentais, enquanto parte seguiu como saída de capital para o exterior.
Esse último ponto se aplicava especialmente no caso da Alemanha. Na França,
o superávit financiava o governo quase integralmente. No reino Unido e nos
EUA, uma volumosa entrada de capital estrangeiro era parcialmente
compensada pelo que pareceram ser sólidas posições fiscais- uma ilusão,
como se soube mais tarde. Mas, mais uma vez, uma grande parte do
financiamento veio do exterior.
Avancemos rapidamente para as mais recentes projeções para o ano de 2009
abalado por crises. Todos se tornaram a Alemanha! Os setores privados de
todos os países estão num superávit imponente. Preços de ativos em queda,
um sistema financeiro quebrado e tombo na produção impulsionaram a
poupança para cima e o investimento para baixo. Os superávits dos setores
privados dos EUA, Reino Unido e Irlanda têm projeção de perto de 10% do
PIB, o que é ainda maior do que na Alemanha. Agora os setores privados dos
EUA, Reino Unido e Irlanda estão fornecendo praticamente toda a poupança
necessária para cobrir seus gigantescos déficits fiscais internos. Enquanto isso,
as contas externas têm se mantido aderentes, como seria de se esperar
durante uma recessão mundial.
É nesse momento, quando examinamos as mudanças ocorridas entre 2006 e
2009, que sua magnitude fica clara. As oscilações nas contas entre renda e
gastos privados (ou poupança e investimento), como porcentagem do PIB,
estão próximas de 17% do PIB na Espanha e Irlanda, 14% nos EUA e 10% no
Reino Unido. As oscilações nas contas do setor privado em países sem bolhas
- Japão, França, Itália e Alemanha - são bem pequenas, porém. De fato, a
Alemanha até tem uma oscilação na direção de um superávit menor. Os
déficits em conta corrente de todos os países pós-bolha diminuíram um pouco.
A compensação predominante às mudanças ocorridas nas contas dos seus
setores privados, porém, esteve nas finanças governamentais. À medida que o
setor privado se deslocava maciçamente para superávit, o governo se
deslocava maciçamente para déficit. Na Alemanha, contudo, a deterioração na
balança fiscal é uma compensação a um superávit menor em conta corrente.
Japão, França e Itália se enquadram numa categoria entre os países pós-bolha
e a experiência alemã.
O que explica o que vemos? Alguns acreditam que as mudanças nas contas do
setor privado nos países pós-bolha são causadas por déficits fiscais, seja
devido a uma "equivalência ricardiana" - a opinião de que as pessoas
aumentam suas poupanças em resposta a déficits maiores - ou devido ao
"deslocamento" dos gastos pelos déficits. Nenhum desses argumentos sequer
está perto de convencer.
Quanto ao primeiro ponto, conforme demonstra um relatório divulgado ontem
pelo Fundo Monetário Internacional, uma parcela bem pequena do enorme
aumento nos déficits fiscais foi resultado de estímulo deliberado. Ele decorreu
em grande parte das deteriorações imprevistas na estrutura fiscal ou do ciclo.
Mais uma vez, as taxas de juros reais - conforme demonstrado pelos títulos
governamentais indexados - são muito baixas (1,4% nos EUA e abaixo de 1%
no Reino Unido). Isso é incompatível com deslocamento.
Assim, a deterioração na posição fiscal é resultado de uma redução nos gastos
do setor privado, não a sua causa. Não surpreende que a deterioração fiscal
também seja maior onde o setor privado mais reduziu: nas economias pósbolha.
É claro, o governo poderia ter tentado endurecer as posições fiscais a despeito
da crise. Tudo o que teria conseguido seria transformar a recessão numa
depressão. Consequentemente, eles também teriam transformado parte do
déficit fiscal estrutural num déficit cíclico. Isso bem que poderia ter diminuído o
superávit do setor privado, mas só por meio da destruição da renda privada
num ritmo ainda mais veloz que o gasto. Isso teria sido um erro crasso. Num
mundo onde o setor privado é orientado para a austeridade, como agora, os
governos precisam compensar esse comportamento, não fortalecê-lo.
Então quais são os caminhos para retornar ao vigor fiscal, especialmente nos
países com os maiores déficits? Deve haver alguma combinação de
recuperação nos gastos do setor privado interno com uma forte expansão nas
exportações líquidas (e, portanto, uma queda no ingresso líquido de capital).
Se a recuperação viesse predominantemente do primeiro, veríamos um retorno
aos déficits privados iniciais. Mas isso quase certamente teria significado outra
forte expansão na alavancagem. Esse teria sido, então, um caso de ajuste
adiado e, ainda pior, de novas bolhas. Por outro lado, poderia ocorrer uma forte
expansão nas exportações líquidas. Mas isso também implica elevação de
gastos, em relação à renda, nos demais lugares. Muitos temem que isso
também possa significar novas bolhas.
O ponto fundamental é que seria idiota discutir a redução dos colossais déficits
fiscais, sem considerar a natureza dos ajustes de compensação nos setores
privado e externo. Alguns ajustes seriam desejáveis, mas outros,
extremamente perigosos.
Recordemos a meta: conquistar uma posição fiscal sadia, a elevados níveis de
produção e com níveis sustentáveis de gasto privado e saldos externos. É uma
combinação que muitos países não conseguiram obter no período que
antecedeu essa enorme crise. Vejo poucas evidências, até agora, de que
faremos muito melhor na nossa caminhada rumo à saída.
Martin Wolf - Editor e principal comentarista econômico do FT. Artigo publicado
no jornal Valor Econômico em 04/11/09
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