1 INDETERMINAÇÃO DO DIREITO E LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS: UMA ANÁLISE DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 51 Emilio Peluso Neder Meyer; Eron Geraldo de Souza; Guilherme Felipe Mendes Macário Carneiro; Pedro Henrique Esteves Freitas. Resumo: este artigo apresenta uma crítica ao procedimento de edição pelo Supremo Tribunal Federal da Súmula Vinculante nº 5, que dispensa a presença de advogado no processo administrativo disciplinar, a partir da concepção de Ronald Dworkin do direito como integridade. Palavras-chave: Súmula Vinculante. Supremo Tribunal Federal. Ampla defesa. Direito como integridade. Direitos fundamentais. Abstract: this articles brings a critical analyses of the procedure of adopting the binding decision number 5 by the Supremo Tribunal Federal, which enacts that it dispensable a lawyer defense in disciplinary administrative procedures, through the perspective of Ronald Dworkin’s law as integrity. Keywords: binding decision. Supremo Tribunal Federal. Due process of law. Law as integrity. Basic rights. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O QUE É O DIREITO? O PROCEDIMENTO DE EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 5; 3. A PERSPECTIVA HABERMASIANA DA RACIONALIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS; 4. TEORIAS A RESPEITO DA RACIONALIZAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL; 5. RONALD DWORKIN E SUA TESE DOS DIREITOS; 6. DWORKIN E O DIREITO COMO INTEGRIDADE; 7. IMPROPRIEDADE E INCOERÊNCIA DOS ARGUMENTOS PARA A EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 5; 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 1. INTRODUÇÃO Nos últimos anos, o modo como os juízes decidem os casos vem despertando cada vez mais o interesse dos estudiosos do direito no Brasil e são numerosos os trabalhos produzidos sobre o tema. Esta questão é importante não só porque a diferença entre dignidade e ruína pode estar à mercê de uma decisão, mas, sobretudo, porque explicita, tendo em vista a 1 Artigo elaborado a partir dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Jurisdição e Hermenêutica Constitucional, coordenado pelos Professores Emílio Peluso Neder Meyer e Eron Geraldo de Souza, incentivado e subsidiado pela Escola Superior Dom Helder Câmara. 2 obrigação constitucional de fundamentar as decisões, o que eles, os juízes, pensam que é o direito, e, quando divergem sobre esse assunto, nos permite melhor ainda conhecer o tipo de divergência, isto é, as razões pelas quais os juízes tiveram dificuldades para estabelecer uma decisão para o caso concreto. Esse é o pano de fundo desse artigo – o modo como os juízes decidem os casos –, pois pretendemos, mais uma vez, revisitar a discussão sobre a natureza (tipo) dos argumentos aptos a justificar uma decisão jurisdicional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Para tanto, percorreremos os seguintes passos. No primeiro momento, iremos recuperar a recente história da Súmula Vinculante nº 5 editada pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2008, com o propósito de demonstrar a importância de se levar em conta, na discussão sobre o que é o direito, o modo como os juízes decidem os casos; em um segundo momento, pretendemos rever, com Habermas, os pressupostos teóricos para a definição da racionalidade de decisões judiciais adotadas por algumas teorias mais recentes. Nos próximos pontos, já com o auxílio da teoria de Ronald Dworkin, buscaremos expor e examinar o tipo (natureza) de argumento apto a justificar uma decisão jurisdicional, tendo em vista a integridade como parâmetro da prática judicial. Como remate dessa introdução, é importante salientar que o objetivo principal desse artigo é (re)visitar o tema, diga-se de passagem já bastante explorado, sobre os limites formais prescritos pelo discurso jurídico que acabam sendo ultrapassados na medida em que o direito, como “prática interpretativa” conduz, invariavelmente, à discussão maior, que ao final, interrelaciona direito, ética e política. 2. O QUE É O DIREITO? O PROCEDIMENTO DE EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 5 Em 30 de abril de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante de nº 5. Colhe-se dela o seguinte teor: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A edição deu-se em meio a aprovação das Súmulas Vinculantes nº 4 e 6; sobre a primeira, verifica-se nos debates realizados em plenário2 que há uma discussão entre os Ministros a respeito da correta redação da mesma, questionando-se definições jurídicas conceituais como “serviço militar obrigatório” e “serviço 2 Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/DJe_105_11_06_2008.pdf> . Capturado em 27/10/2010. 3 militar inicial”, assim como questões vernaculares como a rima entre “Federal” e “inicial”. Sobre as Súmulas Vinculantes nº 5 e 6, contudo, não há uma linha substancial, pelo menos no documento de fácil acesso a boa parte do jurisdicionado. Veja-se: A SRª. MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - A de nº 5 já aprovamos, não? Essa é a de nº 6? SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - A de nº 6 é essa que acabamos. Desculpe-me. É porque nós discutimos na parte final da sessão. Por último, há uma redação quanto à questão da defesa técnica. A redação que o Ministro Carlos Alberto Direito propõe é a seguinte: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. A Súmula Vinculante nº 5 teria sido editada após o julgamento de casos como o do Recurso Extraordinário nº 434.059, da Relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Nele, União e INSS – Instituto Nacional da Seguridade Social – recorriam de decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida em mandado de segurança de competência originária (MS 7.078, na numeração de origem) que declarava nula portaria do Ministro de Estado da Previdência Social que aplicara, em processo administrativo disciplinar, pena de demissão a servidora pública federal, ora recorrida na via extraordinária. Na origem, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que caberia ao Poder Judiciário fiscalizar a regularidade do processo administrativo disciplinar quanto à observância da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório. Durante a fase instrutória do procedimento que culminou na aplicação da pena de demissão, a servidora pública viu-se desamparada de defesa por advogado, o que constituiria, segundo o Relator, Ministro Hamilton Carvalhido, violação a imperativo constitucional (derivado do disposto no art. 5º, inc. LV, e no art. 133 da Constituição da República) que não se compatibiliza com a auto-defesa. Nesse sentido, o Relator continuou sustentando que a assistência do defensor é um direito do acusado em todos os atos do processo, sendo obrigatória independentemente da vontade dele. Não basta, portanto, que haja um defensor nem é suficiente que este se limite a participar formalmente do processo: é necessário que da sua atividade se extraia uma defesa substantiva do acusado. Em caso contrário, o juiz há de considerar que esta não se dá pro reo, mas sim na tutela da jurisdição. Por vezes, o ingresso do advogado nos autos não se traduz em uma apresentação de elementos consubstanciadores de algo suscetível de ser tido como uma peça que vise à absolvição do réu ou ao menos o abrandamento da sua condenação. Estas exigências de uma defesa real, substantiva, impor-seiam mesmo nos casos em que o réu, por seu advogado, resolva assumir a sua própria defesa. Já no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes, relator do acórdão, salientou que o direito de defesa não pode ser meramente circunscrito a um direito à 4 informação e a um direito de manifestação, mas, sim, deve ser visto como uma “pretensão à tutela jurídica”, como “o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar”3. E isto se estenderia também aos processos administrativos, não só pela dicção da letra da Constituição (art. 5º, inc. LV), como também pelo que dispõe a Lei 9.784/1999, reguladora do processo administrativo no âmbito federal. Daí afirmar-se, segundo o ministro Gilmar Mendes, que se devidamente garantido o direito (I) a informação, (II) à manifestação e (III) à consideração dos argumentos manifestados, a ampla defesa será exercida em sua plenitude, inexistido ofensa ao art. 5, inc. LV, da Constituição Federal. Dessa forma, por si só, nos dizeres do Relator, a ausência de advogado constituído ou de defensor dativo com habilitação não importa em nulidade de processo administrativo disciplinar. Assim, o “elemento” definido pelo STJ como ausência de defesa técnica mostra-se “dispensável”, “preterível”, como já decidira o STF no RE-Agr. 244.027. Menciona o Relator também o julgamento proferido na ADI nº 1.539/DF, em que se julgou constitucional a faculdade conferida à parte de postular ou defender-se perante os Juizados Especiais da Lei 9.099/1995 sem advogado. Tendo em vista o objetivo proposto para essa primeira parte de nosso trabalho, que consiste em mostrar o que os juízes pensam sobre o que é o direito e o modo como decidem os casos, vale à pena colacionar o “ponto de vista” dos demais Ministros que acompanharam o Relator no seu voto. O Ministro Joaquim Barbosa sugeriu a adoção de Súmula Vinculante na matéria, não obstante a alegação do Relator de que havia súmula em sentido contrário do Superior Tribunal de Justiça4. O Ministro Carlos Britto procedeu a uma análise gramatical da Constituição, analisando o possível único sentido do termo “justiça” da Seção III, Capítulo IV, Título IV. Justiça, aí, entende-se, lógico, não como aparelho judiciário, é a função jurisdicional. Isso está muito bem explicado na cabeça do artigo 127, quando diz: “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, (...)”. Dessa forma, segundo o Ministro Carlos Brito, estaria comprovado que o conceito de justiça referido pela Seção III do Capítulo IV do Título IV da Constituição Federal, não é outra coisa senão a função jurisdicional ou função judicante propriamente dita. Assim, a 3 A concepção encontra-se também em obra de sua autoria na qual ele também explicita a especificação germânica da chamada “pretensão à tutela jurídica” (Cf. MENDES. COELHO. BRANCO, 2007, p. 525). 4 É o teor da Súmula 343 do Superior Tribunal de Justiça: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”. Entre os precedentes da edição da súmula está justamente o MS 7.078 julgado pelo Tribunal Superior. 5 obrigatoriedade da defesa técnica do advogado em processo administrativo implicaria mais do que uma ampla defesa, e sim em uma amplíssima defesa, ou seja, uma defesa “transbordante”. Passado o exame gramatical do dispositivo constitucional, o Ministro Carlos Brito salientou sua preocupação com as conseqüências práticas que poderiam advir caso fosse decidido pela obrigatoriedade da defesa técnica do advogado em processo administrativo. Segundo o Ministro, a Defensoria Pública correria um sério risco de ser assoberbada pelos inúmeros processos que seriam automaticamente remetidos pela administração pública. O Ministro Marco Aurélio, apesar de votar com a maioria, questionou-se a respeito da precipitação na edição de uma súmula vinculante sobre a matéria, tal como postulado pelo Ministro Joaquim Barbosa e acolhido pelo Ministro Gilmar Mendes. Salientou o Ministro Marco Aurélio: Concordo que devemos avançar de imediato, para editar um verbete ou um enunciado a integrar a súmula da jurisprudência do Tribunal. Só que para chegarmos à eficácia maior, como querido pela Constituição Federal, é indispensável, segundo o texto da Carta, da Emenda nº 45, que tenhamos reiterados pronunciamentos do Supremo. Disse mais: não estaríamos em um regime de exceção que reclamasse a adoção inesperada de tal súmula vinculante. Entretanto, a invocação pelo Ministro Celso de Mello do RE-Agr nº 244.0275 e do MS nº 24.9616 satisfizeram o Ministro Marco Aurélio, que acabou cedendo à maioria. O próprio Ministro Gilmar Mendes cuidou de reconhecer que não verificara pedidos de processos com repercussão geral (requisito do recurso extraordinário). O Ministro Menezes 5 “EMENTA: Agravo regimental a que se nega provimento, porquanto não trouxe o agravante argumentos suficientes a infirmar os precedentes citados na decisão impugnada, no sentido de que, uma vez dada a oportunidade ao agravante de se defender, inclusive de oferecer pedido de reconsideração, descabe falar em ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório no fato de se considerar dispensável, no processo administrativo, a presença de advogado, cuja atuação, no âmbito judicial, é obrigatória. (RE 244027 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 28/05/2002, DJ 28-06-2002 PP-00123 EMENT VOL-02075-06 PP-01289)”. 6 “EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL: CONCEITO. DIREITO DE DEFESA: PARTICIPAÇÃO DE ADVOGADO. I. - A Tomada de Contas Especial não constitui procedimento administrativo disciplinar. Ela tem por escopo a defesa da coisa pública. Busca a Corte de Contas, com tal medida, o ressarcimento pela lesão causada ao Erário. A Tomada de Contas é procedimento administrativo, certo que a extensão da garantia do contraditório (C.F., art. 5º, LV) aos procedimentos administrativos não exige a adoção da normatividade própria do processo judicial, em que é indispensável a atuação do advogado: AI 207.197-AgR/PR, Ministro Octavio Gallotti, "DJ" de 05.6.98; RE 244.027-AgR/SP, Ministra Ellen Gracie, "DJ" de 28.6.2002. II. - Desnecessidade de intimação pessoal para a sessão de julgamento, intimados os interessados pela publicação no órgão oficial. Aplicação subsidiária do disposto no art. 236, CPC. Ademais, a publicidade dos atos administrativos dá-se mediante a sua veiculação no órgão oficial. III. - Mandado de Segurança indeferido. (MS 24961, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2004, DJ 04-03-2005 PP00012 EMENT VOL-02182-02 PP-00332 RT v. 94, n. 836, 2005, p. 96-103 LEXSTF v. 27, n. 316, 2005, p. 217-232 RTJ VOL-00193-01 PP-00347)”. 6 Direito sugeriu, então, a adoção de uma súmula (sem efeito vinculante); pelo que o Ministro Cézar Peluso entendeu justamente que a existência de uma súmula do STJ exigiria a edição “em caráter excepcional” de uma súmula vinculante pelo STF. Em seguida, o Ministro Menezes Direito voltou atrás para dizer que a Emenda nº 45 faz “[...] essa referência a pronunciamentos reiterados. Mas isso na hipótese de as decisões saírem das Turmas”. Como a decisão seria agora do Plenário do Supremo Tribunal Federal e diante de uma súmula contrária do Superior Tribunal de Justiça, a excepcionalidade do caso implicava a adoção da súmula vinculante. O Procurador-Geral da República à época, Antonio Fernando de Souza, ainda sugerira a inclusão da expressão “[...] garantindo-se, de qualquer forma, a aplicação do contraditório [e] da ampla defesa”, sugestão esta não acolhida pelos Ministros, que preferiram um suposto silêncio eloqüente em virtude do que dispõe a lei. Por último, não menos importante, o Ministro Ricardo Lewandowski, fazendo uma análise histórica do instituto do “due process of law”, chega à conclusão que a defesa técnica trata de uma faculdade que deve ser posta à disposição do acusado que responde o processo judicial ou administrativo. Tratando-se de uma faculdade, conclui o Ministro que basta para a validade do processo intimar o acusado ou processado para que ofereça resposta no tempo oportuno. Depois de trazer os vários posicionamentos dos Srs. Ministros acerca da exigibilidade ou não da defesa técnica em processo administrativo, passamos, agora, a indagar, a partir da fundamentação exposta, sobre o que eles, os juízes, pensam que é o direito. Segundo Ronald Dworkin (1999, p. 5), os processos judiciais sempre suscitam, pelo menos em princípio, três diferentes tipos de questões: questões de fato, questões de direito e as questões interligadas de moralidade, política e fidelidade. Em primeiro lugar, o que aconteceu? A funcionária realmente não foi assistida por defesa técnica em processo administrativo? Em segundo lugar, qual é a lei pertinente? A lei permite que acusado ou processado faça sua autodefesa? Por último, se a lei permite a autodefesa, será justo? Se for injusto, devem os juízes ignorar a lei e assegurar a presença da defesa técnica ao acusado ou processado em geral? A primeira dessas questões, a questão de fato, parece bastante direta e não foi objeto de divergência entre os Ministros, isto é, a funcionária pública não foi assistida por advogado em processo administrativo que resultou sua demissão. Que dizer da segunda questão, a do direito? Os Ministros do Superior Tribunal de Justiça afirmaram categoricamente no julgamento do MS 7.078 que a Constituição e o Estado Democrático de Direito não admitem 7 nem fazem qualquer ressalva para permitir autodefesa em qualquer espécie de procedimento ou processo; já os Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem sentido diverso, afirmaram em verbete vinculante que a Constituição e a lei não excluem que o acusado ou processado possa, excepcionalmente, fazer sua própria defesa. Logo, a falta de defesa técnica não seria, por si só, uma afronta à Constituição ou o Estado Democrático de Direito? Se esta é realmente uma discussão, distinta das demais, de que tipo de discussão se trata? Sobre o que é a divergência? Estariam os Ministros divergindo sobre o que o direito realmente é? Pelos argumentos expostos para construção da súmula vinculante, a impressão que se tem é que as questões relativas ao direito não podem ser respondidas mediante tão somente o exame dos arquivos que guardam os registros das decisões institucionais. Noutras palavras, o direito não se resumiria a uma questão de fato. Se o ponto de vista da simples questão de fato, segundo o qual o direito é sempre uma questão de fato histórico e nunca depende da moralidade, é insatisfatório, a controvérsia sobre a exigibilidade ou não de defesa técnica em processo administrativo só poderia ser resolvida, de forma legítima, se houvesse uma compreensão do direito como integridade; nessa medida, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, imparcialidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. Agora, portanto, iremos (re)visitar os argumentos adequados à compreensão do direito como integridade. Segundo Dworkin (1999, p. 43), a despeito da popularidade de teorias que ele denomina de convencionalismo e pragmatismo7, o direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais, voltados para o passado, ou programas instrumentais, voltado para o futuro. A partir desse ponto de vista, as decisões judiciais demandam que o direito, tanto quanto possível, seja vista como moralmente coerente. Seguindo a linha proposicional de Dworkin – direito como integridade – surgem questões imprescindíveis para o exame da legitimidade da Súmula Vinculante nº 5, como por exemplo, o amadurecimento da matéria. Reiteradas decisões perante o STF e também perante outros órgãos jurisdicionais não seria um requisito inafastável para a adoção de uma súmula 7 “O convencionalismo defende a idéia de direitos jurídicos e o fundamento da força coercitiva estatal está em direta consonância com as decisões tomadas no passado, de modo que a previsibilidade (segurança jurídica) e a imparcialidade sejam uma restrição bem vinda e legítima – a referência de Dworkin é o positivismo jurídico. O pragmatismo nega que as decisões judiciais são legítimas porque há um direito das partes a uma decisão coerente por parte dos juízes. Esses últimos devem tomar suas decisões com o olhar dirigido para o futuro e o máximo que o Poder Judiciário faz é agir “como se” as pessoas detivessem direitos – aqui, de outra parte, a referência seria o Critical Legal Studies, cujo expoente seria Mangabeira Unger” (MEYER, 2007, p. 12-13). 8 vinculante? Outra questão: qual seria o tipo de argumento apto a permitir a Corte se afastar dos demais órgãos jurisdicionais? Outro ponto a ser examinado seria o da participação na elaboração das decisões judiciais, ou melhor, a interpretação participativa não seria um direito fundamental no Estado Democrático de Direito a legitimar imprescindível para a legitimidade da decisão judicial? O enfrentamento dessas questões se mostra crucial quando a legitimidade de uma decisão judicial passa ser considerada também do ponto de vista dos atingidos, isto é, dos co-autores da decisão. Nessa medida, a legitimidade de uma decisão se impõe pela qualidade do argumento que se constrói em conformidade não com a vontade desse ou daquele intérprete, mas de acordo com a prática governada por princípios e integridade. Antes de expormos a tese de Dworkin sobre o direito vamos, em um primeiro momento, a partir da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Jürgen Habermas (1997), examinar, da perspectiva habermasiana, diversas teorias do direito que procuraram trabalhar com a tensão entre segurança jurídica e justiça enfrentada pelo Poder Judiciário. 3. A PERSPECTIVA HABERMASIANA DA LEGITIMIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS Para Habermas (2003, p. 241), superadas as fundamentações de ordem transcendental do poder político, deve-se reconhecer que “introduzimos o sistema dos direitos e os princípios do Estado de Direito sob o enfoque do direito racional”, como ele o faz por toda a obra Direito e democracia (2003). Pretende ele, com isso, dizer que o direito não pode ser imposto pela mera facticidade de sua força cogente, mas deve ser criado por meio da participação do cidadão. Ainda segundo Habermas (2003, p. 241), “ordens jurídicas concretas não representam, apenas variantes distintas da realização dos mesmos direitos e princípios; nelas refletem-se também diferentes paradigmas jurídicos.” A questão seria de se saber como o mesmo sistema de direitos e os mesmos princípios do Estado de Direito se apresentam concretamente em cada sociedade. A resposta à pergunta do autor pode ser aferida com a necessidade de se estabelecer um marco teórico, a partir do espaço lógico-temporal, estabelecido pelo modelo da sociedade contemporânea; assim, ensina Habermas: Um ‘modelo social do direito’ (Wieacker) contém implicitamente uma teoria social do sistema jurídico; portanto, uma imagem que esse sistema constrói acerca de seu ambiente social. A partir daí, o paradigma do direito esclarece o modo como os direitos fundamentais e os principios do Estado de direito devem ser entendidos e realizados no quadro de tal modelo. O direito formal burguês e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos mais bem- 9 sucedidos na moderna história do direito, continuando a ser fortes concorrentes. Interpretando a política e o direito à luz da teoria do discurso, eu pretendo reforçar os contornos de um terceiro paradigma do direito, capaz de absorver os outros dois. (2003, p. 241-242)8 Mas para estudarmos os sistemas jurídicos modernos é necessária uma dupla delimitação ao direito enquanto sistema de ação em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro sentido (sistema de ação em sentido amplo), Habermas (2003, p. 242), parafraseando Luhmann, o define como “sistema social parcial, especializado na estabilização de expectativas de comportamento. Ele se compõe de todas as comunicações sociais formuladas tendo como referência o direito”. No segundo sentido (sistema de ação em sentido estrito), ensina Habermas (2003, p. 242): Ele abrange todas as interações, também as que não se orientam pelo direito, podendo produzir direito novo e reproduzi-lo enquanto tal. Para a institucionalização do sistema jurídico neste sentido, necessita-se de auto- aplicação do direito através de regras secundárias que constituem e transmitem as competências da normatização, da aplicação e da imposição do direito. É este segundo sentido que interessa a Habermas em um primeiro momento e que está ligado diretamente à temática deste trabalho, que é a da legitimidade da atuação da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal. O estudo se torna ainda mais importante no momento em que a teoria do direito movimenta-se nos limites de ordens jurídicas concretas. O que, por sua vez, [...] se explica a partir do valor posicional funcional da jurisdição no interior do sistema jurídico mais estreito. Uma vez que todas as comunicações a nível do direito apontam para pretensões reclamáveis judicialmente, o processo judicial constitui o ponto de fuga para a análise do sistema jurídico. (HABERMAS, 2003, p. 244, destaques nossos) O estudo da jurisdição tem demonstrada sua importância a partir do momento em que “a tensão entre facticidade e validade, imanente ao direito, manifesta-se na jurisdição como tensão entre o princípio da segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas” (HABERMAS, 2003, p. 245). A mesma tensão, portanto, entre o direito que deve se impor coercitivamente e, ao mesmo tempo, possibilitar seu cumprimento racional reaparece no exercício da jurisdição como a tensão entre o direito vigente pré-estabelecido (positivado ou 8 Habermas toma a noção de paradigma da filosofia da ciência de Thomas Kuhn e empresta à ela uma interpretação particular a uma ciência social aplicada como é o Direito no Capítulo IX de Direito e democracia (2003, p. 123 e ss). Para uma discussão a respeito da aplicação do conceito de paradigma à ciência do Direito, cf. CRUZ (2009). 10 determinado em precedentes) e a busca por decisões que sejam corretas. Segundo Habermas (2003, p. 246), tanto a segurança jurídica, quanto a obediência jurídica às normas, “no nível da prática da decisão judicial”, devem ser “resgatadas simultaneamente”. Não basta transformar as pretensões conflitantes em pretensões jurídicas e decidilas obrigatoriamente perante o tribunal, pelo caminho da ação. Para preencher a função socialmente integradora da ordem jurídica e da pretensão de legitimidade do direito, os juízos emitidos têm que satisfazer simultaneamente às condições de aceitabilidade racional e da decisão consistente. E, uma vez que ambas nem sempre estão de acordo, é necessário introduzir duas séries de critérios na prática da decisão judicial. (HABERMAS, 2003, p. 246, destaques nossos) Com intuito de elucidar o tema, Habermas (2003) discute quatro interpretações do direito, que segundo seu entendimento são exemplares e estabelecem diferentes soluções para o problema da racionalização da jurisdição. 4. TEORIAS A RESPEITO DA RACIONALIZAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL O primeiro dos modelos analisados por Habermas (2003, p. 247) é o da hermenêutica jurídica, que, segundo ele, “propõe um modelo processual de interpretação.” É à tradição inaugurada por Hans-Georg Gadamer que ele está se referindo. Ainda nos dizeres de Habermas (2003, p. 248), “a hermenêutica tem uma posição própria no âmbito da teoria do direito, porque ela resolve o problema da racionalidade da jurisprudência através da inserção contextualista da razão no complexo histórico da tradição.” Como forma de substituir o direito consuetudinário e com intuito de dar legitimidade à decisão judicial, a hermenêutica jurídica substitui o processo de compreensão circular pela referência a princípios. Tais princípios, segundo Habermas (2003, p. 248), “[...] só podem ser legitimados a partir da história efetiva da forma de vida e do direito, na qual o próprio juiz se radica de modo contingencial”. Vale destacar, contudo, que o modelo hermenêutico proposto por Gadamer parte da premissa da universalidade do problema hermenêutico que, a seu ver, faria com que as pré-compreensões estivessem presentes em quaisquer julgamentos, fato que o próprio Habermas já veio a reconhecer9. 9 A questão da universalidade do problema hermenêutico motivou um debate que durou cerca de vinte anos entre os filósofos alemães Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas. O próprio Dworkin (1999, p. 62-63, nota 2) faz referência ao debate: “Dilthey colocou a questão de saber se e como esse tipo de entendimento [o Vestehen das ciências do espírito] é possível a despeito das diferenças culturais; encontrou a chave para seu problema na consciência “histórica” [...]. Os mestres contemporâneos que deram continuidade ao debate, como Gadamer e Habermas, tomam direções diferentes. Gadamer acha que a solução de Dilthey pressupõe o aparato hegeliano que Dilthey ansiava por exorcizar [...] Habermas, por sua vez, critica Gadamer por sua visão demasiado passiva 11 Já o realismo jurídico, reage à proposta hermenêutica de um sistema de costume de um povo dominante (ethos) que, segundo Habermas (2003, p. 248), “não oferece, é verdade, uma base convincente para a validade de decisões jurídicas, em meio a uma sociedade pluralista, na qual diferentes situações de interesse e de forças religiosas concorrem entre si.” Por meio de conclusões de base empírica, as teorias que se enfeixam no realismo jurídico permitem diagnosticar histórica, psicológica e sociologicamente as decisões judiciais. São as propostas que vão desde Oliver Wendell Holmes até o Critical Legal Studies10. Habermas (2003, p. 49) oferece sua crítica ao realismo, dizendo: Na medida em que o resultado de um processo judicial pode ser explicado pelos interesses, pelo processo de socialização, pela pertença a camadas, por enfoques políticos e pela estrutura da personalidade dos juizes, por tradições ideológicas, constelações de poder ou por outros fatores dentro e fora do sistema jurídico, a prática de decisão não é mais determinada internamente através da seletividade de procedimentos, do caso e do fundamento do direito. O positivismo jurídico surge como forma mais segura de apoiar a legitimidade da decisão jurídica, que agora se sustenta nas próprias normas jurídicas vigentes: Ao contrário das escolas realistas, os teóricos Hans Kelsen e H. L. A. Hart elaboram o sentido normativo próprio das proposições jurídicas e a construção sistemática de um sistema de regras destinado a garantir a consciência e decisões ligadas a regras e tornar o direito independente da política. Ao contrário dos hermeneutas, eles sublinham o fechamento e a autonomia de um sistema de direitos, opaco em relação a princípios não-jurídicos. Com isso, o problema da racionalidade é decidido a favor da primazia de uma história institucional reduzida, purificada de todos os fundamentos de validade suprapositivo. Ora, uma regra básica, ou regra de conhecimento, de acordo com a qual pode ser decidido quais normas pertencem ou não ao direito vigente, permite subordinações precisas. (HABERMAS, 2003, p. 250) O positivismo jurídico é caracterizado pelo jusfilósofo americano Ronald Dworkin11 por meio de um esqueleto formado por três proposições ou preceitos-chave: a uma, o positivismo concebe o direito de uma comunidade como o conjunto de regras utilizado direta ou indiretamente por ela com o fim de determinar quais comportamentos serão punidos ou de que a direção da comunicação é de mão única, que o intérprete deve esforçar-se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no pressuposto de que está subordinado a seu autor.” 10 “A crítica do “cognitivismo realista” apontou a falácia da procura por categorias idealizadas, expondo o papel dos juízes como “law makers” e não apenas “law finders”, questionando, portanto, sua própria legitimidade. Neste sentido, [o] movimento realista pode ser concebido como um esforço para restaurar a legitimidade da própria Suprema Corte pós-Lochner. O exercício de “judicial restraint” pela Corte na crise do New Deal de 1937 representaria, para esta perspectiva, o apogeu do movimento. “Law is Power!” Esta poderia ser uma interpretação do legado realista, que encontraria reverberações no próprio movimento “Critical Legal Studies”” (MARTINS in VIEIRA, 2002, p. 226). 11 Levando os direitos a sério, p. 27-28. 12 coagidos pelo poder público – tais regras são identificadas por um procedimento formal, um teste de pedigree que determina quais regras realmente valem e quais regras são, ou não, regras jurídicas; a duas, o conjunto de regras abarca todas as possíveis situações de aplicação, de modo que, não se enquadrando determinada situação no âmbito das regras instituídas, o caso não será decidido por meio da aplicação do direito – ele será decidido pela autoridade pública mediante seu discernimento pessoal; e, a três, dizer que alguém tem uma obrigação jurídica é dizer que seu caso está dentro do quadro de uma regra jurídica válida; se esta inexiste, e o juiz decide por intermédio de seu poder discricionário nesses casos, um direito jurídico não está sendo aplicado, mas sim algo criado pelo juiz. A partir do positivismo jurídico, diz Habermas (2003, p. 251-252) que, só haverá segurança jurídica caso se demonstre a forma como os positivistas tratam os casos difíceis. Neles, é o mencionado recurso a um poder discricionário o grande problema do positivismo. Essa talvez seja a maior dificuldade dos positivistas, pois, não há como estabelecer hipóteses normativas para todos os casos, imaginados e inimagináveis, cedendo desta forma, ao decisionismo do juiz, que não levaria a uma segurança jurídica, se analisado, o fato da discricionariedade pautada em intimas convicções. Daí que a teoria da decisão judicial trabalhada por Dworkin (2002), se justifica por meio de uma possível superação do positivismo jurídico: O positivismo jurídico fornece uma teoria dos casos difíceis. Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o “poder discricionário” para decidir o caso de uma maneira ou de outra. Sua opinião é redigida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal idéia não passa de uma ficção. Na verdade, ele legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão. [...] no presente capítulo, vou descrever e defender uma teoria melhor. (DWORKIN, 2002, p. 127) É ela, portanto, que passaremos a analisar e que servirá de marco teórico ao presente trabalho. 5. RONALD DWORKIN E SUA TESE DOS DIREITOS Segundo Dworkin (2002), nos casos difíceis, o juiz tem o dever de descobrir os direitos das partes, não podendo inventar novos direitos e aplicá-los retroativamente. Para tanto, Dworkin faz uma distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, como forma de justificar que, quando o juiz decide em um caso difícil, ele não age como 13 legislador delegado. Os argumentos de política, segundo Dworkin (2002, p. 129), “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo.” Já os argumentos de princípio, “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo.” Conclui que, Sem dúvida, as decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de uma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípios, mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política. (DWORKIN, 2002, p. 130-131) Pois, o direito invocado “não mais depende de um argumento de política, pois a lei o transformou em uma questão de princípio.” (DWORKIN, 2002, p. 131) Já nos casos difíceis, defende Dworkin (2002), que as decisões devem ser geradas por princípios e não por política. Para fundamentar sua alegação, afirma que, em primeiro ponto, uma comunidade deve ser governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e, que responderão perante seus eleitores. Como os juizes não são eleitos, não responderão perante o eleitorado, como ocorre com os legisladores. Em segundo ponto, quando o juiz cria uma nova lei e a aplica de forma retroativa, a parte que por ela não é beneficiada, estará sendo punida por uma obrigação criada a posteriori. Segundo Dworkin (2002, p. 137), os juízes, assim como qualquer autoridade política se submetem à responsabilidade política, devendo “tomar somente as decisões políticas que possam justificar no âmbito de uma teoria política que também justifique as outras decisões que eles se propõem a tomar.” Essa doutrina rechaça a prática de decisões proferidas de forma isolada, pois, devem “fazer parte de uma teoria abrangente dos princípios e das políticas gerais que seja compatível com outras decisões igualmente consideradas certas.” Para Habermas (2003, p. 262), Dworkin trabalha a decisão judicial de forma a satisfazer o princípio da segurança e da pretensão de legitimidade do direito concomitantemente, ao estabelecer que, deve-se “fundamentar as decisões singulares a partir do contexto coerente do direito vigente racionalmente reconstruído”. Segundo Habermas (2003, p. 262), a coerência se dá através de “argumentos que revelam a qualidade pragmática de produzir um acordo racionalmente motivado entre participantes da argumentação.” Para Dworkin, nos dizeres de Habermas (2003), com os meios argumentativos para se reconstruir o direito de forma a dar-lhe validade e justificá-lo, torna-se possível satisfazer a compatibilidade entre determinações de objetivos políticos do legislador e dos princípios 14 jurídicos. Para desempenhar essa tarefa de reconstruir o direito, Dworkin cria a figura do juiz Hércules, pois, [...] é preciso pressupor um juiz cujas capacidades intelectuais podem medir-se com as forças físicas de um Hércules. O ‘juiz Hércules’ dispõe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao mesmo tempo, ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios argumentativos. [...] O espaço preenchido pela sobrehumana capacidade argumentativa de Hercules é definido, de um lado, pela possibilidade de variar a hierarquia dos princípios e objetivos e, de outro lado, pela necessidade de classificar criticamente a massa do direito positivo e de corrigir ‘erros’. (HABERMAS, 2003, p. 263) A criação da figura do juiz Hércules, segundo Habermas (2003, p. 276), foi alvo de objeção por alguns teóricos que entendiam que essa teoria “possuía um único autor – o próprio juiz, que escolheu Hércules como seu modelo.” Habermas (2003, p. 276) apresenta sua observação dizendo que: Dworkin oscila entre a perspectiva dos cidadãos que legitima os deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um privilégio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no caso em que a sua própria interpretação diverge de todas as outras. (2003, p. 276) Tais dizeres partem da presunção de que os juízes devem almejar garantir a integridade de suas decisões como participantes da comunidade jurídica, evitando uma decisão tida de forma solitária (monólogo). O objetivo de Dworkin foi o de se utilizar de uma figura de retórica; é óbvio que Hércules é inatingível, porém, ainda assim, ele permanece como um paradigma a ser buscado. Seu modelo, pois, não se opõe, aliás, pressupõe a necessidade de construir uma sociedade aberta de interpretes, como bem observou Peter Häberle ao dizer: A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados. Se se considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema ‘Constituição e realidade constitucional’ – aqui se pensa na exigência de incorporação das ciências e também nas teorias jurídico-funcionais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse público e do bem-estar geral -, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da ‘realidade constitucional’. (1997, p. 12) Apresentado pontos que demonstraram a falibilidade da teoria de Dworkin, ao supostamente defender a idéia solipsista de um juiz Hércules, Habermas (2003) quer 15 evidenciar que a idéia de validade de um juízo se dá a partir do preenchimento de suas condições discursivas: No entanto, para saber se estão preenchidas, não basta lançar mão de evidencias empíricas diretas ou de fatos dados numa visão ideal: isso só é possível através do discurso – ou seja, pelo caminho de uma fundamentação que se desenrola argumentativamente. (HABERMAS, 2003, p. 281) Ora, mas a própria crítica habermasiana [que parte dos estudos de Frank Michelman (1986)] acabará por perder a razão de ser, caso ele leve na devida conta a noção de direito como integridade e sua vinculação a uma comunidade de princípios na qual Hércules está devidamente inserido. A noção de direito como integridade, apresentada em O império do direito (199912), para que seja devidamente compreendida, deve ser analisada a partir de outro elemento que compõe a tese dos direitos de Ronald Dworkin, a idéia de romance em cadeia. Para Dworkin, seria possível uma analogia entre a interpretação no campo das artes, mais especificamente na literatura, e a interpretação jurídica. Diversas são as teorias da interpretação aplicadas às artes, e foram defendidas mais dessas teorias no campo da literatura do que no ramo do direito. Mesmo que não haja consenso entre os próprios críticos literários acerca do sentido da interpretação literária, e que nem todos esses debates sejam edificantes, esse estudo comparativo pode ser bastante enriquecedor. Estudantes de literatura fazem muitas coisas com o título de interpretação e hermenêutica e a maioria deles também é chamada de descobrir o significado de um texto. Na análise de Dworkin (2000, p. 220) não foram enfatizadas na literatura tentativas de se descobrir qual o sentido um autor quis dar a uma determinada palavra ou expressão, mas sim teses que ofereçam algum tipo de interpretação do significado de uma obra como um todo. Diante dessas teses o filósofo nos traz a hipótese estética, levantando a idéia de que “a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte” (DWORKIN, 2000, p. 221-222). Aqui cabe reforçar a real intenção de, no exercício da interpretação, se explicar a obra de arte como uma arte melhor, não se confundindo com transformá-la em outra13. Levando-se em conta o exercício da interpretação, à primeira vista é bem nítida a diferença entre o papel do artista na criação da obra e do crítico na interpretação posterior da mesma, mas uma segunda análise nos permite outras inferências. 12 Esta é, em verdade, a data de publicação da tradução brasileira. O original (Law’s empire) fora publicado em 1986. 13 Seria o exemplo, dado pelo próprio Dworkin, de não fazer da filosofia de Nieztsche um romance policial, nem da obra de Agatha Christie um tratado sobre a morte. 16 O artista não pode criar nada sem interpretar enquanto cria; como pretende criar arte, deve pelo menos possuir uma teoria tácita de por que aquilo que produz é arte e por que é uma obra de arte melhor graças a este, e não àquele golpe de pincel da pena ou do cinzel. O crítico, por sua vez, cria quando interpreta; pois embora seja limitado pelo fato da obra, definido nas partes mais formais e acadêmicas de sua teoria da arte, seu senso artístico mais prático está comprometido com a responsabilidade de decidir qual maneira de ver, ler ou compreender aquela obra a mostra como arte melhor. (DWORKIN, 2000, p. 235). Sendo a interpretação literária usada como modelo para a análise jurídica, Dworkin recorre ao exemplo de um exercício literário para demonstrar que a distinção artista/crítico pode ser derrubada em certas circunstancias. O exercício literário é a construção de um único romance por uma série de romancistas, sendo que cada integrante dessa cadeia acrescenta um capítulo por vez e essa ordem é determinada de maneira aleatória. No momento da criação, cada romancista deve ler e interpretar os capítulos escritos anteriormente e acrescentar o capítulo de sua autoria. Todos têm uma responsabilidade com o histórico já desenvolvido para a integridade da obra, ou seja, há um dever de escolher a interpretação que faça da obra em continuação a melhor possível. Mesmo o primeiro romancista possui limites na criação, diante de uma teoria da arte, que o orienta pelas formalidades do estilo literário escolhido. Decidir casos difíceis no direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário, diz Dworkin, e a semelhança ainda é maior quando juízes examinam e decidem casos do common law, nos quais o argumento gira em torno de quais regras ou princípios de direito estão por trás das decisões de outros juízes, no passado, sobre matéria semelhante14. A cada caso o juiz deve considerar-se parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, sendo composto pelo histórico de decisões, estruturas, práticas e convenções, dando continuidade e não mudando a direção segundo seu próprio julgamento. Por isto Hércules não está sozinho. Associando esse exercício jurídico à teoria eclética que Dworkin aplica às artes, o dever de um juiz é interpretar a história jurídica que encontra, não inventar uma história melhor. Quando uma lei ou qualquer outro instrumento jurídico faz parte da história institucional, a intenção do autor fará seu papel, mas essa intenção não poderá exercer influência no momento da escolha dentre os possíveis sentidos de um sentido adequado à aplicação no caso concreto. Quem quer que tome essa decisão deverá fazê-la como uma 14 Refuta-se, enfaticamente, pois, qualquer concepção que veja como inaplicável a teoria de Dworkin ao sistema brasileiro de civil law. Em primeiro lugar, porque a tese dos direitos de Dworkin estabelece postulados de um Estado Democrático de Direito extensíveis a ordens jurídicas diversas que, concretamente, os estabelecem segundo sua identidade constitucional, como o próprio Habermas deixa entrever; em segundo lugar, porque a própria distinção entre ordenamentos de common law e ordenamentos de civil law tem perdido terreno. Ora, pensemos que estamos aqui a criticar a edição de uma súmula vinculante... 17 questão de teoria política. Já que não existe um algoritmo15 que determina se a interpretação escolhida é adequada ou não à história institucional do direito, os juízes podem fazer uso de uma doutrina do erro, que autoriza a desconsideração de equívocos no curso de formação da mencionada história institucional. O senso de qualquer juiz acerca da finalidade ou função do Direito, do qual dependerá cada aspecto de sua abordagem da interpretação, incluirá ou implicará alguma concepção da integridade e coerência do Direito como instituição, e essa concepção irá tutelar e limitar sua teoria operacional de ajuste – isto é, suas convicções sobre em que medida uma interpretação deve ajustar-se ao Direito anterior, sobre qual delas, e de que maneira. (DWORKIN, 2000, p. 241) A proposta de Dworkin do direito como um empreendimento que deve ser assumido como um romance em cadeia ganha corpo a partir de sua concepção do direito como integridade. 6. DWORKIN E O DIREITO COMO INTEGRIDADE A análise da obra de Ronald Dworkin que deságua em sua concepção do direito como integridade só pode ser devidamente feita a partir de uma diferença tão importante quanto àquela entre princípios e regras, a diferença entre argumentos de princípio e argumentos de política. É ela que dá o tom normativo ao empreendimento do romance em cadeia. A crítica de Dworkin ao positivismo jurídico é uma crítica ao poder discricionário dos juízes. O juiz que se utiliza do poder discricionário, legisla novos direitos e os aplica retroativamente. Para Dworkin16, mesmo se não houver nenhuma regra para o caso, uma das partes ainda detém o direito de ganhar a causa. O suposto de que os juízes legislam quando tomam decisões para além das fronteiras de decisões políticas tomadas por outras pessoas esconde a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política. Argumentos de política justificam uma decisão política demonstrando que ela protege alguma meta coletiva. Argumentos de princípio justificam uma decisão na medida em que mostram que ela respeita direitos de indivíduos ou grupos. O Poder 15 Daí não se poder falar que o ideal de integridade é um método à semelhança do princípio da proporcionalidade; muito além desta armadilha própria da filosofia da consciência, Dworkin está interessado na assunção de uma perspectiva hermenêutica pelo juiz. 16 “[...] uma vez que abandonemos tal doutrina [a positivista] e tratemos os princípios como direito, colocamos a possibilidade de que uma obrigação jurídica possa ser imposta por uma constelação de princípios, bem como por uma regra estabelecida. Poderemos então afirmar que uma obrigação jurídica existe sempre que as razões que sustentam a existência de tal obrigação, em termos de princípios jurídicos obrigatórios de diferentes tipos, são mais fortes do que as razões contra a existência dela.” (DWORKIN, 2002, p. 71). 18 Judiciário dirime controvérsias sobre direitos, não sobre políticas. Duas objeções podem ser opostas à originalidade de decisões judiciais em casos difíceis. Em primeiro lugar, o governo é limitado pela responsabilidade de seus ocupantes, que são eleitos pela maioria. Em segundo lugar, criando um direito novo, o juiz pune a parte sucumbente, uma vez que o aplica de forma retroativa. Em se tratando de decisões fundadas em argumentos de política, as objeções ganham força: as decisões nesta seara devem ser geradas por intermédio de um processo político que leve na devida conta os diversos interesses antagônicos. Além disso, é fácil verificar o quão errado significa tomar os bens de alguém em nome de melhorias para, por exemplo, a eficiência econômica. A questão ganha contornos diversos quando tomada com base em princípios. Nesse caso, o demandante teria o direito de ser compensado. As objeções, desse modo, não constituem mais um problema: a uma, porque um argumento de princípio nem sempre se fundamenta na busca pela equivalência de diversos interesses em conflito. E, a duas, se o demandante possui algum direito, é porque o réu tem para com ele alguma obrigação e isto não se constitui a partir de uma argumentação política do tribunal. “Se o demandante tem de fato o direito a uma decisão judicial em seu favor, ele tem a prerrogativa de poder contar com tal direito” (DWORKIN, 2002, p. 134). A partir de tal diferença é que Dworkin constrói seu ideal de integridade. Os processos judiciais sempre suscitam três tipos de questões: questões de fato, questões de direito e questões de moralidade política, ou seja, o que ocorreu, qual a lei aplicável e se há justiça nesse ditame. É justamente sobre as questões de direito que se torna necessário aclarar seu verdadeiro sentido: que tipo de divergência surge quando juízes discordam sobre qual a lei aplicável a um caso? Para Dworkin (1999, p. 6 e ss), a verdade ou falsidade de uma proposição jurídica (as afirmações que as pessoas fazem sobre o que a lei permite, autoriza ou proíbe) está ligada a uma divergência teórica sobre o direito, ou seja, é uma divergência sobre os fundamentos do direito. Daí ser necessário ampliar o argumento jurídico no sentido de identificar seu papel na cultura entendida de forma ampla. As pessoas, numa sociedade, de fato debatem sobre as melhores interpretações de práticas e tradições e, quando o fazem, estão discutindo acerca do que tais práticas e tradições realmente requerem. Por exemplo, uma regra de cortesia que exige que os camponeses retirem o chapéu diante dos nobres pode sujeitar-se, em dado momento, ao teste de significado, ou seja, deve ser vista e reestruturada em sua melhor luz. Essa mudança ocorre porque a prática interpretativa é ela mesma um processo: uma nova forma sugerida de demonstrar deferência aos nobres ou uma crítica a tal atitude surge a partir de uma interpretação anterior, contudo, 19 modificando-a, num verdadeiro romance em cadeia. É essa a importância da atividade interpretativa a que Dworkin (1999, p. 86) dará o nome de interpretação construtivista. Esse tipo de interpretação essencial à apresentação do direito em sua melhor luz é que é olvidado por teorias que Dworkin chama de convencionalismo e pragmatismo. Dentro do convencionalismo, a preocupação essencial é a de que as decisões atuais estejam fundadas em decisões do passado, ou seja, que direitos estejam explícitos em convenções (é o que prega o positivismo jurídico). Já o pragmatismo defende que os juízes devem tomar suas decisões preocupados com o futuro e apenas com ele, orientando-se mais por políticas do que por princípios (seria a proposta do Critical Legal Studies norte-americano). Dworkin quer propor uma alternativa a essas duas propostas: essa concepção pressupõe um certo tipo de comunidade política, que abraça algumas virtudes escolhidas por Dworkin (1999, p. 200) arbitrariamente, mas procurando refletir os padrões mais básicos da política comum: imparcialidade, justiça e devido processo legal. Um outro ideal deve ser acrescido e ele costuma ser traduzido na conhecida máxima de que casos semelhantes devem ser tratados de maneira parecida. Ele “[...] exige que o governo tenha uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, para estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e eqüidade que usa para alguns” (DWORKIN, 1999, p. 201). Dworkin dá ao “clichê” do igual tratamento o título de integridade política. Do mesmo modo que devemos, na moralidade pessoal, agir de forma íntegra para com as pessoas com as quais nos relacionamos, o Estado deve incorporar esse ideal, deve ser personificado nesse sentido positivo. Igual respeito e consideração: essa é a exigência básica do ideal da integridade. Trata-se da “norma fundamental” de sua teoria, para dizer com Habermas (1997, p. 277). É ela que está presente em uma comunidade de princípios. O positivismo jurídico é um modelo adequado para um tipo específico de comunidade que se guia por um ideal diferente da integridade: o ideal da eficiência econômica. Este visa realizar as preferências da comunidade em geral. Conservadores e partidários da pragmatismo comungam dessa “virtude”. A maximização do bem comum é o fim das próprias normas jurídicas e são esses argumentos de política que ignoram a real natureza de um direito. Essa comunidade tem como cidadãos concorrentes numa economia de mercado: eles devem competir para que suas preferências sejam, no fim das contas, satisfeitas. Não é isso o que ocorre numa comunidade guiada pelo ideal da integridade. A integridade nas decisões judiciais requer que os juízes tratem o direito como um todo como se ele expressasse um conjunto coerente de princípios; daí que é possível encontrar 20 normas implícitas entre e sob as normas explícitas. O direito segundo a integridade estabelece que os litigantes têm direito a uma resposta correta por parte dos juízes. Isso significa que a integridade não atende somente a um requisito estreito de coerência: ela pode exigir, algumas vezes, que, na realização do sistema de princípios, haja, efetivamente, um rompimento com o passado. Mas tal rompimento só é possível em termos de princípios, não de políticas. Daí ser inútil perguntar se os juízes descobrem ou inventam o direito: eles fazem as duas coisas e nenhuma delas ao mesmo tempo (DWORKIN, 1999, p. 271). O princípio da integridade nas decisões judiciais pede aos juízes que interpretem o material disponibilizado pela comunidade personificada. Daí que o romance em cadeia seja para o ideal da integridade a metáfora mais adequada. Juízes são autores e críticos de um romance escrito ao longo de uma história institucional. Não se trata de uma obra “organizada”: o romance deve parecer, aos olhos dos “leitores-destinatários”, como o fruto do trabalho de um único autor, a comunidade de princípios. 7. IMPROPRIEDADE E INCOERÊNCIA DOS ARGUMENTOS PARA A EDIÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 5 Depois de expor e examinar a teoria de Dworkin sobre o tipo de argumento apto a fundamentar uma decisão judicial, bem como o modo como deve ser encarada a prática judicial, chega o momento de refletirmos se a Súmula Vinculante nº 5, que dispensa a presença da defesa técnica no processo administrativo, guarda em si razões de direito e coerência interna capaz de sustentar um comando normativo ou, se ao contrário, se firma a partir de um juízo de valor sobre o que seria “melhor” para a comunidade. Considerando o conjunto de argumentos do voto vencedor e dos demais votos que o seguiram, temos a impressão que a proposição normativa, que se depreende do verbete vinculante encontra sérias dificuldades de se sustentar quando se tem em vista concepções normativas que se encontram articuladas na estrutura lógica da justificação própria do raciocínio jurídico. A fundamentação jurídica de decisões judiciais exige, para sua validade, uma interpretação coerente que seja capaz de articular a moralidade pessoal do juiz implícita no seu argumento e a moralidade institucional abraçada por uma comunidade de princípios. Essa atitude hermenêutica consubstanciaria o direito como integridade e, conseqüentemente, refutaria o convencionalismo, bem como o pragmatismo enquanto teorias interpretativas. Ora, pela qualidade das razões que sustentam a súmula vinculante, não temos dúvida que os Ministros do Supremo Tribunal Federal estão comprometidos com pragmatismo 21 jurídico enquanto visão conceitual. Como conseqüência dessa visão, o que fundamenta uma decisão judicial são razões de eficiência econômica. Assim, a interpretação jurídica adotada pelos Ministros parte do pressuposto que a decisão tomada se justifica por si só, dispensandose a formação de uma história institucional que orientava justamente no sentido contrário e obedecendo apenas à lógica do que seria mais ou menos eficiente (pense-se no argumento do Ministro Carlos Britto a respeito do assoberbamento da Defensoria Pública). Ao se dispensar a defesa técnica em processo administrativo, o Supremo Tribunal Federal não leva em conta que as normas e os princípios processuais constitucionais (art. 5º, inc. LV, e 133), que têm por objetivo garantir ao cidadão a possibilidade de atuar na ampla defesa de seus direitos. A decisão passa a ser fruto de um compromisso entre concepções de justiça subjetivas contraditórias, não que respondendo a uma concepção coerente do significado do princípio jurídico da ampla defesa. Ante ao exposto, sumariamente, podemos afirmar que os tais preceitos constitucionais integram as condições de possibilidade de uma sociedade democrática em que os atos de coação estatal devem ser justificados de acordo com princípios. Se não estamos equivocados, de acordo com a lógica própria da racionalidade das decisões judiciais, o Supremo Tribunal Federal não pode subverter o princípio da ampla defesa nos processos administrativos sem abrir uma contradição no sistema como um todo. Assim, se concordarmos que o cidadão leigo (servidor ou não), no quadro de complexidade jurídica atual, em princípio não possui todas as armas de atuação a permitir a defesa de seus direitos tecnicamente, nenhum argumento de política pode impedir ou mitigar o direito à defesa técnica, de tal modo que os princípios processuais constitucionais devem ser lidos no sentido de garantir sempre a participação eficiente dos destinatários do enunciado normativo17. Descortina-se dos argumentos apresentados até aqui que a interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal Federal na edição da Súmula Vinculante nº 5 evidencia uma tentativa imoral de redução do direito às estruturas e à metodologia do pragmatismo, na medida em que não são princípios a justificar o raciocínio jurídico, mas, ao contrário, políticas. Por isso afirmamos que os membros daquela Corte estão presos, ainda, a um modelo de comunidade de fato (DWORKIN, 1999, p. 213 e ss) em que os membros não se vêem 17 “O Supremo Tribunal Federal não pode subverter o princípio da ampla defesa nos processos administrativos, como se a constitucionalização deste princípio autorizasse o STF a desnaturalizar tal princípio a ponto de esvaziá-lo totalmente. O cidadão leigo (servidor ou não), no quadro de complexidade jurídica atual, em princípio não possui competência de atuação a permitir a defesa de seus direitos tecnicamente e nenhum argumento de eficiência pode obscurecer essa realidade que a Súmula 5 tenta encobrir. Não há garantia de “acesso à justiça” sem advogado competente, e isso por uma questão de garantia do princípio da igualdade” (NUNES e CATTONI DE OLIVEIRA, 2008, p. 2). 22 como co-partícipes do mesmo empreendimento, o que justificaria a postura estratégica, isto é, um comportamento balizado por acordos de tipo contratual quando decidem sobre o que é o direito18. Diferentemente da postura dos Ministros, não podemos admitir, se tivermos em mente uma comunidade que se une em razão de princípios comuns, que o Judiciário, enquanto instituição competente para dizer o direito, possa ainda agir sem tomar com igual respeito e consideração todos os cidadãos. Finalizando, a interpretação judicial deve refletir, da maneira mais coerente possível, os princípios de imparcialidade, justiça e devido processo legal; para tanto, a integridade deve fazer parte da prática judicial. Por último, é importante que se diga que, a integridade não se reduz a coerência do ordenamento jurídico. Ela vai além, pois exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e imparcialidade (DWORKIN, 1999). 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou reconstruir a problemática adoção pelo Supremo Tribunal Federal da Súmula Vinculante nº 5. Se a inserção do instituto da súmula vinculante no Brasil não se deu sem críticas em vista de um maior engessamento da interpretação jurídica, é preciso reconhecer que sua adoção depende sim de um amadurecimento da temática tratada em cada verbete. Não é à toa que o art. 103-A da Constituição da República fala em “[...] após reiteradas decisões em matéria constitucional [...]”, como lembraram os próprios Ministros do 18 Para Dworkin (2003, p. 252 e ss), uma comunidade básica deve aceitar o ideal de reciprocidade como parte das obrigações que devemos uns aos outros. Se a comunidade básica se rege pela reciprocidade e aceita a fraternidade nas obrigações dos membros, uns em relação aos outros, é preciso saber, interpretativamente, em que sentido podemos defini-la com mais propriedade. “Dworkin apresenta três modelos. O primeiro seria o de uma comunidade de fato: os membros vêem a associação tão-somente como um acidente de fato, histórica ou geograficamente; eles possuem uma atitude egoísta e não se preocupam com seus concidadãos e com os rumos gerais da comunidade. Daí que o primeiro modelo não satisfaz nem a primeira condição de uma comunidade de básica de que os membros devam se sentir obrigados de uma forma especial com os outros membros diretamente relacionados. O segundo modelo é o de uma comunidade de regras: os membros aceitam um compromisso geral de obedecer a regras estabelecidas de um certo modo que é específico da comunidade. Têm eles em mente, contudo, que suas obrigações se reduzem às regras previamente dadas (esse modelo está vinculado ao convencionalismo). Tal modelo satisfaz as duas primeiras condições de uma comunidade básica, mas não satisfaz a terceira, já que o não há um interesse de cada um no bem-estar de todo o grupo. Subjaz a esse modelo a já mencionada virtude da eficiência econômica: as pessoas apenas cumprem as decisões tomadas no passado porque obtêm dela algum benefício, contudo não se trata de uma vantagem ligada à própria fraternidade. O terceiro modelo, por sua vez, é o de uma comunidade de princípios: os membros de uma comunidade política genuína são governados por princípios comuns e não apenas por regras. A política é uma arena de debate sobre as melhores concepções acerca da justiça, da imparcialidade e do devido processo legal. Os direitos e deveres políticos são provenientes de um sistema de princípios por todos endossado no qual são baseadas as decisões políticas dos juízes e legisladores” (MEYER, 2008, p. 332-333). 23 STF. De mais a mais, o Superior Tribunal de Justiça havia acabado de editar súmula em sentido oposto, o que demonstra, mais uma vez, não estar preocupado o Supremo Tribunal Federal em ser mais um autor do romance em cadeia de definição do significado normativo constitucional da ampla defesa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O discurso científico na modernidade: o conceito de paradigma é aplicável ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. DWORKIN, Ronald. 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