CONGRESSO BRASILEIRO DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA. SÃO PAULO, 2001. AVALIAÇÃO CLÍNICO-LABORATORIAL DO EIXO HIPOTÁLAMO-HIPÓFISEOVARIANO. Lucas Vianna Machado Prof. Titular de Ginecologia da Faculdade de Ciências Médicas de MG. Toda a fisiologia da reprodução está voltada para a liberação periódica de um óvulo apto a ser eventualmente fecundado e tem como objetivo final a perpetuação da espécie. Para que isto aconteça é necessário uma adequada função ovariana, onde a ovulação e secreção de esteroides sexuais ocorram de uma maneira regular, pulsátil e finamente sincronizada. Estes eventos dependerão da presença de uma população folicular adequada, que obedecerá a estímulos específicos de outros centros que integram o chamado eixo cortex-hipotálamohipófise-ovário, ou simplesmente, hipotálamo-hipófise-ovário (H-H-O). Este eixo, por sua vez, é modulado e sincronizado por delicados mecanismos de interação, que envolvem emoções; neurotransmissores como dopamina, noradrenalina, serotonina, GABA, endorfinas e outros menos importantes; fatores liberadores ou inibidores hipotalâmicos como GnRH, TRH, PIF; hormônios hipofisários como gonadotrofinas, prolactina, ACTH, TSH, GH; insulina, IGF-I e IGF-II; proteínas carreadoras tipo SHBG e IGFBP-1; esteroides ovarianos e da supra-renal; enzimas específicas que atuam em cada passo da esteroidogênese ovariana e supra-renal; receptores hormonais; prostaglandinas; relações intrácrinas, autócrinas e parácrinas mediadas por diversos fatores de crescimento e de transformação; activinas e inibinas; citocinas; além de uma adequada função hepática e de um peso corporal próximo do ideal, não muito magro, nem muito gordo (IMC entre 20 e 25). Esta enorme lista de fatores que interferem direta ou indiretamente na função do eixo reprodutivo é certamente incompleta. Muitos não foram citados e outros tantos sequer descobertos. À medida que as ciências básicas forem avançando, novos conhecimentos da fisiologia reprodutiva serão incorporados e novos mecanismos de atuação serão descritos. Por exemplo: um dos maiores avanços no campo do controle metabólico da massa corpórea, foi a identificação do ob-gene e sua proteína codificada - proteína OB ou leptina. Esta é uma proteína solúvel produzida principalmente pelos adipócitos, que circulam ligadas a proteínas carreadoras em concentrações positivamente correlacionadas aos índices de massa gordurosa. A leptina é tão somente mais um fator dentre outros que ainda surgirão, e que contribuirão, em maior ou menor escala, para desencadear ou perpetuar uma disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano. . 1 Uma alteração em qualquer destes elementos poderá resultar na função inadequada do eixo, levando a uma secreção inadequada dos esteróides, com eventuais manifestações clínicas como insuficiência lútea, distúrbios menstruais, amenorreia, anovulação, hiperandrôgenismo, hiperprolactinemia, etc. É importante salientar que as funções específicas do ovário – ovulação e secreção - não são independentes ou autônomas. Ao contrário, são absolutamente integradas e coordenadas, pois, para que ocorra a ovulação será necessária a secreção do estradiol pelo folículo dominante em um preciso momento, em quantidades e duração adequadas, que permitam, através dos mecanismos de feedback, a liberação do pico ovulatório do LH. É portanto, o folículo dominante, mais precisamente, o estradiol por ele secretado, que irá reger a sincronização do ciclo reprodutivo. Da mesma forma, não ocorrendo a ovulação, não haverá uma secreção adequada dos esteroides ovarianos. Esta visão unitária é fundamental, porque delimita e simplifica a compreensão da fisiopatologia da reprodução, que encontra-se centrada na função ovariana e estará resumida a duas situações básicas: 1- secreção inadequada de esteróides, representada pela insuficiência lútea e 2- anovulação. Se tomarmos por exemplo uma mulher fértil e criarmos artificialmente uma situação de elevação progressiva da prolactina através da administração de sulpiride, ou a submetermos a uma atividade física intensa e prolongada, ou a um regime drástico de perda de peso ou ainda administrarmos doses suprafisiológicas de androgênios, veremos que ela iniciará um quadro de insuficiência lútea, evoluindo para a anovulação, irregularidades menstruais e finalmente a amenorreia. Esses quadros representam estágios evolutivos de um mesmo processo fisiopatológico, que interfere, em grau maior ou menor, com uma adequada sincronização e função do eixo H-H-O. Para chegarmos ao diagnóstico etiológico preciso de uma alteração deste eixo, teremos que identificar exatamente em que nível encontra-se o distúrbio, ou seja, se a causa é hipotalâmica, hipofisária, ovariana ou uterina. A etapa mais avançada deste bloqueio progressivo do eixo é representada clinicamente pela amenorréia, portanto, podemos afirmar que a avaliação clínicolaboratorial do eixo H-H-O é exatamente a mesma utilizada no diagnóstico etiológico das amenorreias. As pacientes amenorreicas se apresentam freqüentemente com uma aparência normal, sem chamar a atenção para qualquer problema. Entretanto, poderemos antecipar algum distúrbio endócrino ao depararmos com uma paciente extremamente magra ou gorda, alta ou baixa, com excesso de pêlos, com um comportamento que sugira um distúrbio psicológico ou um “stress” emocional. Na anamnese, é importante indagar sobre o ambiente familiar, a história de distúrbios semelhantes aos da paciente em outros membros da família, se existem casos de anomalias físicas ou genéticas, o estilo de vida da paciente, tipo e intensidade da atividade física, o uso de drogas que possam interferir no SNC, e fundamental, afastar a possibilidade de gravidez atual. O exame físico, de início ressaltará a presença ou ausência dos caracteres sexuais secundários bem como a eventual presença de uma genitália ambígua. O 2 exame ginecológico poderá antecipar uma anomalia do desenvolvimento dos canais de Müller ou a presença de um hematocolpo (neste caso, uma criptomenorréia). Estes achados já nos fornecem pistas de atalhos para o diagnóstico etiológico, porém, não estando presentes, o que geralmente acontece, teremos que seguir um roteiro semiótico racional. Poderemos assim identificar com precisão, o nível e a causa da suspensão da menstruação na imensa maioria dos casos, utilizando recursos relativamente simples, com poucas dosagens hormonais e disponíveis na maioria dos locais de atendimento. É importante seguir a seqüência propedêutica passo a passo, sem fugir ou inverter a sua ordem, para que não nos percamos no meio de um labirinto de testes, exames e aparelhos sofisticados. O primeiro passo consiste em dosar a prolactina e eventualmente o TSH, seguido pelo teste do progestogênio. A dosagem inicial da prolactina se justifica pelo fato de um terço das pacientes amenorreicas apresentarem hiperprolactinemia. Alias, a dosagem da prolactina deverá ser solicitada em todos os casos de distúrbios menstruais e infertilidade. A dosagem do TSH poderá indicar um quadro subclínico de hipotireoidismo, mas não peça obrigatoriamente em todos os casos. Veja o “jeitão” da paciente. Se relatar tendência a engordar ou dificuldade em perder peso, desânimo, queda de cabelos, pele seca, desconfie e peça o TSH, caso contrário, não peça, ou por via das dúvidas, faça um tratamento de prova com o T4. Caso a prolactina esteja elevada, peça simplesmente uma radiografia de perfil da sela turca. Tomografia computadorizada ou ressonância magnética, embora exames fantásticos, não são imprescindíveis, pois a hiperprolactinemia é um quadro de simples manejo e de ótimos resultados terapêuticos Os tumores representam a principal causa das amenorréias hipofisárias e a nossa preocupação se volta especificamente para a sua identificação. Quando o tumor é volumoso, o seu crescimento irá provocar sintomas e sinais indicativos da sua presença, como cefaléia, perturbações visuais (hemianopsia, diplopia, diminuição do campo visual), hipertensão craniana. Esta sintomatologia já é o suficiente para que encaminhemos a paciente para o neurologista ou neuro-cirurgião, sem nos empenharmos em filigranas semióticas. Deixem isto para eles. Porém, na imensa maioria das vezes estaremos diante de tumores pequenos ,ou microadenomas (menores que 1cm), a maioria dos quais se expressam somente por uma hiperprolactinemia responsável pela amenorréia. Todos os tipos de células encontradas na hipófise podem dar origem a um adenoma: adenoma eosinófilo secretor de GH levando ao gigantismo ou acromegalia, adenoma basófilo secretor de ACTH dando origem a síndrome de Cushing ou secretor de LH, adenoma produtor de prolactina (prolactinoma). Muitos destes adenomas, particularmente os responsáveis pela acromegalia, cursam também com níveis elevados de prolactina. A maioria destes tumores são detectados no primeiro passo da avaliação das amenorréias, pela dosagem da prolactina, e se elevada, complementada pela radiografia simples em perfil da sela turca. 3 Mas os grandes avanços tecnológicos, especialmente no campo de imagens, como a tomografia computadorizada e ressonância magnética, não deveriam ser empregados em substituição ao raio x simples? No meu ponto de vista, solenemente, não. A imensa maioria dos tumores crescem muito lentamente (quando crescem), são absolutamente benignos, muitas vezes assintomáticos e necessitam apenas acompanhamento clínico. Houve no final dos anos 60 e início da década de 70, uma coincidência temporal da introdução na clínica da dosagem da prolactina, com a acuidade da tomografia computadorizada em identificar os microadenomas e da via trans-esfenoidal na abordagem cirúrgica do tumor, o que levou a uma verdadeira epidemia de cirurgias trans-esfenoidais. A palavra de ordem era fazer o diagnóstico o mais precoce possível e submetê-las à cirurgia. Nesta mesma época, surgiram os agonistas da dopamina, que bloqueavam eficientemente a prolactina, reduzindo a à níveis fisiológicos ou próximos deles, além de reduzirem rapidamente micro e macro-adenomas, suspendendo a galactorreia e retornando a menstruação e a fertilidade. Ora, se não se opera mais micro adenoma nem macro adenoma e o tratamento é invariavelmente medicamentoso ou simplesmente a vigilância clínica, para que a necessidade de se usar métodos diagnósticos tão sensíveis quanto caros? Vale a pena repetir Leon Speroff (1999): - “Se o tratamento e conduta não são diferentes, não é necessário documentar a presença de um microadenoma. Revisões contemporâneas assinalam os inconvenientes da chapa simples de perfil da sela turca, citando a limitação de se excluir somente macro-adenomas. De fato, revisões do nosso texto tem culpado este capítulo de ser menos que o “estado da arte”, enfatizando que onde nós usamos a chapa simples, a ressonância magnética deveria ser uniformemente obtida. Nós argumentaríamos que o “estado da arte’ é usar a ressonância magnética quando necessária, afim de evitar a compulsão de documentar a presença de um microadenoma pelas razões citadas acima. Isto toma força de convicção quando o seu radiologista relata que a chapa simples não é suficiente”. Outro grande inconveniente das técnicas avançadas de imagem é o número elevado de lesões descobertas em pacientes assintomáticas, reproduzindo em vida os achados comuns de necrópsias. Foi inclusive cunhado um nome pomposo para estes achados: incidentaloma hipofisário. Qual a vantagem senão criar ansiedades e expectativas pessimistas, além dos gastos com mais investigações também desnecessárias. O teste do progestogênio consiste na administração da progesterona ou um progestogênio oral por 5 a 10 dias. Aguarda-se um período de 7 a 14 dias para ver se a paciente irá menstruar ou não. Geralmente o sangramento ocorrerá dentro de 3 a 7 dias, mas às vezes pode demorar até duas semanas, devido ao fato do próprio progestacional poder desencadear a ovulação, caso haja níveis estrogênicos satisfatórios. Já acompanhei algumas pacientes inferteis em que foi prescrito o progestogênio para provocar a menstruação, para em seguida iniciar o clomifeno e elas não menstruaram, tendo a investigação subsequente confirmado uma gravidez. Ocorrendo a menstruação, podemos concluir: que a paciente não 4 está grávida, que não há uma obstrução do trato genital inferior, que o endométrio foi estimulado por níveis adequados de estrogênios, que se os ovários produziram estrogênios é porque houve um estímulo adequado de FSH e LH pela hipófise, que por sua vez foi adequadamente estimulada pelo GnRH hipotalâmico, ou seja, todo o eixo hipotálamo-hipófise-ovário encontra-se íntegro e funcionante, porém de uma maneira acíclica. Isto significa um quadro de anovulação crônica, e não me peçam uma ultra-sonografia para comprovar a presença dos ovários policísticos (isto é pleonasmo). O diagnóstico está fechado. Parta direto para as opções terapêuticas ditadas pelos objetivos da paciente. Se o sangramento for muito discreto, apenas uma borra, repita o teste. Se não sangrar, desconsidere a anovulação crônica temporariamente e considere o teste como negativo, o que significa que a causa pode ser hipotalâmica, hipofisária, ovariana ou úterocanalicular. O passo seguinte será testar o endométrio e trato genital inferior, através de um ciclo artificial, utilizando-se os hormônios ovarianos. Empregam-se doses de 1,25 mg de estrogênios conjugados ou 2mg de estradiol, durante 20 a 30 dias, associados a 5 ou 10 mg de medroxiprogesterona nos últimos 7 a 10 dias. Aguarda-se uma semana o aparecimento da menstruação. Se não houver sangramento, significa que a causa está no órgão terminal, útero e trato genital inferior. Por segurança, deve-se repetir outra série, porque o endométrio poderia estar tão inativo que levaria um tempo maior para ser estimulado. Confirmado a ausência da menstruação, limitaremos a investigação às causas de amenorréia deste compartimento. Na ocorrência do sangramento, afastam-se as causas do órgão terminal, permanecendo as causas ovarianas, hipofisárias e hipotalâmicas. À seguir, dosamos o FSH e o LH, tomando-se o cuidado de aguardar um mês após a série dos hormônios ovarianos, para que os mesmos não interfiram no mecanismo de feedback negativo, alterando a interpretação do resultado. A dosagem do FSH é mais sensível por estar sempre mais elevada que o LH, mas este eventualmente poderia detectar casos de deficiência isolada do LH. As dosagens apontarão três possibilidades: gonadotrofinas elevadas, normais ou baixas. É sempre aconselhável repetir a dosagem, pois dela dependerá toda a orientação diagnóstica e terapêutica subsequente. Gonadotrofinas elevadas caracterizam um quadro de hipogonadismo hipergonadotrófico e apontam o ovário como o órgão responsável pela amenorréia. Se as gonadotrofinas estiverem baixas (menor que 5 mUI/ml), a causa será central, limitada à hipófise ou hipotálamo. Entretanto, freqüentemente as gonadotrofinas se encontrarão dentro dos limites normais, o que aparentemente atrapalha ou confunde a interpretação clínica. Na realidade, este resultado deve ser interpretado como gonadotrofinas baixas, pois se realmente fossem normais, os ovários produziriam estrogênios, que proliferariam o endométrio e este teria descamado por ocasião do teste do progestogênio. A explicação deste fato paradoxal se deve à heterogeneidade das moléculas dos hormônios glicoprotéicos. As gonadotrofinas produzidas por estas pacientes amenorreicas são ricas em acido siálico em sua porção carbohidrato e quanto 5 maior a quantidade deste acido, mais rápido será o clearance das gonadotrofinas, tornando estas moléculas biologicamente inativas, embora reconhecidas pelo radioimunoensaio. Na realidade as gonadotrofinas, como a prolactina, são formadas por uma família de várias moléculas de atividades biológicas e imunológicas diferentes e suas concentrações variam no próprio ciclo menstrual. O mesmo fato explica os casos de hiperprolactinemia em pacientes sem galactorreia e amenorréia, pois a elevação pode ser devida a forma Big-Big que é biologicamente inativa. Resta então separar, entre os casos de gonadotrofinas baixas ou mais freqüentemente normais (que devem ser interpretadas como baixas, desde que precedidas pelo teste do progestogênio), as causas hipofisárias e hipotalâmicas. Do ponto de vista acadêmico, isto poderia ser feito pelo teste de estimulação pelo GnRH. A injeção de 100µg de GnRH deveria elevar os níveis séricos de LH e FSH, caso a etiologia fosse hipotalâmica, mostrando uma resposta hipofisária normal. A elevação máxima é observada aos 15 a 30 minutos para o LH e 30 a 45 minutos para o FSH. Não havendo elevação das gonadotrofinas, a causa seria hipofisária. Na prática entretanto, as coisas não correm tão certinho assim. A magnitude da resposta é diretamente proporcional aos níveis basais das gonadotrofinas. Somente pacientes com suposta etiologia hipotalâmica da amenorréia com níveis baixos, mas próximos do normal, mostram às vezes uma resposta aumentada ao GnRH, comparadas com as de níveis mais baixos. Portanto, na prática, este teste não é confiável e não deve ser solicitado. Mas então como separar uma causa hipotalâmica de uma hipofisária? Pelo raciocínio clínico e pela observação. O primeiro dado importante é que as causas hipotalâmicas são muito mais freqüentes que as causas hipofisárias, não se acham ligadas a patologias graves do SNC e geralmente resolvem espontaneamente à médio e longo prazos. Pensar então, em primeiro lugar, nesta possibilidade (segundo o conselheiro Acácio, o mais freqüente acontece mais vezes). As causas hipofisárias mais freqüentes são os tumores, a maioria dos quais estão associados a uma prolactina elevada, mesmo não sendo exatamente um prolactinoma. Estes já foram excluídos, em princípio, no primeiro passo da investigação. Outras causas são raríssimas e a “síndrome de Sheehan” tão óbvia na sua apresentação clínica e pela história de choque hemorrágico pós-parto ou pós-aborto, que 2 neurônios são suficientes para diagnosticá-la. Portanto, não encontrando um tumor hipofisário, a causa provavelmente será hipotalâmica. A observação do caso poderá eventualmente revelar, em revisões subsequentes, uma elevação da prolactina ou mesmo um microadenoma hipofisário. Nestas eventualidades, peçam desculpas ao hipotálamo e responsabilizem a hipófise. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 6 Machado, LV. Endocrinologia Ginecológica. MEDSI. Rio de Janeiro, 2.000. 7