a queda do gênero neutro do latim

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Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
A QUEDA DO GÊNERO NEUTRO DO LATIM:
QUESTIÚNCULAS SOBRE A DIVERGÊNCIA
ENTRE O GÊNERO REAL E O GÊNERO GRAMATICAL
Thiago Soares de Oliveira (UENF)
[email protected]
RESUMO
Considerando que, em latim, não havia uma lógica de emprego do neutro, essa categoria de gênero desapareceu, deixando apenas traços no português moderno. A partir
dessa discussão introdutória, este artigo objetiva refletir sobre a extinção do gênero
neutro da língua latina, pontuando as questiúnculas relativas às divergências causadas
pela necessidade de diferenciação entre o gênero real dos seres e o gênero gramatical
que lhes é atribuído. Para tanto, adota-se a pesquisa bibliográfica, a partir da consulta
tanto a obras impressas quanto a digitais, como metodologia construtiva da base teórica
necessária à articulação das concepções trazidas pelos diversos estudiosos acerca do gênero neutro latino.
Palavras-chave: Letras clássicas. Gramática latina. Gênero latino.
1.
Introdução
Este trabalho tenciona a reflexão acerca da extinção do gênero neutro que, juntamente com o masculino e o feminino, compunha as categorias de gênero da língua latina. Em que pese ao desaparecimento do neutro
na língua portuguesa, é possível notar indícios desse gênero, em pleno uso,
na língua portuguesa.
Com o intuito de dar conta desse propósito, divide-se este artigo em
duas seções, ambas reflexivas e amparadas em aspectos históricos: a primeira trata da divergência entre o gênero real e o gênero gramatical dos
seres; a segunda, de como essa divergência contribuiu para o desaparecimento do neutro. Essa fragmentação do trabalho em duas seções específicas é propositada e tem o objetivo de organizar a discussão proposta de tal
forma que o tema seja tratado de forma palatável para todos os leitores,
servindo, inclusive, como trabalho introdutório sobre a questão do gênero
latino para alunos dos cursos de letras.
Nesse sentido, adota-se como recurso metodológico apropriado à
pesquisa bibliográfica a literatura especializada constante em artigos e
obras de autores e estudiosos da língua latina, da língua portuguesa e da
filologia que se mostra adequada à fonte de dados escolhida, propiciando
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a construção de um trabalho teórico que se insere na seara das letras clássicas cuja discussão adere a um tom mais reflexivo e revisional, comum
nessa área de estudo.
Ainda que o latim seja considerado uma língua morta, é importante
justificar a relevância desta pesquisa na medida em que, além de se tratar
de disciplina obrigatória nas grades do curso de Letras e estar presente em
inúmeros fluxogramas de filosofia e teologia, o conhecimento e o estudo
da língua latina fornecem ao estudioso subsídios histórico-analíticos importantes ao entendimento do mecanismo de funcionamento da língua portuguesa, o que, com efeito, é de grande valia para os indivíduos que pretendem adentrar na ampla seara das letras. Por isso, esta pesquisa mostrase relevante acadêmica e socialmente.
Por fim, é preciso ressaltar que não se tenciona esgotar o assunto
acerca do estudo do gênero neutro da língua latina, mas fornecer um contributo teórico aos iniciantes e estudiosos das letras clássicas, demonstrando, principalmente a partir da obra de autores tais como Almeida
(1992, 2005), Bagno (2007), Bechara (2009), Cardoso (2003), Faria
(1958) e Santos Sobrinho (2013), que o latim continua marcado na língua
portuguesa.
2.
Questões divergentes sobre o gênero dos seres
Diferentemente da língua portuguesa, que se estrutura inicialmente
a partir de duas categorias de gênero, a saber, o masculino e o feminino, a
língua latina, além desses, inclui o gênero neutro, cujo emprego não segue
exatamente um padrão, dada a diferenciação entre o gênero gramatical,
atribuído pela norma-padrão, e o sexo real dos seres. Obviamente, essa
distinção torna-se mais simples quando a análise da flexão genérica recai
sobre seres animados, ou seja, seres vivos, do que quando se trata de seres
inanimados.
Segundo Almeida (2005, p. 98), "gênero gramatical é a indicação
do sexo real ou suposto dos seres", motivo pelo qual fica claro que, "por
haver dois sexos, dois devem ser os gêneros gramaticais: o gênero masculino e o gênero feminino". Nesse sentido, na língua portuguesa, a oposição
de palavras como boi e vaca, cavalo e égua, gato e gata, é de simples entendimento, considerando que a oposição de sexo coincide com a oposição
do gênero gramatical, ou seja, se a vaca é a fêmea do boi e este é o macho
da vaca, analogia que também pode ser aplicada a outros animais, pode-se
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concluir que boi seria um nome do gênero masculino e vaca, do gênero
feminino.
Nessa linha de raciocínio, quando as palavras especificam seres vivos, a gramática da língua portuguesa lhes atribui o gênero masculino ou
feminino, ou uma das subdivisões da flexão genérica, como os epicenos,
denominação dos "nomes de animais que possuem um só gênero gramatical para designar um e outro sexo" (CUNHA; CINTRA, 2012, p. 209), tais
como águia, baleia e borboleta; os sobrecomuns, "que têm um só gênero
gramatical para designar pessoas de ambos os sexos" (op. cit., p. 209),
como carrasco, indivíduo e vítima; ou comum de dois gêneros, que "apresentam uma só forma para os dois gêneros, mas distinguem o masculino
do feminino pelo gênero do artigo ou de outro determinativo acompanhante" (op. cit., 2012, p. 210), assim como ocorre entre o pianista x a
pianista, o colega x a colega, o estudante x a estudante.
Na verdade, no português, a anteposição do artigo ao nome muito
explica o gênero gramatical, o que, no latim, não é possível em razão da
inexistência dessa categoria da gramática normativa. Logo, o gênero das
palavras-núcleo das expressões o homem e a mulher estaria justificado por
meio do gênero do artigo que as antecede, ainda que não se pudesse determinar o sexo desses seres. A partir da anteposição do artigo, é possível
também, no português, determinar que casa é uma palavra do gênero feminino, mesmo não sendo desse sexo, haja vista a impossibilidade de atribuir uma categoria de sexo a um ser inanimado. Como adotar ou atribuir,
então, um gênero a um nome que designa um ser inanimado? Eis um dos
motivos da existência do gênero neutro no latim, utilizado para indicar
"que as coisas não têm nenhum dos dois sexos" (ALMEIDA, 2012, p. 99),
o que não esgota, contudo, a peculiaridade de tal gênero, eis que "o emprego do neutro não é lógico, em latim". (CARDOSO, 2003, p. 20)
De acordo com Almeida (1992, p. 26), "neutro quer dizer 'nem um
nem outro', isto é, nem masculino nem feminino. Assim, bellum (=guerra),
flumen (=rio), caput (=cabeça) são palavras neutras, com terminações especiais em certos casos". Ocorre que, distintamente do latim, o Português,
assim como outras línguas neolatinas, não possui flexão de caso, valendose de preposições, artigos e outros recursos em substituição aos casos (ALMEIDA, 2012). Por caso, entende-se "a marcação morfológica para identificar a função sintática de um termo (de maneira simples, é a forma como
um nome termina, ou cai; de casus, que quer dizer queda, fim)". (SANTOS
SOBRINHO, 2013, p. 376)
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Já que o latim é uma língua sintética cuja função sintática dos nomes é identificada pela terminação vocabular, o gênero neutro acaba por
ser mais bem identificado pelo conhecimento dos casos latinos: casus nominatiuus, que "é o caso do sujeito e do predicativo do sujeito, bem como
do adjunto adnominal do sujeito ou do predicativo, representado por adjetivo ou pronome" (CARDOSO, 2003, p. 22); casus uocatiuus, que representa o vocativo em língua portuguesa; casus genitiuus, que exerce a função básica de adjunto adnominal restritivo, "do complemento nominal do
substantivo e do partitivo" (op. cit., p. 22); casus datiuus, que desempenha
a função sintática de objeto indireto; causus ablatiuus, que exerce a função
de adjunto adverbial ou complemento circunstantical, de agente da passiva, de complemento de comparação, de sujeito de particípio em orações
reduzidas; e casus accusatiuus, considerado este o responsável pela lexicogênese porque deu origem aos vocábulos da língua portuguesa, funcionando como "objeto direto, podendo também ser o caso dos adjuntos adverbiais introduzidos por preposições especiais, o da exclamação, o do sujeito e o do predicativo nas orações infinitivas" (op. cit., p. 22). Assim,
"corpo veio do latim corpus, acusativo neutro da terceira declinação; árvore de arborem, acusativo feminino da mesma declinação etc.". (ALMEIDA, 2012, p. 98)
Consoante Santos Sobrinho (2013, p. 376), "em latim, os nomes
costumam ser organizados em cinco grupos, chamados declinações", que
são identificadas pela desinência acoplada ao nome no genitivo singular,
sendo ae, i, is, us e ei as terminações desse caso. Conhecendo o sistema de
casos e declinações latino, é possível identificar diversos nomes do gênero
neutro, os quais figuram em algumas declinações específicas e "apresentam formas específicas de flexão casual" (CARDOSO, 2003, p. 20), já que,
nem sempre o gênero natural corresponde ao gênero gramatical. Por esse
motivo, vale ressalvar que
Muitos substantivos que designam objetos e sêres inanimados pertencem
ao gênero masculino ou feminino: mensa "mesa", pirus "pereira", manus "mão",
memoria "memória", etc. são femininos; enquanto que pes "pé", riuus "regato",
ager "campo", mensis "mês" etc. são masculinos. A forma da palavra também
não é bastante para determinar o gênero gramatical de um vocábulo. Lupus,
pirus e uirus "veneno", todos da mesma forma e pertencentes à mesma declinação, à segunda, são, entretanto, de gêneros diferentes: lupus é masculino, pirus,
feminino, e uirus, neutro. O gênero gramatical é uma simples relação que une
o substantivo ao adjetivo que a êle se refere, sendo, pois, a concordância dêste
adjetivo que determina com precisão e clareza o gênero gramatical do substantivo. Assim, sabemos que os substantivos lupus, pes, riuus, ager, mensis, etc.
são masculinos porque só podem vir acompanhados de uma forma masculina
de adjetivo: bonus lupus, bonus pes, bonus riuus, bonus ager, bonus mensis;
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pirus, mensa, manus, memoria e mais nurus "nora" e origo "origem" são femininos porque só podem vir acompanhados de uma forma feminina de adjetivo:
bona pirus, bona mensa, bona manus, bona memoria, bona nurus, bona origo.
Assim, os substantivos uirus, templum, bellum, calcar são neutros porque só
pode vir acompanhados de uma forma de neutra de adjetivo: malum uirus, bonum templum, pessimum bellum, paruum calcar. (FARIA, 1958, p. 57-58)
Percebe-se, nesse rumo de pensamento, que, segundo Faria (1958),
o adjetivo determina precisa e claramente o gênero do substantivo quanto
este é acompanhado daquele na formação da sentença. Ocorre que não havia artigos na língua latina; o que os romanos faziam, diante dessa falta,
"era empregar o pronome demonstrativo antes de um substantivo, próprio
ou comum, para indicar que ele era conhecido" (SILVA, 2010, p. 134).
Além do mais, ante a possibilidade de que nem sempre o substantivo venha
especificado por uma forma adjetiva, é preciso pontuar que tal forma, apesar de funcionar como facilitadora da identificação do gênero do substantivo, não resolve essa questão, uma vez que "a flexão quanto ao gênero
não existe, a rigor, de forma absoluta e, sim, acidental". (CARDOSO,
2003, p. 20)
Nesse sentido, Bagno (2007, p. 30) registra que o fato de o gênero
neutro abarcar os seres inanimados em latim remonta à probabilidade de
que, no indo-europeu primitivo, "o gênero gramatical dos nomes se fundamentasse no sexo biológico real". Segundo o autor, essa distinção, com o
tempo, "logo perdeu todo vínculo com a realidade objetiva e o gênero se
tornou uma categoria exclusivamente gramatical e, portanto, arbitrária"
(op. cit., p. 30), posicionamento também acolhido por Cardoso (2003).
Vale ressaltar, nesse ponto, que "o caráter arbitrário do género, sem qualquer motivação semântica, verifica-se, igualmente, na mudança de género
operada em certas palavras no seu percurso rumo às várias línguas romance ou na confusão a que estão sujeitas no uso". (COSTA & CHOUPINA, 2012, p. 78)
Em consonância aos pensamentos de Bagno (2007) e Cardoso
(2003), afirma Faria (1958), de forma esclarecedora, que
A causa determinante da diferenciação dos gêneros na antiga língua indoeuropéia não foi, em absoluto, a diferenciação dos sexos, mas a oposição entre
os sêres animados e os sêres inanimados ou coisas. Assim, a primitiva divisão
dos gêneros seria esta: os substantivos que designavam sêres vivos, bem como
os adjetivos ou pronomes que a êles se referissem, pertenciam ao gênero animado, enquanto que os substantivos que designassem coisas, ou os adjetivos ou
pronomes que a êles se referissem, pertenciam ao gênero inanimado. Dêste
modo, o gênero animado compreendia sem distinção o masculino e o feminino,
enquanto que o inanimado, o neutro. (FARIA, 1958, p. 63)
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A partir dessa exposição de Faria (1958), pode-se entender sobre
por que Cardoso (2003) pontua a ilogicidade do emprego do gênero neutro.
De acordo com a autora, "alguns seres sexuados são designados por palavras neutras, como scortum (prostituta) ou mancipium (escravo). Os seres
assexuados são designados indiferentemente por palavras masculinas, femininas ou neutras". (CARDOSO, 2013, p. 20)
3.
O desaparecimento do neutro a partir da questão da flexão genérica
A confusão relativa à flexão genérica só confirma que, na verdade,
o gênero gramatical é suposto, ou "fictício", nas palavras de Almeida
(2012). Como o latim não pôde aplicar a todos os nomes de coisas o gênero
neutro, o seu desaparecimento nas línguas neolatinas foi uma consequência bastante natural. Nesse contexto, Bechara (2009) registra que
A inconsistência do gênero gramatical fica patente quando se compara a
distribuição do gênero em duas ou mais línguas, e até no âmbito de uma mesma
língua histórica na sua diversidade temporal, regional, social e estilística. Assim
é que, para nós, o sol é masculino e, para os alemães, é feminino die Sonne, a
lua é feminino, e, para eles, masculino das Weib. Sal e leite são masculinos em
português e femininos em espanhol: la sal e la leche. Sangue é masculino em
português e francês e feminino em espanhol: le sang (fr.) e la sangre (esp.).
(BECHARA, 2009, p. 133)
É nesse cenário marcado pela substituição do gênero natural, atribuído pelo sentido, pelo gênero gramatical, apontado pela terminação, com
o consequente "processo de esvaziamento semântico da noção de gênero"
(JESUS, 2007, p. 2080), que o gênero neutro foi desaparecendo, deixando
de existir como categoria gramatical. Aliás, consoante Faria (1958, p. 65),
o neutro já tendia a ser eliminado desde a época mais arcaica, visto que "a
distinção dos gêneros animado e inanimado, isto é, do masculino-feminino
e do neutro, não tinha uma estabilidade precisa" e acrescenta
Enquanto que a distinção de masculino para feminino se fazia, via de regra,
por meio de uma alteração do próprio tema (femininos geralmente pertencentes
ao tema em -a), a diferença de masculino para o neutro só se efetuava pela desinência, caracterizando-se os neutros pelo uso da desinência zero no nominativo-acusativo. (FARIA, 1958, p. 65)
Bagno (2007), a propósito disso, descreve alguns fatores que podem ter condicionado o desaparecimento do neutro, tais como:

Os nomes que compunham a 1ª declinação, cuja terminação se
dava em -a, eram quase todos femininos, não havendo nomes
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neutros, motivo pelo qual essa terminação passou a designar os
nomes femininos em Português;

Os nomes que compunham a segunda declinação eram, em sua
maioria, masculinos e neutros. Logo, a terminação em -o (acusativo singular -um > -u >-o) acabou por se tornar a característica
dos nomes masculinos; os neutros, por sua vez, devido à semelhança de sua desinência com os nomes masculinos, também passaram a esse gênero, como em templum > templu > templo.
Quando no plural, em razão da terminação -a, houve confusões
com o gênero feminino. Portanto, as palavras neutras plurais do
latim passaram a femininas singulares no Português, como em
ova (neutro plural) – ova (feminino singular); folia (neutro plural)
- folha (feminino singular); lignea (neutro plural) - lenha (feminino singular);

Como havia alguns nomes neutros na 3ª declinação, estes passaram para a 2ª, assumindo, em consequência, o gênero masculino.
Conquanto o gênero neutro tenha deixado de existir como categoria
gramatical na língua portuguesa, ressalvados alguns vestígios, tais como
os pronomes demonstrativos isto, isso, aquilo e o; os pronomes indefinidos
tudo, nada, algo; os adjetivos substantivados e os infinitivos substantivados (BAGNO, 2007; SANTOS SOBRINHO, 2013), esses resquícios têm
funcionalidade e aplicabilidade plena no discurso, sendo tais palavras de
uso corrente. Além dessas marcas citadas, Silva (2010, p. 117) acrescenta
como vestígio do gênero neutro em Português as frases do tipo Limonada
é bom e É proibido entrada, em que o sujeito aparece indeterminado, asseverando que "as causas do desaparecimento do gênero neutro foram fonéticas (analogia das formas) e psicológicas (desnecessidade da oposição
entre o gênero animado e o inanimado)".
Na verdade, a utilização do gênero neutro no latim, apesar de ilógica, não era totalmente flutuante. Faria (1958, p. 59), nesse sentido,
afirma que "são do gênero neutro os nomes de frutos e metais, bem como
as palavras indeclináveis, infinitivos verbais, e termos e frases usados
como se fossem substantivos". Essa noção, contudo, com a própria evolução da língua, foi sendo desconstruída pela confusão entre neutro e masculino, segundo Silva (2010), levando ao desaparecimento do neutro.
Uma das constatações atuais presente na obra de Costa e Choupina
(2012, p. 78), e que pode avalizar mais hodiernamente que o neutro não
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sobreviveria é a de que "gênero e sexo não têm, em línguas como o Português, uma relação intrínseca entre si", embora essa relação possa ser aplicada a alguns nomes. Sob esse prisma, é importante perceber que já em
textos muito antigos, datados dos anos de 1175, por exemplo, escritos em
língua portuguesa, "a morfologia flexional do latim clássico, que marcava
o número, o gênero e a função sintática (caso) dos nomes já não estava
mais presente" (MONARETTO & PIRES, 2012, p. 157), demonstrando
que "a complexa morfologia flexional dos nomes, em latim, passou por
um processo de simplificação durante a dialetação do latim para as línguas
românicas" (op. cit., p. 158), inclusive no que diz respeito ao gênero.
Além do mais, juntamente com o neutro, desapareceram, nos adjetivos, os sufixos de comparativo -ior, que acompanhava o masculino e o
feminino, e -ius, que se acoplava ao neutro, o que demonstra que a flexão
de grau também foi, a reboque, prejudicada. Segundo Almeida (1992), o
adjetivo poderia ser empregado no grau normal ou positivo, no superlativo
ou no comparativo, sendo este, cuja formação se dava pela aposição dos
sufixos mencionados ao radical do adjetivo, a atribuição de qualidade mais
a um termo do que a outro. Assim, jucundus, jucunda, jucundum, que representam o adjetivo agradável nas três formas da flexão genérica, ao terem acoplados ao seu radical os sufixos -ior e -ius, tomariam a forma de
jucundior, para o masculino e para o feminino, e jucundius, para o neutro.
Ante a reflexão aqui impendida, fica a observação final de que o
desaparecimento completo do gênero neutro na passagem do latim para o
Português evidencia, na verdade, um fator de evolução, em que são abandonadas ou substituídas categorias que não mais servem ao propósito de
uma língua. De outra forma, os vestígios ainda encontrados na língua portuguesa, como alguns pronomes e nomes substantivados, funcionam como
marcas da trajetória histórico-evolutiva da língua-mãe, sinalizando a presença e a importância outrora desempenhada pelo gênero neutro.
4.
Conclusão
Considerando a discussão trazida à baila neste trabalho teórico
acerca da queda do neutro da língua latina e da existência de alguns traços
desse gênero no Português, percebe-se que as categorias gramaticais sobrevivem quando correspondem a um propósito linguístico. Apesar de ser
considerada uma língua morta, pois não é mais falada por um povo, ainda
que existam documentos escritos nesse idioma, o latim se mantém vivo em
partículas de uso corrente na língua portuguesa, como alguns pronomes
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demonstrativos e indefinidos, além dos adjetivos e infinitivos substantivados.
Nota-se, em outras palavras, que a queda do neutro, utilizado essencialmente para designar os seres cujo sexo não poderia ser definido,
não alijou o português de expressões como: O que é aquilo? Isso não quer
dizer nada. Tudo isso é necessário? Nesses casos, de fato não é possível
definir o sexo dos seres a que se referem as sentenças, mas, como não o
era sempre possível determiná-lo também em latim, a categoria gramatical
neutra esgotou-se semanticamente diante da impossibilidade de que o gênero real sempre coincidisse com o gênero gramatical. Isso pode ser percebido, inclusive, pela utilização de o, equivalente a aquilo, também de
valor neutro, na oração anteriormente construída neste parágrafo, provando a funcionalidade e a aplicabilidade do que restou desse gênero latino.
De mais a mais, não é de bom tom que passe imperceptível a tendência já registrada por inúmeros autores de que o neutro estava fadado ao
fim no português, assinalando, todavia, que a evolução da língua nem sempre obedece a uma regularidade. Note-se, a princípio, que a decadência da
4ª e da 5ª declinação ocorreu no latim vulgar em razão da confusão que
alguns nomes causavam. Basta verificar, por exemplo, a palavra domus
que, devido à terminação -us, poderia suscitar a declinação tanto pela 2ª
(domus, -i), por parecer masculino (final -us na 2ª decl.) quanto pela 4ª
(domus, -us), por ser palavra feminina, já que a relação entre as terminações nominais e as questões de gênero não eram muito claras em latim,
conforme já mencionado no corpo deste trabalho. Assim, traço claro de
evolução linguística do latim clássico para o latim vulgar seria a fusão das
declinações em virtude dos gêneros.
Por fim, a questão da não coincidência entre o gênero real dos seres
e gênero gramatical que lhes é atribuído pela norma linguística merece
destaque como o grande fator desencadeante da queda do neutro, ainda
que outras questões possam ser levantadas a respeito assunto. A decadência dos sufixos -ius e -ior nos adjetivos foi consequência do sumiço do
neutro, principalmente o primeiro sufixo que se lhe acoplava, caracterizando que uma evolução linguística pontual pode conduzir a outras evoluções. De qualquer forma, fica consignado que o estudo do desaparecimento do neutro tem muito a fornecer àquele que deseja se debruçar histórica e gramaticalmente sobre os meandros da língua.
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