EDUCAÇÃO E INCLUSÃO: A EXPERIÊNCIA DO PVNC NOS ANOS 90 Clarissa do Rêgo BARROS Orientadora: Graça Salgado e-mail: [email protected] PUC - RJ I) APRESENTAÇÃO: Este trabalho resulta de uma experiência pessoal e profissional com o PréVestibular Comunitário para Negros e Carentes (PVNC) na favela da Rocinha, onde através da oportunidade de compartilhar uma aula de História do Brasil com um colega de graduação da PUC -RIO, iniciei um trabalho com pré-vestibulares comunitários. Este amigo de faculdade era também morador da Rocinha e professor de História. A sua trajetória de vida e o sentimento de vitória por ter chegado à universidade, mesmo sendo economicamente carente, era inspirador para aqueles jovens, que viam naquele professor a esperança de um futuro melhor. Aceitei a oportunidade como uma experiência profissional, já que, precisava de um estágio, mas não possuía a mesma trajetória nem tampouco vivia a mesma realidade social daqueles alunos, que em quase todas as aulas perguntavam pelo antigo professor, insistiam se ele poderia dar uma aula de vez em quando ou se algum dia iria voltar.Decidi conversar com ele e dizer da importância de seu papel e exemplo que representava para aqueles jovens. Neste período, com este mesmo professor, trabalhávamos em um outro prévestibular comunitário, diferente do PVNC e que funcionava em um CIEP na Zona Sul do Rio de Janeiro associado a uma instituição religiosa. Foi então que decidimos trocar de lugar: ele voltaria para a Rocinha e eu o substituiria no CIEP, abandonado assim minha experiência no PVNC.Continuei a trabalhar para a Congregação São Mariano por mais dois anos, porém a falta de interesse dos coordenadores e a desorganização dos participantes determinou a transferência do grupo do CIEP para o Batalhão de Polícia, no Leblon.Muitos alunos desistiram do curso pois tinham dificuldade em aceitar a idéia de estudar dentro de um batalhão da polícia já que eram moradores de comunidades carentes situadas na vizinhança do mesmo. Durante um ano e meio o curso continuou a funcionar bem, aprovamos bons alunos com bolsa na PUC–RIO e em outras universidades públicas do Rio de Janeiro, mas em 2005 a coordenação nos informou que o batalhão seria demolido e, por falta de espaço, o curso fechou. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 1 A oportunidade de lecionar História em locais com propostas tão diferentes determinou o objeto de estudo deste trabalho, que se propõe a analisar o surgimento dos pré-vestibulares comunitários como espaços de organização da sociedade civil.Neste sentido, o PVNC foi o estudo de caso escolhido por ser um dos únicos movimentos de pré-vestibulares comunitários a possuir uma proposta bem estruturada em sua “Carta de Princípios”, documentos, textos e depoimentos que proporcionaram a possibilidade de uma análise concreta, de sua trajetória, memória e construção.A partir daí, algumas questões acerca da minha experiência com o grupo foram surgindo: Por que e quando apareceram?Sua importância e objetivos dentro do movimento social? Por que a educação consistiria em uma forma de mudança e de ascensão social?Qual a importância da universidade para esses jovens carentes e socialmente excluídos? Por que a opção do PVNC por uma discriminação positiva? O “Pré Vestibular para Negros e Carentes” (PVNC) foi criado em 1993, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Organizado por um grupo de moradores e professores, o PVNC é um movimento voluntário e comunitário, apartidário e sem fins lucrativos, com o objetivo de proporcionar o acesso ao ensino superior de estudantes carentes e excluídos socialmente, procurando desenvolver um trabalho direcionado a um projeto de educação conscientizadora e inclusiva. “Com o ensino pré-vestibular e outras ações, o PVNC quer ser, em caráter geral, um Movimento de luta contra qualquer forma de racismo e exclusão e, em caráter especifico, uma frente de denúncia, questionamento e luta pela melhoria e democratização da educação, através da defesa do Ensino Público, gratuito e de qualidade em seus níveis fundamental, médio e superior, nos âmbitos municipal, estadual e federal”.(Carta de Princípios, 1998) O surgimento de um movimento como o PVNC, que já explicita no próprio nome os questionamentos e diretrizes de um projeto reivindicativo e propositivo relacionado à questão da exclusão por raça e a classe social, levando à tentativa de problematizar neste trabalho não só a educação e os impasses que impossibilitam o direito e o acesso a ela de todos os cidadãos, bem como outras questões que entravam em pauta como o exercício pleno da democracia e dos direitos civis e sociais, ao incluir nesta agenda de problemas o racismo e a discriminação social. Neste sentido, foi preciso revisitar através de inúmeras leituras, os alicerces teóricos construídos sobre a década de 1990 no Brasil e a agenda política adotada pelos governos democráticos, que irão processar a modernização do país através da desmontagem do “Estado desenvolvimentista brasileiro”, concebido nos anos 1950, ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 2 optando por um novo modelo de desenvolvimento baseado nas políticas econômicas de “ajuste fiscal” e de maior dependência dos organismos financeiros internacionais, que irão priorizar o papel do mercado em detrimento da presença reguladora do Estado. Em outras palavras, o novo projeto de política econômica adotado consiste na adoção de uma série de medidas, gerenciadas a partir de organismos externos, e que garantirão a estabilidade econômica através da “desregulação” da economia nacional, ou seja, “a retirada do Estado ou a sua renuncia como agente econômico produtivo e empresarial”.[1] Portanto, as reformas estruturais que acabaram por ser implementadas na década de 1990 consistiam sobretudo na “desregulação dos mercados financeiros e do trabalho na privatização das empresas e do serviço público e a abertura comercial”.(FIORI, 2003. p.86)[2] A priorização do setor privado e a opção pelo “Estado Mínimo” determinou uma espécie de “colapso do espaço público”, com a redução dos recursos estatais direcionados às políticas sociais, privando o Estado brasileiro do cumprimento de suas funções básicas com a saúde e com a educação pública de qualidade, entre outras. O processo brasileiro de redemocratização incorporou na nova Constituição de 1988 um conjunto amplo de garantias e direitos sociais, mas a opção pelo “Estado Mínimo”, a partir da década de 90, irá levar a organização da sociedade civil através de formas alternativas e não governamentais, desenvolvendo atividades de interesse público como um complemento e substituição à ausência do Estado em determinadas áreas. O PVNC é exemplo emblemático desse formato alternativo de organização social. Neste cenário, onde o mercado passou a ser o principal mecanismo autoregulador da vida econômica e social, e com a conseqüente redução do papel do Estado, o PVNC direcionará seus objetivos para o problema da desigualdade social através da proposta de uma educação inclusiva, ou seja, como instrumento também de diminuição da exclusão social, proporcionando melhores oportunidades de colocação no mercado, pela democratização do acesso à universidade. Para tal, o movimento associa a questão da exclusão ao problema racial e direciona a solução para uma a política de “discriminação positiva”, isto é, a adoção das ações afirmativas como uma atitude emergencial e necessária à legitimação de seus objetivos. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 3 II) A HISTORICIZAÇÃO DO TEMA: As políticas econômicas adotadas na década 90 optaram pelo chamado ajuste econômico fiscal, provocando a redução dos gastos públicos na área social em função das múltiplas exigências dos organismos internacionais. Os programas sociais diluíramse com as mudanças de governo, provando que a atenção a esta área não passava de propostas conjunturais. Esta idéia está relacionada também à questão da descentralização das políticas sociais que irão impedir a distribuição de um orçamento unificado para programas que viabilizem uma integração social eficaz, e não meras medidas paliativas. A manutenção do sistema político conservador conhecido por “pacto conservador”[3], reforça a hegemonia por parte das elites dominantes nos anos 90, contribuindo para a enorme dispersão salarial e a segmentação do mercado de trabalho responsável, entre outros fatores, pela formação de um quadro crescente de desigualdade social. O crescimento das desigualdades sociais no Brasil estaria, desta forma, relacionada à impotência do Estado em interferir nos interesses ligados à estrutura fundiária, à monopolização do espaço urbano, no qual residem a acumulação de capitais, e a desenfreada e desregulada expansão das grandes cidades, submetendo uma grande parcela da população a um grave estado de marginalidade com relação ao acesso aos serviços públicos. Na década de 90, em quase todas as regiões do Brasil, observou-se uma grande capilarização social[4] dos cursos de pré-vestibulares comunitários voltados para segmentos sociais populares. A difusão desses cursos possui seu embrião no descontentamento em relação a uma construção desigual e hierarquizada do tecido social brasileiro. Isentos de pretensões políticas ou partidárias, movidos apenas pela identificação, como sujeitos de, uma causa social, articulam um movimento motivado pela solidariedade e pelo voluntariado.Essa organização, segundo Renato Emerson dos Santos (2003)[5], constitui uma forma de ação social que possibilita a convergência múltipla de ações, atos, significados e ideologias que viabilizam a sua materialização em distintos contextos sociais. Em 1993 surge na Baixada Fluminense, com sede na Igreja Matriz de São João de Meriti, o Pré Vestibular para Negros e Carentes – PVNC, em função do descontentamento com a péssima qualidade do ensino médio nesta região de periferia, que eliminava a possibilidade de acesso dos estudantes da região, em sua maioria negros ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 4 e carentes, às universidades. “O PVNC inaugura uma nova fase, trazendo em sua luta o debate sobre as questões das desigualdades educacionais entre brancos e negros, ou seja, para os fundadores deste curso a população pobre é praticamente excluída do acesso ao ensino superior por causa da baixa qualidade de ensino destinada aos grupos populares, especificamente na baixada fluminense, seja ensino público ou particular. A situação é mais grave para os estudantes negros, pois o preconceito e a discriminação racial os colocam em situação de desvantagem, de pobreza, e de exclusão social”. (Nascimento,1999, p.71) A proposta do PVNC como movimento, e que o diferenciará das organizações de outros prés -vestibulares comunitários, é a articulação de setores excluídos da sociedade a favor de uma luta pela democratização da educação, e contra a discriminação social e racial.A idéia deste organização do curso na Baixada Fluminense foi lançada por Frei David Raimundo dos Santos, em conjunto com os professores Alexandre do Nascimento, Antonio Dourado e Luciana Santana Dias. As idéias e reflexões acerca da estruturação de um curso que associasse a educação e a questão do negro surgiram entre 1989 e 1992 na Pastoral do Negro. Nesse período houve também a criação, na PUC de São Paulo, de 200 bolsas de estudo para estudantes do movimento negro. As reflexões sobre a organização de um núcleo de estudos voltado para segmentos populares foram motivadas por essas bolsas e também pela experiência acumulada de outros cursos similares, já mencionados, e que serão a base para a organização de uma equipe pedagógica responsável por capacitar estudantes para o vestibular da PUC-SP e das universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro. No Brasil, como em outras sociedades, a coloração da pele é o elemento que distingue as diferentes etnias existentes. A discussão sobre raça foi construída por um discurso homogeneizador das identidades e das particularidades culturais que, através da discussão sobre mestiçagem e da associação entre “civilização e cor” foram determinando, historicamente, uma representação social que aponta para a superioridade de uma raça sob a outra. A opção do PVNC por se auto-denominar como “negro e carente”tem o objetivo de destacar uma minoria excluída não só pela identidade e classe social como também pela cor, organizando assim uma ação direcionada e relacionada com o movimento negro, já que o PVNC vai compreender o racismo como fator de exclusão. Em 1994 o PVNC atingiu o esperado sucesso, a partir da repercussão do trabalho iniciado no ano anterior, espalhando-se por vários núcleos locais e obtendo uma aprovação de 34% dos candidatos aceitos nas universidades públicas do Rio de Janeiro ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 5 (UERJ,UFRJ, UFF) e PUC-RJ. Depois disto a idéia ultrapassou os limites da Baixada Fluminense, espalhando–se pelos municípios da região metropolitana do Rio, a partir da fundação de núcleos articulados ao PVNC que se reúnem mensalmente em um Conselho Geral, ou através de cursos voltados para segmentos populares e mesmo não integrados ao Conselho. Surgiram, portanto a partir da idéia seminal do curso prévestibular para negros e carentes. Os princípios e objetivos que nortearam a criação do movimento estão na “Carta de Princípios”, de 1998, documento que se constituiu numa espécie de diretriz sobre as questões que até então dividiam os militantes do movimento, aprovando novas regras e revisando pontos já deliberados, definindo finalmente uma identidade autônoma para o movimento. No parágrafo abaixo pode-se avaliar os princípios que determinam a identidade do movimento e a amplitude de sua ação social. “O Pré Vestibular para Negros e Carentes é um movimento de educação popular, laico e apartidário, que atua no campo da educação, através da capacitação para o vestibular de estudantes economicamente desfavorecidos em geral e negros (as) em particular. (...), em caráter geral [é] um movimento de luta contra qualquer forma de racismo e exclusão, em caráter especifico, uma frente de denuncia, questionamento e luta pela memória e democratização da educação, através da defesa do Ensino Público, gratuito, de qualidade, em seus níveis fundamental, médio e superior, nos âmbitos municipal, estadual e superior”.(Carta de Princípios, 1998) A “Carta de Princípios” que norteará a ação do PVNC, está fundamentada no conceito de “democracia social” como forma de incorporar o principio da igualdade de oportunidade e o respeito às diferenças e à diversidade étnico-cultural; nas ações afirmativas como meio de afirmação de identidades e de luta pelos direitos sociais; na educação como processo de emancipação humana, superação das desigualdades, mecanismo de inclusão social, conscientização política e cidadania. Do ponto de vista organizacional, o PVNC se divide em espaços de atuação e de organização estruturados a partir dos Núcleos, da Assembléia Geral, do Conselho Geral e da Secretaria Geral. Os Núcleos são os diversos cursos organizados pelo o PVNC; a Assembléia Geral é o órgão formado por todos integrantes do PVNC com direito de voz e voto, reunindo-se ordinariamente três vezes ao ano para debater os princípios, as regras e os rumos do movimento; o Conselho Geral é composto por dois conselheiros de cada núcleo, com o objetivo de ativar as propostas da Assembléia Geral; a Secretaria Geral ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 6 atua na representação do movimento em instituições sociais, coordena reuniões, organiza documentos, atas e administra finanças. O PVNC possui ainda outros órgãos de apoio como o Grupo de Estudos, um Jornal, e as Comissões Especiais para negociação das bolsas e isenções, entre outros. Apesar dessa estrutura, das regras de funcionamento, princípios e objetivos básicos descritos pela Carta e das diretrizes de atuação, os núcleos possuem liberdade de pensamento e concepções distintas sobre a condução de suas ações que acabaram por formar lideranças com distintos perfis ideológicos. Renato Emerson (2003)[6] aponta para a cisão do movimento a partir de ideologias e formas de articulação diferenciadas. A primeira divisão do grupo original ocorreu a partir da proposta do formato eclesial liderado pelo frei David, e o outro setor que defendia um formato de organização autônoma em relação às igrejas, propondo a construção de uma instituição independente. A estes grupos foram atribuídos os nomes de “Campo Negro-Eclesial” e “Campo Amplo”. Apesar das distintas propostas quanto à atuação institucional, ambos os grupos mantiveram-se unidos em torno da questão racial como ponto central de condução dos rumos do movimento. Esta direção porém tomou caminho contrário a outros grupos que foram se formando e que se auto denominaram-se “Independentes”, ou seja, ligados ao movimento mas não envolvidos com as discussões étnicas. Estes embates elaboraram propostas que trouxeram diversidade ao movimento, e que contribuíram para o fortalecimento dos princípios e objetivos do PVNC em sua trajetória e desenvolvimento. É contudo no setor pedagógico que vamos encontrar reunidas toda esta diversidade de idéias, e em que a área da educação é vista também como campo de ação política, a partir da proposta das aulas de “Cultura e Cidadania” ministradas pelos núcleos. Essas aulas fundamentam uma proposta política por parte do movimento, acrescentando, segundo seus formuladores, um complemento ao currículo do aluno, tendo em vista que o curso de vestibular possui um programa a ser cumprido de acordo com a exigência curricular e acadêmica de cada universidade. São aulas realizadas pelos núcleos, e possuem o objetivo de refletir acerca de temas relativos à realidade em que o aluno está inserido da sociedade em geral, entre os quais podemos destacar: questões étnicas, diversidade cultural, reforma educacional, ações afirmativas, a universidade como espaço de conhecimento e de difusão do saber, movimento negro, racismo, ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 7 preconceito, entre outros. A educação para o PVNC é o veiculo essencial para atingir a consciência critica sobre o mundo e despertar o individuo para a construção de uma outra sociedade. Nestes termos, a educação é vista como uma pedagogia de ação e direcionada para a descoberta e o entendimento da realidade e da identidade social dos alunos. Assim, o ato educativo consiste na exposição, análise dos conteúdos e contextualização sócio-cultural acerca dos problemas existentes no âmbito da sociedade, nas relações político-sociais, que informam a realidade em que se vive, colocando os alunos como sujeitos da mudança e como atores sociais. As aulas de “Cultura e Cidadania” são complementares e obrigatórias, já que no entendimento do PVNC constituem-se na aplicação prática dos princípios do movimento, centrados na busca por uma democracia plena, na ação afirmativa e na educação como instrumento de inclusão social. O PVNC não possui registro institucional não se caracterizando, portanto, como uma ONG. A formato de sua organização abriria a discussão em torno da aceitação ou não de subsídios externos e dividiria as opiniões dos seus articuladores. Prevaleceu, contudo, a não-institucionalização e a opção pela ajuda coletiva como forma de sustentação financeira do movimento. Esta opção aprofundou os princípios e objetivos de uma organização popular que garantiria a identidade do movimento como um espaço de responsabilidade social, que funcionam através de doações e da prática coletiva dos agentes do movimento. A questão racial tão debatida e refletida durante o surgimento do movimento e após a consolidação e opção pela proposta de ser “negro e carente”, envolve o PVNC em um diálogo não só com a sociedade mas também com as propostas do exame de vestibular e com as universidades. Neste sentido, podemos encontrar no PVNC uma forma de ação social pela busca de simetria nas relações raciais no país e um espaço de discussão que politiza esse tema da desigualdade racial. Dentro desta proposta, o trabalho de preparação de alunos pobres e negros para o vestibular, está forçando a abertura dos portões das universidades para os setores excluídos da população, registrando um número significativo de estudantes negros nas salas de aula, levando a uma reflexão mais democrática sobre o processo de construção da nossa identidade nacional e sobre a presença permanente do conflito como alicerce da nossa organização social. Os desafios enfrentados pelo Pré-Vestibular para Negros e Carentes estão ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 8 relacionados com a democratização do ensino, entendendo a universidade como um campo de direito de todos os cidadãos, caracterizando-se como um movimento social direcionado a um projeto político preocupado com a inclusão social e com uma educação capaz de emancipar e desenvolver as potencialidades humanas. III) CONCLUSÃO: A adoção das políticas neoliberais que articularam economia e política no Brasil dos anos 90 contribuiu decisivamente para o surgimento de movimentos alternativos de organização da sociedade civil, numa tentativa de preencher as lacunas deixadas pelas políticas públicas de baixo alcance social, em um contexto marcado pela priorização de projetos de ajuste fiscal e de baixa presença regulatória do Estado. Após uma década de estagnação do crescimento econômico – a chamada “década perdida” - marca dos anos oitenta, a estratégia de desenvolvimento com inclusão social constituiu-se num problema complexo de política pública a ser enfrentado pelos governos brasileiros nos anos 90. O Brasil, como a maioria dos países latino-americanos, ao aderir às reformas liberalizantes difundidas desde os anos 80 na Inglaterra e em outros países, e nos anos 90 em nosso continente, vivenciou uma série de transformações, cujo principal foco foi a desmontagem dos mecanismos de coordenação que haviam caracterizado até então o funcionamento do estado desenvolvimentista no país, provocando o aumento das desigualdades sociais no acesso aos bens de consumo e aos serviços de saúde, saneamento e educação. Frente a esta realidade e tomando a educação como campo privilegiado para nossa análise, o neoliberalismo proporcionou a priorização do ensino privado em detrimento da rede pública, e o seu funcionamento segundo a lógica do mercado: lucro e consumo. Neste contexto, como em outras áreas da política cultural, a educação tornarse também um espaço de consumo, submetido às regras mercadológicas e um privilégio de poucos e não um direito de todos. A política econômica daqueles anos para um país já marcado economicamente pelo crescimento com desigualdade social, constituirá um mercado de trabalho centrado na qualificação profissional e tecnológica, onde a universidade se transformará além de um espaço de produção do conhecimento, num ambiente de busca de melhores oportunidades com vistas a melhores condições de acesso ao mercado de trabalho. Assim, a educação será entendida, sobretudo, como um braço do desenvolvimento ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 9 econômico, responsável prioritariamente por produzir e qualificar profissionais. A organização do PVNC nesta conjuntura dos anos 1990, surge como um movimento social e popular, de caráter comunitário, de afirmação identitário e racial. Seu estudo neste contexto é relevante na medida em que direciona sua atuação para jovens negros e carentes, impossibilitados de ter acesso a uma educação de qualidade para competir nos vestibulares e chegar às universidades públicas e privadas. Esta iniciativa trouxe resultados positivos e auto-confiança para jovens carentes, que não só conseguiram realizar o sonho de chegar a uma universidade, como também de alcançar uma profissão reconhecida no mercado de trabalho. Neste sentido, observa-se uma dupla dinâmica na trajetória do PVNC: é, por um lado, um movimento direcionado para a melhoria da qualidade do ensino público, e por outro, voltado para a inclusão de jovens na sociedade e no mercado de trabalho. Para o PVNC as desigualdades sociais são fruto da falta de igualdade de oportunidades, das quais setores excluídos e marginalizados da sociedade pelo racismo e pela falta de recursos são privados de usufruir dos seus direitos civis e da sua cidadania. Portanto a plataforma a partir da qual o movimento decola, passa por uma proposta de mudança que é deixar de pensar que negros, brancos e indígenas possue em nossa sociedade o mesmo tratamento e as mesmas oportunidades, para então, através de um discurso a favor da diversidade e do respeito à diferença, desenvolver ações que garantam a possibilidade de maior equidade nas relações sociais. Dessa forma, a noção de democracia passa a incorporar uma dinâmica capaz de possibilitar a igualdade com o respeito também à diversidade. Esses movimentos sociais, entre eles o PVNC, configuram um núcleo dinâmico e moderno na sociedade brasileira, capazes de viabilizar a criação de novos canais de participação, de diminuição da desigualdade social, de afirmação e reconhecimento da diferença e, finalmente, de construção neste país de uma democracia plena e não mais “inconclusa”. IV) BIBLIOGRAFIA: BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO,Gianfranco. 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As primeiras edições, porém, estão arquivadas com outros ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 12 documentos sobre o movimento. Sites: www.pvnc.org www.alexandrenascimento.com www.cartacapital.com.br www.revistaforum.com.br [1] SOARES,Laura Tavares Ribeiro. Ajuste Neoliberal e desajuste social na América Latina RJ:UFRJ,2001.p.154. [2] FIORI, José Luís.60 lições dos 90. Uma década de neoliberalismo.RJ: Record, 2001. [3] “Pacto Conservador”: Segundo Fiori, esta denominação esta associada ao Brasil agrário e oligárquico cujas políticas se mantiveram intocáveis durante toda a modernização industrial da sociedade brasileira, mesmo depois da política liberal dos anos 90. [4] Capilarização Social: termo é aqui utilizado como sinônimo de difusão. [5] SANTOS, Renato Emerson. “Racialidade e novas formas de ação social:o pré- vestibular para negros e carentes” IN: SANTOS, Renato Emerson. (org).Ações Afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades sociais.RJ: DP&A Editora, 2003. p. 127/153 [6] SANTOS, Renato Emerson. “Racialidade e novas formas de ação social:o pré vestibular para negros e carentes” IN: SANTOS, Renato Emerson. e (org).Ações Afirmativas. Políticas públicas contra as desigualdades sociais. RJ: DP&A Editora, 2003. p. 127/153. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos, saberes e práticas. 13