O espelho do "complexo de vira-latas" Há tempos que o mito de Narciso é visto apenas como um excessivo auto-amor que encastela o sujeito no próprio eu embevecido por sua beleza refletida no outro. Contudo, não parece que a questão central do mito seja a escolha de si mesmo em detrimento do outro, um excessivo amor dedicado ao próprio eu e um amor pífio dedicado aos outros. O que se mostra como "excessivo auto-amor", na verdade, indica um amor a si mesmo insuficiente, de baixa qualidade: um amor de vira-latas complexado. Nas últimas semanas foi fácil observar isso no narcisismo promovido pelos "grandes" jornais de televisão na cobertura das Olimpíadas no Rio de Janeiro. No dia seguinte, ao encerramento oficial, boa parte da programação foi direcionada para o seguinte tentame: aferir, através das manchetes dos jornais internacionais ou de pequenas enquetes realizadas com turistas que vieram ao Rio, o grau de contentamento, de satisfação, de aprovação do mundo e das pessoas acerca do desempenho do Brasil com a organização das Olimpíadas. Mas o jornalismo não tem culpa disso – não sozinho! A mídia apenas dá azo àquilo que o brasileiro deseja, sente, pensa de si mesmo. Ele acha que é vira-latas, até que enfim se depara com alguém que o olha e diz: "é de raça, tem pedigree: é nobre!". Um tipo mais requintado e dissimulado de sensacionalismo jornalístico percebe essa tendência, amplificando-a, trazendo à luz um apelo popular que vive às expensas dos tais mimos da imprensa, i.e, de espelhos que mostrem, ainda que por pouco tempo, uma beleza que o povo sente não possuir. Esses jornais servem como espelhos que trazem à nossa memória, à nossa consciência uma beleza da qual, no fundo, duvidamos. É pouco amor, sim, é pouco amor! O brasileiro sofre de pouco auto-amor! Carece de um amor que tenha boa medida, a medida certa, que seja capaz de realizar o salutar "como a ti mesmo" antes mesmo de "amar ao próximo" segundo a fama de bom anfitrião que abre "os braços pra você". Sim, ele sofre de pouco auto-amor! Por isso, ele precisa de espelhos e mais espelhos onde possa fitar a sombra bela de um corpo que se acha feio. Em realidade não há espelho que ajude o brasileiro em seu complexo, seu complexo de vira-latas, como dizia corajosamente Nelson Rodrigues. O espelho dos outros apenas auxilia frequentemente à memória em sua necessidade viciada de lembrar-se em vão do quanto é bela. No entanto, nenhuma imagem é capaz de dar à alguém aquilo que não foi conquistado em solidão: a força de amar, de gostar da própria beleza na medida certa, nem mais nem menos. Este é um saber saboroso que prova que se é belo antes mesmo do reconhecimento universal de sua beleza. O excessivo amor narcísico é um amor que não conheceu, que não amou ainda o próprio corpo e ama apenas a sua imagem, a sombra, o espelho. Como disse o poeta latino Ovídio sobre Narciso: "Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora". Como Narciso, o brasileiro sofre da memória, pois não consegue deixar de olhar no espelho a fim de lembrar-se sempre e sempre do quanto é belo. É preciso, então, esquecer-se do espelho universal para recordar-se em solidão do corpo gracioso de sua brasilidade. Eduardo da Silveira Campos é Doutorando em Filosofia