17 O ENSINO DE PORTUGUÊS EM BUSCA DA EFICIÊNCIA Juscelino Pernambuco Doutor pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Mestre pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Docente do Programa de Mestrado em Lingüística da Universidade de Franca (Unifran). RESUMO Este artigo pretende tratar das possibilidades de se conseguir mais eficiência no ensino de português. Discutem-se nele as dificuldades enfrentadas pelo professor no ensino da língua materna, as possíveis causas do insucesso desse trabalho pedagógico e o tratamento que é dado à gramática. Busca-se nos princípios teóricos da lingüística uma colaboração efetiva para o trabalho do professor e para a criação de condições adequadas à ampliação das habilidades lingüísticas dos usuários. Palavras-chave: ensino de português; gramática; variação lingüística; lingüística; trabalho do professor. ABSTRACT This article aims to approach the possibilities of achieving more efficiency in Portuguese language teaching. The difficulties faced by the mother tongue teacher, the possible causes of the failure in this pedagogical project and the approach which is given to grammar are discussed in this study. An effective collaboration for the teacher’s Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 290 work and for the creation of adequate conditions in the increase of the linguistics abilities of users is searched in the theoretical principles of Linguistics. Key words: portuguese teaching; grammar; linguistic variation; linguistics; teacher’s work. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 291 INTRODUÇÃO Vivendo se aprende, mas o que se aprende mais é só a fazer outras maiores perguntas. (Guimarães Rosa) Existe a crença generalizada de que ensinar Português é fazer que o aluno não erre mais, seja falando, seja escrevendo. O que significa esse não errar? Significa não cometer deslizes que estejam em desacordo com uma gramática considerada um padrão de boa escrita e boa fala. Espera-se que o professor consiga que o aluno seja capaz de escrever e falar conforme as regras da gramática do português culto. Será uma tarefa fácil? Será este mesmo o princípio que deve nortear a prática docente de língua portuguesa? O ENSINO DE PORTUGUÊS: DIFICULDADES E POSSÍVEIS SOLUÇÕES As dificuldades são muitas para um eficiente ensino de português na escola brasileira. A que se deve isso? Entre as diferentes causas do fracasso do ensino de português, apontamos as seguintes: • confusão entre ensino a respeito da língua e ensino do uso da língua; • tratamento inadequado da variação lingüística; Vamos juntos refletir sobre cada uma dessas causas. Confusão entre ensino a respeito da língua e ensino do uso da língua O trabalho escolar de ensino de português tem-se concentrado muito em ensinar ao aluno princípios teóricos de uma gramática prescritiva e proscritiva que apenas aponta o que pode e o que não pode ser dito Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 292 ou escrito pelos usuários da língua. Ao longo dos anos, mesmo com o avanço das ciências lingüísticas, tem-se observado que os professores de língua portuguesa preocupam-se muito com o ensino gramatical como ponto de partida e de chegada do seu trabalho em sala de aula. Ensina-se, ou melhor, tenta-se ensinar muito mais sobre a língua do que propriamente a língua. O professor de português está preocupado com um ensino a respeito da língua. Trabalha com a gramática normativa, pressupondo que é o domínio sobre ela que vai levar o aluno à produção e entendimento de textos, quando, na verdade, não o é. O ensino gramatical deve estar a serviço da leitura e da produção de textos. Uma das concepções de ensino do português defende a gramática normativa, também chamada de tradicional, como o núcleo do ensino. Ensino de português torna-se sinônimo de ensino de gramática. Nessa concepção de ensino, saber língua é saber gramática, ou melhor dizendo, teoria gramatical. Essa é ainda a grande polêmica no ensino do português, uma velha discussão que empolga aqueles defensores de uma concepção mais tradicional de ensino. Mesmo para ensinar a variedade-padrão da língua, a escola tem falhado, uma vez que, partindo da concepção da linguagem apenas como instrumento de comunicação, tem adotado práticas pedagógicas que exigem do estudante somente uma assimilação acrítica do conteúdo ministrado, criando atitudes mecânicas e passivas, responsáveis pelo desinteresse diante do ensino-aprendizagem. O aprendiz só vai chegar à posse da língua através da vivência de situações naturais de comunicação a serem criadas no processo de ensino-aprendizagem. Aprende-se a ouvir e a falar, ouvindo e falando; a ler e a escrever, lendo e escrevendo. Porém, a escola não tem feito o ensino da língua-objeto e sim o ensino da metalíngua. Todo o tempo reservado ao ensino da língua tem sido utilizado para o ensino de Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 293 metalinguagem de análise e o aprendiz vai adquirindo a impressão de que estudar a língua materna é memorizar regras e exceções. Em vez de analisar os fatos da língua, os professores ensinam a codificação da gramática. E o aluno é obrigado a decorar, por exemplo, preposições, advérbios, conjunções sem perceber esses instrumentos em funcionamento no texto. A única função da linguagem em jogo no ensino, de acordo com o esquema das funções da linguagem apontadas por Jakobson (1970, p. 127) é a função metalingüística, ou seja, a língua falando sobre a língua, o saber a respeito da língua. Os conteúdos programáticos que são ensinados na escola têm uma excessiva preocupação com a função metalingüística e isso, conforme aponta Rodrigues (1978, p. 27), perturba e inibe o desenvolvimento das demais funções. Essa insistência de apresentação de modelos que conflitam com a competência lingüística dos aprendizes causa-lhes “um verdadeiro complexo de incompetência lingüística”, bloqueando o exercício de todas as outras funções da linguagem. A preocupação do professor exclusivamente com os desvios morfológicos, sintáticos, lexicais e ortográficos dos textos dos alunos tem sido causa de todo o desprazer e frustração que o estudante sente pelo ensino-aprendizagem da língua materna. Halliday (1974, p. 259) assegura que a aprendizagem de qualquer nova forma de atividade é um processo que não exclui o cometimento de erros de algum tipo, mas não é correto considerar que o processo de aprendizagem em si mesmo seja constituído só pela correção de erros. A adição de novos padrões lingüísticos desempenha um papel muito mais importante que a correção de erros no uso de padrões já adquiridos. Genouvrier e Peytard (1974, p. 224) dizem que é necessário construir exercícios estruturais que levem a criança a utilizar mecanismos gramaticais básicos que ela ignora ou domina mal, mas é ao mestre que cabe conhecer gramática e não ao aluno. Dizem esses autores que é Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 294 à medida que conhece o funcionamento lingüístico da estrutura que deseja ensinar o professor poderá construir exercícios apropriados ao enriquecimento da competência lingüística do aprendiz. A predominância do ensino de metalinguagem, através de exercícios de descrição de regras e exceções gramaticais, domínio de conceitos, de memorização da nomenclatura gramatical não tem levado o aluno a adquirir a habilidade de utilização da língua na modalidade escrita que é, na verdade, o objetivo mais alto fixado pela escola. O que se tem tentado no ensino de língua portuguesa é fazer o aluno escrever na variedade lingüística considerada padrão, mas a escola não vem cumprindo esse papel de veiculadora e transmissora da variedadepadrão da língua na modalidade escrita para uma clientela diversificada lingüística e socialmente. Tratamento inadequado da variação lingüística É preciso compreender o fenômeno da variação numa perspectiva histórica e social; é preciso compreendê‑la como o reflexo da experiência histórica e social de determinados grupos de falantes. As variedades lingüísti­cas são o próprio espelho da diversidade humana, o reflexo da heterogeneidade de experiências de grupos sociais, não cabendo, portanto, nesta linha de raciocínio, fazer uso de conceitos do tipo certo e errado. Nesse sentido, é bom que se saiba que: 1°) toda variedade lingüística tem a sua gramática tão complexa e tão rica quanto a gramática da chamada norma culta; 2º) todo falante de língua materna, seja aquele de classe de menor prestígio social, seja aquele de classe de maior prestígio constrói espontaneamente, por observação e prática, uma gramática interna e, para dominar a linguagem oral ou escrita, não precisa necessariamente estudar a gramática normativa. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 295 Miriam Lemle (1978, p. 60) relata que os professores devem ter uma atitude lúcida diante do fenômeno da heterogeneidade dialetal para que possam tornar o ensino de língua portuguesa de real utilidade para os aprendizes. O que há na verdade, é um conflito entre a variedade dialetal e a norma lingüística a qual a escola exige que todos os estudantes dominem, como se fosse a única, conforme assegura Camacho (1984). Esse problema não tem sido equacionado pelo ensino. A variedade lingüística é um fenômeno natural em qualquer comunidade lingüística decorrente das diferenças sociais dos falantes e, de acordo com Lemle (1978, p. 62), a missão do professor é conduzir os alunos para a aquisição da flexibilidade lingüística necessária para o desempenho lingüístico adequado nas diferentes situações de atos comunicativos. Ainda conforme Lemle (1978, p.60), o objetivo do ensino de língua portuguesa a ser proposto deve ser: “Aprenda a norma culta além do português que você fala, e utilize um ou outro segundo as circunstâncias”. Em síntese, o ensino deve acontecer de forma tal a fazer do aluno um poliglota na própria língua. Uma das características das camadas populares é o domínio da variedade inculta da língua em contraposição ao “falar culto” da classe dominante. A escola não conseguiu adaptar-se a essa circunstância e, incapaz de ensinar a variedade lingüística de prestígio a esse contingente humano proveniente das camadas menos favorecidas, passou a estigmatizar suas manifestações orais e escritas. Zilberman (1985, p. 6) afirma que o tão propagado rebaixamento do nível de ensino decorre principalmente desse conflito: não tendo acesso ao domínio da variedade lingüística de prestígio, da mesma forma como não têm acesso a degraus mais elevados na escala social, as camadas populares freqüentadoras da escola saem dela sem alterar Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 296 o seu padrão lingüístico e ainda vêem rejeitada a variedade da língua que empregam. GRAMÁTICA E ENSINO DE PORTUGUÊS O ensino de gramática pode ser diferente do que tem sido. A gramática não existe para complicar o uso da língua. Ela é apenas uma tentativa de codificar os usos. Ela é um retrato da língua. Não é um fim; é um meio para o falante se apropriar da língua por conta própria. Aliás, ela só deveria ser estudada de forma sistemática depois que o aluno já soubesse ler e escrever, em condições de entender o funcionamento e a finalidade dela. A gramática deve estar a serviço do texto que se lê e se produz. Não há, efetiva­mente, fala sem gramática: toda variedade de língua, prestigiada ou não, possui uma organi­zação sintática, em outras palavras, uma gramáti­ca que permite o entendimento entre as pessoas, em momentos de interlocução. Do ponto de vista lingüístico, não há como fazer um julgamento so­bre o maior ou menor valor de uma determinada variedade. Certo e errado são critérios sociais de avaliação de desempenho lingüístico. Certo é o que está de acordo com a variedade de língua de prestígio social, ou seja, de acordo com a fala das classes letradas. Assim, o que proponho no ensino de português em todos os graus é que as práticas pedagógicas de leitura, escrita e ensino gramatical ocorram de forma integrada. O trabalho com a gramática será feito na perspectiva do uso da funcionalidade dos elementos gramati­cais. Quem tem de dominar a teoria gramatical é o professor, este sim o responsável pela criação de situações, ao nível da prática, em que os alunos deverão in­corporar de modo cada vez mais elaborado a gramática da língua padrão. É preciso que se descubra que o ensino de língua materna não pode ter como objetivo formar o gramático Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 297 ou o lingüista, mas sim ampliar as habilidades dos alunos para falar, escrever, ler e ouvir textos necessários à sua vida social. Umberto Eco, no seu oportuno livrinho Pós-escrito a ‘O nome da rosa’ (1985), faz uma arguta observação: Quando o escritor (ou o artista em geral) diz que trabalhou sem pensar nas regras do processo, quer dizer apenas que trabalhava sem saber que conhecia a regra. Uma criança fala muito bem a língua materna, mas não saberia escrever a sua respectiva gramática. Mas o gramático não é o único que conhece as regras da língua, porque estas, sem saber, a criança conhece muito bem: o gramático é apenas aquele que sabe como e por que a criança conhece a língua. Quem precisa saber gramática é o professor. Não para tentar fazer do aluno um gramático, mas, para como cientista, ser capaz de entender e explicar o que se considera erro gramatical. DIALETOS E REGISTROS O professor deve atuar como um cientista e um artista. Ele não está ali na sala de aula apenas para repetir conhecimentos elaborados por outros, mas também para produzir ciência do ensino e transpor estes princípios teóricos para o contexto social e histórico dos aprendizes. O professor será um homem de ciência se dominar o aparato teórico de sua disciplina de ensino e um artista se tiver habilidades capazes de seduzir o aluno para querer aprender o que ele quer ensinar. Será um artista e um cientista o professor que se mostrar um apaixonado pelos conteúdos que ministra, que sentir prazer em ensinar e que tem consciência de que é permanentemente educador: mostra e ensina posicionamentos, desperta subjetividades. Tudo isso com muito senso de humor, não para ironizar os alunos, mas para criar um clima de alegria na sala de aula. Ter humor é saber rir de si mesmo, ter autocrítica, saber transformar o erro casual do aluno em motivo de riso Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 298 para o aprendizado sem medo. O professor tem de estar ciente de que ele é sempre modelo de alguma situação para o aluno. Assim como o texto literário funciona como um modelo de resolução de conflitos humanos, o professor no seu trabalho de ensino é para o aluno um modelo de ser humano para o aluno, diferente dos modelos a que ele se habitua na vida familiar. O ponto de partida do ensino de língua materna deve ser a percepção de que a língua varia de acordo com os usuários e de acordo com os usos. De acordo com Bowen (apud SOARES, 1972), existem dois tipos de variedades lingüísticas: os dialetos e os registros. Dialetos: Variedades que dependem dos usuários da língua. Registros: Variedades que dependem dos usos, dos interlocutores do discurso e da mensagem. Os dialetos podem ser considerados em seis dimensões: regional, social, de idade, sexo, geração e função. Já os registros classificam-se em três dimensões: o modo (língua oral e língua escrita), o grau de formalismo que varia numa escala de cinco graus básicos e a sintonia, isto é, o grau de status social dos interlocutores, o grau de cortesia entre eles, a tecnicidade da mensagem e a norma. Vejamos, então, o seguinte quadro: Língua Oral Oratório Formal ou deliberativo Coloquial Casual Familiar Língua Escrita Hiperformal Formal Semiformal Informal Pessoal Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 299 1. Registros: oratório e hiperformal: grau extremo de formalismo: Como exemplos de registro oratório temos os chamados discursos de tribuna, proferidos por oradores em sessões de tribunais, parlamentos, igrejas, com predomínio das funções conativa, referencial e emotiva da linguagem. É a busca da persuasão, do convencimento e da exortação. O registro hiperformal predomina em certas mensagens literárias que se preocupam com a elaboração da mensagem no que ela pode mostrar de elementos lingüísticos não comuns ao dia-a-dia dos usuários: os textos de Rui Barbosa, Coelho Neto, a Carta às Icamiabas, em Macunaíma, são exemplos do uso desse registro. 2. Registros deliberativo e formal: linguagem bem cuidada de acordo com a norma culta: a linguagem dos jornais de grande circulação no país, os textos científicos e didáticos das teses, livros didáticos e artigos de grandes revistas servem de exemplo. 3. Registros coloquial e semiformal: uso de construções gramaticais mais soltas (predominância da coordenação), repetições freqüentesc e frases mais curtas. É a linguagem dos diálogos descontraídos, das reportagens de rádio e televisão etc. 4. Registros casual e informal: é a linguagem de grupos (gírias próprias, termos especiais, liberdade de repertório e de sintaxe. Na escrita, a correspondência familiar é o campo próprio desse registro. 5. Registros íntimo e pessoal: maneira pessoal de se usar a linguagem na vida familiar e particular, com o mínimo de formalidade. GRAMÁTICA E VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA Uma das causas do fracasso escolar tem sido a incompetência da escola para ensinar, de forma eficiente, a variedade considerada padrão da língua para a grande maioria dos alunos. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 300 Tem-se constatado que crianças provenientes de classes sociais menos favorecidas socialmente têm encontrado sérias dificuldades para a aquisição do domínio da variedade de prestígio da língua. Muitas explicações têm sido dadas para esse fato. Entre elas, destacam-se duas: a) uma diz que a criança de classe menos favorecida tem deficiência lingüística, aprendeu “menos língua”, é limitada culturalmente: é a chamada Teoria do Déficit Lingüístico; e b) a outra afirma que a criança de classe social desfavorecida domina uma língua diferente daquela de domínio da criança privilegiada socialmente, mas que essa variedade de língua é um sistema lingüístico perfeitamente estruturado tanto quanto o da variedade lingüística prestigiada pela sociedade e pela escola. As crianças de classes sociais desfavorecidas não apresentam nenhuma deficiência de ordem cognitiva, são capazes de aprender tudo o que a escola se dispõe a ensinar-lhes, apenas falam uma variedade de língua diferente daquela prestigiada pela escola. Então, o desafio que se apresenta ao ensino é o de habilitar essas crianças no domínio da variedade-padrão da língua. Para tanto, voltamos mais uma vez à recomendação de Lemle (1978, p. 62 ) quando diz que a missão do professor não é a de fazer com que os educandos abandonem o uso de sua gramática “errada”, para o substituírem pela gramática “certa”, mas sim a de auxiliá-los na aquisição de competência no uso das formas lingüísticas da norma socialmente prestigiada, como se fosse uma segunda língua, a título de acréscimo aos usos lingüísticos regionais e coloquiais que já dominam. Cabe ao professor agir com clarividência diante do fenômeno da variedade dialetal, se quiser ensinar com eficiência a variedade lingüística prestigiada socialmente a todos os seus alunos. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 301 Aprender uma língua significa apropriar-se das suas possibilidades de usos. Isso significa dizer que podemos ser poliglotas na própria língua, tais são as possibilidades de variação que a língua oferece aos seus usuários. Para pedir um cafezinho, alguém poderá dizer: (1) “Por obséquio, sirva- me uma chávena da preciosa rubiácea.” (2) “Por favor, sirva-me uma xícara de café.” (3) “Me dá uma chicrinha de café, aí cara.” É uma questão de Norma, isto é, de adequação ao contexto, ao momento da fala e de sintonia com a pessoa com quem se fala. A máxima: “Não deixe para amanhã o que pode ser feito hoje”, poderá ser dita das seguintes maneiras: (4) “Não procrastines o que é de feitura hodierna.” (5) “Não adies o que deve ser feito agora.” (6) “Não empurres com a barriga.” As frases de (1) e(4) estão num registro rebuscado, hiperformal, e podem, de acordo com as circunstâncias, ser consideradas totalmente inadequadas e mostrar apenas exibicionismo gramatical. Dessa forma, (3) e (6) são frases ditas em um registro bastante informal, sem maiores preocupações com a elegância da construção lingüística. As frases contidas em (2) e (5) estão em um registro formal, a chamada norma culta que é o padrão de expressão privilegiado socialmente e que a escola se esforça por ensinar aos seus alunos em todos os graus do ensino. O ideal é que nós todos nos apropriemos dos diferentes usos da língua, tornando-nos capazes de dialogar com todas as pessoas cultas e incultas que, de uma forma ou de outra, constituem a comunidade de língua portuguesa. Se isso for difícil, esforcemo-nos por dominar Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 302 bem a norma considerada culta, porque é com ela que vamos poder exercer de forma adequada a nossa cidadania e a nossa profissão, com a eficiência que a sociedade exige. Nós aprendemos uma língua ou tantas outras quantas desejarmos, exatamente porque temos a faculdade da linguagem. Linguagem é processo, é a capacidade que temos de criar símbolos; língua é produto do exercício da linguagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS O princípio norteador de um ensino eficiente de língua portuguesa deve ser o fato de que não é propriamente ensinar o que deve fazer, mas ampliar as habilidades lingüísticas que a criança já tem quando vem para a escola. Aliás, poder-se-ia até mudar o nome da disciplina de estudo: em vez de ensino de português, o melhor seria aprimoramento das habilidades de linguagem. Ensina-se o que não se sabe. Aprimora-se o que já se sabe um pouco. Mais ainda: o ponto de partida deve ser sempre as habilidades que a criança já tem. Aqui a teoria lingüística tem muito a oferecer. É nela que o professor deverá buscar apoio para um trabalho produtivo e mais eficiente. A escola deve criar condições para o aluno chegar ao domínio da língua por conta própria. Isso significa dizer que nela se deve praticar de fato a linguagem. Em verdade, o que deve acontecer no ensino é a percepção, pelo aluno, de que a língua existe também para ele, para satisfazer sua necessidade de expressão, de ação sobre o outro e sobre o mundo. É no diálogo que a significação se faz. O significado está no léxico, mas a significação vai existir no momento em que se dialoga com o outro. Muitos professores de português estão preocupados ainda com um ensino a respeito da língua. Eles concentram todo o seu trabalho na gramática normativa, pressupondo que é o domínio sobre ela que vai Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008 303 levar o aluno à produção e entendimento de textos, quando, na verdade, não o é. O ensino gramatical deve estar a serviço da produção e reconhecimento do texto. Se se deseja que os alunos ampliem a sua habilidade de produzir textos orais ou escritos que manifestem a sua subjetividade, o seu posicionamento diante do outro, necessário se faz direcionar o ensino para esse fim, e, sobretudo, que o professor seja também um eficiente produtor e leitor de textos. REFERÊNCIAS CAMACHO, R. G. Conflito entre norma e diversidade dialetal no ensino de língua portuguesa. 1984. Tese (Doutorado em Lingüística) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara. ECO, U. Pós-escrito a ‘O nome da Rosa’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. HALLIDAY, M.A.K. et al. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Tradução de Miriam Freire Morau. Petrópolis: Vozes, 1974. JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1970. LEMLE, M. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. Revista Tempo Brasileiro. Rio: Tempo Brasileiro, 1978. SOARES, M. (Org.). Didática de português. Belo Horizonte: Opus, 1972. ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras • Franca(SP) • v. 4 • n. 4 • p. 289-303 • jan./dez. 2008