O ENSINO DE PORTUGUÊS EM BUSCA DA EFICIÊNCIA

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O ENSINO DE PORTUGUÊS EM BUSCA DA EFICIÊNCIA
Juscelino Pernambuco
Doutor pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Docente do Programa de Mestrado em Lingüística da Universidade de
Franca (Unifran).
RESUMO
Este artigo pretende tratar das possibilidades de se conseguir mais
eficiência no ensino de português. Discutem-se nele as dificuldades
enfrentadas pelo professor no ensino da língua materna, as possíveis
causas do insucesso desse trabalho pedagógico e o tratamento que
é dado à gramática. Busca-se nos princípios teóricos da lingüística
uma colaboração efetiva para o trabalho do professor e para a criação
de condições adequadas à ampliação das habilidades lingüísticas dos
usuários.
Palavras-chave: ensino de português; gramática; variação lingüística; lingüística; trabalho do professor.
ABSTRACT
This article aims to approach the possibilities of achieving more
efficiency in Portuguese language teaching. The difficulties faced by
the mother tongue teacher, the possible causes of the failure in this
pedagogical project and the approach which is given to grammar are
discussed in this study. An effective collaboration for the teacher’s
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work and for the creation of adequate conditions in the increase of
the linguistics abilities of users is searched in the theoretical principles of Linguistics.
Key words: portuguese teaching; grammar; linguistic variation; linguistics; teacher’s work.
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INTRODUÇÃO
Vivendo se aprende, mas o que se aprende mais
é só a fazer outras maiores perguntas.
(Guimarães Rosa)
Existe a crença generalizada de que ensinar Português é fazer que o
aluno não erre mais, seja falando, seja escrevendo. O que significa esse
não errar? Significa não cometer deslizes que estejam em desacordo
com uma gramática considerada um padrão de boa escrita e boa fala.
Espera-se que o professor consiga que o aluno seja capaz de escrever
e falar conforme as regras da gramática do português culto.
Será uma tarefa fácil? Será este mesmo o princípio que deve nortear
a prática docente de língua portuguesa?
O ENSINO DE PORTUGUÊS: DIFICULDADES E POSSÍVEIS SOLUÇÕES
As dificuldades são muitas para um eficiente ensino de português
na escola brasileira. A que se deve isso?
Entre as diferentes causas do fracasso do ensino de português,
apontamos as seguintes:
• confusão entre ensino a respeito da língua e ensino do uso da
língua;
• tratamento inadequado da variação lingüística;
Vamos juntos refletir sobre cada uma dessas causas.
Confusão entre ensino a respeito da língua e ensino do uso da língua
O trabalho escolar de ensino de português tem-se concentrado muito
em ensinar ao aluno princípios teóricos de uma gramática prescritiva
e proscritiva que apenas aponta o que pode e o que não pode ser dito
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ou escrito pelos usuários da língua. Ao longo dos anos, mesmo com o
avanço das ciências lingüísticas, tem-se observado que os professores de
língua portuguesa preocupam-se muito com o ensino gramatical como
ponto de partida e de chegada do seu trabalho em sala de aula.
Ensina-se, ou melhor, tenta-se ensinar muito mais sobre a língua do que
propriamente a língua. O professor de português está preocupado com
um ensino a respeito da língua. Trabalha com a gramática normativa,
pressupondo que é o domínio sobre ela que vai levar o aluno à produção e entendimento de textos, quando, na verdade, não o é. O ensino
gramatical deve estar a serviço da leitura e da produção de textos.
Uma das concepções de ensino do português defende a gramática
normativa, também chamada de tradicional, como o núcleo do ensino. Ensino de português torna-se sinônimo de ensino de gramática.
Nessa concepção de ensino, saber língua é saber gramática, ou melhor
dizendo, teoria gramatical.
Essa é ainda a grande polêmica no ensino do português, uma velha
discussão que empolga aqueles defensores de uma concepção mais
tradicional de ensino. Mesmo para ensinar a variedade-padrão da
língua, a escola tem falhado, uma vez que, partindo da concepção da
linguagem apenas como instrumento de comunicação, tem adotado
práticas pedagógicas que exigem do estudante somente uma assimilação
acrítica do conteúdo ministrado, criando atitudes mecânicas e passivas,
responsáveis pelo desinteresse diante do ensino-aprendizagem.
O aprendiz só vai chegar à posse da língua através da vivência de
situações naturais de comunicação a serem criadas no processo de
ensino-aprendizagem. Aprende-se a ouvir e a falar, ouvindo e falando;
a ler e a escrever, lendo e escrevendo. Porém, a escola não tem feito o
ensino da língua-objeto e sim o ensino da metalíngua. Todo o tempo
reservado ao ensino da língua tem sido utilizado para o ensino de
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metalinguagem de análise e o aprendiz vai adquirindo a impressão
de que estudar a língua materna é memorizar regras e exceções.
Em vez de analisar os fatos da língua, os professores ensinam a codificação da gramática. E o aluno é obrigado a decorar, por exemplo,
preposições, advérbios, conjunções sem perceber esses instrumentos
em funcionamento no texto. A única função da linguagem em jogo
no ensino, de acordo com o esquema das funções da linguagem
apontadas por Jakobson (1970, p. 127) é a função metalingüística,
ou seja, a língua falando sobre a língua, o saber a respeito da língua.
Os conteúdos programáticos que são ensinados na escola têm uma
excessiva preocupação com a função metalingüística e isso, conforme
aponta Rodrigues (1978, p. 27), perturba e inibe o desenvolvimento
das demais funções. Essa insistência de apresentação de modelos que
conflitam com a competência lingüística dos aprendizes causa-lhes
“um verdadeiro complexo de incompetência lingüística”, bloqueando
o exercício de todas as outras funções da linguagem. A preocupação
do professor exclusivamente com os desvios morfológicos, sintáticos,
lexicais e ortográficos dos textos dos alunos tem sido causa de todo o
desprazer e frustração que o estudante sente pelo ensino-aprendizagem
da língua materna.
Halliday (1974, p. 259) assegura que a aprendizagem de qualquer
nova forma de atividade é um processo que não exclui o cometimento
de erros de algum tipo, mas não é correto considerar que o processo de
aprendizagem em si mesmo seja constituído só pela correção de erros.
A adição de novos padrões lingüísticos desempenha um papel muito
mais importante que a correção de erros no uso de padrões já adquiridos.
Genouvrier e Peytard (1974, p. 224) dizem que é necessário construir
exercícios estruturais que levem a criança a utilizar mecanismos gramaticais básicos que ela ignora ou domina mal, mas é ao mestre que
cabe conhecer gramática e não ao aluno. Dizem esses autores que é
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à medida que conhece o funcionamento lingüístico da estrutura que
deseja ensinar o professor poderá construir exercícios apropriados ao
enriquecimento da competência lingüística do aprendiz.
A predominância do ensino de metalinguagem, através de exercícios
de descrição de regras e exceções gramaticais, domínio de conceitos,
de memorização da nomenclatura gramatical não tem levado o aluno
a adquirir a habilidade de utilização da língua na modalidade escrita
que é, na verdade, o objetivo mais alto fixado pela escola. O que se
tem tentado no ensino de língua portuguesa é fazer o aluno escrever
na variedade lingüística considerada padrão, mas a escola não vem
cumprindo esse papel de veiculadora e transmissora da variedadepadrão da língua na modalidade escrita para uma clientela diversificada lingüística e socialmente.
Tratamento inadequado da variação lingüística
É preciso compreender o fenômeno da variação numa perspectiva
histórica e social; é preciso compreendê‑la como o reflexo da experiência histórica e social de determinados grupos de falantes.
As variedades lingüísti­cas são o próprio espelho da diversidade humana, o reflexo da heterogeneidade de experiências de grupos sociais,
não cabendo, portanto, nesta linha de raciocínio, fazer uso de conceitos
do tipo certo e errado. Nesse sentido, é bom que se saiba que:
1°) toda variedade lingüística tem a sua gramática tão complexa e
tão rica quanto a gramática da chamada norma culta;
2º) todo falante de língua materna, seja aquele de classe de menor
prestígio social, seja aquele de classe de maior prestígio constrói
espontaneamente, por observação e prática, uma gramática interna
e, para dominar a linguagem oral ou escrita, não precisa necessariamente estudar a gramática normativa.
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Miriam Lemle (1978, p. 60) relata que os professores devem ter uma
atitude lúcida diante do fenômeno da heterogeneidade dialetal para
que possam tornar o ensino de língua portuguesa de real utilidade
para os aprendizes.
O que há na verdade, é um conflito entre a variedade dialetal e a
norma lingüística a qual a escola exige que todos os estudantes dominem, como se fosse a única, conforme assegura Camacho (1984).
Esse problema não tem sido equacionado pelo ensino.
A variedade lingüística é um fenômeno natural em qualquer comunidade lingüística decorrente das diferenças sociais dos falantes e, de acordo
com Lemle (1978, p. 62), a missão do professor é conduzir os alunos para
a aquisição da flexibilidade lingüística necessária para o desempenho
lingüístico adequado nas diferentes situações de atos comunicativos.
Ainda conforme Lemle (1978, p.60), o objetivo do ensino de língua
portuguesa a ser proposto deve ser: “Aprenda a norma culta além do
português que você fala, e utilize um ou outro segundo as circunstâncias”. Em síntese, o ensino deve acontecer de forma tal a fazer
do aluno um poliglota na própria língua. Uma das características
das camadas populares é o domínio da variedade inculta da língua
em contraposição ao “falar culto” da classe dominante. A escola não
conseguiu adaptar-se a essa circunstância e, incapaz de ensinar a
variedade lingüística de prestígio a esse contingente humano proveniente das camadas menos favorecidas, passou a estigmatizar suas
manifestações orais e escritas.
Zilberman (1985, p. 6) afirma que o tão propagado rebaixamento
do nível de ensino decorre principalmente desse conflito: não tendo
acesso ao domínio da variedade lingüística de prestígio, da mesma
forma como não têm acesso a degraus mais elevados na escala social,
as camadas populares freqüentadoras da escola saem dela sem alterar
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o seu padrão lingüístico e ainda vêem rejeitada a variedade da língua
que empregam.
GRAMÁTICA E ENSINO DE PORTUGUÊS
O ensino de gramática pode ser diferente do que tem sido. A gramática
não existe para complicar o uso da língua. Ela é apenas uma tentativa
de codificar os usos. Ela é um retrato da língua. Não é um fim; é um
meio para o falante se apropriar da língua por conta própria. Aliás,
ela só deveria ser estudada de forma sistemática depois que o aluno já
soubesse ler e escrever, em condições de entender o funcionamento e
a finalidade dela. A gramática deve estar a serviço do texto que se lê e
se produz. Não há, efetiva­mente, fala sem gramática: toda variedade
de língua, prestigiada ou não, possui uma organi­zação sintática, em
outras palavras, uma gramáti­ca que permite o entendimento entre as
pessoas, em momentos de interlocução. Do ponto de vista lingüístico,
não há como fazer um julgamento so­bre o maior ou menor valor de
uma determinada variedade. Certo e errado são critérios sociais de
avaliação de desempenho lingüístico. Certo é o que está de acordo
com a variedade de língua de prestígio social, ou seja, de acordo com
a fala das classes letradas.
Assim, o que proponho no ensino de português em todos os graus
é que as práticas pedagógicas de leitura, escrita e ensino gramatical
ocorram de forma integrada. O trabalho com a gramática será feito na
perspectiva do uso da funcionalidade dos elementos gramati­cais.
Quem tem de dominar a teoria gramatical é o professor, este sim
o responsável pela criação de situações, ao nível da prática, em que
os alunos deverão in­corporar de modo cada vez mais elaborado a
gramática da língua padrão. É preciso que se descubra que o ensino
de língua materna não pode ter como objetivo formar o gramático
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ou o lingüista, mas sim ampliar as habilidades dos alunos para falar,
escrever, ler e ouvir textos necessários à sua vida social.
Umberto Eco, no seu oportuno livrinho Pós-escrito a ‘O nome da
rosa’ (1985), faz uma arguta observação:
Quando o escritor (ou o artista em geral) diz que trabalhou
sem pensar nas regras do processo, quer dizer apenas que
trabalhava sem saber que conhecia a regra. Uma criança
fala muito bem a língua materna, mas não saberia escrever
a sua respectiva gramática. Mas o gramático não é o único
que conhece as regras da língua, porque estas, sem saber, a
criança conhece muito bem: o gramático é apenas aquele que
sabe como e por que a criança conhece a língua.
Quem precisa saber gramática é o professor. Não para tentar fazer
do aluno um gramático, mas, para como cientista, ser capaz de entender e explicar o que se considera erro gramatical.
DIALETOS E REGISTROS
O professor deve atuar como um cientista e um artista. Ele não está
ali na sala de aula apenas para repetir conhecimentos elaborados por
outros, mas também para produzir ciência do ensino e transpor estes
princípios teóricos para o contexto social e histórico dos aprendizes.
O professor será um homem de ciência se dominar o aparato teórico
de sua disciplina de ensino e um artista se tiver habilidades capazes
de seduzir o aluno para querer aprender o que ele quer ensinar. Será
um artista e um cientista o professor que se mostrar um apaixonado
pelos conteúdos que ministra, que sentir prazer em ensinar e que tem
consciência de que é permanentemente educador: mostra e ensina
posicionamentos, desperta subjetividades. Tudo isso com muito senso
de humor, não para ironizar os alunos, mas para criar um clima de
alegria na sala de aula. Ter humor é saber rir de si mesmo, ter autocrítica, saber transformar o erro casual do aluno em motivo de riso
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para o aprendizado sem medo. O professor tem de estar ciente de que
ele é sempre modelo de alguma situação para o aluno. Assim como
o texto literário funciona como um modelo de resolução de conflitos
humanos, o professor no seu trabalho de ensino é para o aluno um
modelo de ser humano para o aluno, diferente dos modelos a que ele
se habitua na vida familiar.
O ponto de partida do ensino de língua materna deve ser a percepção de que a língua varia de acordo com os usuários e de acordo
com os usos.
De acordo com Bowen (apud SOARES, 1972), existem dois tipos
de variedades lingüísticas: os dialetos e os registros.
Dialetos: Variedades que dependem dos usuários da língua.
Registros: Variedades que dependem dos usos, dos interlocutores
do discurso e da mensagem.
Os dialetos podem ser considerados em seis dimensões: regional,
social, de idade, sexo, geração e função.
Já os registros classificam-se em três dimensões: o modo (língua
oral e língua escrita), o grau de formalismo que varia numa escala
de cinco graus básicos e a sintonia, isto é, o grau de status social dos
interlocutores, o grau de cortesia entre eles, a tecnicidade da mensagem e a norma. Vejamos, então, o seguinte quadro:
Língua Oral
Oratório
Formal ou deliberativo
Coloquial
Casual
Familiar
Língua Escrita
Hiperformal
Formal
Semiformal
Informal
Pessoal
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1. Registros: oratório e hiperformal: grau extremo de formalismo:
Como exemplos de registro oratório temos os chamados discursos
de tribuna, proferidos por oradores em sessões de tribunais, parlamentos, igrejas, com predomínio das funções conativa, referencial e
emotiva da linguagem. É a busca da persuasão, do convencimento
e da exortação.
O registro hiperformal predomina em certas mensagens literárias
que se preocupam com a elaboração da mensagem no que ela pode
mostrar de elementos lingüísticos não comuns ao dia-a-dia dos usuários: os textos de Rui Barbosa, Coelho Neto, a Carta às Icamiabas,
em Macunaíma, são exemplos do uso desse registro.
2. Registros deliberativo e formal: linguagem bem cuidada de acordo com a norma culta: a linguagem dos jornais de grande circulação
no país, os textos científicos e didáticos das teses, livros didáticos e
artigos de grandes revistas servem de exemplo.
3. Registros coloquial e semiformal: uso de construções gramaticais
mais soltas (predominância da coordenação), repetições freqüentesc
e frases mais curtas. É a linguagem dos diálogos descontraídos, das
reportagens de rádio e televisão etc.
4. Registros casual e informal: é a linguagem de grupos (gírias próprias, termos especiais, liberdade de repertório e de sintaxe. Na escrita,
a correspondência familiar é o campo próprio desse registro.
5. Registros íntimo e pessoal: maneira pessoal de se usar a linguagem
na vida familiar e particular, com o mínimo de formalidade.
GRAMÁTICA E VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
Uma das causas do fracasso escolar tem sido a incompetência da
escola para ensinar, de forma eficiente, a variedade considerada padrão da língua para a grande maioria dos alunos.
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Tem-se constatado que crianças provenientes de classes sociais
menos favorecidas socialmente têm encontrado sérias dificuldades
para a aquisição do domínio da variedade de prestígio da língua.
Muitas explicações têm sido dadas para esse fato. Entre elas, destacam-se duas:
a) uma diz que a criança de classe menos favorecida tem deficiência
lingüística, aprendeu “menos língua”, é limitada culturalmente: é a
chamada Teoria do Déficit Lingüístico; e
b) a outra afirma que a criança de classe social desfavorecida domina
uma língua diferente daquela de domínio da criança privilegiada socialmente, mas que essa variedade de língua é um sistema lingüístico
perfeitamente estruturado tanto quanto o da variedade lingüística
prestigiada pela sociedade e pela escola.
As crianças de classes sociais desfavorecidas não apresentam nenhuma deficiência de ordem cognitiva, são capazes de aprender tudo
o que a escola se dispõe a ensinar-lhes, apenas falam uma variedade
de língua diferente daquela prestigiada pela escola. Então, o desafio
que se apresenta ao ensino é o de habilitar essas crianças no domínio
da variedade-padrão da língua. Para tanto, voltamos mais uma vez
à recomendação de Lemle (1978, p. 62 ) quando diz que a missão
do professor não é a de fazer com que os educandos abandonem o
uso de sua gramática “errada”, para o substituírem pela gramática
“certa”, mas sim a de auxiliá-los na aquisição de competência no uso
das formas lingüísticas da norma socialmente prestigiada, como se
fosse uma segunda língua, a título de acréscimo aos usos lingüísticos
regionais e coloquiais que já dominam.
Cabe ao professor agir com clarividência diante do fenômeno da
variedade dialetal, se quiser ensinar com eficiência a variedade lingüística prestigiada socialmente a todos os seus alunos.
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Aprender uma língua significa apropriar-se das suas possibilidades
de usos. Isso significa dizer que podemos ser poliglotas na própria
língua, tais são as possibilidades de variação que a língua oferece aos
seus usuários. Para pedir um cafezinho, alguém poderá dizer:
(1) “Por obséquio, sirva- me uma chávena da preciosa rubiácea.”
(2) “Por favor, sirva-me uma xícara de café.”
(3) “Me dá uma chicrinha de café, aí cara.”
É uma questão de Norma, isto é, de adequação ao contexto, ao
momento da fala e de sintonia com a pessoa com quem se fala.
A máxima: “Não deixe para amanhã o que pode ser feito hoje”,
poderá ser dita das seguintes maneiras:
(4) “Não procrastines o que é de feitura hodierna.”
(5) “Não adies o que deve ser feito agora.”
(6) “Não empurres com a barriga.”
As frases de (1) e(4) estão num registro rebuscado, hiperformal, e
podem, de acordo com as circunstâncias, ser consideradas totalmente
inadequadas e mostrar apenas exibicionismo gramatical.
Dessa forma, (3) e (6) são frases ditas em um registro bastante informal,
sem maiores preocupações com a elegância da construção lingüística.
As frases contidas em (2) e (5) estão em um registro formal, a
chamada norma culta que é o padrão de expressão privilegiado socialmente e que a escola se esforça por ensinar aos seus alunos em
todos os graus do ensino.
O ideal é que nós todos nos apropriemos dos diferentes usos da
língua, tornando-nos capazes de dialogar com todas as pessoas cultas
e incultas que, de uma forma ou de outra, constituem a comunidade
de língua portuguesa. Se isso for difícil, esforcemo-nos por dominar
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bem a norma considerada culta, porque é com ela que vamos poder
exercer de forma adequada a nossa cidadania e a nossa profissão, com
a eficiência que a sociedade exige.
Nós aprendemos uma língua ou tantas outras quantas desejarmos,
exatamente porque temos a faculdade da linguagem. Linguagem é
processo, é a capacidade que temos de criar símbolos; língua é produto
do exercício da linguagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O princípio norteador de um ensino eficiente de língua portuguesa
deve ser o fato de que não é propriamente ensinar o que deve fazer,
mas ampliar as habilidades lingüísticas que a criança já tem quando
vem para a escola. Aliás, poder-se-ia até mudar o nome da disciplina
de estudo: em vez de ensino de português, o melhor seria aprimoramento das habilidades de linguagem. Ensina-se o que não se sabe.
Aprimora-se o que já se sabe um pouco. Mais ainda: o ponto de
partida deve ser sempre as habilidades que a criança já tem. Aqui a
teoria lingüística tem muito a oferecer. É nela que o professor deverá
buscar apoio para um trabalho produtivo e mais eficiente.
A escola deve criar condições para o aluno chegar ao domínio da
língua por conta própria. Isso significa dizer que nela se deve praticar
de fato a linguagem.
Em verdade, o que deve acontecer no ensino é a percepção, pelo
aluno, de que a língua existe também para ele, para satisfazer sua necessidade de expressão, de ação sobre o outro e sobre o mundo. É no
diálogo que a significação se faz. O significado está no léxico, mas a
significação vai existir no momento em que se dialoga com o outro.
Muitos professores de português estão preocupados ainda com um
ensino a respeito da língua. Eles concentram todo o seu trabalho na
gramática normativa, pressupondo que é o domínio sobre ela que vai
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levar o aluno à produção e entendimento de textos, quando, na verdade, não o é. O ensino gramatical deve estar a serviço da produção
e reconhecimento do texto.
Se se deseja que os alunos ampliem a sua habilidade de produzir
textos orais ou escritos que manifestem a sua subjetividade, o seu
posicionamento diante do outro, necessário se faz direcionar o ensino
para esse fim, e, sobretudo, que o professor seja também um eficiente
produtor e leitor de textos.
REFERÊNCIAS
CAMACHO, R. G. Conflito entre norma e diversidade dialetal no ensino de
língua portuguesa. 1984. Tese (Doutorado em Lingüística) – Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara.
ECO, U. Pós-escrito a ‘O nome da Rosa’. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
HALLIDAY, M.A.K. et al. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas.
Tradução de Miriam Freire Morau. Petrópolis: Vozes, 1974.
JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. 4. ed. São Paulo: Cultrix,
1970.
LEMLE, M. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. Revista
Tempo Brasileiro. Rio: Tempo Brasileiro, 1978.
SOARES, M. (Org.). Didática de português. Belo Horizonte: Opus,
1972.
ZILBERMAN, R. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do
professor. 5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
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