LINGÜÍSTICA NOSSA QUE SE PRETENDE SER DE CADA DIA Jornal Imagem (Nova Andradina-MS), 05/07/2008. Pelos erros nossos de cada dia: Pai, Perdoa-nos, pois não sabemos como dizer... Primeira Parte Semana passada abriu esta coluna um artigo bastante interessante assinado pelo Dr. Marlon Leal Rodrigues, que enfocava uma discussão legal entre o papel do lingüista e o papel do gramático, artigo bastante oportuno para os tempos em que vivemos e cujo título sugestivo nos chama a atenção: “Lingüística nossa que se pretende ser de cada dia”. Meu papo talvez não siga na mesma direção, mas trago à tona também um assunto bastante polêmico e que precisa ser discutido nas esferas acadêmicas, nas conversas de “butiquim que muitas vezes valem mais do que uma aula”, como disse o amigo Marlon e em locais públicos onde exista sujeitos e onde exista luta de classes, onde exista Estado e onde exista dominantes e dominados. Para início de conversa vamos situar a nossa discussão em torno da questão de que não existe preconceito lingüístico, existe sim, e como é forte, o preconceito social. Está expresso na Legislação, está exposto na mídia, veiculado via imprensa que é terminantemente proibido qualquer tipo de discriminação, seja ela racial, religiosa, ideário político, etc. e as instituições governamentais e não-governamentais (ONGs) têm avançado muito nos últimos tempos para consolidar um Estado de direitos, de garantias institucionais, de bem-estar social e de convívio pacífico. Mas é latente, gritante e evidente que a língua é o único lugar em que a discriminação é aceita. Em nenhum documento está dito que não se tem o direito de discriminar alguém por causa de seu sotaque ou de qualquer outra peculiaridade lingüística, embora se condene claramente qualquer outro tipo de discriminação: opção sexual, cor, raça, religião, etc... Assim, escola, comunidade, profissionais e leigos não só não trabalha em favor do fim da discriminação lingüística e\ou social, como pelo contrário, cada vez mais se valoriza a língua da escola, que é na verdade a língua do Estado que exclui ainda mais os que já são excluídos. É comum ouvirmos expressões como “Não entendo gramática” ou “a língua portuguesa é muito difícil” e, ao ouvir isso, percebemos uma sentença gramaticalmente perfeita. Isto quer dizer que os que assim se expressam, conhecem a gramática da língua, mas não se identificam com a gramática escolar; que ele domina muito bem a sua língua e isso é fato tão certo que ele fala a mesma fluentemente. Então, não há razão para proferir as expressões acima. Achar que o ensino\aprendizado tem a ver com o que está codificado na gramática, a partir do que devemos fazer exercícios, significa afastar o falante da reflexão. A língua é mais complexa do que um conjunto de regras, ela (a língua) é mais do que forma de comunicação e não pode ser reduzida a um mero compêndio gramatical, herdeiro de uma tradição de 6.000 anos de história. Assim, quando se diz que algo está “certo”, o que se fez foi uma escolha a partir de algo. É interessante observar como se dá o ensino de língua portuguesa em nossas escolas: damos aulas de ‘língua portuguesa’ para falantes de língua portuguesa. A escola consegue realizar essa proeza, dar aulas daquilo que o sujeito já sabe, daquilo que ele já domina. Talvez daí venha o desinteresse estampado no rosto dos nossos alunos e, conseqüentemente, da desmotivação dos professores. Dessa forma, o que vemos em nosso sistema educacional é somente o ensino de gramática (disfarçado de ensino de língua portuguesa, onde não se faz distinção entre um e outro), em que o aluno é levado a estudar as regras da língua para falar e escrever corretamente e, o que é pior, depois de 12 ou 13 anos de ensino de língua portuguesa para falantes de língua portuguesa o aluno percebe que não sabe ler nem escrever quando se depara com as provas do vestibular e outras formas de exclusão social. É em aulas desse tipo e no ensino de gramáticas desse tipo que surgem os preconceitos lingüísticos, onde excluem-se as variedades lingüísticas centrando o ensino de língua portuguesa numa única variedade: a escrita padrão literária, conferindo ao aluno o título de incapaz de dominar a sua própria língua e, ao professor, o troféu de inutilidade, por trabalhar\apresentar ao aluno exatamente o que ele sabe e domina – a sua língua. Uma variedade ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. Assim, equivale a dizer que os preconceitos relacionados à cor, sexo, religião, etc. são condenados (cabendo até um processo judicial), ao contrário dos preconceitos lingüísticos que continuam cada vez mais presentes na nossa sociedade, fazendo suas vítimas. “O português não padrão é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre as pessoas que o falam. Ele é considerado feio, deficiente, pobre, errado, rude, tosco, estropiado” – valores que a elite escolarizada incute à fala do povo, fala espontânea do povo. Deveria, na escola, deixar claro que o português não padrão, não oficial não é “pobre” nem “errado”, mas que pobres sim, são aqueles que o falam, e errada é a situação de injustiça social a que são relegados nesse país de tão demarcadas fronteiras sociais e econômicas. Prof. Msc. Anailton de Souza Gama, UEMS-Nova Andradina, UFMS/CPTL – Três Lagoas-MS, Núcleo de Estudos em Análise do Discurso. Contato: [email protected]