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Breves considerações acerca dos tratados internacionais sobre
direitos humanos
Ana Carolina Araújo Souza
Como citar este artigo: SOUZA, Ana Carolina Araújo de. Breves considerações acerca dos
tratados internacionais sobre direitos humanos. Disponível em http://www.iuspedia.com.br
15 maio. 2008.
1. Introdução
A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu artigo 2°, 1, a, ao conceituar a
mais expressiva fonte do Direito Internacional Público, qual seja, o tratado, dispõe cuidarse de "um acordo internacional celebrado por escrito entre Estados regidos por direito
internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos
conexos, qualquer que seja sua denominação particular".
Assim, uma vez concluído o ciclo de formação de um tratado, e tendo ingressado
validamente no ordenamento pátrio, gozando de executoriedade – o que só se verifica com
sua promulgação –, cumpre perquirir como será ele recepcionado.
Tal questão avulta de importância ao considerar a possibilidade de o tratado, uma vez
incorporado ao ordenamento jurídico nacional, conflitar com alguma norma inscrita na
legislação interna.
1
Desse modo, o debate acerca do status com que os tratados são incorporados no
ordenamento pátrio pressupõe o exame da posição hierárquica de normas de direito
internacional em face da Constituição. Em outras palavras, guardando íntima relação com a
Teoria da Construção Escalonada de Hans Kelsen, a discussão ora apresentada é de
manifesta utilidade para a guarda da supremacia constitucional.
Dito isso, tem-se que, a despeito de entendimentos divergentes, a posição majoritariamente
esposada pela doutrina [1] e jurisprudência pátrias acerca do status normativo dos tratados
internacionais é a de que tais espécies gozam de força de lei ordinária.
A discussão, todavia, escapa à pacificidade quando se cuida da posição hierárquica dos
tratados internacionais que versam sobre direitos humanos.
Isso porque, a Carta da República, em seu artigo 5°, § 2º, dispõe que "Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte.".
A discussão, aliás, reacendeu-se quando, com a redação conferida pela Emenda
Constitucional n° 45, foi inscrito na referida Carta, em seu artigo 5°, § 3º, que "Os tratados
e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais."
Assim, ao lado daqueles que entendem que, mesmo quando versando sobre direitos
humanos, devem os tratados ser recepcionados com força de lei ordinária, outros há que
afirmam a natureza supraconstitucional, constitucional ou supralegal dos aludidos
instrumentos normativos.
2. Do status supraconstitucional
2
Dentre aqueles que esposam a opinião da supraconstitucionalidade do tratado internacional
sobre direitos humanos, identifica-se Celso de Albuquerque Mello[2] para quem a
Constituição não detém poder revogatório em relação às normas internacionais.
Tal concepção, todavia, esbarra em delicada questão, qual seja, a ameaça à força da
Constituição Federal em face das normas de direito internacional.
Isso porque, ao se admitir a supraconstitucionalidade das normas de direito internacional
acerca de direitos humanos, não se afigura possível implementar, sobre tais regras, o
controle de constitucionalidade – ao menos não adotando como parâmetro de
constitucionalidade a Carta Magna –, uma vez que, na esteira daquela concepção, ocupará o
Diploma Constitucional posição hierárquica inferior à norma que se pretende controlar.
Assim, tendo em vista que o mecanismo de controle de constitucionalidade impede que
normatizações não derivadas do Poder Constituinte alterem a estrutura do Estado e as
garantias fundamentais do cidadão, sua supressão em relação a normas oriundas de tratados
internacionais representa ameaça não só à rigidez constitucional – que se ancora no
postulado do escalonamento normativo, do qual deriva a supremacia da Constituição –,
como ao próprio Estado Democrático de Direito.
Ora, a Constituição Federal, expressão concreta do Poder Constituinte, figura como norma
máxima do ordenamento jurídico pátrio, servindo como fundamento de validade para todas
as demais espécies normativas que lhe sobrevierem.
Dispondo acerca da supremacia constitucional, oportuno conferir a lição de José Afonso da
Silva:
[...] princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das
normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior
somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a
constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade
3
vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como
fundamento de validade das inferiores[3]. (itálicos originais)
Assim, qualquer disposição que pretenda integrar o ordenamento interno há que se amoldar
às premissas constitucionalmente estabelecidas, não se podendo cogitar de norma cujo
conteúdo seja tão especial que enseje a dispensa da observância dos preceitos superiores do
ordenamento.
Aliás, se, num Estado que se pretenda Democrático e de Direito, a validade de uma regra
está condicionada ao atendimento dos preceitos constitucionais, com muito mais razão
devem as normas relacionadas a direitos fundamentais[4] estar em harmonia à Carta
Magna.
Isso porque, a despeito da fluidez do conceito de direitos humanos – que pode ser
preenchido pelos mais diversos conteúdos –, quando determinada matéria é qualificada
como fundamental, resta pressuposta sua relevância – situação que dificulta o afastamento
da incidência daregra –, pelo que se afigura imprescindível a rigorosa tutela do quanto
inserto em tal âmbito de qualificação.
Sobre a importância das questões erigidas ao rol de direitos humanos, leciona José Afonso
da Silva:
Direitos fundamentais do homem constitui a expressão (...) reservada para designar, no
nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em
garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo
fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a
pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive[5].
Em outros termos, considerando a inexistência de rígida delimitação do conceito de direitos
humanos, o qual é preenchido conforme as contingências sociais, oscilando em harmonia
aos valores assumidos pela sociedade em cada momento histórico, não se pode
4
desconsiderar a possibilidade de que interesses escusos manipulem o sentido de tal
expressão, de forma a alçar à condição de supraconstitucional preceitos que sequer
constitucionais seriam.
Nesse sentido, transcreve-se o alerta Gilmar Ferreira Mendes:
A sempre possível ampliação inadequada dos sentidos possíveis da expressão ‘direitos
humanos’ poderia abrir uma via perigosa para uma produção normativa alheia ao controle
de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna. [6] (destaques aditados)
Não bastasse, a afirmação da supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos,
para além de afastar o controle em face da Constituição Federal, implica admitir a
existência de direitos que, sendo hierarquicamente superiores, não sucumbiriam sequer à
luz da nova ordem constitucional. Nesse sentido, posiciona-se Marotta Rangel [7], "que
chegou a admitir a primazia do tratado, em relação às leis constitucionais posteriores, ‘por
força do princípio da superioridade convencional’."
Em outras palavras, admitir a supraconstitucionalidade de tais normas de direito
internacional implicaria conceber a existência de direitos absolutos e atemporais, fadados a
viger ainda que perante diversa conjuntura política, jurídica ou social do país.
Assim, demonstrados os percalços de se admitir a supraconstitucionalidade dos tratados
internacionais acerca dos direitos humanos, passa-se ao exame da corrente que atribui
àqueles pactos hierarquia constitucional.
3. Do status constitucional
Exigindo a Constituição Federal, em seu artigo 5°, § 1°, a aplicabilidade imediata das
normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, afirmam alguns estudiosos que os
5
tratados sobre direitos humanos guardam especialidade em relação aos demais instrumentos
de direito internacional, o que justificaria terem status de norma constitucional.
Sustentam, deste modo, que, defluindo-se da principiologia da Constituição de 1988 ser
dada prioridade à tutela dos direitos fundamentais, os tratados de direito internacional sobre
tais temas devem gozar de hierarquia constitucional.
Compondo a fileira dos adeptos de tal concepção, pontua Flavia Piovesan:
Acredita-se, ao revés, que conferir grau hierárquico constitucional aos tratados de direitos
humanos, com observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, é
interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988,
bem como com sua racionalidade e principiologia. Trata-se de interpretação que está em
harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial com o
valor da dignidade humana – que é valor fundante do sistema constitucionalperigosa para
uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade com a ordem
constitucional interna. [8] .
Insiste-se que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não se
aplica aos tratados internacionais de direitos humanos, tendo em vista que a Constituição de
1988 assegura a estes garantia de privilégio hierárquico, atribuindo-lhes natureza de norma
constitucional.
E continua a referida autora:
Em suma a hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre
da previsão constitucional do art. 5°, parágrafo 2°, à luz de uma interpretação sistemática e
lógica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao
princípio da dignidade da pessoa humanaperigosa para uma produção normativa alheia ao
controle de sua compatibilidade com a ordem constitucional interna. [9] .
6
No mesmo diapasão, desponta Valério Mazzuoli:
Em suma, a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos é resultado de uma interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional
brasileiro, coerente com o princípio da máxima ou da ótima concretização da
normaperigosa para uma produção normativa alheia ao controle de sua compatibilidade
com a ordem constitucional interna. [10].
Sucede que, o inegável fato de a Carta Magna conferir tratamento especial às regras que
versam sobre direitos humanos – situação justificada pela relevância dos temas envolvidos
–, não autoriza concluir, de forma apressada, ter-lhes sido atribuído status constitucional,
apenas deixando nítida a impossibilidade de serem tais pactos considerados no mesmo
patamar hierárquico das demais normas de direito internacional.
Ademais, com o advento da Emenda Constitucional n° 45, não mais subsiste qualquer
resquício de plausibilidade na teoria da constitucionalidade dos tratados internacionais
sobre direitos humanos.
Isso porque, tendo a aludida emenda alterado a redação do artigo 5°, § 3°, da Carta Magna,
de forma a constar que "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.", não
restam dúvidas de que, sem a observância do aludido quorum, tais acordos internacionais
não atingirão o status de norma constitucional.
Entender de modo diverso, aliás, implicaria afirmar a inutilidade da disposição inscrita pela
emenda, desprezando-se o brocardo hermenêutico de que "a lei não concebe palavras
inócuas".
Ora, não é possível negar que a sistemática constitucional, prevista no § 2°, do artigo 5°, da
Constituição Federal autoriza a observância de preceitos que, malgrado não estejam
7
expressamente contidos na Carta Magna, decorram dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.
Tal fato, todavia, não afasta a necessidade de que esses preceitos se harmonizem com
aqueles já constantes da Constituição, bem como não suprem a necessidade de que, para
gozarem de status constitucional, o Poder Constituinte – ainda que de caráter derivado –,
participe do processo de integração da norma ao ordenamento.
Assim, quanto aos tratados de direitos humanos que tenham sido aprovados pelo
procedimento para a edição de emendas constitucionais, não restam dúvidas quanto a seu
status constitucional; no que pertine aos demais tratados, todavia, não havendo qualquer
disposição da Carta Magna nesse sentido, não se afigura acertado conferir-lhes hierarquia
constitucional.
4. Das teorias da infraconstitucionalidade
A despeito da impossibilidade de que norma de direito internacional relativa a direitos
humanos ingresse no ordenamento, de forma automática, com natureza constitucional – já
que imprescindível para tanto a aprovação em cada uma das Casas do Congresso, por três
quintos de votos, em dois turnos –, não se afigura razoável afirmar a recepção de tais
tratados com hierarquia de mera lei ordinária.
Isso porque, como cediço, os direitos humanos se concretizam em garantias de uma
convivência digna entre as pessoas, protegida do arbítrio do Estado e de outros particulares.
Definindo direitos humanos, oportuno conferir os ensinamentos de Alexandre de Moraes:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade
básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder
estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da
personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais[11].
8
Assim, a considerar a relevância das matérias passíveis de serem qualificadas como direitos
humanos, inegável a especialidade de que tais preceitos gozam em relação aos demais
direitos inscritos no ordenamento jurídico.
Corroborando a especialidade dos tratados que versam sobre direitos humanos em relação
aos demais pactos internacionais, assevera Flávia Piovesan:
[...] os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
detêm hierarquia de norma constitucional. Este tratamento jurídico diferenciado se justifica,
na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter
especial distinguindo-se dos tratados internacionais comuns. Enquanto estes buscam o
equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estados-partes, aqueles transcendem os meros
compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a
salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. [12]
(destaques aditados)
No mesmo sentido, sustenta Cançado Trindade:
Com efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção de direitos do ser humano (a
começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo, a
um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção de
vistos para turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve corresponder uma hierarquia
de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas e aplicadas
mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um caráter especial, e
devem ser tidos como tais[13].
Aceitar tal enquadramento, aliás, inscrevendo as normas acerca de direitos humanos no
mesmo patamar daquelas que versam sobre matérias sem qualquer relevância, implicaria
admitir que eventual regra constante de lei ordinária posterior pudesse revogar disposição
de natureza fundamental prevista em tratado.
9
Em outras palavras, não haveria qualquer óbice a que uma norma interna, estando no
mesmo nível hierárquico que determinado pacto internacional, e seguindo a máxima
constante da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual "lex posterior derogat legi",
revogasse as disposições do quanto pactuado internacionalmente.
Tal teoria, para além de desconsiderar a especialidade de que gozam os referidos tratados,
vilipendia a tendência do constitucionalismo hodierno, que confere especial atenção às
normas acerca dos direitos humanos.
Nesse sentido, ensina Gilmar Mendes:
No entanto, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do
Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos,
essa jurisprudência acabou se tornando completamente defasada. [14]
Ademais, não merece prosperar a alegação dos adeptos de tal corrente no sentido de que o
artigo 102, inciso III, b, da Constituição Federal de 1988, ao prever que ao Supremo
Tribunal Federal compete "julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em
única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de
tratado ou lei federal", teria colocado o pacto internacional no mesmo patamar de uma lei.
Isso porque, a única conclusão segura que se pode extrair de tal disposição da Carta Magna
é que, tanto a lei federal quanto o tratado de direito internacional encontram-se submetidos
ao controle de constitucionalidade, figurando, portanto, como espécies hierarquicamente
inferiores à Constituição. A afirmação de tal infraconstitucionalidade, todavia, não implica
atribuir-lhes status de lei ordinária, consoante será oportunamente aclarado.
A despeito de tais considerações, a posição predominante na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal vinha sendo a de que os tratados sobre direitos humanos, da mesma forma
que todos os outros pactos internacionais, deveriam ser recepcionadas no ordenamento
10
pátrio com status de lei ordinária. É o que afirma Gilmar Mendes, ao se referir ao RE
80.004/SE, no seu Curso de Direito Constitucional:
A maioria, porém, após voto vista do Ministro Cunha Peixoto, entendeu que ato normativo
internacional – no caso, a Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e
Notas Promissórias – poderia ser modificado por lei nacional posterior, ficando consignado
que os conflitos entre duas disposições normativas, uma de direito interno e outra de direito
internacional, devem ser resolvidas pela mesma regra geral destinada a solucionar
antinomias normativa num mesmo grau hierárquico: lex posterior derrogat legi priori. [15]
Recentemente, todavia, à luz do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, no RE
466.343, assumem expressão aqueles que, malgrado asseverem a infraconstitucionalidade
dos tratados internacionais em comento, sustentam sua supralegalidade.
Tal corrente, para além de prestigiar a especialidade de que se revestem os tratados sobre
direitos humanos, não acarreta os riscos à segurança do ordenamento que a atribuição de
status constitucional ou supraconstitucional implicariam, uma vez que mantém os pactos
internacionais sujeitos ao controle de constitucionalidade.
No mencionado recurso, discutindo a constitucionalidade da prisão civil por dívida,
pontuou o referido Ministro que, malgrado a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
5°, inciso LXVII, autorize a prisão civil do depositário infiel, considerando que o Pacto de
San José da Costa Rica, do qual o Brasil é um dos signatários, veda, em seu artigo 7°, item
7, a prisão decorrente de dívidas - tratando-se, portanto, de norma internacional sobre
direitos humanos –, a natureza supralegal de tal diploma afastaria a aplicação do
regramento infraconstitucional acerca do aludido dispositivo da Carta Magna, que restaria,
portanto, inaplicável.
Em outras palavras, consubstanciando norma de natureza supralegal, malgrado o Pacto de
San José da Costa Rica não tenha força para revogar disposições da Constituição Federal,
11
afigura-se suficiente para afastar a aplicação da normatização infraconstitucional que
disciplina a Magna Carta – leis ordinárias, complementares, decretos etc.
Sintetizando o quanto afirmado, oportuno conferir excerto do voto referido:
Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de
supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo
argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém,
diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais,
também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia
da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los
à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de
proteção dos direitos da pessoa humana.
[...]
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da
proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no
ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição,
tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa
infraconstitucional com ela conflitante.[16] (destaques originais)
Assim, na específica hipótese da prisão civil do depositário infiel, considerando que a
situação objetivamente capaz de deflagrar aquele cerceamento de liberdade apenas vem
descrita no artigo 652 do Código Civil – qual seja, a não restituição do bem quando
compelido a tanto o depositário –, a previsão constante do Pacto de San José da Costa Rica,
consubstanciando norma supralegal, malgrado não seja capaz de revogar a disposição da
Constituição, afasta aquela legislação ordinária que disciplina o quanto enunciado na
12
Magna Carta, não sendo possível, deste modo, falar-se em prisão civil do depositário no
Brasil.
É como apregoa Gilmar Ferreira Mendes:
Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos
normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel
(art. 5°, LXVII) não foi revogada pela adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de
San José da Costa Rica (art. 7°, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito
paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a
matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n. 911, de 1°-101969.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação
infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia
paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Código Civil (Lei n.
10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.[17]
(destaques aditados)
Tal modo de compreender a internalização dos tratados de direitos humanos, colocando-os
acima da legislação ordinária, mas abaixo da Constituição Federal, harmonizando-se ao
princípio da proporcionalidade, que impede o tratamento de pactos estritamente comerciais
da mesma forma que aqueles que se destinam a ampliar a esfera de direitos fundamentais
dos indivíduos, merece destaque no cenário doutrinário e jurisprudencial pátrio.
5. Conclusão
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, § 3°, conferiu status constitucional aos
tratados internacionais que, versando sobre direitos humanos, tenham sido submetidos ao
procedimento para aprovação de emendas constitucionais.
13
Em relação aos pactos internacionais sobre direitos humanos que não tenham sido
aprovados em cada uma das Casas do Congresso, com 3/5 de votos, em dois turnos de
votação, todavia, a despeito do entendimento majoritário na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal ainda ser o de lhes atribuir hierarquia de lei ordinária, não há pacificidade
na doutrina acerca do tema.
Isso porque, tendo em vista a moderna tendência jurídica de proteção aos direitos humanos,
despontam aqueles estudiosos que afirmam dever ser conferida a tais tratados hierarquia
supraconstitucional, constitucional ou supralegal.
No que pertine às duas primeiras teorias, na medida em que inviabilizam o controle de
constitucionalidade acerca dos aludidos pactos internacionais, ameaçando a soberania do
ordenamento jurídico pátrio, inúmeras são as ressalvas a suas aplicações.
Todavia, no que refere à atribuição de hierarquia supralegal a tais tratados, para além de
consubstanciar teoria que se afina à relevância das questões discutidas naquelas sedes –
destacando-as das demais espécies de tratados internacionais –, tal concepção não implica
qualquer imunidade daqueles pactos ao controle em face dos parâmetros de
constitucionalidade já postos, pelo que se afigura construção doutrinária passível de
aplausos.
Dito isso, espera-se que, à luz do entendimento já sinalizado por Gilmar Ferreira Mendes,
Ministro do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n° 466.343, seja
implementada revisão do posicionamento do Pretório Excelso acerca da hierarquia com que
os tratados internacionais de direitos humanos são recepcionados no ordenamento pátrio, de
forma a, adotando-se a teoria da supralegalidade, permitir destacá-los dos demais pactos
internacionais sem, contudo, incorrer nas distorções decorrentes das teorias do status
supraconctitucional ou constitucional.
14
1. BREGALDA, Gustavo. Direito Internacional Público & Direito Internacional Privado.
São Paulo : Atlas, 2007, p. 38.
2. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque Mello, apud MENDES, Gilmar Ferreira;
COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007.
3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo :
Malheiros, 2002, p. 47.
4. Não se utiliza, neste estudo, a distinção conceitual entre direitos humanos e direitos
fundamentais adotada por Pérez Luno apud João Alves de Almeida Neto, O princípio da
solidariedade como mecanismo de efetividade dos direitos humanos, in Revista Jurídica dos
Formandos em Direito da UFBA – v. 7, n. 10 (2007) – Salvador: Faculdade de Direito da
UFBA, 1996-2007, p. 88, para quem "o conceito de direitos humanos teria contorno mais
amplo, abarcando numa significação descritiva os direitos reconhecidos nas declarações
internacionais e, numa análise prescritiva, as exigências que num dado momento histórico
da dignidade, liberdade e igualdade humanas, ainda que não positivados. Os direitos
fundamentais, por outro lado, poderiam ser definidos de forma mais precisa e delimitada
espacial e temporariamente, englobando apenas aqueles direitos garantidos pelo
ordenamento jurídico positivo do estado, em especial pela constituição.
5. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo :
Malheiros, 2002, p. 178.
6. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 656.
7. RANGEL, Vicente Marotta. Os conflitos entre o direito interno e os tratados
internacionais. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro,
ns 44-45, p.56 apud MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos, Constituição e os
15
Tratados Internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do Tratado na Ordem
Jurídica Brasileira. São Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 140.
8. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4 ed. São
Paulo : Max Limonad, 2000, p 86.
9. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4 ed. São
Paulo : Max Limonad, 2000, p. 90.
10. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos, Constituição e os Tratados
Internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do Tratado na Ordem Jurídica
Brasileira. São Paulo : Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 244.
11. MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais : teoria geral, comentários aos
arts. 1° a 5° da Constituição da república federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência.
São Paulo: Atlas, 1998, p. 39.
12. PIOVESAN, Flávia. A Incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos no Direito Brasileiro. pp. 162,163. In: O
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro/
coordenação Luiz Flávio Gomes, Flávia Piovesan. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000.
13. TRINDADE, Antonio Augusto Cançado, Memorial em prol de uma nova mentalidade
quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional, in Arquivos de
Direitos Humanos 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 46-47 apud MENDES, Gilmar
Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 665.
14. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 661.
16
15. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 660.
16. Cf. íntegra do voto do Ministro Gilmar Mendes, no RE 466.343, em Notícias STF,
22.11.2006 – 20:35.
17. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 670/671.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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– v. 7, n. 10 (2007) – Salvador: Faculdade de Direito da UFBA, 1996-2007.
BREGALDA, Gustavo. Direito Internacional Público & Direito Internacional Privado. São
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12.ed. ver., atual. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2008.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos, Constituição e os Tratados
Internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do Tratado na Ordem Jurídica
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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007.
17
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1° a 5° da Constituição da república federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São
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PIOVESAN, Flávia. A Incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados internacionais
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http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=2008051512590364 .
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