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Raul Velloso
Paulo Springer de Freitas
Omar Abbud
Energia elétrica a caminho do
estrangulamento
Tarifas de energia artificialmente baixas e excesso de
intervenção estatal provocam ineficiência econômica e
inibem a expansão do setor
Conteúdo
SUMÁRIO EXECUTIVO ................................................................................................ 4
Introdução ....................................................................................................................... 21
Capítulo I – Macroeconomia e o investimento em energia ............................................ 26
Capítulo II – Considerações teóricas .............................................................................. 32
II.1 – Introdução ........................................................................................................ 32
II.2 – Necessidade de regulação no setor energético .................................................. 34
II.3 – Precificação da energia no modelo básico ........................................................ 37
II.3.1 – Precificação no início do contrato ............................................................. 37
II.3.2 Precificação ao longo do contrato ................................................................. 52
II.3.3 O custo marginal na atividade de geração .................................................... 57
II.4 – Precificação da energia sob hipóteses de informação assimétrica e possibilidade
de comportamento oportunista ................................................................................... 60
II.4.1 – Precificação no início do contrato ............................................................. 60
II.4.2 – Revisão de preços ao longo do contrato .................................................... 74
II.4.3 – Incentivos para ganhos de produtividade ................................................... 81
II.5 – Alternativas para redução do custo de energia ................................................. 84
II.5.1 – Redução dos riscos regulatórios e negociais .............................................. 84
II.5.2 – Maior celeridade no fornecimento do licenciamento socioambiental ....... 86
II.5.3 – Redução da tributação e encargos do setor ................................................ 88
II.5.4 – Estímulo à construção de usinas com reservatórios................................... 90
II.5.5 – Estímulo ao mercado livre ......................................................................... 90
Capítulo III - O marco regulatório do setor elétrico brasileiro ....................................... 97
III.1 – Introdução ........................................................................................................ 97
III.2 – A Evolução do Marco Legal ............................................................................ 98
III.3 – As alterações recentes no marco regulatório da energia elétrica – a MP 579 105
III.3.1 – As alterações produzidas pela Medida Provisória nº 579, de 2012 ........ 106
III.3.2 – Os custos decorrentes da MP 579 e da política de contenção de tarifas 111
2
III.4 Represamento de tarifas sem o repasse integral do aumento de custos decorrente
do despacho de energia térmica ................................................................................ 121
III.4.1 – Subsídios do setor público associados ao acionamento das usinas
termoelétricas........................................................................................................ 121
III.4.2 – Tentativa do Governo de transferir para o setor privado parte dos
subsídios associados ao acionamento das usinas termoelétricas: A Resolução
CNPE nº 3, de 2013 .............................................................................................. 123
Capítulo IV – A viabilização da modicidade tarifária no setor energético brasileiro .. 126
IV.1 – Modicidade tarifária nos leilões de geração .................................................. 126
IV.2 – Modicidade tarifária nos leilões de transmissão............................................ 137
IV.3 – Revisões tarifárias e o impacto sobre as tarifas das distribuidoras ............... 145
IV.3.1 Evolução recente das tarifas das distribuidoras ......................................... 146
IV.3.2 – Ajuste dos custos operacionais e no Fator X no 3CRTP........................ 150
IV.3.3 – Remuneração do capital ......................................................................... 156
IV.4 – Novos desafios para a política de modicidade tarifária: a exposição
involuntária das distribuidoras ................................................................................. 164
Capítulo 5 – A necessidade de construir usinas com reservatórios .............................. 169
Conclusões .................................................................................................................... 183
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 190
3
SUMÁRIO EXECUTIVO
Há cada vez mais consenso entre os diversos segmentos da sociedade
brasileira de que a deficiência em infraestrutura é um dos obstáculos para que possamos
alcançar taxas mais altas de crescimento. No caso específico da energia elétrica, o Brasil
ainda sofre o trauma do racionamento de 2001. Mesmo assim, decorridos mais de dez
anos do episódio, o problema da oferta insuficiente de energia não parece ter sido
devidamente solucionado. Em 2012, ano de hidrologia ruim, houve forte temor de que
faltasse energia elétrica. Foi necessário acionar todas as usinas termoelétricas e alguns
analistas acreditam que só não houve necessidade de racionamento porque a economia
havia crescido muito pouco naquele ano.
Este livro pretende discutir o que deve ser feito para garantir que o setor
elétrico seja capaz de suprir a energia de que o país tanto necessita.
O primeiro problema que se coloca é o do investimento e seu
financiamento. Apesar de o acesso à energia elétrica ser quase universal no Brasil, com
97,8% de cobertura em 2010, segundo o IBGE, outros indicadores não são tão bons. O
consumo de energia ainda é baixo, comparativamente aos países desenvolvidos e do
leste asiático. Indicadores de qualidade, como a Duração Equivalente de Continuidade
(DEC), que mensura o número de horas com interrupção de energia durante o ano, vem
crescendo desde 2008, assim como a insatisfação do consumidor, medida pela Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Por isso, tanto para aumentar o consumo, como
para melhorar a qualidade do serviço oferecido, é necessário muito investimento.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2022,
publicado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e
Energia, o consumo de energia elétrica deverá aumentar 51% entre 2013 e 2022, e o
investimento anual médio em geração e transmissão deve ser da ordem de R$ 26
bilhões, ou 0,6% do PIB estimado para 2013.
Uma identidade básica da economia é que poupança é igual ao
investimento. A poupança, por sua vez, compõe-se da soma da poupança doméstica
com a poupança externa. O grande problema do Brasil é que a taxa de poupança
doméstica é muito baixa, da ordem de 16% do PIB. Já a taxa de investimento está em
torno de 19% do PIB, indicando a necessidade de poupança externa da ordem de 3% do
4
PIB. Contabilmente, a poupança externa corresponde ao déficit em transações correntes,
e é difícil sustentar esses déficits em valores acima de 4% ao ano indefinidamente.
Portanto, para aumentarmos a taxa de investimento, e sabendo que a poupança externa
dificilmente se manterá acima de 4% de forma sustentada, a solução é ampliar a
poupança doméstica. Se pensarmos em políticas públicas, o ideal é que haja aumento da
poupança do setor público.
Entretanto, para aumentar a poupança pública é necessário cortar gastos
correntes, o que pode trazer fortes prejuízos políticos, ou aumentar a tributação, o que é
difícil diante da já elevadíssima carga tributária brasileira. Uma terceira possibilidade
para o setor público financiar o setor elétrico é via aumento do endividamento. Aqui
também as possibilidades são limitadas, tendo em vista que a dívida bruta do Setor
Público tem aumentado fortemente, passando de 60,0% do PIB, em dezembro de 2006,
para 65,8% do PIB, em agosto de 2013. A Eletrobras tampouco dispõe de recursos
suficientes para investir, notadamente após a edição da MP 579, que a descapitalizou,
como se verá adiante.
Como o Setor Público, incluindo a estatal Eletrobras, possui capacidade
muito limitada de financiar a expansão do setor elétrico, não há como expandi-lo no
suficientemente para satisfazer o aumento projetado de demanda sem contar com o
investimento privado. Além de dispor de recursos, o investidor privado tende a ser mais
eficiente do que o setor público, havendo evidências de forte queda nos custos dos
empreendimentos de geração e transmissão a partir de 1995, quando empresas privadas
ingressaram no mercado brasileiro.
A ampliação da participação privada, contudo, requer um ambiente
favorável para atração de capital ao setor elétrico. Compete ao Governo e ao órgão
regulador, portanto, criar regras que garantam um retorno compatível com a escassez de
capital e com o risco assumido. Ao mesmo tempo, tais regras devem garantir a alocação
eficiente dos recursos da economia. Isso é particularmente importante em uma
economia como a brasileira, onde há forte escassez de capital.
A teoria econômica nos ensina que a alocação ótima dos recursos, tanto
na produção como no consumo, ocorre quando o preço se iguala ao custo marginal.
Como no setor elétrico há grande heterogeneidade de custos, dependendo do porte da
usina geradora e da fonte (os custos por MWh variam de R$ 84,58, para hidroelétricas
5
de grande porte, a R$ 956,70, para térmicas a óleo diesel) há quem defenda a tese de
que a cobrança deveria ser feita pelo custo médio, e não pelo custo marginal, pois isso
permitiria baratear as tarifas, fazendo com que todo o potencial de lucro excedente
(correspondente à diferença entre o custo marginal e o custo efetivo de geração da
empresa) fosse repassado para os consumidores.
São, contudo, argumentos falaciosos. Se raciocinarmos dinamicamente, o
lucro extraordinário permite capitalizar as empresas e aumentar a oferta de energia no
longo prazo. Além disso, é um poderoso incentivo para as empresas investirem mais em
aumento de produtividade, permitindo redução de custos – e, consequentemente, de
tarifas – no longo prazo. Em relação aos supostos benefícios de uma tarifa menor,
decorrente da cobrança pelo custo médio, eles não existem quando analisamos o
problema sob uma perspectiva de equilíbrio geral. Sinteticamente, estabelecer uma
tarifa abaixo do custo marginal gera distorções na economia, que leva a preços mais
altos para os demais bens. No caso da energia elétrica, a distorção se traduz em
acionamento excessivo de usinas térmicas, mais caras e mais poluentes.
A regra de igualar o preço ao custo marginal não impede que, em
situações específicas, haja subsídios ao consumidor final. Exemplos comuns na
literatura para justificar subsídios são a geração de externalidades e maior justiça social.
Mas nem sempre os pressupostos que embasam as conclusões teóricas
são verificados na realidade. Para a atividade de distribuição, por exemplo, os
investimentos são feitos ao longo do contrato, de forma que, em qualquer momento,
haverá investimentos relativamente novos, e outros já realizados há mais tempo. Nesse
caso, se a tarifa recebida pelo produtor for igual ao custo marginal, não haverá
equilíbrio econômico-financeiro em caso de tendência de queda de custos ao longo do
período de concessão. Pode-se mostrar que a fixação da tarifa pelo custo médio,
remunerando o investimento de acordo com os custos vigentes na época de sua
contratação é uma opção melhor do que igualar o preço ao custo marginal vigente.
Outro problema, este mais associado à atividade de geração, refere-se ao
fato de a vida útil de uma usina – normalmente próxima de 100 anos – ser muito mais
longa do que o prazo de concessão, de até 30 anos. Isso gera forte descontinuidade de
custos, pois, nos primeiros 30 anos, é necessário remunerar todos os custos de
amortização e depreciação, além dos custos de operação e manutenção (O&M). Após os
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30 anos iniciais, os custos passam a ser somente os de O & M, uma queda de cerca de
70%.
.
Quando houver várias usinas em operação, das mais diferentes idades –
abstraindo-se a questão de custos marginais crescentes –, a tarifa cobrada, ao ser uma
média do custo contábil das diferentes usinas, corresponderia ao custo marginal da
energia e seria uma tarifa eficiente.
Outras características importantes do mundo real que devem ser levadas
em consideração na definição de tarifas são a assimetria de informações e a
possibilidade de comportamento oportunista por parte das empresas ou do poder
concedente.
Havendo assimetria de informações, a determinação unilateral do preço é
claramente ineficiente. Se o órgão regulador impuser as tarifas, dificilmente
estabelecerá um preço que remunere adequadamente o regulado. A fixação da tarifa por
parte do regulado traz óbvios problemas de incentivos perversos, pois ele tenderia a
inflar artificialmente os custos para obter maior lucro.
A solução, portanto, seria encontrar algo que se aproximasse de um
resultado de um mercado competitivo. A literatura mostra que leilões podem ser um
meio eficaz de atingir esse objetivo. Se houver um número razoável de concorrentes e a
estrutura de custos não for muito díspar, o preço definido em leilão será próximo do
custo do participante mais eficiente.
Mas leilões também podem gerar resultados ineficientes. Isso pode
ocorrer se:
i)
houver comportamento oportunista por parte de um licitante;
ii)
os participantes avaliarem incorretamente os projetos;
iii)
houver forte heterogeneidade no que diz respeito à atitude dos
licitantes em relação ao risco;
iv)
houver um participante movido por outros interesses, que não a
maximização de lucros, como a Eletrobras.
Os riscos de um leilão mal conduzido vão além de os custos finais da
energia tornarem-se maiores do que os inicialmente acordados no leilão. Corre-se o
risco de, simplesmente, a oferta não ser concretizada.
7
As soluções para reduzir a probabilidade de leilões ineficientes
dependem da natureza da ineficiência. Se considerarmos que o principal problema é o
comportamento da Eletrobras, seria necessário um comprometimento, por parte da
estatal, de apresentar propostas que reflitam, de fato, o custo do projeto, incluindo o
custo de oportunidade do capital e a remuneração pelo risco.
Quando a ineficiência tem origem no comportamento oportunista, na
avaliação incorreta da melhor estratégia, ou na maior disposição da licitante em assumir
riscos, a solução pode envolver diversas dimensões. Em primeiro lugar, requerer, na
fase de habilitação, que o candidato tenha experiência bem sucedida em
empreendimentos anteriores. O órgão regulador teria também de assumir uma posição
mais dura em relação a renegociações de contratos. Outra sugestão é introduzir uma fase
de pré-qualificação, onde os licitantes apresentariam um plano de negócios e uma
metodologia de execução. Do plano de negócios constaria a análise econômicofinanceira do projeto, bem como avaliação de riscos, com diferentes cenários de custos.
Já a metodologia de execução conteria as informações técnicas e operacionais referentes
à exploração da concessão e ao investimento. Se a proposta financeira do licitante não
for compatível com o plano de negócios e com a análise econômico-financeira, ele seria
desabilitado do certame.
A remuneração de novos investimentos ao longo dos contratos impõe
outros desafios, pois, nesse caso, não é viável utilizar o mecanismo de leilões para
determinar o preço ótimo. Esse problema é particularmente relevante para a atividade de
distribuição. No curto prazo, uma menor remuneração do capital permitiria reduzir as
tarifas, beneficiando os consumidores e rendendo fortes dividendos políticos. A
distribuidora, por sua vez, já tendo incorrido em elevados gastos iniciais, não desejará
abandonar o negócio (a não ser que a tarifa seja fixada em nível muito baixo,
insuficiente para cobrir os custos de operação e manutenção). Assim, a concessionária
pode se ver obrigada a realizar novos investimentos ao longo do contrato, mesmo
sabendo, de antemão que esses investimentos não serão devidamente remunerados.
As consequências do comportamento oportunista por parte do regulador
são péssimas para a oferta de energia no médio e no longo prazos. Em primeiro lugar, as
distribuidoras que se encontram no meio do contrato tenderão a fazer o menor
investimento possível compatível com a qualidade mínima requerida. Em segundo
lugar, as empresas antecipam o comportamento oportunista por parte do Governo ou do
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órgão regulador e passam a exigir, no leilão, preços maiores do que pediriam em
situações normais. Uma terceira consequência do comportamento oportunista por parte
do Governo ou do regulador é reduzir a eficiência dos leilões, devido ao fato de as
empresas valorizarem diferentemente o risco de sofrerem prejuízos em decorrência de
tal comportamento.
Uma solução óbvia para esse problema seria o Governo se comprometer
a não ter um comportamento oportunista, e agir de acordo. Mas se a credibilidade tiver
sido abalada, será necessário algum tempo para que seja recuperada. Nesse ínterim,
serão necessários instrumentos contratuais que tentem, pelo menos, mitigar os riscos.
Uma segunda opção é travar a Taxa Interna de Retorno (TIR) quando da assinatura do
contrato. O problema é que as condições macroeconômicas se alteram ao longo do
tempo. Outra possibilidade é o uso de árbitros. O próprio contrato de concessão já
poderia prever fóruns de renegociação caso haja divergências na remuneração dos
investimentos durante o processo de revisão tarifária.
Além da remuneração justa do investimento, é necessário incentivar as
empresas a buscarem ganhos de produtividade. O objetivo de modicidade tarifária deve
ser pensado dinamicamente. Ao longo de um contrato de longo prazo, novas tecnologias
surgem. Deve, portanto, haver incentivos para que o concessionário adote a melhor
tecnologia disponível. Isso permitirá redução de custos que, em algum momento, poderá
ser incorporada às tarifas.
A literatura define dois tipos básicos de regulação. A regulação por taxa
de retorno e a regulação por fixação de preços. No primeiro caso, o concessionário
apresenta os custos de produção para o regulador que, se aceitos, após uma auditoria,
aplica uma taxa de retorno para definir a tarifa. O grande problema da remuneração por
taxa de retorno é que não estimula a adoção de técnicas mais produtivas. Afinal, se
independentemente do que fizer, o investidor tiver seus custos ressarcidos, não há
porque se preocupar em inovar.
A segunda forma mais comum de regulação é por fixação de preço-teto
(price cap, em inglês). Nesse caso, como o nome sugere, o regulador fixa um preçoteto, independentemente dos custos da concessionária. É fácil perceber que a fixação de
um preço-teto dá o máximo estímulo para que a empresa aumente a produtividade.
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Havendo assimetria de informações, o melhor que o regulador deve fazer
para estimular as empresas a adotar tecnologias mais eficientes é permitir que o
regulado se aproprie pelo menos de parte dos ganhos de produtividade que obtiver.
Quanto maior for a parcela apropriada, maior o estímulo para adoção de tecnologias de
menor custo e, portanto, maior a modicidade tarifária no longo prazo.
Da discussão teórica pode-se concluir que modicidade tarifária não deve
significar o menor preço a qualquer custo. Deve ser o menor preço compatível com a
sustentabilidade das empresas do setor; do contrário, trocam-se tarifas mais baixas no
presente por tarifas mais elevadas no futuro, com aumento do risco de a expansão da
oferta se revelar insuficiente para atender ao crescimento da demanda.
Para avaliar se o Governo vem propiciando os estímulos corretos ao setor
elétrico é necessário conhecer o marco regulatório. O setor elétrico brasileiro vem
passando por profundas modificações nos últimos vinte anos. Elas começaram na
década de 1990, com uma reforma de cunho liberal, que permitiu a entrada de capital
privado com o objetivo de retomar os investimentos e eliminar diversas distorções que
vinham se acumulando.
Os primeiros movimentos governamentais foram de privatização das
concessionárias de distribuição, estatais estaduais na sua larga maioria, o que resultou
na venda de distribuidoras responsáveis por cerca de 85% do mercado nacional. Já no
setor de geração, o processo foi tímido: foram privatizadas apenas a Gerasul (geradora
pertencente ao Grupo Eletrobras, com atuação no Sul do País) e algumas usinas da
CESP, empresa de energia elétrica do Estado de São Paulo. Ainda assim, na margem, a
participação do setor privado aumentou ao vencerem leilões de novos empreendimentos
de geração. O mesmo ocorreu na atividade de transmissão.
A reforma da década de 1990 também criou as figuras do Produtor
Independente de Energia (livre para empreender e vender a energia produzida), do
Consumidor Livre (inicialmente só para grandes consumidores), do comercializador
(broker) e do Mercado Atacadista de Energia (MAE), onde seriam fechados os negócios
de compra e venda; a garantia do livre acesso às redes de transmissão e de distribuição;
a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), agente público, neutro e
regulado pela ANEEL; e a criação de uma agência reguladora, a Agência Nacional de
Energia Elétrica (ANEEL). Com esse arcabouço, viabilizou-se a livre negociação de
10
energia
entre
produtores
e
distribuidoras,
consumidores
finais
(livres)
ou
comercializadores, na forma de contratos bilaterais.
Em 2003, novas alterações foram feitas no marco regulatório.
Consolidou-se a segregação das atividades de geração, transmissão, distribuição e
comercialização, concebida no modelo anterior. Também foram criados o Ambiente de
Contratação Livre (ACL), para o mercado livre de energia, e o Ambiente de
Contratação Regulado (ACR), que abrigou todo o mercado cativo, atendido pelas
distribuidoras. Mas, de forma geral, aumentou o predomínio do Governo Federal sobre
o setor elétrico, com o retorno ativo de estatais federais aos leilões de novos
empreendimentos de geração e transmissão e enfraquecimento da agência reguladora.
Com efeito, a partir de 2004, a Aneel passou somente a operacionalizar os
procedimentos licitatórios, seguindo as determinações que lhe fossem dadas pelo
Governo. Além disso, as distribuidoras não mais puderam adquirir livremente o seu
suprimento de energia, ficando restritas às aquisições nos leilões estabelecidos pelo
Governo.
A concentração dos poderes nas mãos do Governo Federal pode gerar
importantes conflitos de interesse. Por exemplo, decisões relativas ao volume de energia
a ser licitado, bem como aos contratos das concessionárias, podem estar subordinadas a
objetivos não diretamente relacionados com a oferta e segurança energéticas, como o
controle da inflação. Similarmente, há um óbvio conflito de interesses do Governo na
condição de formulador da política energética e de controlador da Eletrobras: nada
impede que a política energética venha a ser decidida no sentido de favorecer a estatal,
ainda que em prejuízo do setor como um todo.
Em 2012, a Medida Provisória (MP) nº 579, convertida posteriormente
na Lei nº 12.783, de 2013, inaugurou o que alguns analistas denominam de novíssimo
modelo do setor elétrico, no qual o principal objetivo da política energética parece ser a
modicidade tarifária, mesmo que isso prejudique a oferta e ganhos de produtividade no
longo prazo.
O objetivo mais evidente da MP 579 (e de outras normas que se
seguiram) foi reduzir a tarifa ao consumidor do setor regulado em cerca de 20%. Isso foi
possível porque grande parte das concessões de geração e transmissão de energia
elétrica vencia até 2015, e o Governo Federal decidiu oferecer aos concessionários a
possibilidade de renovação antecipada das concessões, nos termos que propôs.
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A redução das tarifas se deu por meio dos seguintes mecanismos:
i)
Fixação das tarifas com base nos custos de operação e
manutenção (O&M). Grosso modo, a geradora enfrenta dois custos: O&M e
amortização e depreciação do investimento. A tarifa é calculada de forma que, ao longo
do primeiro contrato de concessão (geralmente, com duração de até 30 anos), todas as
despesas referentes à depreciação e amortização sejam recuperadas pelo investidor.
Nesta fase, os custos de O&M representam cerca de 30% do total. Após o investidor
recuperar plenamente o capital investido, restam somente os custos de O&M e,
portanto, a tarifa pode cair substancialmente, para cerca de 30% do valor anterior. Como
os contratos renegociados estavam no fim do período de concessão, para muitas
geradoras os custos de depreciação e amortização já haviam sido integralmente
recuperados ou estavam quase que integralmente recuperados, o que permitiu forte
redução da tarifa;
ii)
Eliminação de encargos da tarifa de energia, como a Conta de
Consumo de Combustíveis (CCC), a Reserva Global de Reversão (RGR) e redução,
para cerca de 25% do valor que vigorava, da Conta de Desenvolvimento Energético
(CDE). O Tesouro passou a assumir os custos da CCC e da CDE, que deixaram de ser
cobertos pelas tarifas. Em parte, esses encargos representavam subsídios cruzados e,
nesse sentido, a medida foi meritória, ainda que tenha custado em 2013, R$ 4 bilhões.
Adicionalmente, por determinação da medida provisória, a CDE destinou R$ 2,8
bilhões para cobrir os gastos decorrentes do fim de outros subsídios cruzados associados
a descontos tarifários. Dessa forma, o efeito combinado da redução e eliminação de
encargos, bem como da eliminação de eliminação de subsídios cruzados atingiu
aproximadamente R$ 6,8 bilhões em 2013;
iii)
Na antecipação das renovações, houve casos em que nem todo o
investimento havia sido integralmente depreciado e amortizado. Portanto, as empresas
tinham direito ao ressarcimento pelos investimentos realizados e ainda não depreciados.
Inicialmente, para viabilizar financeiramente a indenização das concessionárias, o
Governo pretendia utilizar os recursos da Reserva Global de Reversão, mas estimativas
preliminares apontavam para valores muito acima da disponibilidade de recursos da
RGR. Seria então necessário contar com aporte do Tesouro. Outro problema
relacionado foi como avaliar esses ativos. Decorrido mais de um ano desde a edição da
12
MP 579, ainda não foi estabelecida a metodologia de definição do valor de todas as
indenizações, havendo risco de subavaliação. A Eletrobras, por exemplo, apresentou
estimativa de indenizações de parte de seus ativos no valor total de R$ 12,4 bilhões, ao
passo que estimativas preliminares da Aneel apresentavam indenização total de R$ 3,7
bilhões, gerando prejuízo potencial de R$ 8,7 bilhões para a estatal. Além do custo para
o Tesouro e para as empresas do setor, esse tipo de subsídio não é meritório, pois
barateia o preço da energia elétrica ao consumidor sem uma correspondente redução de
custos, ou seja, cria uma redução artificial no preço da energia;
iv)
Subsídio para as distribuidoras pagarem as tarifas das geradoras
que não aderiram à prorrogação antecipada dos contratos. Nem todas geradoras
aderiram aos termos da MP 579, como planejava o Governo Federal, e mantiveram a
liberdade de negociar livremente a energia que produzem até o fim dos contratos de
concessão. Em razão disso, na implementação da MP, faltaram cerca de 3.700 MW para
abastecer as distribuidoras, que estão sendo obrigadas a adquirir essa energia para
fornecer aos seus consumidores ao preço spot, atualmente no teto legal de R$
822,00/MWh, dada a escassez de chuvas no período úmido. Para garantir a prometida
redução de 20%, o Tesouro passou a subsidiar as distribuidoras, via repasses da CDE,
com a diferença da tarifa cobrada pelas geradoras que não aderiram aos termos da MP.
Em 2013, o repasse acumulado da CDE por conta desse subsídio havia atingido R$ 260
milhões. Também aqui temos um subsídio não meritório, pois cria um preço
artificialmente baixo para as tarifas de energia à custa dos contribuintes.
Adicionalmente, houve um represamento de tarifas sem o repasse integral do aumento
de custos decorrente do despacho de energia térmica. Por coincidência, a MP 579 foi
editada em ano de hidrologia ruim. Em outubro de 2012, para garantir a oferta de
energia, já havia sido acionada a maioria das usinas termoelétricas disponíveis, que
funcionariam até o início de julho de 2013, quando as 34 mais caras foram desligadas.
Houve, assim, forte aumento de custos na geração de energia, fenômeno que se repete
em pleno período úmido, em janeiro de 2014, dada a já mencionada escassez de chuvas.
Mas como o Governo estava comprometido com a redução de 20% nas tarifas
residenciais, decidiu assumir esse custo adicional, evitando seu repasse para as tarifas.
Até outubro de 2013, os desembolsos para financiar os custos das termoelétricas haviam
atingido R$ 9,5 bilhões. Assim como nos casos anteriores, existe aqui um subsídio que
não encontra respaldo na teoria.
13
Resumidamente, a MP 579, de 2012, permitiu a redução de tarifas ao
consumidor. Alguns mecanismos de redução são tecnicamente justificáveis, outros
(quando não há uma redução correspondente de custos) não. Independentemente do
mérito, a redução das tarifas custou, em 2013, quase R$ 10 bilhões ao Tesouro (ou seja,
aos contribuintes) e R$ 5 bilhões de fundos como o RGR. Poderá custar outros R$ 20
bilhões em 2014, só com a energia que faltou para a contratação pelas distribuidoras, em
razão da edição da MP, se o Governo optar por não repassar esses custos às tarifas.
Uma vez discutidos os princípios que devem nortear a precificação da
energia e a evolução recente do marco regulatório do setor energético brasileiro,
aprofundamos a discussão sobre os instrumentos que vêm sendo utilizados para se
atingir a modicidade tarifária.
Nos leilões de geração e transmissão, observamos um paradoxo: ao
mesmo tempo em que os investidores se queixam dos baixos preços-teto estabelecidos
para os leilões, muitos têm conseguido vender os lotes ofertados com deságios sobre os
preços-teto supostamente baixos.
Em primeiro lugar, há, de fato, leilões frustrados. Entre 2005 e 2011,
nada
menos
que
quatorze
aproveitamentos
hidroelétricos
deixaram
de
ser
comercializados em decorrência de preços-teto fixados em valores muito baixos. Outra
evidência de que preços-teto baixos afugentam investidores é a redução de até 47% no
número de empreendedores tecnicamente qualificados para participar dos leilões depois
que a EPE divulga o preço máximo.
Mesmo assim, o Governo tem sido bem sucedido em diversos leilões. O
preço da energia negociada caiu fortemente, de cerca de R$ 150,00 para uns R$
80,00/MWh, entre 2004 e 2010, segundo Rego (2012). Em 2012, os preços subiram
para cerca de R$ 100,00/MWh, bem abaixo, portanto, dos valores observados no início
da década passada.
A redução observada nos primeiros anos pode estar relacionada a um
processo de aprendizagem – afinal, eram os primeiros leilões de energia sob o novo
regime – e porque houve maior participação do setor privado, que permitiu ganhos de
eficiência. Adicionalmente, a melhora do ambiente macroeconômico observada ao
longo da década de 2000, evidenciada pela redução da taxa Selic, da relação dívida/PIB
14
e de melhores perspectivas para o crescimento, certamente contribuiu para a redução do
custo Brasil e do custo do capital. Mas a queda de preços ocorreu também porque
alguns leilões falharam em selecionar os mais eficientes. Houve vencedores com pouca
experiência no setor, que provavelmente, não souberam precificar corretamente o
projeto ou estavam mais dispostos a correr riscos. O caso mais paradigmático nesse
sentido foi a participação do Grupo Bertin, originariamente controlador de frigoríficos,
que chegou a ter em carteira projetos de construção de termelétricas que totalizavam
quase 4.800 MW, cerca de 35% da capacidade de Itaipu, e que consumiriam R$ 7
bilhões em investimentos. Nenhum projeto foi concluído até agora.
A participação do Estado foi essencial para viabilizar os leilões dos três
projetos estruturantes: Santo Antônio, Jirau e Belo Monte. No caso do leilão de Santo
Antônio, o Governo precisou lutar para promover concorrência, com as empresas do
Grupo Eletrobras concorrendo entre si, participando dos três consórcios, em proporções
societárias que variaram entre 39% e 49%.
Em Jirau, novamente as estatais federais competiram entre si, nos dois
consórcios participantes, em proporções de 39% e 40%. Além disso, houve
renegociação do projeto, com mudança do eixo da barragem. O baixo preço em Jirau
também pode ser justificado por uma avaliação inadequada dos riscos associados ao
projeto ou por uma atitude mais arriscada por parte dos vencedores do leilão. Greves,
atos de vandalismo e atrasos no desembaraço de equipamentos pela Receita Federal
atrasaram o início do fornecimento de energia em mais de seis meses. Também há
retardamento na integração da usina ao sistema, em razão do atraso de mais de um ano
na entrega das respectivas linhas de transmissão. .
Em Belo Monte, a competição no leilão só ocorreu por ação do Governo,
por meio da Eletrobras. Também foi necessário buscar outras formas de compensação
para o preço-teto baixo, como maior apoio do BNDES e desconto no Imposto de Renda.
Outro fator importante que ajudou a viabilizar os baixos preços ofertados
nos leilões dos projetos estruturantes foi a possibilidade de vender 30% da energia nova
para comercialização no mercado livre (ACL). Essa energia seria vendida a um preço
mais alto, fornecendo, assim, uma espécie de “subsídio cruzado” aos preços da energia a
ser vendida ao mercado cativo (ACR). O favorecimento do comprador do mercado
regulado, em detrimento do mercado livre, traz alguns problemas.
15
A indústria nacional (principal consumidora do mercado livre) perde
competitividade ao ter de adquirir energia mais cara para “subsidiar” os consumidores
do mercado cativo. Além disso, os atuais participantes do mercado livre, para terem
acesso à energia mais barata, poderão se programar de forma a migrarem para o
mercado regulado, dentro dos prazos legais estabelecidos, à medida que se extinguir o
prazo dos contratos no mercado livre (usualmente entre 3 e 5 anos) . Isso poderá, ex
post, inviabilizar financeiramente os projetos de Santo Antonio, Jirau e Belo Monte,
uma vez que eles dependem da energia mais cara vendida no mercado livre para se
viabilizarem financeiramente
Para os leilões de linhas de transmissão, a principal mudança observada
nos últimos anos foi a diretriz governamental no sentido de maior participação das
empresas do Grupo Eletrobras. Entre 1999 a 2002, empresas do grupo Eletrobras
arremataram menos de 5% dos lotes leiloados. Entre 2003 e 2013, essa participação
aumentou para 37%.
A maior participação estatal na atividade de transmissão tem impactado
negativamente o setor. O principal problema tem sido o de atraso nas obras das novas
linhas. Segundo levantamento da Aneel, 96 obras de transmissão da Chesf sofreram
atrasos e chegaram a apresentar um atraso médio de 495 dias. Já Furnas chegou a ter,
segundo a Aneel, 39 obras atrasadas, com um atraso médio de até 710 dias, e a
Eletronorte, 49 atrasos em obras, com média de 344 dias de atraso. Esses atrasos
levaram o Poder Concedente a instituir regra para impedir que as empresas
inadimplentes com suas obrigações continuassem arrematando empreendimentos.
No caso das distribuidoras não houve ainda leilões para que se pudesse
avaliar se foram bem sucedidos. Não se sabe ainda como serão as próximas concessões,
se haverá simples renovação dos atuais contratos ou se haverá algum processo
licitatório, com o uso de leilões ou de outro instrumento. Em qualquer caso, as
renovações só deverão ocorrer a partir de 2015. Por outro lado, as distribuidoras estão
submetidas a um maior risco de comportamento oportunista por parte do regulador
durante os chamados Ciclos de Revisão Tarifária Periódica (CRTP). Esses ciclos
ocorrem a cada quatro anos. Atualmente estamos no final do 3º ciclo (3RCTP), e a
Aneel está definindo as regras a vigorar para o 4º ciclo, com início em 2015.
16
Do 2º CRTP para o 3º CRTP houve redução na remuneração do capital e
outras alterações nas regras de reajuste anual, o que levou a reduções mais acentuadas
de tarifas, impondo perdas às distribuidoras e consequentes ganhos para os
consumidores no curto prazo.
Em relação às regras de reajuste anual, a principal alteração foi no
cálculo do Fator X. O Fator X é um índice definido durante o processo de revisão
tarifária e que tem por objetivo compartilhar com o consumidor eventuais ganhos de
produtividade das concessionárias durante os reajustes anuais, entre os ciclos de revisão.
Grosso modo, o reajuste anual é dado pela inflação menos o Fator X. Quanto mais alto
for esse fator, maior o repasse de ganhos de produtividade para o consumidor. Do
segundo para o terceiro CRTP, o Fator X aumentou de 1,02% para 1,86%.
Quanto à remuneração do capital, o Weighted Average Cost of Capital
(WACC), taxa que remunera o capital das empresas, vem caindo sucessivamente ao
longo dos ciclos de revisão, passando de 11,26%, no primeiro ciclo, para 9,95%, no
segundo, até atingir 7,5% no terceiro. A questão que se coloca é: em que medida essa
redução no WACC reflete uma redução no custo de oportunidade do capital? E em que
medida a busca por modicidade tarifária está estimulando o regulador a agir de forma
oportunista?
Não se pode deixar de reconhecer que o ambiente macroeconômico
melhorou substancialmente no Brasil entre 2003 e 2011, e, portanto, há espaço para
redução do WACC. Mas também há evidências de que a redução do WACC pode ter
ido além da queda do custo de oportunidade. A rentabilidade das empresas do setor de
energia elétrica incluídas na relação Valor 1.000 caiu mais fortemente do que a média
nos últimos dois anos. Outra evidência importante nesse assunto é a Aneel ter deixado
de considerar o risco cambial e o risco regulatório neste 3º CRTP.
Outro problema que merece reflexão é sobre que base remuneratória
deve incidir o WACC. O WACC definido no mais recente ciclo de revisão é utilizado
para remunerar todo o capital elegível. Cabe discutir se cada ativo não deveria ser
remunerado de acordo com o WACC que vigia no período em que foi adquirido. As
condições de financiamento podem se alterar substancialmente entre uma revisão
tarifária e outra. Ao se remunerar todo o capital pelo WACC mais recente, está-se, na
17
prática, exigindo que a empresa renegocie periodicamente todos os seus compromissos
financeiros, o que aumenta os custos de transação e desestimula fortemente a
contratação de financiamentos com juros fixos, o que certamente reduzirá a
probabilidade de a empresa conseguir atingir uma composição ótima em seu
endividamento.
Em 2012, único ano para o qual é possível estimar o impacto da mudança
de metodologia do 2º para o 3º CRTP, as novas regras levaram a reajustes em torno de 5
pontos percentuais mais baixos.
Ainda é uma questão em aberto como a busca da modicidade tarifária irá
afetar a vida futura das empresas e consumidores. É possível que as empresas viessem
gozando de rentabilidade elevada e, agora, em decorrência de pressões do Governo,
estejam obtendo uma remuneração justa. Mas é igualmente possível que a modicidade
tarifária esteja deprimindo os retornos do investimento em um nível que possa
comprometer a sustentabilidade do setor.
Nesse caso, os benefícios de curto prazo, traduzidos na forma de contas
de luz mais baixas, devem ser pesados contra possíveis consequências de longo prazo,
como queda na capacidade de investimento ou deterioração na qualidade do serviço
oferecido, experiência, aliás, já vivida no Brasil, na década de 1980, e que se revelou
um imenso fracasso.
A busca por modicidade tarifária enfrenta um novo desafio, como já
mencionado. Por uma série de motivos, que incluem a não adesão de geradoras aos
termos da MP 579 e leilões fracassados ou não realizados pelo governo federal, as
distribuidoras ficaram sujeitas a cerca de 3.700 MW de exposição involuntária no início
de 2014. Nesse caso, são forçadas a comprar energia no mercado spot, que chegou a
custar oito vezes mais do que o preço que vigia nos contratos anteriores já em janeiro de
2014, em razão da escassez das chuvas em pleno período úmido. Em princípio, o
aumento de custos é suportado pela distribuidora até o reajuste tarifário seguinte,
quando é repassado para as tarifas. Diante da magnitude do montante envolvido – o
aumento de custos está estimado em R$ 20 bilhões – o governo encontra-se diante de
um dilema: mantém as tarifas e fornece algum tipo de ajuda para as distribuidoras, que
não dispõem de caixa para suportar as maiores despesas, mas pressionando as contas
18
públicas e gerando distorções no consumo, ou aumenta as tarifas ao consumidor,
pressionando a inflação e enfrentando o ônus político associado.
Por último, há a questão da construção de usinas hidrelétricas com
reservatórios, aproveitamento de uma condição natural rara no mundo. O Brasil é o
terceiro país do mundo em potenciais de geração hidrelétrica. Dispõe de 260 mil MW
de capacidade de geração, dos quais 85 mil MW já foram aproveitados. Estima-se que
mais de 126 mil MW ainda têm viabilidade. Contudo, restrições socioambientais
(interferências em terras indígenas, parques florestais e populações ribeirinhas) podem
reduzir a capacidade aproveitável a cerca de 60 mil MW, a depender de decisões de
Estado.
Em razão desse potencial natural, o sistema brasileiro de geração de
energia elétrica é hidrotérmico. As hidrelétricas, mais baratas e menos poluentes, geram
primeiro. Depois vêm as térmicas convencionais, bem mais caras – as mais baratas, a
carvão, geram a preço maior que o dobro das hidrelétricas –, usadas idealmente para
garantir o abastecimento quando falta água nos reservatórios. As demais fontes (eólica,
por exemplo) não asseguram o abastecimento, dada a sua intermitência, dependente de
fatores naturais.
Também é relevante entender que a hidrelétricas dotadas de reservatórios
podem armazenar água, combustível gratuito e natural para a geração de energia. Elas
oferecem ainda outros benefícios à sociedade como o suprimento de água, o controle de
cheias, a irrigação, a melhoria da navegação, o turismo e a recreação, o que as torna
mais vantajosas também do ponto de vista socioambiental.
Uma “política de fato”, contrária à lei vigente, tem feito com que o Brasil
abdique da construção de usinas com reservatórios, para evitar os problemas
socioambientais. O caso mais gritante é o ocorrido na Bacia do Xingu. O Governo abriu
mão de um potencial de cinco mil MWmédios de energia para evitar a construção de
Belo Monte com reservatório. Estima-se que essa energia seja R$ 13,6 bilhões/ano mais
barata do que se for gerada por térmicas a gás! Além disso, a Resolução CNPE nº 6, de
2008, determina que as demais hidrelétricas da Bacia não sejam mais construídas.
Todas as usinas construídas e a construir representam a ocupação de uma
área de apenas 0,16% do bioma amazônico, o lugar onde mais chove no mundo. Usinas
19
com reservatório captam e permitem o uso dessa água. A capacidade de reservação das
nossas usinas, hoje, é suficiente para o abastecimento por apenas cinco meses, e o
Governo estima que será de apenas 3,24 meses em 2022. Seremos cada vez mais
forçados a utilizar usinas térmicas, muito mais caras e poluentes. Devemos fazer essa
opção e jogar fora essa riqueza?
Sintetizando, concluímos que não se deve buscar modicidade tarifária a
qualquer custo, pois os benefícios no curto prazo, traduzidos em tarifas mais baixas, se
revertem em fortes prejuízos no longo prazo, com custos de produção mais elevados e,
possivelmente, expansão da oferta em ritmo inferior à expansão da demanda, limitando
o crescimento potencial do país. Para reduções sustentáveis de tarifas, é necessário,
acima de tudo, criar condições para redução de custos no setor. Para tanto, as seguintes
ações devem ser implementadas: redução dos riscos regulatórios e negociais; estímulo
ao mercado livre; redução da tributação e encargos setoriais; estímulo à construção de
usinas com reservatórios; e maior celeridade no fornecimento do licenciamento
socioambiental.
No que diz respeito a este último quesito, é fundamental aprimorar o
processo de licenciamento ambiental. Duas medidas despontam como essenciais nesse
mister. A primeira se refere à obtenção da LP com antecedência, de modo que os
interessados conheçam as condicionantes dos empreendimentos e possam precificá-las
adequadamente. A outra iniciativa importante, reivindicação, aliás, do Fórum do Meio
Ambiente do Setor Elétrico, é a instituição de um interlocutor único na esfera
governamental com quem os empreendedores possam tratar das questões ambientais,
em vez de terem que lidar com diferentes órgãos de Governo para resolver essas
questões.
20
Introdução
Há cada vez mais consenso entre os diversos segmentos da sociedade
brasileira de que a deficiência em infraestrutura é um dos obstáculos para que possamos
alcançar taxas mais altas de crescimento. A imprensa frequentemente noticia nossas
carências nas mais diversas áreas de infraestrutura. Estradas esburacadas, aeroportos e
portos congestionados e apagões que, não raro, atingem mais de um estado são temas
que, rotineiramente, aparecem nas páginas de nossos noticiários.
No caso específico da energia elétrica, o Brasil ainda tem o trauma do
racionamento de 2001. Mesmo assim, decorridos mais de dez anos do episódio, o
problema da oferta insuficiente de energia não parece ter sido devidamente solucionado:
há uma constante preocupação de que a oferta não venha sendo capaz de acompanhar a
expansão da demanda. Em 2012, ano de hidrologia ruim, houve forte temor de que
poderia haver racionamento. Foi necessário acionar todas as usinas termoelétricas e
alguns analistas acreditam que só não houve necessidade de racionamento porque a
economia havia crescido muito pouco naquele ano.
O objetivo deste livro é discutir o que deve ser feito para garantir que o
setor elétrico possa suprir a energia de que o país tanto necessita, a preços condizentes
com as nossas disponibilidades hídricas. Em linhas gerais, veremos que é necessária a
participação ativa do setor privado. Para tanto, deve haver um ambiente de estabilidade
regulatória. Ao órgão regulador incumbe a difícil tarefa de criar mecanismos em que as
tarifas cobradas sejam, ao mesmo tempo, módicas para o consumidor, e capazes de
remunerar adequadamente o capital das empresas.
A despeito de inúmeros avanços ocorridos desde os anos 1990, vimos
observando retrocessos em importantes aspectos: aumento da intervenção estatal, com
desestímulo para a participação privada, e aparente obsessão do governo por redução de
tarifas, mesmo que não acompanhada de redução de custos na mesma proporção. As
consequências são queda de rentabilidade das empresas do setor, o que compromete sua
capacidade futura de investimento; deterioração das contas públicas; e distorção de
preços relativos, estimulando o uso ineficiente da energia.
O livro está organizado em seis capítulos, além desta Introdução. No
Capítulo I discutimos a importância do investimento no setor elétrico para a economia
21
brasileira. Mostraremos, inicialmente, a necessidade de se garantir oferta de energia
elétrica barata e em abundância para o desenvolvimento econômico e para o bem estar
social. Em seguida discutiremos como o modelo de crescimento da economia brasileira,
baseado no binômio crescimento do consumo/exportações de commodities, gera baixas
taxas de poupança, o que limita a capacidade de investimento agregada da economia.
Tendo em vista a dificuldade de ampliar o estoque de capital físico, é
necessário direcionar investimentos que ampliem a produtividade da economia. Nesse
contexto, investir em infraestrutura – transportes, eletricidade, comunicações – é
fundamental para se garantir aumento de produtividade. Para o Brasil, destaque-se ainda
o fato de que aumentar a produção de energia elétrica significa aproveitar melhor nossas
vantagens comparativas, tendo em vista o nosso potencial hidroelétrico e a presença de
matérias primas essenciais para o desenvolvimento de indústrias eletrointensivas, como
alumínio, siderurgia, papel e celulose.
No final do capítulo, concluímos que a participação do setor privado é
essencial para o setor elétrico. Isso se deve tanto à baixa poupança pública, que limita a
capacidade de investimento do Estado, quanto à maior eficiência do setor privado.
O Capítulo II faz uma discussão teórica sobre precificação de energia.
Partimos de uma situação hipotética, em que não há assimetria de informações, os
contratos são completos e os mercados são plenamente concorrenciais. Verifica-se,
então, que a regra geral deve ser igualar o preço ao custo marginal. Posteriormente
trabalhamos com hipóteses mais realistas. Quando há assimetrias de informações, notase que leilões podem ajudar a determinar o preço correto, mas que é necessário estar
atento para situações em que leilões possam gerar resultados ineficientes.
Naquele capítulo discute-se também algumas especificidades do setor
elétrico. A primeira refere-se à determinação da tarifa, em um contexto em que a
depreciação do ativo é muito mais lenta do que o prazo para recuperação do
investimento realizado. Por exemplo, na atividade de geração, a maior parte do custo
corresponde ao investimento inicial, sendo a operação e manutenção (O & M) da usina
relativamente barata. Ocorre que o investimento tem de ser amortizado em um prazo
não superior a 30 anos, mas a vida útil da usina é muito maior, ultrapassando cem anos,
fazendo com que os custos caiam abruptamente ao término da amortização dos ativos.
Mostraremos que, no caso mais simples, em que não há aumento no custo marginal de
22
longo prazo, a tarifa ótima cobrada ao consumidor equivale ao custo médio de
produção.
O segundo problema refere-se à remuneração de investimentos novos
feitos ao longo do período de concessão. Trata-se de um problema muito comum na
atividade de distribuição, pois a localização espacial da população e da atividade
econômica, que determina onde deve haver suprimento de energia, pode variar ao longo
do contrato de distribuição, sendo impossível de ser prevista quando da assinatura do
contrato.
Tendo em vista que os investimentos novos ocorrem somente após a
distribuidora ter incorrido em elevados custos fixos iniciais (que incluem não somente
os investimentos iniciais, mas todos os gastos necessários para organizar a empresa), há
o risco de ocorrer aquilo que se denomina comportamento oportunista por parte do
órgão regulador. Apesar de o comportamento oportunista permitir ganhos no curto
prazo, como redução de tarifas, pode trazer desastrosas consequências no longo prazo,
pois reduz a capacidade de financiamento do setor elétrico, induz os licitantes a
exigirem maior preço mínimo nos leilões, e reduz a eficiência alocativa, pois o licitante
vencedor pode não ser o mais eficiente, mas o que está mais disposto a correr riscos.
O Capítulo III discorre sobre o marco regulatório do setor elétrico
brasileiro e sua evolução, desde a reforma dos anos 1990. Basicamente, identificamos
três fases: a primeira, que foi a reforma empreendida pelo Governo Fernando Henrique
Cardoso, no sentido de liberalizar o mercado. Em 2003/2004, na esteira do
racionamento e do início do Governo do PT, houve a reforma do Governo Luiz Inácio
Lula da Silva que, em vista do trauma do racionamento, ainda fresco na memória, teve
como objetivos principais assegurar o abastecimento de energia elétrica e reduzir tarifas.
As alterações na legislação e as novas diretrizes de Governo também aumentaram a
participação do Estado no setor, por exemplo, com o retorno da Eletrobras como agente
importante no setor de transmissão.
A terceira fase pode ser caracterizada como um período em que a busca
por modicidade tarifária parece ter-se tornado o principal objetivo da política energética,
já no Governo Dilma Rousseff. O principal marco foi a Medida Provisória nº 579, de
2012 (posteriormente convertida na Lei nº 12.783, de 2013).
23
Algumas medidas da MP são tecnicamente corretas: eliminação ou
redução de encargos e subsídios cruzados e fixação da tarifa das geradoras com base nos
custos de O&M, com eliminação da parcela que supostamente serviria para remunerar
os custos com amortização e depreciação. Essa nova regra de tarifação se justifica para
alguns contratos mais antigos, em que as despesas com amortização e depreciação já
haviam sido integralmente recuperadas. Outras medidas são mais criticáveis: decisões
tomadas de forma abrupta, sem o devido tempo para discussão e amadurecimento, prazo
curto para as decisões das empresas, dúvidas sobre o valor a ser indenizado para os
ativos que não foram integralmente depreciados e subsídios para aquisição de energia
das empresas que não optaram pela antecipação das renovações, uma vez que não eram
obrigadas a aceitar as condições para renovação antecipada das concessões propostas
pelo Governo.
Finalizamos o Capítulo III discutindo a iniciativa do Governo de evitar
que o aumento de custos decorrente do despacho de energia térmica seja repassado ao
consumidor. Em 2013, os subsídios governamentais correspondentes custaram quase R$
10 bilhões aos cofres públicos. Trata-se de um subsídio que não tem razão de existir,
exceto por uma política que tenha por objetivo evitar aumento nas tarifas de energia,
mesmo que à custa de desequilíbrios fiscais, de distorção de preços relativos e de
incentivos ao uso excessivo de energia térmica, mais cara e poluente do que a de fonte
hidroelétrica. Contudo, tendo em vista que as tarifas das distribuidoras ao consumidor
final são reajustadas apenas anualmente, alguma solução para esse problema precisa ser
encontrada, uma vez que essas empresas não têm capacidade financeira para bancar
tamanha diferença entre o valor de compra e de venda da energia, quando as térmicas
são despachadas maciçamente.
O objetivo do Capítulo IV é explicar um aparente paradoxo: ao mesmo
tempo em que participantes da indústria de energia reclamam dos preços-teto dos
leilões, que seriam fixados em níveis muito baixos, o que se observa, com bastante
frequência, são leilões que conseguem vender boa parte dos lotes ofertados, e com
deságio.
Como veremos, algumas explicações para esse paradoxo são: i) a
Eletrobras pode ser obrigada por seu controlador – a União – a participar
agressivamente dos leilões; ii) existência de incentivos como financiamento subsidiado
24
por parte do BNDES; iii) licitantes com avaliação imprecisa dos custos e riscos ou com
maior predisposição a correr riscos excessivos.
Discutimos também naquele capítulo o problema do comportamento
oportunista por parte do Governo em relação aos contratos de distribuição. A queda na
remuneração do capital regulatório, a forma de mensurá-lo e o maior repasse dos ganhos
de produtividade para as tarifas podem vir a comprometer a viabilidade econômicofinanceira da atividade de distribuição.
Ao longo do livro, vimos que boa parte do esforço governamental para
alcançar modicidade tarifária foi via redução de preços, sem uma equivalente
preocupação com redução de custos. No Capítulo V discutimos a necessidade de o país
aproveitar plenamente o seu potencial hidroelétrico, como forma de efetivamente
reduzir os custos de produção. É necessário abandonar a prática de construir usinas a fio
d’água, que, por não terem reservatórios, geram menos energia e obrigam o uso mais
intenso de energia termoelétrica, mais cara e mais poluente. Esse capítulo discutirá as
consequências dessa política para o custo de energia no longo prazo.
Por fim, o Capítulo VI sumariza os principais resultados e conclui.
25
Capítulo I – Macroeconomia e o investimento em energia
Analistas econômicos, empresários, políticos e a população em geral são
quase unânimes em identificar as baixas taxas de investimento, a baixa qualificação da
mão de obra e a infraestrutura deficiente como principais obstáculos para que o Brasil
atinja taxas sustentáveis de crescimento mais altas. Após um período de maior otimismo
nos anos que antecederam a crise financeira internacional, estudos apontam para uma
redução do crescimento do PIB potencial, para taxas anuais abaixo de 4% ou mesmo de
3%1, bastante aquém do que seria necessário para alcançarmos o status de nação
desenvolvida em um espaço de uma ou duas gerações.
Neste capítulo, mostraremos inicialmente a necessidade de se investir em
eletricidade. Posteriormente, discutiremos possíveis fontes de financiamento. Como
veremos, a opção de crescimento adotada pelo Brasil, baseada no binômio
consumo/exportação de commodities, tem como contrapartida a baixa formação de
poupança doméstica. Como não há mobilidade perfeita de capitais, não há oferta
suficiente de capitais externos para financiar o investimento no nível necessário para
garantir taxas de crescimento das economias mais robustas. Mostraremos também que
esse investimento deve ser preferencialmente realizado pelo setor privado. Em primeiro
lugar, pelas considerações usuais de eficiência. Em segundo lugar porque a poupança
pública é baixa.
Eletricidade é um insumo indispensável para o aumento de bem estar da
população e para o crescimento da economia. No caso brasileiro, uma maior oferta de
eletricidade é fundamental para que aproveitemos melhor nossas vantagens
comparativas. O País dispõe do terceiro maior potencial hidroelétrico do mundo, o que
nos permite produzir energia da forma mais barata e limpa possível. Além disso,
dispomos de importantes matérias primas para indústrias eletrointensivas, como as de
alumínio, siderurgia e outras. O uso de energia elétrica também permite aumentar
significativamente a produtividade agrícola por meio da irrigação.
A energia elétrica traz também diversos benefícios, diretos e indiretos,
para a produtividade do trabalho. O maior conforto proporcionado pelo acesso à
1
Vide, por exemplo, Velloso et al (2013) e Barbosa Filho (2011).
26
eletricidade certamente contribui para maior produtividade do trabalhador. O uso da
eletricidade na mobilidade urbana, como combustível para trens e metrôs, permite
redução significativa no tempo de locomoção. O uso de aparelhos eletrodomésticos,
como computador e televisão, também trazem óbvios impactos sobre a produtividade do
trabalho.
Atualmente, o acesso à energia elétrica é quase universal no Brasil. Em
2009, 98,3% da população tinha acesso à energia, ante uma média mundial de 74,1%
(Frischstak, 2013), e ficávamos próximos aos países com melhor cobertura, que
atingiam 100%. Já em relação a outros indicadores, sobretudo de qualidade, os
resultados não são tão animadores. A Duração Equivalente de Continuidade (DEC),
indicador que mensura o número de horas com interrupção de energia durante o ano,
vem crescendo desde 2008, passando de uma média em torno de 16,5 horas, entre 2005
e 2008, para um valor próximo a 18,5 horas, entre 2009 e 2012. Nos países com
melhores indicadores, a média é de 0,4 hora. A perda de energia na transmissão e na
distribuição no Brasil é de 17,2%, mais do dobro da média mundial, de 8,4%, e bem
distante dos 3,0% dos países com o melhor indicador (Frischstak, 2013).
Calderón e Servén (2010) construíram um índice de qualidade e
quantidade da infraestrutura ofertada em países latino-americanos. Para o período 20012005, o índice de quantidade brasileiro, 0,93, estava bem abaixo do observado nos
países desenvolvidos (3,96) e no leste asiático (2,36). O índice de qualidade também era
mais baixo (0,856), porém a discrepância era menor (0,936 e 0,943 para os países
desenvolvidos e leste asiático, respectivamente).
Nosso atraso na produção de energia elétrica, como, de resto, na oferta de
infraestrutura em geral, deve-se, em grande parte, à falta de investimentos no setor. Na
década de 1970, o Brasil investiu 5,4% do PIB em infraestrutura, dos quais, 2,1% do
PIB em eletricidade (Frischtak, 2013). Essas proporções foram caindo ao longo do
tempo até chegarmos, na década de 2000, a 2,19% do PIB investido em infraestrutura e
somente 0,67% do PIB investido em eletricidade.
As consequências do baixo investimento em energia para a sociedade
podem ser dramáticas. Em 2001, o Brasil passou por um forte esquema de
racionamento, para evitar apagões descontrolados. Em 2012, o racionamento (ou,
talvez, o colapso) do sistema provavelmente só foi evitado porque a economia cresceu
27
pouco no ano. Mesmo com baixo crescimento (de 1,0%), as usinas térmicas tiveram de
ser acionadas a plena carga, o que avançou pelo primeiro semestre de 2013.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2022,
publicado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e
Energia, o consumo de energia elétrica deverá aumentar 51% entre 2013 e 2022,
passando de 520 TWh para 785,1 TWh. Em valores per capita, o aumento será de 44%,
passando de 2,6 mil KWh para 3,8 mil KWh no período. Para ampliar a oferta, somente
para construção de usinas, serão necessários investimentos da ordem de R$ 200 bilhões.
Investimentos adicionais de R$ 60 bilhões serão necessários para adequar o sistema de
transmissão. Assim, o investimento anual médio deve ser da ordem de R$ 26 bilhões, o
que corresponde a 0,6% do PIB estimado para 2013.
Curiosamente, a projeção da EPE implica a manutenção dos atuais níveis
de investimento como proporção do PIB. Tendo em vista as carências no setor,
podemos interpretar esse montante como um piso para os investimentos, ou seja, o
mínimo necessário para que a expansão da oferta ocorra com qualidade
aproximadamente igual à que temos hoje.
Mesmo que corresponda a um piso para os investimentos em energia, os
R$ 26 bilhões anuais representariam mais da metade dos cerca de 1% do PIB (conforme
Frischtak, 2013) que o Estado investe anualmente em infraestrutura. Como mostraremos
a seguir, é pouco provável que a capacidade de investimento do setor público, incluindo
a Eletrobras, aumente nos próximos anos, especialmente após a MP nº 579, que retirou
da estatal importante fonte de receita.
Uma identidade básica da economia é que poupança é igual ao
investimento. A poupança, por sua vez, compõe-se da soma da poupança doméstica
com a poupança externa. O grande problema do Brasil é que a taxa de poupança
doméstica é muito baixa, da ordem de 16% do PIB, de acordo com o IBGE. Já a taxa de
investimento está em torno de 19% do PIB, indicando a necessidade de poupança
externa da ordem de 3% do PIB. Contabilmente, a poupança externa corresponde ao
déficit em transações correntes. Assim, se quisermos aumentar a taxa de investimento,
digamos, para 25% do PIB, mantendo a atual taxa de poupança doméstica, o déficit em
transações correntes teria de se elevar para 9% do PIB.
28
Em tese, não há limites para o déficit em transações correntes. Na prática,
entretanto, observa-se que dificilmente um país emergente consegue manter déficits em
transações correntes acima de 4% do PIB por longos períodos. Déficits prolongados
dessa magnitude funcionam como um sinal de alerta aos investidores internacionais
sobre a nossa capacidade de honrar os compromissos em dólares (ou em outra moeda
forte). Mesmo que os investidores externos se dispusessem a financiar uma parcela tão
grande de nossos investimentos, um saldo em conta corrente fortemente negativo
somente pode ser viabilizado com o real sobreapreciado, o que reduziria
dramaticamente a nossa competitividade. Nesse caso, haveria uma forte pressão
doméstica contra a entrada de tanto capital externo, impedindo a concretização de
déficits tão acentuados em nossa conta corrente.
A solução para aumentarmos nossa capacidade de investir deve passar,
necessariamente, pelo aumento da taxa de poupança doméstica. Se pensarmos em
políticas públicas, o ideal é que haja aumento da poupança do setor público. Em
primeiro lugar, porque a baixa poupança doméstica está mais relacionada com o setor
público, que apresentou taxa negativa de -2,4% do PIB na média entre 2000 e o segundo
trimestre de 2013, ao passo que a taxa média de poupança do setor privado foi de 18,7%
do PIB no mesmo período (Rocca e Santos Junior, 2013). Em segundo lugar, porque é
mais fácil desenvolver políticas públicas destinadas a aumentar a poupança do setor
público do que a do setor privado. Velloso et al (2013) mostram que uma racionalização
de gastos correntes podem permitir uma economia de até 14% do PIB.
Entretanto, cortar gastos correntes pode trazer fortes prejuízos políticos,
pois levaria ao descontentamento de parcela do funcionalismo público e de aposentados
ou dos beneficiários de programas sociais. Seja por uma questão ideológica, seja por um
frio cálculo político, não parece haver interesse por parte dos gestores públicos em
ampliar a poupança por esse meio. Tampouco é viável aumentar a poupança pública via
aumento da tributação. A carga tributária brasileira, de 36% do PIB em 2012, já é
elevadíssima, muito acima de países com renda per capita similar à nossa.
Além de desestimular ainda mais o crescimento da economia, ao reduzir
a rentabilidade do setor privado, um aumento da tributação teria o impacto de reduzir
ainda mais a já baixa poupança doméstica. Afinal, maior tributação implica aumento da
participação do setor público e consequente redução da participação do setor privado na
29
economia. Como o setor público poupa menos do que o setor privado, a taxa de
poupança agregada cairia.
Se a expansão do setor elétrico tiver de ser feita com financiamento
governamental, uma terceira possibilidade seria via aumento do endividamento. Aqui
também as possibilidades são limitadas. Em que pese a forte queda da relação dívida
líquida/PIB observada nos últimos anos, o endividamento bruto tem aumentado
fortemente, passando de 60,0% do PIB, em dezembro de 2006, para 65,8% do PIB, em
agosto de 2013, em razão, sobretudo, dos empréstimos do Tesouro para o BNDES e do
aumento das reservas internacionais2. Além de pressionar a taxa de juros, o aumento do
endividamento público, tal como ocorre com aumento dos tributos, reduz a capacidade
de investimento do setor privado, que é obrigado a transferir recursos para o setor
público.
Outra possibilidade de financiamento dos investimentos em energia
elétrica seria diretamente pela estatal Eletrobras, que, desde 2010, não integra mais o
setor público consolidado, para fins de contabilidade. Ocorre que a Eletrobras também
está com problemas de caixa. Conforme discutiremos no Capítulo III, a Medida
Provisória nº 579, de 2012, reduziu as perspectivas de receitas da empresa, ao impor
novas regras tarifárias para as geradoras. Em 2012 a empresa teve prejuízo de quase R$
7 bilhões e, até o 3º trimestre de 2013, o prejuízo acumulado no ano atingia R$ 800
milhões.
Um forte indicador da fragilidade do grupo Eletrobras é a sua
incapacidade de concretizar os diversos compromissos assumidos na construção de
linhas de transmissão. Esse tema será discutido com maior profundidade no Capítulo
IV, mas cabe aqui ressaltar que as subsidiárias da empresa, em especial a Chesf, não
vêm conseguindo cumprir os cronogramas no prazo contratual por falta de caixa. Os
atrasos na entrega de linhas de transmissão chegaram a tal ponto que a Aneel proibiu a
empresa, junto com Furnas e Eletronorte, ambas subsidiárias da Eletrobras, de participar
de novas licitações. Destaque-se que tais atrasos geram desperdício de energia porque as
usinas ficam prontas, mas não têm como fazer com que a energia gerada chegue ao
consumidor final. Isso também encarece a conta de luz, pois os consumidores acabam
2
Conforme Pellegrini (2013)
30
sendo obrigados a pagar pela energia não gerada, uma vez que o empreendedor
construiu a geradora dentro do prazo estabelecido e tem direito à sua remuneração.
Vimos, portanto, que o setor público, incluindo a estatal Eletrobras,
possui capacidade muito limitada de financiar a expansão do setor elétrico.
Independentemente de preferências políticas ou ideológicas, não há como expandir o
parque energético brasileiro no montante necessário para satisfazer o aumento projetado
de demanda sem contar com o investimento privado. Além de dispor de recursos, o
investimento privado tende a ser mais eficiente do que o do setor público. Abbud e
Montalvão (2003) mostraram forte queda de custos na geração e transmissão a partir de
1995, superior a 50%, quando empresas privadas ingressaram no mercado brasileiro.
É necessário, portanto, que o Governo e o órgão regulador criem um
ambiente favorável para atração do capital privado ao setor elétrico. Para o investidor, é
irrelevante se irá aplicar seus recursos em eletricidade, estradas, automóveis ou em
artigos de higiene pessoal, aqui ou no exterior. O que importa é obter uma boa relação
risco/retorno. Infelizmente, no Brasil, a taxa de poupança é baixa, o que significa
escassez de oferta de fundos e, consequentemente, maior poder de barganha de quem
possui capital. O Governo precisa ter consciência dessa limitação de nossa economia e
se convencer de que, para atrair investidores para o setor de energia, deverá oferecer um
retorno compatível com a escassez de capital e risco assumido. No próximo capítulo
discutiremos como Governo e regulador devem atuar de forma a, simultaneamente,
conseguir atrair capital para o setor e, na medida do possível, assegurar modicidade
tarifária e expansão com qualidade da oferta de energia.
31
Capítulo II – Considerações teóricas
II.1 – Introdução
Em 2003, com a edição da Medida Provisória (MP) nº 144, inaugurou-se
o que veio a ser conhecido como o novo marco regulatório do setor energético no País.
Os objetivos do novo marco regulatório, explicitamente citados na Exposição de
Motivos da referida MP foram: modicidade tarifária; continuidade e qualidade na
prestação de serviços; remuneração justa aos investidores; e universalização do
atendimento. Com ele, a expansão da oferta de energia elétrica foi atrelada às
necessidades de contratação de energia pelas distribuidoras, mecanismo supostamente
suficiente para garantir o abastecimento dos consumidores finais. As distribuidoras
passaram a ter que declarar suas necessidades de compra ao Governo, que conduziu
leilões de energia, inclusive de energia nova, vale dizer, de usinas a serem ainda
construídas.
Dependendo de como se interpretam esses objetivos, eles podem ser
contraditórios entre si. Mais especificamente, o barateamento das tarifas, se levado ao
extremo, pode comprometer a justa remuneração dos investidores e, por consequência,
sua capacidade de investimento. Nesse caso, compromete-se também a capacidade de
oferta energética, a qualidade do serviço e a universalização do atendimento. Dessa
forma, modicidade tarifária deve ser entendida como a menor tarifa compatível com a
justa remuneração dos investidores e, consequentemente, com os demais objetivos da
política energética. Não deve ser confundida, portanto, com o menor preço imaginável!
Neste Capítulo se discutirá que princípios básicos devem ser observados
para determinar a tarifa de energia. A tarifa “ótima” deve ser vista sob uma perspectiva
estática e dinâmica. Sob a perspectiva estática, a tarifa deve ser tal que remunere o
investidor de acordo com o custo de oportunidade de seu capital. Sob a perspectiva
dinâmica, a tarifa deve ser estabelecida de forma a incentivar o investidor a adotar
técnicas que incorporem ganhos de produtividade, de forma a garantir modicidade
tarifária no longo prazo.
Mostraremos, na próxima seção, que a estrutura do mercado de energia
requer regulação nos preços, isso porque há características técnicas e institucionais que
inibem a competição no setor. No Brasil, fatores institucionais, como a forte presença de
mercados cativos de consumidores e o subsídio a fontes alternativas, tornam ainda mais
32
necessária a regulação. Com um mercado não competitivo, a ausência de regulação
pode levar a preços acima do socialmente ótimo e a uma produção ineficientemente
baixa.
Entendida a necessidade de regulação, a seção seguinte irá discutir a
precificação em um modelo básico, no qual adotamos as hipóteses de perfeita simetria
de informações e de ausência de comportamento oportunista por parte de regulados ou
reguladores. Perfeita simetria de informações significa que regulados e reguladores
dispõem do mesmo conjunto de informações, em especial os referentes a custos e
tecnologias. Dessa forma, todos no mercado conhecem o real custo de implantação,
operação e manutenção de uma planta. O termo comportamento oportunista refere-se a
ações que regulados ou o regulador podem tomar, durante o período de concessão (e,
consequentemente, após a assinatura dos contratos), no sentido de forçar alterações
contratuais que lhes sejam favoráveis.
A análise terá de levar em consideração três importantes características
do setor elétrico:
i)
O descasamento entre o período de concessão e a duração real do
ativo. Principalmente no caso da geração, o prazo de concessão da usina, usualmente de
até 30 anos, é bastante inferior à duração efetiva do ativo. Uma vez construídas, usinas
são capazes de gerar energia por cerca de cem anos, com custo de manutenção
relativamente baixo. Mas a recuperação do investimento tem de ser feita ao longo do
contrato de concessão, o que gera forte descontinuidade na tarifa;
ii)
A necessidade de inversões ao longo do contrato. Principalmente
para a atividade de distribuição, é impossível determinar, na assinatura do contrato,
onde, quando e qual o montante dos novos investimentos a serem realizados. As regras
devem ser tais que garantam que esses investimentos sejam efetivamente realizados e
incorporem as técnicas mais produtivas;
iii)
Participação da Eletrobras. Apesar de ser uma empresa de capital
aberto, com mais de 80% das ações preferenciais em poder do setor privado, a
Eletrobras é uma empresa estatal e, portanto, suas decisões podem ser influenciadas por
decisões de seu controlador principal, a União. Isso possibilita que a empresa
desenvolva projetos pouco rentáveis, distorcendo os preços relativos do setor
energético.
33
O modelo básico, estudado na Seção II.3, servirá como referência para a
Seção II.4, que analisará a precificação ótima quando há assimetria de informações e
possibilidade de comportamento oportunista por parte dos agentes. Como veremos, é
recomendável impor regras aos leilões para permitir a obtenção do preço justo e, ao
mesmo tempo, evitar comportamento oportunista por parte dos regulados. Também
veremos que é necessário impor cláusulas contratuais que deem maior segurança às
empresas do setor, como forma de desestimular comportamento oportunista por parte do
regulador.
Por fim, a Seção II.5 apresenta sugestões para se obter modicidade
tarifária sem interferir diretamente no mecanismo de formação de preços. É necessário
aprimorar o marco regulatório, dando maior segurança e previsibilidade ao investidor.
Também entendemos ser necessário rediscutir a carga tributária sobre o setor de
energia, que, a despeito de sua essencialidade e importância como insumo produtivo e
bem de consumo, é fortemente tributado. Outro caminho para reduzir os custos do setor
é racionalizar o procedimento de obtenção de licenças socioambientais. Por fim, é
necessário que o País rediscuta qual a matriz energética que deseja. Apesar do imenso
potencial hidroelétrico do Brasil, vimos desperdiçando esse potencial com a construção
de usinas a fio d’água. Esse desperdício traz como consequência a necessidade de
aumentarmos a participação de outras fontes, mais caras e mais poluentes, em nossa
matriz energética.
II.2 – Necessidade de regulação no setor energético
A teoria econômica diz que, em um mercado competitivo e sem outras
restrições3, o preço de um bem ou serviço irá refletir seu custo social e garantirá a
alocação eficiente dos recursos. No setor energético há importantes barreiras à
competição, que fazem com que o preço que decorreria da simples interação entre oferta
e demanda não reflita o custo social e seja, portanto, ineficiente.
As fontes da falta de competição no setor são tanto de natureza
tecnológica, quanto de caráter institucional. Do ponto de vista tecnológico, as linhas de
transmissão e de distribuição formam aquilo que se denomina monopólio natural. Não
3
As outras restrições incluem, entre outras, presença de externalidades, mercado de crédito imperfeito,
informação incompleta e assimétrica.
34
faz sentido haver multiplicidade de linhas de transmissão4 ou de postes, pois isso
representaria uso desnecessário de engenheiros, aço, cabos, madeira e demais insumos,
reduzindo a produtividade da economia.
Por isso é necessário estabelecer um sistema que limite a construção das
linhas de transmissão e distribuição e que haja um poder concedente capaz de exigir,
como contrapartida ao direito de exploração das linhas, o livre acesso ao sistema e a
obrigação de manutenção de um padrão mínimo de qualidade no serviço prestado a um
preço acordado.
Além de fatores tecnológicos, há também fatores institucionais que
geram necessidade de regulação. No Brasil, por exemplo, o consumidor final de
pequena carga faz parte de um mercado cativo. Mais especificamente, todos os
consumidores com carga inferior a 500 kW (o que inclui todos os consumidores
residenciais) são obrigados a contratar energia da distribuidora local 5. Essa restrição
não decorre de limitações tecnológicas, mas de opção do Governo6. Basta ver que em
praticamente todos os países da União Europeia, o consumidor final, de qualquer
tamanho, é livre para escolher seu fornecedor de energia. Outro exemplo de fator
institucional são as políticas públicas voltadas para incentivar determinadas fontes de
energia que não são competitivas frente à geração convencional, baseada na
hidroeletricidade.
Por ora, sem entrar no mérito das vantagens ou desvantagens da maior
liberalização do setor, o fato é que, no desenho atual, com a figura do consumidor
cativo, a liberação total de preços no setor poderia provocar forte aumento de tarifas ao
consumidor final, pois ele não tem a opção de deixar de comprar de sua distribuidora e
passar a comprar de outra. Tampouco é viável para o consumidor deixar de consumir
energia ou reduzir substancialmente seu consumo em decorrência de um aumento de
preços. Tecnicamente, diz-se que a demanda por energia elétrica é pouco elástica ao
preço. Na prática, isso significa que, no modelo atual, o poder de barganha do
consumidor final é baixo e, portanto, é necessário que haja algum tipo de regulação para
4
Pode ser recomendável construir mais de uma linha de transmissão por motivos de segurança. Por
exemplo, a energia de Itaipu é transmitida por cinco linhas. O problema é que quanto maior é a segurança,
maior é o custo do sistema.
5
Entre 500 kW e 3.000 kW, o consumidor somente terá liberdade de escolher seu fornecedor se adquirir
energia de fonte incentivada. Somente consumidores com carga igual ou superior a 3.000 kW têm total
liberdade de escolher a fonte e o fornecedor.
6
Uma análise dos problemas decorrentes da não expansão do mercado livre será feita na Seção II.5.5.
35
evitar cobrança de preços abusivos. A possibilidade de preços abusivos desapareceria se
fosse criado um ambiente competitivo, em que o consumidor pudesse escolher
livremente seu fornecedor de energia elétrica.
Outro aspecto institucional importante é que a Constituição Federal
estabeleceu que a União é proprietária do potencial hídrico (art. 20, VIII). Por ser bem
da União, é necessário estabelecer regras para que o setor privado utilize esse potencial.
Adicionalmente, existe o problema de externalidades no aproveitamento
de potenciais hídricos. Externalidades correspondem a ações não precificadas de um
agente econômico que afetam outro(s) agente(s), positiva ou negativamente. No caso de
construção de usinas, por exemplo, a construção de uma barragem a montante altera o
volume e a regularidade do fluxo de água (e, consequentemente, de energia) disponível
para as usinas a jusante. Além disso, a operação otimizada de uma usina não
necessariamente é a mesma da operação otimizada de todo o sistema. Para lidar com
esse problema, foi criado o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), que permite
que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) opere o Sistema Interligado
Nacional (SIN) de forma centralizada, otimizando a operação do sistema como um todo.
Assim como no caso do mercado cativo, a instituição do MRE7 é uma
opção do poder concedente. Alquéres (2012) propõe que, em vez de usinas, sejam
leiloados os potenciais hidráulicos de uma bacia, de forma que a questão das
externalidades seja tratada diretamente pelo outorgado, sem necessidade de regulação
por parte do Estado.
O objetivo desta seção não é discutir se a atual estrutura de mercado é a
mais adequada ou não, mas mostrar que, diante dessa estrutura, é necessário haver
algum tipo de regulação, tanto para definir regras de outorga e padrões mínimos de
qualidade, como para definir preços. O problema surge na implantação dessas regras.
Conforme discutiremos nas Seções II.3 e II.4, o estabelecimento de preços incorretos
pode causar sérios prejuízos para o setor e, consequentemente, para a garantia de
suprimento energético e para modicidade tarifária no longo prazo.
Antes de passarmos para a próxima seção, é importante esclarecer que a
essencialidade da energia e eventuais (e legítimos) objetivos de universalização do
7
Estamos nos referindo aqui somente ao problema da externalidade decorrente de haver várias usinas em
uma mesma bacia. O MRE também enseja o compartilhamento dos riscos hidrológicos em nível nacional,
permitindo otimizar o despacho conforme as estações seca e chuvosa de cada região do País.
36
acesso não constituem, per se, motivo para regulação do setor. Se o Governo entende
ser necessário garantir o acesso à energia ou maior modicidade tarifária, pode atingir
esse objetivo via um sistema de subsídios sem precisar intervir diretamente no setor. Na
Seção II.3.1.a voltaremos a discutir esse tema.
II.3 – Precificação da energia no modelo básico
Esta seção discute a precificação ótima de energia supondo mercado
plenamente concorrencial, sem assimetria de informações e sem oportunidade de
comportamento oportunista por parte dos regulados ou do regulador. A partir dessas
hipóteses, que estamos denominando modelo básico, podemos compreender os aspectos
fundamentais da precificação no mercado de energia e em que medida a assimetria de
informações e a possibilidade de comportamento oportunista podem alterar os
resultados.
Inicialmente analisaremos o preço que deve ser fixado no início do
contrato. Na Subseção seguinte, trataremos da definição de preços ao longo do contrato,
por ocasião das revisões contratuais. Ao final dessa seção discutiremos algumas
idiossincrasias da indústria de energia elétrica, como a longa durabilidade das usinas em
comparação com o prazo de concessão e a impossibilidade de se fazer um contrato
prevendo todas as possibilidades, principalmente no caso das distribuidoras.
II.3.1 – Precificação no início do contrato
A teoria econômica nos ensina que a alocação ótima dos recursos, tanto
na produção como no consumo, ocorre quando o preço se iguala ao custo marginal. O
custo de um bem corresponde à remuneração dos fatores de produção – trabalho,
capital, terra, recursos minerais, etc – que foram utilizados em sua produção. O adjetivo
marginal refere-se ao custo da última unidade produzida.
No caso da geração, o custo marginal corresponde ao custo do MWh
associado à usina de maior custo necessária para o atendimento da demanda. Portanto,
esse custo marginal varia ao longo do tempo, pois dependendo da demanda e da
hidrologia, pode ser necessário despachar mais ou menos usinas térmicas.
Normalmente, são ativadas, em primeiro lugar, as usinas mais baratas, e, à medida da
37
necessidade, são ativadas as usinas mais caras8. Entretanto, pode haver custos de
transação muito elevados para fazer com que a tarifa reflita, em tempo real, o custo
marginal do setor. Nesse caso, pode ser justificável cobrar um preço que reflita, na
média (digamos, ao longo do mês ou do ano), o custo marginal de produção da energia.
Na Subseção II.3.1.b discutiremos esse ponto em maior profundidade.
No setor elétrico há grande heterogeneidade de custos, em razão da
diversidade de fontes de geração: há usinas hidroelétricas velhas (onde o investimento
já foi depreciado) e novas; usinas de grande e de pequeno porte, que utilizam diferentes
fontes, como o vento, gás natural, óleo diesel, óleo combustível, resíduos sólidos, etc.
Os custos por MWh variam de R$ 84,58 para hidroelétricas de grande porte, passando
por R$ 124,43 para eólicas e por R$ 166,39 para térmicas nucleares, até atingir R$
956,70 para térmicas a óleo diesel.
Com base nessa heterogeneidade de custos, há quem defenda a tese de
que a cobrança deveria ser feita pelo custo médio, e não pelo custo marginal 9. Em
primeiro lugar, isso garantiria tarifas mais baratas, pois, sendo o custo marginal
crescente,10 o custo médio será necessariamente menor do que o custo da geradora
menos eficiente. Adicionalmente, quando o preço iguala o custo marginal, as empresas
mais eficientes auferem um lucro extraordinário, correspondente à diferença entre o
preço e seu custo de produção. Quando a tarifa é estabelecida com base no custo médio,
e havendo uma câmara de liquidação que garanta que cada produtor receberá
exatamente de acordo com seu custo11, todo potencial lucro excedente será transferido
para os consumidores.
Os argumentos acima, entretanto, são falaciosos. Se raciocinarmos
dinamicamente, o lucro extraordinário permite capitalizar as empresas e aumentar a
8
Há, no entanto, regra que permite ao Estado despachar usinas fora da ordem de mérito econômico, de
forma a garantir a segurança do abastecimento (Resolução nº 8, de 2007, do Conselho Nacional de
Política Energética).
9
Na Subseção II.3.3 mostraremos que há justificativa para utilizar o custo médio, em vez do marginal, em
decorrência da discrepância entre a vida real do ativo e seu prazo contábil de depreciação. Mas esse é um
problema distinto do que discutimos aqui, que é o custo marginal crescente.
10 No curto prazo, algumas atividades do processo de produção de energia, como as linhas de
transmissão e distribuição, apresentam custo marginal decrescente. Nesse caso, o custo médio é maior do
que o custo marginal. No longo prazo, entretanto, podemos supor que o custo marginal é sempre
crescente ou, pelo menos, não decrescente. À medida que as usinas geradoras passam a ser construídas
em locais mais distantes, ou que as cidades (ou a atividade econômica, de forma geral) se expandem na
direção das periferias, os custos marginais de transmissão e distribuição aumentam.
11
O sistema atual comporta-se aproximadamente dessa forma. O consumidor paga a tarifa para a
distribuidora que, por sua vez, remunera as transmissoras e geradoras de acordo com os respectivos custos
de produção.
38
oferta de energia no longo prazo. Além disso, é um poderoso incentivo para as empresas
investirem mais em aumento de produtividade, permitindo redução de custos – e,
consequentemente, de tarifas – no longo prazo.
Discutiremos mais esse tema na
Subseção II.4.312.
Em relação aos supostos benefícios de uma tarifa menor decorrente da
cobrança pelo custo médio, eles não existem quando analisamos o problema sob uma
perspectiva de equilíbrio geral. Sinteticamente, estabelecer uma tarifa abaixo do custo
marginal gera distorções na economia, que leva a preços mais altos para os demais bens.
No caso da energia elétrica, a distorção se traduz em acionamento excessivo de usinas
térmicas, mais caras. Se a tarifa fosse mais alta (igual ao custo marginal), a demanda
seria menor e, consequentemente, haveria menor necessidade de acionar usinas mais
caras. Ao acionar tais usinas, a sociedade está utilizando fatores de produção
(engenheiros, óleo combustível ou gás, demais insumos necessários para construir a
usina) que seriam mais eficientemente empregados em outras atividades.
Um exemplo ajuda a compreender o ponto. Suponhamos haver dez
usinas, cada uma produzindo uma unidade de energia com custo crescente: a energia
produzida na primeira usina custa $ 1, na segunda usina, $ 2, e assim sucessivamente
até chegar à décima usina, que produz ao custo de $ 10. Suponhamos que a demanda
por energia seja tal que, se o preço for $ 1, os consumidores desejarão consumir 9
unidades de energia; se o preço for $ 2, a demanda será de 8 unidades, e irá decrescendo
uma unidade por real, até que, ao preço de $ 10, a demanda seja nula. É fácil perceber
que, nesse mercado, o equilíbrio se dá com a produção e consumo de 5 unidades, ao
custo de R$ 5. O gráfico a seguir mostra a relação entre oferta e demanda do exemplo.
Nesse caso, a avaliação que a sociedade faz para o consumo de energia (o preço que
está disposta a pagar) iguala-se ao custo marginal (CMg) de produção. Observe-se que,
nesse caso, o custo médio de produção (CMe) é de $3.
12
Alternativamente, pode-se pensar em tributar parte do lucro extraordinário. O resultado final em termos
de bem-estar, contudo, dependerá de como o Governo utilizará os recursos arrecadados. Se for para
reduzir outros tipos de tributos, pode haver ganho de bem estar social. Se as receitas adicionais forem
desperdiçadas, a sociedade estará pior porque não auferirá os benefícios de longo prazo decorrentes do
estímulo à produtividade e à maior capitalização do setor.
39
Figura III.1: Exemplo de oferta e demanda por energia
12
Oferta
10
Demanda
Preço
8
6
5
4
3
2
0
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Quantidade
Na posição inicial de equilíbrio, com a energia despachada a um preço p
= $5, todas as empresas, exceto a última, auferem um lucro extraordinário positivo e
decrescente: o primeiro produtor teria lucro de $4; o segundo, de $3; e assim
sucessivamente. Suponhamos que o regulador não esteja contente com o valor da tarifa,
nem tampouco com o lucro extraordinário dos produtores, e decida estabelecer a tarifa
de acordo com o custo médio (= $3), além de instituir uma câmara de compensação que
fizesse com que cada produtor recebesse exatamente de acordo com seu custo. Assim,
dos $15 arrecadados, o primeiro produtor receberia $1, o segundo, $2, e assim
sucessivamente até o quinto produtor, que receberia $5.
O problema é que, fazendo o preço igual a $3, a demanda aumentaria
para 7 unidades, gerando um desequilíbrio no mercado, tendo em vista que a oferta é de
somente 5 unidades. Pode-se mostrar que, havendo a câmara de compensação, que
remunere cada produtor na exata medida de seu custo, e estabelecendo a tarifa igual ao
custo médio, haveria um novo equilíbrio com preço aproximado de $3,6. Nesse caso, a
demanda total seria de aproximadamente 6,4 unidades. Esse é, aproximadamente, o
modelo seguido pelo setor elétrico brasileiro. Mas, qual é o problema?
Comparativamente à solução que iguala preço ao custo marginal (com cinco unidades
produzidas ao custo de $5), não seria a proposta de igualar preço ao custo médio mais
interessante ao gerar maior produção (6,4 unidades) a uma tarifa mais baixa ($3,6)?
40
A resposta à pergunta acima é negativa. Observe-se que o custo da
energia marginal é $ 6,4. Esse custo reflete a remuneração de engenheiros, concreto,
aço, e dos demais insumos de produção. Financeiramente, podemos pensar nos juros do
capital empatado no investimento. Mas a sociedade somente valoriza em $3,4 essa
unidade adicional de energia. Ou seja, a sociedade despende $ 6,4, na margem, para
algo que valoriza somente em $3,4. Se transferíssemos aqueles engenheiros, concreto,
aço, etc. para a produção de outro bem, para o qual a sociedade estivesse disposta a
pagar $6,4, haveria ganho de bem-estar, já que, afinal, as pessoas estão dispostas a
pagar mais por aquilo que, na margem, lhes traz mais satisfação. À medida que
reduzimos a produção, deslocando-a para outras atividades que a sociedade valoriza
mais, a energia torna-se mais escassa e, portanto, passa a ser mais valorizada pela
sociedade. Quando a produção atinge 5 unidades, e o preço de equilíbrio é $5,
chegamos ao ponto mais eficiente, pois o custo da energia marginal corresponde
exatamente à valorização que a sociedade faz da energia.
Se aplicarmos os conceitos acima no mundo real, uma tarifa de energia
abaixo de seu custo marginal estimula o consumo e, para não haver desequilíbrio entre
oferta e demanda, torna-se necessário consumir energia proveniente de usinas
termoelétricas, bem mais caras. No exemplo dado anteriormente, quando a tarifa iguala
o custo médio, a ineficiência se traduz no acionamento de 1,4 usina termoelétrica (o
excesso de 6,4 sobre 5, correspondente à produção ótima). Em termos de utilização de
recursos, o petróleo utilizado para gerar o excesso de energia poderia ser transformado
em asfalto para duplicar rodovias, os engenheiros empregados na construção das usinas
poderiam ser aproveitados em outras obras civis, o capital empregado poderia ser
utilizado para financiar outros setores, como educação, saúde ou outras atividades de
infraestrutura. Ou seja, fixar o preço abaixo do custo marginal leva a um sobreconsumo
de energia e a um aumento de custos de produção.
Pode parecer estranho sugerir que a tarifa ótima, baseada no custo
marginal, é maior do que a tarifa vigente, considerando sermos um país com enorme
potencial hidroelétrico, com baixo consumo per capita de energia e com uma tarifa que
se encontra entre as mais elevadas do planeta13. Ocorre que, apesar de todos esses
fatores competitivos, o custo de produzir energia no Brasil é alto, e tentar reduzir a
tarifa sem redução correspondente nos custos irá magnificar as distorções hoje
13
Vide D’Araujo (2012).
41
existentes. Na Seção II.5 discutiremos propostas para reduzir o custo de produção de
energia, o que, a nosso ver, é a melhor forma de garantir modicidade tarifária a médio e
longo prazo.
Quando as forças de mercado estão operando plenamente, os desvios
entre preço e custo marginal são corrigidos automaticamente. Se o preço estiver acima
do custo marginal, algum fator de produção estará recebendo remuneração acima da
média do que recebe no mercado. Se esse fator for o capital, isso implica que a taxa de
lucro naquele setor, devidamente ajustada pelo risco, é maior do que a obtida em outros
setores. Isso atrairá capital, o que fará com que a produção aumente, pressionando os
preços para baixo, até que a igualdade entre preço e custo marginal seja restabelecida.
Simetricamente, se o preço for inferior ao custo marginal, algum fator de
produção estará sendo sub-remunerado. Se esse for o capital, a taxa de lucro (ajustada
pelo risco) daquele setor será inferior à média dos demais setores. O capital tenderá
então a migrar para outras atividades, reduzindo a produção, o que pressiona os preços
até que a igualdade entre preço e custo marginal seja restabelecida.
Em um mercado regulado, entretanto, quem fixa o preço ou impõe
parâmetros14 para sua fixação é o órgão regulador ou o poder concedente. Nesse caso,
corre-se o risco de impor (direta ou indiretamente, via fixação de parâmetros) um preço
diferente do custo marginal, sem haver o mesmo mecanismo de correção que existe no
mercado concorrencial. Em uma situação de escassez de oferta, se o órgão regulador
impuser um preço muito alto, as empresas do setor poderão auferir um lucro
extraordinário, que as estimulará a produzir mais. Nesse caso, o órgão regulador teria
precificado a energia corretamente, pois o desequilíbrio inicial do mercado (o excesso
de demanda) tenderia a desaparecer mediante aumento da oferta, já que as empresas
estarão desejando investir mais. Contudo, não se pode esquecer que, para viabilizar o
aumento da oferta, será necessário que o Estado licite novos projetos e que mantenha
um ambiente regulatório tal que estimule os investidores privados a aplicar recursos no
setor. Já se houver excesso de oferta e o órgão regulador impuser um preço muito alto,
os desequilíbrios tendem a se acentuar. As empresas do setor, com o lucro
extraordinário, estarão dispostas a investir mais, o que só aumentará o desequilíbrio
14
Nos processos licitatórios do setor de energia, por exemplo, o Governo não fixa o preço diretamente,
mas impõe parâmetros, como o preço-teto no leilão, que limitam o preço final.
42
entre oferta e demanda. Uma atenuante, nesse caso, é que o órgão regulador pode tentar
limitar a oferta, deixando de licitar novos projetos.
A situação mais grave (e, conforme discutiremos no Capítulo IV, mais
provável) ocorre quando o órgão regulador impõe uma tarifa muito baixa e há excesso
de demanda por energia. Nesse caso, há uma tendência ao aprofundamento dos
desequilíbrios. A tarifa baixa incentiva o consumo e desestimula o investimento. Isso
faz com que, no médio prazo, a discrepância entre oferta e demanda se acentue. Nesse
caso, mesmo se o órgão regulador licitar novos projetos, não haverá investidores
interessados em realizá-los15.
II.3.1.a Exceções à regra básica de precificação – externalidades e equidade
A literatura16 prevê situações em que devem ser concedidos subsídios ao
consumidor final. Os subsídios ocorrem sempre que a tarifa for inferior ao custo
marginal. Os casos mais comuns são quando houver externalidades ou para garantir
padrões mínimos de bem estar.
Externalidades são ações não precificadas que afetam terceiros não
diretamente envolvidos na transação. As externalidades podem ser negativas, se os
terceiros são prejudicados, ou positivas, quando são favorecidos. Por serem ações não
precificadas, as externalidades constituem-se em falhas de mercado e, portanto, o
subsídio pode gerar ganhos de eficiência, se corrigir adequadamente a distorção
original. O risco que se corre é o Governo fornecer subsídios excessivos, de forma a
mais do que compensar as distorções decorrentes da externalidade. Observe-se também
que para conceder subsídios é necessário tributar. Como os tributos usualmente geram
outras distorções na economia, é necessário ter muita cautela ao analisar a relação custobenefício de um subsídio.
Argumentos de externalidade podem ser utilizados para justificar
subsídios em contas de luz de habitantes de regiões isoladas na Região Norte. Como os
habitantes de certas localidades da Região Norte não têm acesso ao Sistema Interligado
Nacional (SIN), por onde flui a energia mais barata, das usinas hidroelétricas, eles têm
15
No Capítulo IV mostraremos que o Governo tem sido aparentemente bem sucedido em encontrar
investidores dispostos a construir novos projetos de geração, apesar de reclamações generalizadas de que
o preço-teto dos leilões é inviável. Conforme argumentaremos, o sucesso dos leilões pode ser somente
aparente; há um forte risco de estarmos comprometendo nossa oferta de energia no médio e longo prazos.
16
Para uma compreensão geral de falhas de mercado, ver Stiglitz (1999).
43
de consumir energia de térmicas a óleo, caríssimas, nos chamados sistemas isolados.
Ademais, a baixa densidade populacional da região torna mais caros e menos lucrativos
os serviços de distribuição, o que também encarece as tarifas. Por ser uma região
naturalmente mais inóspita, distante dos grandes centros, com enorme fronteira e
igualmente enorme potencial de recursos naturais, os moradores do Norte contribuem
para a segurança nacional, ao garantir a ocupação da área. Assim, os habitantes das
localidades isoladas da Região Norte impactam positivamente a vida de todos os
brasileiros, o que justificaria os subsídios que recebem para morar ali. Ademais, as
tarifas seriam inviáveis para eles se não houvesse subsídio.
Outro exemplo de externalidade positiva pode vir da indústria ou de
algum ramo de atividade. Se a indústria contribuir para a difusão da produtividade na
economia, por meio do que se denomina “efeito transbordamento”, pode ser justificável
oferecer tarifas mais baratas para aumentar sua competitividade.
Argumentos de externalidade também podem ser utilizados para
justificar programas de universalização de acesso. O resfriamento e congelamento de
alimentos, por exemplo, permite melhorar a saúde da população, reduzindo a
necessidade de gastos públicos para curar doenças. O acesso a telejornais e programas
educativos permite aumentar a produtividade do trabalhador. A iluminação noturna
aumenta a segurança pública.
Mesmo na ausência de externalidades ou da necessidade de correção de
qualquer falha de mercado, o ganho de bem estar proporcionado pelo acesso à energia
pode ser uma justificativa para o Governo oferecer subsídios na forma de tarifas mais
baixas para a população de baixa renda. Trata-se, aqui, de um argumento de equidade.
Nesse caso, a tarifa mais baixa (abaixo do custo marginal) gera necessariamente
ineficiência alocativa. Entretanto, mesmo que o número de beneficiados por tal política
seja significativo, o consumo total desse grupo, como proporção da produção total, pode
ser pequeno o suficiente para que as distorções geradas sejam somente de segunda
ordem. O que se deve evitar a qualquer custo são subsídios generalizados, que
beneficiam uma parcela razoavelmente grande dos consumidores, pois, nesse caso, as
distorções alocativas passam a ser significativas.
O maior acesso à energia pode ser obtido também por meio de políticas
que geram menos distorções. Por exemplo, uma política baseada em transferência direta
de renda para as famílias garante maior eficiência alocativa, pois a tarifa continuaria
44
sendo igualada ao custo marginal. Não haveria, dessa forma, estímulo a um excesso de
consumo. Entretanto, essa política incorre no risco de as famílias utilizarem a renda
extra para o consumo de outros bens, que não energia.
Resumidamente, há argumentos de equidade ou eficiência que podem ser
invocados para justificar o uso de tarifas mais baixas para determinados grupos
populacionais ou setores da economia. O problema é quem deve pagar por esses
subsídios. Há três candidatos a financiá-los: Governo, consumidores não subsidiados ou
empresas do setor.
A pior das opções (embora seja a mais fácil politicamente) é transferir
para as empresas do setor o custo decorrente dos subsídios. Um exemplo recente nesse
sentido foi a Resolução CNPE nº 3, de 2013, que tentou obrigar geradoras e
comercializadoras a arcar com 50% do custo decorrente do despacho de usinas térmicas
para garantir o abastecimento (na Subseção III.4.2 discutiremos mais detalhadamente as
repercussões dessa Resolução). Obrigar as empresas do setor a arcar com os subsídios
representa, em verdade, uma tributação, em que elas ficam impedidas de repassar o
respectivo aumento de custos para as tarifas (do contrário, quem estaria, de fato,
arcando com os subsídios seriam os consumidores finais).
No mercado regulado, geradoras, transmissoras e distribuidoras definem
preços em leilão (ou por outro mecanismo) com base em previsão de custos. Se o
mecanismo de outorga for bem desenhado, a concessionária receberá somente a
remuneração justa (aquela dada pelo mercado) por seu capital. Acréscimos de custos
decorrentes de tributação irão gerar desequilíbrio financeiro. Se antes do aumento da
tributação as concessionárias recebiam uma remuneração justa, após a obrigatoriedade
de arcar com os subsídios, as empresas do setor energético passarão a ter retornos
inferiores à média do mercado. Isso reduzirá o caixa das empresas atuantes no setor,
bem como desestimulará a assunção de novos investimentos. O baixo retorno do capital
igualmente tornará menos atrativo o ingresso de novas empresas no setor ou o aporte de
capital, por terceiros, nas empresas já existentes. A consequência será redução na
capacidade e no interesse de investimento no setor de energia, comprometendo a
expansão da oferta energética.
No caso das empresas comercializadoras, que vendem energia no
mercado livre, não há impedimentos legais de repasse de aumento de custos para os
45
preços17. Mas a teoria nos ensina que a capacidade de repasse é limitada, de forma que,
somente parte daquele aumento será repassada aos consumidores. Ou seja, as
comercializadoras também observarão redução de lucros, tornando-se menos atraentes
ao capital, comprometendo a oferta de seus serviços no médio e no longo prazos.
Ademais, no mercado livre, a busca por preços baixos de energia é incessante, dada a
sua grande influência nos preços finais dos produtos das empresas que dele participam,
em geral chamadas de eletro-intensivas.
Impor às empresas do setor energético a obrigação de subsidiar
consumidores também suscita outra questão: por que são essas empresas que devem
arcar com os subsídios, e não outras? Por que não siderúrgicas, fábricas de automóveis,
distribuidores de gasolina, operadoras de telefonia, bancos ou salões de beleza?
O grande atributo de um sistema de preços é sinalizar para a sociedade
onde devem ser investidos os recursos da economia. Ao tributar somente um setor, sem
justificativas técnicas para tal, está-se distorcendo artificialmente o sistema de preços, o
que gera graves distorções alocativas. O capital deixa de fluir para aquele setor que está
sendo mais pesadamente tributado – e que apresenta retornos menores – e passa a
privilegiar outros setores de atividade. Ao atrair menos capital, o setor energético perde
musculatura e capacidade de investimento, provocando os mencionados prejuízos para a
oferta no médio e no longo prazos.
Frequentemente o Governo transfere a conta dos subsídios para os
consumidores de energia, por meio de subsídios cruzados. Um exemplo típico de
subsídio cruzado são programas em que consumidores residenciais que consomem mais
(supostamente, de maior renda) subsidiam a conta de energia dos consumidores de
baixa renda. Outro exemplo é a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC, que será
discutida na Subseção III.3.2.b), em que os consumidores do ACR subsidiavam a conta
dos consumidores de energia de sistemas isolados do Sistema Interligado Nacional.
Tal como no caso das empresas, via de regra, não há justificativa
econômica18 para que um consumidor de energia subsidie outro. Podemos aqui
igualmente indagar por que é que quem utiliza o ferro elétrico em São Paulo deve ajudar
17
Em verdade, a liberdade que as comercializadoras possuem é só no momento da negociação de novos
contratos. Uma vez assinados, com prazos que usualmente variam de 2 a 5 anos, qualquer aumento de
custo impacta diretamente o resultado financeiro da comercializadora.
18
O subsídio cruzado pode se justificar em situações específicas, como quando os custos de transação são
muito elevados. Ver Freitas (2012).
46
a pagar a conta de quem utiliza micro-ondas no interior da Amazônia ou a conta de luz
de uma pessoa pobre? Por que a conta não deve recair sobre quem vai ao cinema, ou
quem compra roupas, ou quem viaja? A discussão que vimos anteriormente sobre as
distorções causadas por alterações artificiais dos preços relativos se aplica, com poucas
modificações, sobre o consumo. O custo artificialmente mais elevado de consumir
energia irá afastar consumidores, que passarão a consumir outros bens e serviços, que,
se não houvesse o aumento da tarifa de energia, não seriam consumidos.
A questão, portanto, não é se deve ou não haver subsídio, mas, se se
chegar à conclusão de que o subsídio se justifica, sobre quem ele deve recair. Parece
mais adequado que a conta recaia sobre o contribuinte, via Orçamento Geral da União
(OGU)19, e não exclusivamente sobre o consumidor ou produtor de energia. É o
Governo e, por consequência, o contribuinte, quem deve arcar com os custos dos
subsídios tarifários, mediante autorização do Congresso Nacional.
Além de ser economicamente mais sensato, retirar os encargos da conta
de energia e transferi-los para o OGU traz o ganho adicional de lhes conferir maior
transparência. Na discussão do Orçamento, a sociedade, por meio do Congresso
Nacional, pode decidir se os recursos (sempre escassos) devem ser utilizados para
subsidiar o consumidor de energia das regiões isoladas, os consumidores de energia de
baixa renda, ou se devem ter outro destino, como educação, saúde, segurança,
previdência e assistência social, pagamento de funcionalismo público etc.
A mesma argumentação apresentada acima pode ser aplicada caso o
Governo decida, por algum motivo qualquer, que a tarifa de energia deva ser mais baixa
para todos, conforme expresso na Medida Provisória nº 579, de 2012 (e que
discutiremos com maior aprofundamento no Capítulo III). A redução tarifária, exceto
quando decorrente de redução de custos, deve ser custeada pelo Governo, e não pelas
empresas do setor ou pelos consumidores.
Uma solução que deveria ser evitada a qualquer custo é tentar transferir a
conta dos subsídios para a Eletrobras. A estatal é atualmente responsável por 35,5% da
geração, 55% da transmissão e por algumas empresas de distribuição no Norte e no
Nordeste do País. Devido à sua elevada participação no mercado, o Governo, seu
19
Para a discussão a respeito de encargos incidentes sobre a energia elétrica e quem deve pagá-los, ver
Montalvão (2009).
47
controlador, pode optar por utilizar a estatal como instrumento para implantar uma
política de modicidade tarifária.
O uso da estatal para atingir os objetivos de modicidade tarifária não
elimina os problemas decorrentes de os preços serem artificialmente definidos. O que
ocorrerá é que, ao longo do tempo, a estatal acumulará prejuízos ou, na melhor das
hipóteses, sofrerá redução nos lucros. Em ambos os casos, os acionistas privados, diante
dos menores dividendos e perspectivas de lucros, tenderão a se desfazer de suas ações,
reduzindo a capacidade de a empresa investir no aumento da capacidade, transmissão e
distribuição de energia elétrica.
Nos anos 1980, a prática de segurar as tarifas de energia com o objetivo
de controlar a inflação fez com que se formasse um “esqueleto”, só resolvido em 1993,
por meio da Lei nº 8.631, o que custou US$ 26 bilhões ao Tesouro. A atual política de
modicidade tarifária pode ter desfecho semelhante.
No Capítulo III mostraremos que o Tesouro deverá aportar cerca de R$10
bilhões em 2013 para assegurar a redução de tarifas prometida quando da edição da
Medida Provisória nº 579, de 2012. Em relação à Eletrobras, somente no último
trimestre de 2012, o prejuízo da estatal foi de R$ 10,5 bilhões. A persistir essa
tendência, o Governo será forçado a capitalizar a estatal, debitando a conta ao Tesouro.
Dependendo da forma de contabilização, os gastos decorrentes de uma
política de modicidade tarifária podem não sensibilizar o resultado primário do setor
público. Mas não há como evitar que, no futuro, o setor público (incluindo o setor
público financeiro) seja afetado, por exemplo, por meio de aumento da dívida bruta,
redução de receitas de dividendos ou deterioração do resultado do BNDES.
Cabe ainda ressaltar que o uso da Eletrobras para subsidiar tarifas, além
de deteriorar as contas públicas, é ineficiente. Se o objetivo do Governo é despender
recursos para manter tarifas artificialmente baixas, é mais eficiente que o faça dando um
subsídio para todas as empresas do setor, e não somente para a Eletrobras.
Antes de prosseguirmos para a próxima seção, convém fazer um breve
sumário da discussão acima. A teoria econômica recomenda o subsídio de tarifas em
determinadas situações, como no caso de existência de externalidades ou de atenção à
população de menor renda. Contudo, reduções generalizadas de tarifas sem a
correspondente redução de custos são ineficientes, pois distorcem as decisões de
48
consumo e produção, podendo, inclusive, comprometer a futura capacidade de expansão
da oferta. Em qualquer caso, quem deve financiar subsídios a tarifas deve ser o Governo
– e não consumidores ou as firmas – e, preferencialmente, via orçamento. O uso da
estatal Eletrobras para viabilizar o subsídio às tarifas pode comprometer a capacidade de
investimento da empresa e tende a deteriorar as contas públicas no médio e no longo
prazo. Se o Governo pretende, de fato, utilizar recursos públicos (orçamentários ou
extraorçamentários) para reduzir tarifas, deveria subsidiar todas as empresas do setor, e
não somente a Eletrobras.
II.3.1.b Exceções à regra básica de precificação – suavização de preços
Como vimos, a regra básica ótima de precificação prevê a igualdade
entre preço e custo marginal. Ocorre que o custo da energia varia ao longo do tempo,
em função, por exemplo, do mix de energia utilizado. Assim, quando aumenta a
proporção de energia de origem térmica no total, aumenta o custo total de geração de
energia.
Entretanto, mesmo com o custo da energia variando ao longo do tempo, a
tarifa paga pelo consumidor se mantém constante por certo período. Observe-se que a
manutenção de preços não é prerrogativa do mercado regulado: também no ACL, o
preço pago pelo consumidor final pode se manter constante ao longo do tempo. Vamos,
entretanto, aprofundar a discussão para o mercado regulado, embora a extensão do
raciocínio para o mercado livre seja imediata.
No Brasil, a tarifa paga pelo consumidor final é usualmente fixada para
períodos de doze meses. Durante o período entre os reajustes, a distribuidora absorve as
flutuações de custo, sendo a diferença entre tarifa e custos 20 contabilizada em uma
espécie de conta gráfica. Na época do reajuste tarifário anual, observa-se o valor dessa
conta gráfica: se o resultado for positivo (digamos, porque houve despacho de térmicas,
mais caras, acima do usual), o reajuste será mais elevado, de forma que a distribuidora
possa recuperar os gastos extras em que incorreu durante o ano. Já se o resultado for
negativo (digamos, porque uma apreciação cambial tornou a energia adquirida de Itaipu
20
Estamos nos referindo aqui somente aos chamados custos não gerenciáveis, como é o caso do custo da
energia comprada pela distribuidora.
49
mais barata), o reajuste tarifário será menor, de forma a compensar os consumidores
pela tarifa artificialmente mais alta paga no período anterior ao reajuste.
A discussão sobre suavização de preços está intimamente relacionada
com a periodicidade ótima dos reajustes. Dois fatores são essenciais para definir essa
periodicidade: os custos de transação e as distorções alocativas no consumo.
Quanto mais frequentes forem os reajustes, maiores os custos de
transação. Como o ONS determina, a cada instante, a quantidade de energia que cada
usina irá despachar, e como o custo de produção é diferente para cada usina, na prática,
o custo de energia também irá variar a cada instante. No limite, fazer com que o preço
da energia acompanhe o custo marginal, implica informar ao consumidor, em tempo
real, o custo (marginal) da energia que está sendo gerada. O custo de informação (das
novas tarifas ao consumidor) em tempo real é bastante elevado. Se tomarmos períodos
maiores, de algumas semanas ou meses, o custo de informação deve cair
substancialmente.
O custo de informar o consumidor é somente uma das diferentes
manifestações do custo de transação. Cada vez que observa um novo preço, o
consumidor precisa reotimizar sua cesta de consumo, o que lhe custa, no mínimo,
tempo.
Dessa forma, quanto maior o custo de transação, mais espaçados devem
ser os reajustes. Por outro lado, à medida que o preço pago pelo consumidor se distancia
do custo marginal, geram-se ineficiências alocativas. Assim, se estamos em um ano de
hidrologia ruim e é necessário despachar maior quantidade de energia de fonte térmica,
o custo marginal da energia aumenta. Se o preço não acompanha esse aumento, a
tendência é que o consumidor final continue consumindo a mesma quantidade de
energia, agravando (ou, pelo menos, não amenizando) a escassez que vem sendo
observada. Um aumento na tarifa estimularia uma redução no consumo, reduzindo, em
parte, o excesso de demanda.
Portanto, a periodicidade ótima de reajustes irá depender desses dois
fatores. Quando o custo marginal varia relativamente pouco ao longo do ano, e se os
custos de transação forem relativamente elevados, a periodicidade ótima do reajuste
pode ser, de fato, anual, como ocorre no Brasil e em vários países.
50
Entretanto, quando a variação no custo marginal é muito alta, como
ocorreu ao longo de 2013, com o acionamento de todo o parque térmico, o mais sensato
teria sido repassar o aumento de custos para os consumidores, para evitar as distorções
no consumo mencionadas acima. O Governo preferiu, contudo, que o Tesouro
assumisse o aumento de custos, o que será discutido com maior profundidade na Seção
III.4.
A suavização de preços também pode ser vista como uma transferência
de riscos do consumidor para a distribuidora. Afinal, será a distribuidora quem
absorverá, nos períodos entre os reajustes, as variações no custo de aquisição de energia.
Esse desenho traz duas consequências.
A primeira é um aumento médio da tarifa de energia ao consumidor final.
Do ponto de vista econômico, transferir o risco de variação de custos para a
distribuidora implica obrigá-la a oferecer um seguro para o consumidor. Ocorre que
firmas só oferecem seguro se forem devidamente remuneradas para tal. Na prática, isso
se manifestará de forma indireta, com a concessionária somente aceitando atuar no setor
se a tarifa acordada incluir o prêmio de risco.
A segunda é a possibilidade de inviabilizar financeiramente as
distribuidoras no curto prazo. Na Seção V.4 discutiremos um problema recente, de
aumento de custos decorrente da descontratação de energia, que vem obrigando as
distribuidoras a adquirir 3.700 MW no mercado livre, a um custo pelo menos cinco
vezes maior do que o que vinha sendo praticado, e sobre o qual se baseiam as tarifas.
Esse aumento de custos não representa um problema de longo prazo para as
distribuidoras, porque será integralmente repassado, na época do reajuste, diretamente
para o consumidor ou para a administração pública, se esta, de alguma forma, vier a
assumi-lo. Mas, no curto prazo, antes do reajuste seguinte, o aumento de custos pode ser
de tal ordem que gere uma crise de liquidez para as empresas. Sem reajuste imediato de
tarifas ou sem alguma forma de auxílio governamental, a continuidade dos negócios
poderá requerer que as distribuidoras recorram ao mercado financeiro, pagando juros
elevados, aumentando os custos e, consequentemente, encarecendo ainda mais as tarifas
no futuro.
Quando a variação de custos é pequena ao longo do período entre
reajustes, transferir o risco para as distribuidoras pode ser uma estratégia eficiente, se
51
supusermos que as empresas tendem a ser menos avessas ao risco do que os
consumidores. Se os custos variam pouco, o risco será baixo e, consequentemente, o
prêmio do seguro também será baixo, de forma que os consumidores finais estariam
dispostos a pagá-lo. Além disso, a responsabilidade pelo risco estimula as distribuidoras
a administrarem melhor suas compras de energia.
Mas se a variação dos custos é alta, como a que vimos observando, a
melhor solução, com base no que discutimos acima, é transferir de imediato tal variação
para as tarifas. Deve-se evitar aportes governamentais que mantenham as tarifas
artificialmente baixas e, principalmente, a dilapidação do caixa das empresas, o que
pode inviabilizar a expansão do setor energético no futuro.
A Resolução Normativa da ANEEL nº 464, de 2011, tentou minorar esse
problema, ao criar mecanismos que transfeririam para o consumidor o sinal de preço de
curto prazo, ainda que parcialmente. São as chamadas bandeiras tarifárias, onde o
consumidor teria um custo adicional na conta de energia caso o preço de curto prazo
estivesse acima de um determinado patamar. Esse mecanismo estava previsto para
entrar em operação em janeiro de 2014, porém foi postergado para 2015, retardando
uma importante mudança na postura do consumidor em função da sinalização de preços.
II.3.2 Precificação ao longo do contrato
Vimos na seção anterior que a regra básica de precificação deve
estabelecer o preço igual ao custo marginal. Com essa regra, o sistema de preços emite
os sinais corretos de escassez para a economia, permitindo alocação mais eficiente dos
recursos. Ali, discutimos a precificação em um contexto estático: qual deve ser o preço
fixado em um contrato de concessão. Mas a economia é dinâmica: ao longo do período
de concessão, novos investimentos precisam ser realizados e há ganhos de
produtividade que permitem redução de custos. Conforme mostraremos nesta seção, em
um contexto de perfeita simetria de informações e ausência de comportamento
oportunista por parte dos agentes, a regra básica de precificação ótima não se altera: o
preço deve continuar sendo igual ao custo marginal. Na Seção II.4 veremos que,
havendo assimetria de informações e havendo perspectivas de ganhos de produtividade,
o melhor que o regulador preocupado com modicidade tarifária deve fazer é fixar o
preço acima do custo marginal vigente no momento da revisão tarifária.
52
No caso da atividade de geração, sobretudo no caso de usinas
hidrelétricas, o problema do regulador é relativamente simples. Na geração, a maior
parte do investimento é feita no início do contrato de concessão. Após a construção da
barragem e instalação das turbinas, os principais gastos são com manutenção e operação
dos equipamentos, havendo muito pouco investimento adicional. Por isso, quando uma
geradora assina um contrato de concessão, ela já tem uma ideia bastante razoável do
projeto. Pode haver um ou outro risco de execução do projeto, mas, grosso modo, a
incerteza em termos de engenharia e da natureza do investimento a ser realizado é
relativamente baixa. Nesse caso, quando da assinatura do contrato de concessão, se o
preço é financeiramente viável, provavelmente continuará a sê-lo ao longo de todo o
contrato. Basta estabelecer uma regra mecânica de indexação de preços, para que a
tarifa possa acompanhar a evolução dos custos.
No caso das distribuidoras, o problema é bem mais complexo. Ao
assinar um contrato de concessão, a distribuidora não sabe (nem tampouco o regulador)
quanto, onde e quando ela terá de investir. Isso dependerá da expansão do mercado
consumidor. As cidades podem se expandir em determinada direção e a natureza da
ocupação do solo (se mais residencial, comercial ou industrial, bem como o gabarito)
igualmente varia ao longo do tempo. A tecnologia a ser empregada pode depender do
tipo de consumidor a ser atendido, de forma que o custo dos investimentos futuros é
igualmente incerto.
Por esse motivo, o contrato com a distribuidora é necessariamente
incompleto: não há como detalhar os investimentos a serem feitos (compare-se com o
caso das geradoras, onde se sabe que ela se compromete a construir uma usina com
determinadas características no rio X). Ademais, além de garantir que a demanda seja
atendida, o regulador também deve cuidar para que a expansão da oferta seja feita com
as técnicas mais eficientes possíveis.
Para o caso que estamos analisando, de ausência de assimetria de
informações e de comportamento oportunista por parte dos participantes do mercado, a
solução do problema é simples e é a mesma do caso estático: a quantidade ofertada deve
ser igual à demandada, e o preço deve ser igual ao custo marginal. Vejamos por que.
À medida que o período de concessão avança, a distribuidora e o
regulador passam a conhecer o volume de investimento necessário, onde deve ser
realizado e a tecnologia de menor custo. Quando o regulador fixa o preço igual ao custo
53
marginal no nível em que oferta e demanda se equilibram, a distribuidora terá interesse
em concretizar todos os investimentos cujo custo seja igual ou inferior ao custo
marginal e deixará de efetuar aqueles investimentos mais caros. Mas é justamente esse o
objetivo do regulador: que a ampliação da oferta se dê na medida exata para satisfazer a
demanda.
É fácil verificar que a regra, além de garantir o equilíbrio entre oferta e
demanda, estimulará as empresas a adotarem a tecnologia de menor custo. Em qualquer
situação, dado um preço pré-definido, o melhor que uma firma pode fazer é produzir da
forma mais barata possível. Contudo, o incentivo para produzir mais barato torna-se
maior quando se leva em consideração que o preço fixado pelo regulador foi aquele
compatível com a tecnologia mais barata. Dessa forma, qualquer outra tecnologia
adotada pela firma resultará em custo acima do preço e, portanto, em prejuízo. Por isso,
no mundo de perfeita simetria de informações, a distribuidora escolherá a tecnologia de
menor custo.
Um complicador que existe no caso da distribuição21 é a diferente idade
dos investimentos. Os investimentos são feitos ao longo do contrato, de forma que, em
qualquer momento, haverá investimentos relativamente novos, e outros já realizados há
mais tempo. Nesse caso, se a tarifa recebida pelo produtor for igual ao custo marginal,
não haverá equilíbrio econômico-financeiro no caso de uma tendência de queda de
custos ao longo do período de concessão.
Um exemplo ajuda a ilustrar essa questão. Suponhamos que, no início do
contrato de concessão, havia um mercado de 1000 consumidores e, para atendê-los,
tenha sido necessário construir uma subestação que, à época, custava 600 unidades
monetárias (u.m.). A distribuidora faria o investimento e haveria uma amortização anual
de 20 u.m.22, para um contrato de 30 anos. Digamos que, após 10 anos, o mercado
tivesse aumentado em mais 1000 consumidores, exigindo a construção de uma nova
subestação. Mas, em decorrência de inovações tecnológicas, digamos que o custo da
nova subestação fosse de somente 200 u.m. Para os vinte anos restantes até o final da
concessão, isso representaria uma amortização anual de mais 10 u.m. Como precificar
agora a amortização do investimento feito no início do contrato?
21
Na geração e na transmissão também pode haver o mesmo problema, mas em grau bem menor, tendo
em vista que são atividades em que a maior parte do investimento é feita no início do contrato de
concessão.
22
Haveria ainda a incidência de juros, mas estamos desconsiderando para simplificar a análise.
54
No ano 10, o investimento de 600 u.m. feitos no primeiro ano já teria
sido amortizado em 1/3. Se o regulador entender que o custo marginal deve ser aplicado
sobre todo o investimento realizado, então consideraria que faltaria amortizar não 400
u.m. (= 2/3 de 600), mas 133,33 (=2/3 de 200). Assim, a amortização anual cairia de 10
para 6,67 u.m. (= 1/20 de 133,33), o que, provavelmente, agradaria muito os
consumidores de energia (e potenciais eleitores), mas imporia forte prejuízo à
distribuidora. Isso porque, das 600 u.m. investidas no primeiro ano, somente 233,33
u.m. seriam recuperadas (100 u.m. nos dez primeiros anos e 133,33 nos vinte anos
restantes).
Nesse exemplo, a distribuidora não pode fazer nada para evitar o
prejuízo, exceto antecipar a futura reação do Governo e, preventivamente, não assinar o
contrato. Afinal, a possibilidade de adquirir a subestação ao preço mais baixo, de 200
u.m., somente surgiu no décimo ano. A distribuidora, ciente de que, havendo ganhos de
produtividade23, incorrerá em prejuízo, não aceitará firmar o contrato, e a energia
elétrica não chegará aos consumidores finais.
Nessa situação um mercado regulado difere bastante de um mercado
livre. No início do século XX, Schumpeter já cunhara o termo “destruição criativa” para
descrever a situação de firmas (ou mesmo de setores inteiros) que desaparecem em
decorrência de novas tecnologias. Ainda assim, firmas continuam a surgir e várias
sobrevivem. Por quê?
O que ocorre, em verdade, é uma loteria. As firmas cobram um preço
acima de seus custos para remunerar o risco em que incorrem. É como uma espécie de
seguro. O prêmio arrecadado (no caso, o diferencial entre o preço cobrado e os custos
efetivos da firma) transforma-se em um ganho extra, caso o investimento mantenha-se
produtivo ao longo de todo o período de amortização. Em caso de avanço tecnológico, o
prêmio arrecadado cobre o prejuízo decorrente da obsolescência do capital.
Em um setor regulado, entretanto, não se pode fazer o mesmo raciocínio.
Mesmo reconhecendo haver leilões, o preço-teto é estabelecido como função dos custos
Estamos atribuindo a queda do preço a um termo bastante vago denominado “tecnologia”. O avanço
tecnológico não necessariamente implica aumento de produtividade do ponto de vista de engenharia. A
subestação pode ter-se tornado mais barata porque o país pode ter se aberto mais ao exterior, reduzido
tributações, reduzido os custos de logística etc. Em todos esses casos diz-se que houve ganhos de
produtividade.
23
55
efetivamente esperados, havendo pouco espaço para remunerar o risco24. Assim sendo,
como exemplificamos anteriormente, a remuneração dos ativos com base em seu custo
de renovação causará prejuízos para as empresas.
Sendo assim, há duas opções para o regulador: i) estabelecer uma
margem razoável para o risco de obsolescência ao fixar o preço-teto e, nas revisões,
considerar sempre o custo marginal; ii) fixar o preço-teto sem considerar esse risco de
obsolescência, mas garantir ao distribuidor a remuneração de acordo com o custo de
aquisição dos equipamentos.
A segunda opção tem o grande atrativo de reduzir a tarifa média. Isso
porque se a distribuidora tiver de assumir o risco de obsolescência25 irá naturalmente
querer cobrar por isso. Cobrir riscos é uma atividade valorizada pela sociedade. Não é
por outra razão que companhias seguradoras lucram milhões mundo afora. Nesse caso
específico, a diferença entre a distribuidora e uma seguradora seria a forma de cobrar
pela assunção do risco: a seguradora exige o pagamento de um prêmio; a distribuidora
exigiria uma tarifa mais alta.
O raciocínio acima, aplicado ao caso de obsolescência do capital, pode
ser empregado para qualquer situação que implique alterações nos custos das empresas
decorrentes de custos de financiamento e de percepção de riscos. Para os investimentos,
as revisões contratuais deveriam considerar as condições de preço e de financiamento
vigentes na época da aquisição de tais ativos. As novas condições deveriam ser
aplicadas somente para os novos investimentos.
Destaque-se que movimentos nos custos de financiamentos e na
percepção de risco não são unidirecionais. Apesar de a experiência brasileira dos
últimos vinte anos ter sido no sentido de uma tendência de queda de juros e risco, nada
impede que haja uma reversão no futuro, e que as taxas de juros e o risco voltem a subir.
Por isso, uma regra que exclua das revisões contratuais os custos associados aos
investimentos antigos é neutra do ponto de vista da firma. Comparativamente a uma
regra que sempre remunera de acordo com o custo marginal, a distribuidora seria
favorecida quando a situação macroeconômica melhorasse; e seria prejudicada se a
situação macroeconômica se deteriorasse.
24
Em verdade, há vários tipos de risco e alguns são cobertos pelas tarifas, como o risco-País. Mas o risco
de obsolescência usualmente não é reconhecido.
25
Enfatizando, mais uma vez, que a distribuidora incorre em diversos outros riscos.
56
A regra de aplicar a revisão contratual somente sobre os investimentos
novos, ou marginais, pode suscitar críticas de que geraria ineficiência no consumo, pois
a tarifa deixaria de refletir o custo marginal (associado ao período da revisão tarifária) e
passaria a refletir a média dos custos marginais observados nos diferentes períodos entre
revisões. Mas, nesse caso, é o que melhor se pode fazer.
Uma alternativa já foi apresentada: as distribuidoras teriam direito a
cobrar uma tarifa inicial mais cara, para remunerar o risco. É uma solução não
recomendada porque, conforme explicado, a oferta de seguro por parte da distribuidora
pressiona as tarifas, contrariando o objetivo de modicidade tarifária. Ademais, se a
empresa der azar e falir criam-se novos problemas para a sociedade, pois é inimaginável
que uma região possa viver sem energia elétrica.
Uma segunda alternativa é o Tesouro reembolsar as distribuidoras por
eventuais prejuízos decorrentes de avanços tecnológicos ou alteração nas condições de
financiamento ou percepção de risco. Também é uma alternativa com pouca
probabilidade de sucesso. Em primeiro lugar, há um elevado custo político, pois o
Governo enfrentaria imensa dificuldade para convencer a população a ressarcir as
distribuidoras. Em segundo lugar, o ressarcimento viria na forma de aumento da
tributação, o que também distorce o consumo.
Dessa forma, a fixação da tarifa pelo custo médio, remunerando o
investimento de acordo com os custos vigentes na época de sua contratação 26 surge
como a melhor opção possível.
II.3.3 O custo marginal na atividade de geração
Antes de discutirmos a precificação sob informação assimétrica e
comportamento oportunista, iremos, nesta seção, aprofundar a aplicação do conceito de
custo marginal sobre a atividade de geração.
Com a edição da MP nº 579, de 2012, ficou claro que a geração de
energia podia ser estratificada em dois tipos de usinas, com diferentes custos: as novas,
que ainda não tiveram seus custos amortizados, e as velhas, cujo investimento já foi
26
Alguns componentes do custo original podem se alterar ao longo do tempo. Por exemplo, um
empréstimo a taxas variáveis tende a acompanhar os movimentos da macroeconomia. Outros custos,
entretanto, não se alteram, como o custo de aquisição do equipamento ou do financiamentos a taxas fixas.
57
integralmente,
ou
quase,
recuperado
pelas
geradoras.
A
energia
velha
é
substancialmente mais barata, custando cerca de 30% da energia nova, sendo essa
diferença atribuída, essencialmente, ao custo de depreciação de ativos e amortização da
dívida27.
Uma leitura desatenta desses valores sugeriria que a política ótima seria
fixar a tarifa de acordo com o custo da energia nova, pois esta representaria, mais
adequadamente, o custo marginal. Tomando por base os leilões ocorridos desde 2005
(excetuando os projetos estruturantes do Rio Madeira e Belo Monte), o custo da energia
nova de fonte hidroelétrica para o gerador estaria em torno de R$ 100,00/MWh. Como
as despesas com O & M correspondem a cerca de 30% das despesas totais da energia
nova, o MWh da energia velha custaria em torno de R$ 30,00. São esses valores que,
grosso modo, garantem o equilíbrio econômico-financeiro da geradora ao longo do
contrato de concessão. Assim, se os consumidores pagassem R$ 100,00/MWh para toda
a energia consumida, os fornecedores de energia velha teriam um lucro de R$ 70,00, o
que poderia suscitar outra discussão, sobre quem deve se apropriar desse lucro.
Conforme mostraremos a seguir, o correto não é estabelecer a tarifa em R$ 100,00, mas
como a média (ponderada pelas respectivas participações no produto) de custos da
energia nova e velha.
Apesar de os preços da energia nova e da energia velha serem diferentes,
seu custo econômico, entendido como os recursos (mão de obra, equipamentos,
matérias primas, etc.) necessários para prover o serviço, é o mesmo. O que explica a
diferença de tarifas é o fato de o ativo (no caso, a usina) ter uma vida econômica mais
longa do que o contrato de concessão.
Uma usina pode durar 100 anos ou mais. Suponhamos que esse seja, de
fato, o período de sua vida útil. Nesse caso, a tarifa correta (que reflete adequadamente
os custos de produção) seria uma que incorporasse, a cada ano, 1/100 do valor
investido28. Ao final de 100 anos, o investidor teria sido adequadamente ressarcido
pelos gastos de investimento em que incorreu e a usina não teria mais nenhum valor,
pois teria acabado sua vida útil.
27
Posteriormente comentaremos sobre outros fatores que encarecem a energia nova, como os maiores
custos ambientais.
28
Devidamente acrescido de uma taxa de juros que refletisse o custo de oportunidade do capital da
geradora.
58
Ocorre que os contratos de concessão são limitados a 30 anos, devendo,
após esse prazo, o concessionário reverter os bens para a União. Por isso, a tarifa tem de
incorporar, a cada ano, 1/30 do valor investido, ou seja, mais do que o triplo da tarifa
correta. Devido a esse arranjo institucional, quem paga pelo investimento são os
consumidores dos 30 primeiros anos de funcionamento da usina. Nos 70 anos seguintes,
os consumidores pagarão somente pela sua operação e manutenção (O&M). Se essa
fosse a única usina existente, ocorreria uma transferência intergeracional,em que a
geração atual subsidiaria a geração futura29.
Suponhamos agora que existam várias usinas em operação, das mais
diferentes idades. Mais especificamente, que houvesse uma distribuição uniforme
dessas usinas, digamos, 100 usinas, cada uma construída em diferentes anos
consecutivos. Nesse caso, a cada instante, os consumidores pagariam 1/30 do custo do
investimento para 30 usinas (além do custo de O & M), e somente a tarifa de O & M
para as 70 restantes. Em cada ano, portanto, a receita total dos consumidores seria
suficiente para remunerar as despesas de O & M e para construir uma nova usina
(correspondendo a 30 usinas cobrando 1/30 do investimento). Isso é equivalente,
portanto, aos consumidores pagarem 1/100 do investimento total (afinal, são 100 usinas
em operação). Portanto, a tarifa cobrada, ao ser uma média do custo contábil das
diferentes usinas, corresponderia ao custo marginal da energia e seria uma tarifa
eficiente.
Uma alternativa seria ampliar a duração das concessões, de forma a
igualá-las à vida útil da usina. Contudo, dependendo do desenvolvimento do mercado
de capitais, essa alternativa tampouco conseguiria resolver o problema. Usualmente, a
maior parte do investimento na construção de usinas é financiada. Se os prazos de
financiamento forem menores do que a vida útil do empreendimento – como geralmente
são, uma vez que raramente ultrapassam 30 anos – a amortização do investimento
continuará tendo de ser feita em prazos significativamente inferiores ao da vida útil da
usina.
O Governo, por meio da MP 579, sinalizou que, daqui para frente, para
as renovações ou as licitações de usinas que já tiveram seu capital depreciado, as tarifas
29
Observe-se que a transferência se dá unicamente entre gerações, e não entre consumidores e geradoras.
As geradoras têm de recuperar o capital investido e, pelo desenho institucional, o prazo de que elas
dispõem é de até 30 anos, significativamente inferior à vida útil da usina.
59
(que a geradora receberá) deverão embutir somente os custos de O & M. Para o
consumidor final, a tarifa será um mix do custo da energia das diferentes geradoras que
o abastecem (acrescido, obviamente, dos respectivos custos de transmissão,
distribuição, tributos e encargos). Assim, a tarifa paga pelo consumidor será uma média
ponderada do preço pago ao produtor de energia nova (que, por ainda estar amortizando
o capital investido, terá uma energia mais cara) e ao produtor de energia velha (que
estará sendo remunerado somente pela O & M). Portanto, tendo em vista o raciocínio
exposto acima, a ideia que embasou a MP 579 é meritória. No Capítulo III mostraremos
que os problemas relacionados a essa Medida Provisória relacionam-se mais à forma
como ela foi implementada.
II.4 – Precificação da energia sob hipóteses de informação assimétrica e
possibilidade de comportamento oportunista
A seção anterior analisou os critérios que deveriam orientar a
precificação da energia em um mundo hipotético. No mundo real, as informações não
são compartilhadas por todos e existe a possibilidade de comportamento oportunista.
Por isso, em algumas situações, as regras de precificação devem ser diferentes daquelas
previstas no modelo básico.
Nesta seção, seguindo a estrutura da seção anterior, analisaremos
primeiro os critérios de fixação de preços para viger no início do contrato. Como
veremos, a heterogeneidade de agentes e a assimetria de informações recomendam a
instituição de algum mecanismo de mercado para fixar os preços, como leilões.
Entretanto, mesmo leilões, dependendo de como forem desenhados, podem levar a
resultados abaixo do ótimo. Na sua segunda parte discutiremos os problemas de como
fazer a precificação ao longo do contrato de concessão. Nessa situação há um forte risco
de o órgão regulador atuar de forma oportunista, com graves consequências para o
equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
II.4.1 – Precificação no início do contrato
A precificação ótima de um bem exige que se conheçam os seus custos
de produção. Tais custos, entretanto, variam de empresa para empresa, e muitos não são
de conhecimento público: a estrutura de remuneração de pessoal, a tecnologia que
60
pretende adotar, os custos logísticos, os custos de captação e os custos de reparação
ambiental, entre outros. Há ainda a remuneração pelo risco que o empresário requer
para empreender determinado projeto. Trata-se de um custo importante e que,
posteriormente, será discutido em maior profundidade.
Os custos também variam de projeto para projeto e ao longo do tempo,
de forma que, por mais que se tenha conhecimento de experiências bem sucedidas, não
é possível transplantar integralmente os termos de um contrato para outro. Para cada
novo projeto será necessário um novo esforço de precificação.
A determinação unilateral do preço é claramente ineficiente. Ao contrário
do que ocorria no modelo básico, aqui, como o órgão regulador não conhece os custos,
dificilmente estabelecerá um preço que remunere adequadamente o regulado. Corre-se
sempre o risco de a tarifa ser definida em nível muito alto, o que implicaria
transferência injustificada de recursos dos consumidores para produtores; bem como de
a tarifa ser fixada em nível muito baixo, o que implicaria remuneração inadequada para
os produtores. Se os produtores não forem obrigados a aceitar os termos do contrato,
corre-se o risco de ficarmos sem oferta de energia. No contexto atual, em que há fortes
indicações de que a intenção do Governo é obter modicidade tarifária a qualquer custo,
o risco de definir uma tarifa irrealisticamente baixa é maior do que de definir uma tarifa
excessivamente elevada.
A fixação da tarifa por parte do regulado traz óbvios problemas de
incentivos perversos. Como os custos não são integralmente observáveis, a tendência do
regulado seria fixar a tarifa de acordo com a regra de maximização de lucro de um
monopolista, que gera preços acima – e produção abaixo – daqueles que seriam
considerados socialmente ótimos.
A solução, portanto, seria encontrar algo que se aproximasse de um
resultado de um mercado competitivo. A teoria mostra, em um trabalho clássico de
Vickerey (1961), que o valor arrecadado independerá do tipo de leilão 30, e
30
O trabalho de Vickerey analisa quatro tipos de leilão. O de envelope fechado de primeiro preço, onde
ganha quem oferece a melhor proposta; o de envelope fechado de segundo preço, onde também ganha
quem oferece a melhor proposta, mas o valor pago corresponde ao da segunda melhor proposta; o leilão
inglês, que é o mais tradicional, onde os licitantes se encontram e vão apresentando preços
sucessivamente maiores, até chegar a um vencedor; e o alemão (ou holandês) onde há um preço-teto, e o
leiloeiro vai sucessivamente decrescendo o preço ofertado, vencendo o leilão o licitante que primeiro
aceitar o preço corrente. No Brasil, os leilões para geração se dão em duas etapas: a primeira é de
primeiro preço. Se as propostas vencedoras forem semelhantes, há um novo leilão, do tipo inglês reverso,
ou seja, há um preço-teto e ganha o leilão quem oferecer a energia a um preço mais baixo.
61
corresponderá à avaliação do segundo melhor concorrente. Se houver um número
razoável de concorrentes e a estrutura de custos não for muito díspar, o preço definido
em leilão será próximo do custo do participante mais eficiente.
Vejamos por que. Simplificadamente, nos leilões de energia, o Governo
fixa um preço-teto e os licitantes concorrem, oferecendo preços sucessivamente mais
baixos. Para o potencial investidor, o preço mínimo que ele estará disposto a pedir para
construir e operar uma usina31 será aquele que lhe cobre os custos. Em um leilão de
preço descendente, como o que ocorre para definir o vencedor na geração de energia, à
medida que os licitantes fazem lances propondo oferecer energia a preços mais baratos,
os concorrentes de custo mais alto se retiram do leilão. Ao final, restariam somente os
dois concorrentes mais eficientes, aqueles que conseguem oferecer energia a um custo
mais baixo. Chamemos de licitantes A e B o mais eficiente e o segundo mais eficiente,
respectivamente. Durante o leilão, A e B ofereceriam lances sucessivamente mais
baixos, até que B fizesse um lance igual ao seu custo de produção. A partir daí, bastaria
A oferecer um preço marginalmente mais baixo que B para vencer o leilão. O
concorrente A, portanto, ao vencer um leilão, conseguirá obter uma tarifa
aproximadamente igual ao custo de produção de B.
Essa diferença entre tarifa e custo de produção (lembrando que o custo
embute a remuneração do capital e do risco) é justamente a vantagem que o licitante
obtém por dispor de informação privada. Como argumentamos na Subseção II.3.1, se
não houvesse assimetria de informações, bastaria ao regulador fixar a tarifa na exata
medida do custo de produção do produtor mais eficiente. Mas, havendo informação
assimétrica, o melhor que se pode fazer é deixar o preço ser definido em leilão. Nesse
caso, a empresa mais eficiente conseguirá uma tarifa acima de seus custos. Observe-se,
contudo, que se os concorrentes forem razoavelmente parecidos, o custo do concorrente
B será próximo ao do concorrente A, de forma que a tarifa irá se aproximar bastante do
custo de produção.
Apesar de conseguir resolver satisfatoriamente o problema da assimetria
de informações, o resultado do leilão pode ser ineficiente se houver comportamento
oportunista por parte de licitantes; se os licitantes não fizerem uma avaliação correta dos
riscos; se a atitude em relação ao risco for muito diferente entre os participantes do
31
Vamos tomar o caso da geração como exemplo, mas pode ser estendido sem perda de generalidade para
as outras atividades do setor elétrico.
62
leilão e, por fim; quando há uma empresa que não precisa maximizar seus lucros para
sobreviver, como é o caso da Eletrobras. Trataremos de cada um desses casos nas
subseções seguintes.
II.4.1.a – Por que um leilão pode ser ineficiente
II.4.1.a.i – Comportamento oportunista por parte dos regulados
O comportamento oportunista ocorre quando um agente assume
compromissos com o objetivo de viabilizar determinado projeto, sabendo, de antemão,
que terá grande probabilidade de forçar uma renegociação posterior. No caso de
concessões de serviços públicos, o comportamento oportunista pode ser caracterizado
pela oferta de preços irrealisticamente baixos nos leilões, que tem, como único objetivo,
permitir que a empresa vença a licitação. Uma vez assinado o contrato, a concessionária
solicita ao órgão regulador alteração de obrigações contratuais, como cronograma e
valor dos investimentos, níveis de qualidade e, principalmente, tarifas. A possibilidade
de comportamento oportunista, tanto por parte do regulado quanto por parte do
regulador, tem sido objeto de uma vasta literatura acadêmica32 .
O Governo tem a opção de cancelar o contrato, mas o custo pode ser
muito elevado. A concessionária que teve o direito de outorga cassado pode entrar na
Justiça, tentando anular o ato que cancelou o direito. Enquanto isso, a obra deixa de ser
realizada, gerando enorme custo político para o Governo, além da perda dos benefícios
econômicos decorrentes dos ganhos de produtividade que o investimento iria gerar.
Quando há comportamento oportunista, a empresa mais eficiente deixa
de ser aquela com mais chances de vencer o leilão. A provável vencedora será aquela
que acredita ter mais condições de alterar posteriormente as condições contratuais. Os
dois atributos podem até mesmo ser conflitantes: a empresa pode despender recursos
consideráveis para conseguir convencer o órgão regulador a alterar os termos do
contrato, de forma a sobrar menos recursos para investir em aumento de produtividade e
eficiência.
Em trabalho recente, Velloso et al (2012) analisaram o problema dos
leilões de rodovias federais no Brasil e concluíram que há comportamento oportunista.
No caso específico da 2ª etapa do programa de concessão de rodovias federais, em cujos
32
Ver, entre outros, Williansom (1976), Guash e Spiller (1998) e Guash (2004).
63
leilões foram definidas tarifas surpreendentemente baixas, o que se observou, decorridos
alguns anos da assinatura do contrato, foi o atraso na entrega de obras e renegociações
de tarifas.
A possibilidade de comportamento aventureiro depende do poder de
barganha do concessionário. Na atividade de geração, como há várias usinas em
operação, o poder de barganha de cada usina, isoladamente, é relativamente baixo.
Ameaças de abandono da concessão por parte de concessionários de usinas são menos
críveis do que ameaças por parte de concessionários de rodovias. Isso porque há várias
usinas em construção/operação e, se alguma delas paralisar suas atividades, não trará
prejuízos significativos para a oferta agregada de energia. Compare-se com os
potenciais transtornos causados pelo abandono, digamos, da Via Dutra.
Além do poder de barganha, outra variável importante para explicar o
comportamento oportunista é a própria leniência do órgão regulador. Quando se
considera somente o contrato em questão, a estratégia ótima do regulador é renegociar o
contrato e garantir a execução da obra em prazos e condições razoáveis. Entretanto,
quando se pensa dinamicamente, a melhor estratégia pode ser não aceitar renegociações,
arcar com os prejuízos de eventuais obras paralisadas, mas desestimular
comportamentos oportunistas no futuro.
No setor elétrico, tanto o poder de barganha das usinas geradoras é
relativamente pequeno, como a Aneel não tem tradição de renegociar contratos. Ainda
assim, observam-se alguns comportamentos oportunistas ou quase oportunistas.
Em dezembro de 2012, por exemplo, a Aneel atendeu parcialmente a
solicitação do Grupo Bertin de alterar a especificação técnica de seis termoelétricas, em
troca, entre outras coisas, de a empresa se comprometer a colocar 1.056 MW em
operação comercial durante 201333.
Não necessariamente as alterações contratuais34 se dão em prejuízo do
consumidor. O Consórcio Energia Sustentável do Brasil, que venceu a concessão da
hidroelétrica de Jirau, anunciou, logo após a vitória do leilão, que faria alteração no eixo
Jornal da Energia, 21/12/2012, “Aneel atende pleito da Bertin, mas determina revogação de mais 4 UTEs”, disponível em:
http://www.jornaldaenergia.com.br/ler_noticia.php?id_noticia=12152&id_secao=14.
34
Observe-se que, quando discutimos comportamentos oportunistas, estamos nos referindo a alterações
contratuais já previstas pelo concessionário, quando da participação no leilão. Distingue-se, portanto, de
alterações contratuais decorrentes de fatos não previstos (por exemplo, um desastre natural totalmente
atípico para a região). Essas últimas não guardam nenhuma relação com comportamento oportunista.
33
64
da barragem, o que permitiria redução de custos. Provavelmente foi a possibilidade de
alterar o projeto que estimulou o Consórcio a oferecer uma tarifa mais baixa que a do
concorrente35. Observe-se que, pela dimensão do empreendimento, o concessionário de
Jirau tem maior poder de barganha do que o responsável pela construção de usinas
menores.
Considerando ainda o poder de barganha, é de esperar maior incidência
de comportamento oportunista nas linhas de transmissão, onde há um monopólio
natural. Apesar de não haver ainda números concretos que permitam validar tal
hipótese, levantamento recente do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico36
mostrou que somente 24% dos cronogramas das linhas de transmissão monitorados
estão dentro do cronograma. Para empreendimentos de geração, a proporção, embora
longe do ideal, é bem maior, 45%. Cabe lembrar que esses atrasos podem refletir outros
problemas, como a maior presença da Eletrobras no setor de transmissão, o que
discutiremos posteriormente.
Mas não deixa de ser preocupante, ainda mais se lembrarmos que, a
partir de 2015, as atuais concessões dos serviços de distribuição – onde também há
monopólio – começarão a vencer. Não se sabe ainda como serão as novas concessões,
se simplesmente haverá renovação das atuais (talvez condicionada a atendimento de
requisitos de qualidade e/ou preço), ou se haverá um processo licitatório, com realização
de leilões. Nesse último caso, é fundamental que os leilões sejam desenhados de forma
a evitar comportamentos oportunistas. Como o impacto provocado por falta de
investimentos da distribuidora local sobre a vida cotidiana pode ser devastador, é
importante que o órgão regulador fique muito atento aos leilões, para evitar
comportamentos oportunistas por parte dos concorrentes.
II.4.1.a.ii – Avaliação incorreta por parte dos participantes
Todo investimento envolve riscos. No caso do setor de energia, não é
diferente. Por mais que exista um projeto bem detalhado, somente na hora de executar o
35
Sobre as alterações do projeto de Jirau, vide as seguintes matérias:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/890058-usina-de-jirau-tem-historico-de-polemicas.shtml
http://www.rondonoticias.com.br/ler.php?id=70441
36
Ver a Ata da 121ª Reunião do Comitê, disponível em:
http://www.mme.gov.br/mme/galerias/arquivos/conselhos_comite/CMSE/relatorios_reunioes/2012/CMS
E_-_Ata_da_121x_Reunixo_Plenxria_x22-11-2012x.pdf
65
projeto irá se conhecer plenamente a geologia do local onde será construída a barragem.
Riscos decorrentes da ação de movimentos sociais, como greves, ocupação da
instalação por índios, ou simples vandalismo, são também de difícil mensuração. O
tempo gasto para se vencer obstáculos socioambientais pode variar bastante. Mesmo a
contratação de mão de obra pode ser difícil para trabalhadores com determinado tipo de
qualificação em um contexto de aquecimento econômico. Por fim, disputas judiciais
podem paralisar a obra por prazo indeterminado.
Se os riscos não estão bem avaliados, a empresa pode, inadvertidamente,
oferecer um lance baixo no leilão e vencê-lo. Nesse caso, não será a empresa mais
eficiente que vencerá o leilão, mas aquela que não avaliou corretamente os custos. A
diferença entre essa situação e a do oportunismo é mais de expectativas do que de
resultados. Em ambos os casos, se não houver renegociação dos termos contratuais, a
obra não será feita, ou seja, o preço baixo obtido no leilão não se materializará na forma
como se previa. Pode até ser que o órgão regulador ou o Governo não concordem em
renegociar a tarifa, mas podem oferecer outras contrapartidas, como redução das
exigências relativas à qualidade do serviço prestado, permissão para atrasos na entrega
da obra ou concessão de crédito subsidiado.
A diferença entre o comportamento oportunista e a má avaliação do
projeto é que, no caso do oportunismo, a concessionária já sabe, de antemão, que terá de
renegociar os contratos. No caso de avaliação incorreta, a concessionária descobre, ao
longo do contrato, que não terá condições de entregar o prometido, a não ser que haja a
renegociação. Mas, em ambos os casos, se não houver renegociação a oferta de energia
não se materializará.
II.4.1.a.iii – Atitude do licitante em relação ao risco
Mesmo que o licitante tenha avaliação correta dos riscos a que está
submetido, ele pode estar disposto a assumir um risco mais alto do que seus
concorrentes. Disposição para assumir mais risco implica requerer um menor valor para
exercer a mesma atividade. Seria como se houvesse dois concorrentes e um deles, mais
avesso ao risco, segurasse todos os ativos, ao passo que outro, menos avesso ao risco,
não estaria disposto a pagar o prêmio do seguro. O concorrente menos avesso ao risco
teria custos mais baixos e, por isso, seria um candidato mais competitivo no leilão.
66
Mesmo que não haja contratação formal de um seguro (e para bens de capital muito
específicos pode ser que sequer haja seguradoras dispostas a segurar o bem cobrando
um prêmio razoável), a empresa avessa ao risco irá requerer uma tarifa maior, para que
se sinta devidamente compensada pelo risco. Se não conseguir essa tarifa mais alta, esse
licitante irá preferir investir seus recursos em uma atividade menos arriscada. Outra
forma de interpretar a maior tarifa é considerar esse aumento como um prêmio de
seguro que a empresa paga a si própria. A empresa poderia utilizar esses recursos para
fazer um fundo que, em caso de sinistro, seja acionado.
Semelhantemente ao que ocorre nos dois casos anteriores, a avaliação
diferente de riscos pode fazer com que o vencedor de um leilão não seja a empresa mais
eficiente, aquela que consegue construir a usina a um menor custo, mas o licitante que
menos se preocupa com o risco.
Nesse caso, se tudo correr bem, ex post, a concessão será bem sucedida.
O contratado receberá uma tarifa que lhe garanta equilibrar financeiramente suas
atividades e a tarifa, de fato, teria sido a mais baixa possível. Mas, se algo der errado,
corre-se o risco de a empresa não entregar a oferta de energia prometida ou de entregar
um projeto de má qualidade, com maior probabilidade de falhas.
No mundo real, não existe projeto que, com 100% de certeza, seja viável.
Tampouco há um valor bem definido a partir do qual se possa dizer que um projeto é
arriscado, ao passo que outro não. Há uma espécie de zona cinzenta, onde um projeto
pode ser considerado prudente por um número razoável de analistas, e arrojado por
outros tantos. Mas há regiões no espaço de probabilidade que estão claramente
associadas a decisões arriscadas ou, no extremo oposto, a decisões extremamente
seguras. Um projeto cuja tarifa garanta a sua viabilização financeira com probabilidade
inferior a 30% certamente será considerado arriscado. Já um projeto cuja tarifa garanta a
viabilidade do investimento com 95% de probabilidade deve ser considerado um projeto
seguro.
Se não for bem desenhado, um leilão corre sério risco de ter como
vencedor um concorrente que seja mais amante do risco. Como já dissemos, se tudo der
certo, o projeto se viabilizará. Mas, se houver algum problema, o projeto deixará de ser
financeiramente viável e, provavelmente, o regulador se verá forçado a renegociar os
termos do contrato ou a encontrar outro investidor. Nesse caso, contudo, ou o regulador
irá manter o preço artificialmente baixo ao consumidor, sendo necessário subsidiar a
67
tarifa, ou renegociará os termos contratuais. Se o licitante vencedor for aquele que
menos se preocupa com o risco, e não o mais eficiente, se o cenário ruim se concretizar
esse licitante oferecerá energia a um custo maior do que outros, mais eficientes, mas que
perderam o leilão justamente porque vislumbraram uma probabilidade razoável de que o
cenário pior se materializaria.
II.4.1.a.iv – Participação da Eletrobras
O setor elétrico tem um elemento complicador da análise: a presença da
Eletrobras, responsável por quase 40% da potência instalada na geração e pela aquisição
de 36% das linhas de transmissão licitadas na última década. No Capítulo IV
argumentaremos que a Eletrobras tem sido um dos principais instrumentos utilizados
por seu controlador – a União – para viabilizar os baixos preços definidos nos leilões.
Se a Eletrobras atuasse como qualquer empresa do setor, não haveria
problemas. Mas há evidências de que a Eletrobras oferece preços artificialmente baixos
nos leilões, distorcendo os preços relativos e gerando ineficiências em um setor que
deveria contar com o maior zelo por parte dos planejadores. Ao mesmo tempo, a
associação com o grupo estatal pode oferecer a empresas privadas determinadas
facilidades que, por si, não obteriam do poder concedente.
A forma de atuação da Eletrobras pode ser um mix dos problemas
levantados anteriormente. A empresa pode estar ciente de que oferece preços que não
cobrem custos, certa de que obterá compensações por parte do Governo, que podem vir
tanto na forma de renegociação dos contratos, como na forma de créditos subsidiados ou
outras benesses fiscais. Pode ser também que a estatal não avalie corretamente os riscos,
ou que não se preocupe muito com eles. Afinal, se eventos ruins ocorrerem, o
controlador pode facilmente evitar a falência da empresa, aportando capital ou lhe
oferecendo outras benesses.
Há analistas que defendem a maior participação da Eletrobras nos leilões,
argumentando que a estatal não necessita ser lucrativa e que, ao abrir mão dos lucros,
consegue viabilizar a modicidade tarifária que tanto interessa à população. Eventuais
aportes de capital por parte do Tesouro (ou outras formas de apoio), quando necessários,
fariam parte da estratégia de fornecer energia elétrica a um preço acessível.
68
Esse tipo de análise mistura dois argumentos: i) a conveniência de
garantir modicidade tarifária; ii) a Eletrobras ser um bom instrumento para atingir esse
objetivo, pois pode abrir mão de seus lucros.
Quanto ao primeiro argumento, na Subseção II.3.1.a explicamos que há
situações, normalmente relacionadas à inclusão social ou a externalidades, em que faz
sentido o Governo subsidiar o consumo de energia. Contudo, se houver entendimento
de que deve haver subsídios, o correto seria oferecê-los via orçamento, e disponibilizálos para todos os consumidores. Na prática, o consumidor não recebe diretamente o
subsídio, quem o recebe é a distribuidora, a transmissora ou a geradora. O consumidor
final sente o impacto do subsídio ao pagar tarifas mais baixas. Assim, se for para haver
subsídios, o correto seria as empresas oferecerem o preço que consideram justo nos
leilões e, posteriormente, o Governo as subsidiaria no montante desejado. Esse
procedimento garantiria que a empresa mais eficiente ganhasse o leilão, de forma que a
energia chegasse mais barata ao consumidor final. Além de eficiente, esse procedimento
garantiria maior transparência, pois o subsídio seria discutido na elaboração das leis
orçamentárias, quando seu mérito seria comparado com usos alternativos dos recursos
públicos, como educação, saúde, segurança pública, programas de transferência de
renda, etc.
Em relação ao segundo argumento, o lucro é a remuneração do capital.
Assim, se a Eletrobras está abrindo mão de seu lucro, o Governo, seu controlador, está
perdendo remuneração de seus ativos. O lucro da Eletrobras (distribuído na forma de
dividendos) poderia ser utilizado para financiar outras atividades do setor público ou
resgatar títulos da dívida. Assim, ao abrir mão do lucro, o Governo está, na verdade,
subsidiando a Eletrobras. Volta-se então ao argumento anterior: não se trata de proibir
subsídios para a energia elétrica, mas, sim, de direcioná-los somente para a Eletrobras.
O mais eficiente seria a Eletrobras auferir uma taxa de lucro justa, e a União, se assim
entender relevante, utilizar os dividendos recebidos, subsidiando a parte da cadeia de
produção de energia (ou seja, geração, transmissão ou distribuição) que considerar mais
relevante. Nesse caso o subsídio atingiria todas as empresas participantes do setor.
Observe-se que aqui estamos supondo que a Eletrobras consegue cobrir
os demais custos de produção (excluindo o custo de oportunidade de capital), e abriria
mão somente do lucro. A busca por modicidade tarifária pode ser ainda mais intensa,
fazendo com que a Eletrobras tenha prejuízos, não conseguindo, com as tarifas, sequer
69
recuperar o custo de produção. Esse caso torna o argumento acima ainda mais
contundente.
Um segundo problema da redução de lucros da Eletrobras refere-se à
situação dos acionistas minoritários. A consequência natural de uma queda da
lucratividade é a redução do preço das ações da empresa, de forma a reduzir a
atratividade da empresa em caso de abertura de capital. Em outras palavras, lucros
abaixo do custo de oportunidade desestimulam a entrada de capital na empresa,
reduzindo suas opções para financiar o investimento.
A ação agressiva da Eletrobras nos leilões traz ainda um terceiro impacto
no setor de eletricidade. Dado o peso da estatal no setor, ela pode inviabilizar a
participação de outras empresas, especialmente as estrangeiras, que, por falta de
oportunidade de investir seu capital, migram para outros setores ou investem em
projetos no exterior. O Brasil, com baixas taxas de poupança, não deveria se dar ao luxo
de expulsar o capital de um setor tão estratégico como o de energia. A Argentina o fez,
no início do Governo Néstor Kirchner, e sofre consequências dessa medida até hoje.
Cabe aqui fazer uma analogia com o setor de petróleo. A Petrobras é
praticamente monopolista na atividade de refino. Já na distribuição, os postos BR
representam pouco menos de 40% do total. Para atingir o objetivo de controlar o preço
da gasolina, o Governo intervém no preço da refinaria, impondo prejuízos à estatal.
Cria-se, então, um círculo vicioso: o Governo intervém no preço do refino, para não
inviabilizar o setor de distribuição37. O refino torna-se então uma atividade não atrativa
para o setor privado, e a Petrobrás continua a ser a monopolista da atividade. Como a
Petrobras é a monopolista, o Governo sente-se mais confortável em controlar o preço do
refino. Ao final, a Petrobras fica sem recursos para desenvolver outras atividades mais
lucrativas, como a exploração do pré-sal38.
Em resumo, há ineficiência quando a Eletrobras vence um leilão ao
oferecer energia a preços irrealisticamente baixos. Isso porque a energia não será
produzida ao menor custo quando adicionarmos às tarifas os benefícios indiretos que o
Governo oferecerá à Eletrobras e o custo de oportunidade do capital. Adicionalmente,
37
Lembrando que, se as distribuidoras privadas encerrarem suas atividades, a BR Distribuidora não teria
como suprir os 60% do mercado, pelo menos no curto prazo.
38
Ver Braga e Freitas: “A Petrobras conseguirá explorar plenamente o pré-sal?”, disponível em:
http://www.brasil-economia-governo.org.br/2013/07/01/a-petrobras-conseguira-explorar-plenamente-opre-sal/
70
reduz-se o funding de capital privado para o setor de energia, comprometendo a oferta
do serviço no longo prazo.
II.4.1.a.v Como evitar leilões ineficientes
Vimos, ao longo desta Seção, que, na presença de informações
assimétricas, o melhor mecanismo para definição de preço deve ser por meio de um
leilão. Mas, mesmo um leilão não está isento de problemas. Comportamento
oportunista, avaliação incorreta de custos, maior preferência ao risco ou intervenção
governamental, via Eletrobras, são fatores que podem fazer com que o vencedor do
leilão não seja o fornecedor de menor custo.
Os riscos de um leilão mal conduzido vão além de os custos finais da
energia tornarem-se maiores do que os inicialmente acordados no leilão. Corre-se o
risco de, simplesmente, a oferta não ser concretizada. Nesse sentido, o exemplo do caso
Bertin foi emblemático. A solução do Governo, de utilizar a Eletrobras para garantir
modicidade tarifária, além dos problemas de ineficiência, também compromete a oferta
de energia no longo prazo. À medida que a participação da Eletrobras aumenta, menos
empresas conseguem se manter no setor. Por outro lado, a capacidade de investimento
do setor público, bem como da própria Eletrobras (em função das baixas tarifas), é
limitada. E o problema que se esperava resolver – conjugação de modicidade tarifária e
garantia de suprimento – transforma-se em outro: aumento da carga tributária e
desestímulo à atividade econômica em geral. Não é demais lembrar que a abertura do
setor à iniciativa privada, no início do Governo Fernando Henrique, decorreu do
esgotamento da capacidade de investimento estatal (leia-se Eletrobras), causada, entre
outras coisas, pela contenção de tarifas para tentar reduzir a inflação e do calote das
empresas estaduais de distribuição, que não pagavam seus fornecedores, as estatais
federais hoje agrupadas na Eletrobras39.
As soluções para reduzir a probabilidade de leilões ineficientes
dependem da natureza da ineficiência. Se considerarmos que o principal problema é a
Eletrobras, seria necessário um comprometimento, por parte da estatal, de apresentar
propostas que reflitam, de fato, o custo do projeto, incluindo o custo de oportunidade do
capital e a remuneração pelo risco. Entretanto, para ser crível, a empresa teria de se
39
Ver o Relatório da Comissão Mista do Congresso sobre crise de abastecimento, Senado Federal, (2002).
71
comportar reiteradamente nos leilões de forma compatível com o compromisso
assumido.
Quando a ineficiência tem origem no comportamento oportunista, na
avaliação incorreta da melhor estratégia, ou na maior disposição da licitante em assumir
riscos, a solução pode envolver diversas dimensões. Em primeiro lugar, requerer, na
fase de habilitação, que o candidato tenha experiência bem sucedida em
empreendimentos anteriores. A desvantagem dessa abordagem é limitar os potenciais
concorrentes a quem já está no mercado. O órgão regulador teria também de assumir
uma posição mais dura em relação a renegociações de contratos.
A dificuldade surge em estabelecer que tipo de renegociação deve ser
aceita e qual tipo não. Há situações em que é bom renegociar. São eventos não previstos
na época da assinatura do contrato, ou previstos, mas com baixíssima probabilidade de
ocorrência, e que, ao se materializarem provocam aumento inesperado de custos. Um
exemplo extremo: a probabilidade de terremotos na maior parte do território brasileiro é
próxima a zero, mas não é nula. Assim, um aumento de custos decorrente de um
terremoto é um caso que justificaria a renegociação contratual. Outro exemplo, mais
próximo da realidade. Uma licença ambiental para uma usina de geração demora em
média, digamos, um ano para ser obtida. Em 95% dos casos, ela é concedida em até 18
meses. Se a concessionária provar que fez todos os esforços necessários, mas a licença
só foi concedida depois de 24 meses, haveria justificativa para renegociar os termos do
contrato. Uma depreciação cambial abrupta também justificaria renegociação dos
termos contratuais.
Por outro lado, há negociações ruins. São aquelas situações em que o
licitante sabe de antemão, ao assinar o contrato, que provavelmente terá de renegociar.
Voltando ao exemplo da licença ambiental, se sua concessão demorar, digamos, 15
meses, não seria motivo para renegociar o contrato, pois, apesar de a média ser mais
baixa, é comum as licenças demorarem até 18 meses para serem emitidas. Da mesma
forma, se é comum greves de até duas semanas, a empresa não deveria pedir
renegociação para gastos extras decorrentes de greves com duração próxima ao padrão
da normalidade.
Compete ao órgão regulador construir uma reputação de renegociador
justo: aceita renegociar nos casos em que deve fazê-lo e não aceita quando não deve
fazê-lo. O problema dessa estratégia é que, no curto prazo, algumas empresas não
72
conseguirão entregar a energia (ou a linha de transmissão) acordada no contrato.
Dependendo do caso, pode haver uma paralisia dos negócios, em que a concessionária
não consegue concluir a obra e aciona a Justiça para impedir que seja substituída por
outra. Esse custo pode ser elevado, e as opções para o regulador são poucas no curto
prazo:
i)
aceita os termos da concessionária, incentivando comportamentos
oportunistas (ou referendando empresas ineficientes, que não avaliam corretamente os
custos e riscos do projeto);
ii)
não aceita os termos da renegociação e permite que a oferta de
energia fique abaixo do esperado;
iii)
já antevendo possíveis frustrações de oferta, licita energia em
volume superior à demanda estimada. Nesse caso, corre-se o risco de ser gerado um
excesso de energia, aumentando o custo para os usuários.
Além de um comportamento mais rígido por parte do órgão regulador,
uma alternativa para reduzir a probabilidade de leilões gerarem resultados ineficientes é
introduzir uma fase de pré-qualificação, onde os licitantes apresentariam um plano de
negócios e uma metodologia de execução. Do plano de negócios constaria a análise
econômico-financeira do projeto, bem como a avaliação de riscos, com diferentes
cenários de custos. Já a metodologia de execução conteria as informações técnicas e
operacionais referentes à exploração da concessão e ao investimento. Se a proposta
financeira do licitante não for compatível com o plano de negócios e com a análise
econômico-financeira, ele seria desabilitado do certame.
A desvantagem do requerimento de plano de negócios e metodologia de
execução é o aumento da burocracia. Os custos de transação, entretanto, não devem
aumentar de forma significativa, pois, acredita-se, os consórcios não participariam do
leilão sem antes fazer uma análise criteriosa dos custos e riscos associados ao
desenvolvimento do projeto. Ainda assim, pode haver um aumento de morosidade nos
processos licitatórios, em decorrência do prazo necessário para analisar as propostas.
Mas é uma opção preferível a arriscar conceder o empreendimento a um licitante que
tenha oferecido preços abaixo dos custos de produção e que, no futuro, ou não oferecerá
o serviço prometido, ou conseguirá recuperar, seja diretamente via tarifas, seja
indiretamente via outras benesses, os prejuízos em que incorreu.
73
II.4.2 – Revisão de preços ao longo do contrato
As concessões no setor de energia elétrica são, via de regra, de longo
prazo. As concessionárias e a União firmam contratos que, não raro, atingem trinta
anos. É importante, nesses casos, estabelecer regras que permitam revisões ou alterações
ao longo do contrato para dar maior segurança ao concessionário e ao contratante (que,
em tese, representa os interesses do consumidor).
Para as geradoras e transmissoras, conforme discutimos na Subseção
II.4.1, o problema é relativamente simples de ser resolvido. Como a maior parte do
investimento é feito no início do contrato, a maior incerteza refere-se à evolução dos
custos de operação e manutenção(O & M). Nesse caso, regras de indexação a algum
índice de preços que reflita adequadamente a evolução dos custos da empresa
mitigariam os principais riscos.
Na Subseção II.3.2 também explicamos que, para a atividade de
distribuição, o planejamento do investimento é muito mais difícil. O contrato celebrado
é necessariamente incompleto, pois não pode estabelecer quais investimentos, onde e
quando deverão ser efetuados. Surge então o problema de como estimular a empresa a
investir, adotando as técnicas mais eficientes, e como remunerá-la. No caso de perfeita
informação, não haveria muita dificuldade: a empresa deveria ser ressarcida dos custos
do investimento. A remuneração deve ser feita de acordo com o custo histórico de
aquisição dos equipamentos, e não com seu custo corrente, para garantir o equilíbrio
econômico-financeiro do contrato.
Observe-se que a possibilidade de um leilão, que, se bem desenhado,
permite que se encontre um preço “justo” não pode ser utilizada aqui. Isso porque os
custos de transação, tanto para fazer o leilão, como para realizar e manter o
investimento poderiam ser muito altos.
Imaginem que, com o passar do tempo, determinado bairro de uma
cidade se expande, passando ser necessário atendê-lo. Se a população atendida for
pequena, não vale a pena fazer um leilão, que, possivelmente teria custos acima de
possível economia que a escolha de novo concessionário proporcionaria. Mesmo que
seja uma área maior, ficaria difícil interligar todas as redes de distribuição. A situação
ficaria mais complexa se, em vez de uma, surgissem dez novas áreas a serem atendidas.
74
A cidade poderia se tornar um mosaico de distribuidoras, com elevados custos. Por
exemplo, seria necessário interligar as redes, haveria duplicidade de equipes de
manutenção e operação, e se perderiam prováveis economias de escala relativas a
despesas de administração.
Portanto, não é viável desmembrar uma concessão, deixando uma
empresa responsável pela parte antiga do contrato e outra pela parte nova. Uma única
concessionária deverá realizar todos os investimentos necessários em uma determinada
área. Com assimetria de informações, o regulador se encontra diante do problema de
estabelecer a remuneração correta pelos investimentos feitos.
Há o risco de a concessionária informar ao regulador custos
artificialmente elevados para, com isso, aumentar sua receita. Por isso, o regulador tem
que fiscalizar as contas da empresa e, dependendo do caso, deve ter a prerrogativa de
autorizar os investimentos, para evitar gastos supérfluos. Uma forma de aprimorar o
processo de revisão tarifária atual é o órgão regulador autorizar a realização do
investimento antes que seja executado. Atualmente, a concessionária realiza os
investimentos para depois solicitar seu reconhecimento para fins de inclusão nos custos.
Esse procedimento aumenta os riscos da concessionária desnecessariamente,
desestimulando novos investimentos. Entretanto, de forma geral, é possível, com
fiscalização, bom senso e algum aprimoramento na metodologia de revisão tarifária,
reduzir substancialmente o risco de sobreprecificação das tarifas.
Toda a discussão da Subseção II.4.1.a sobre comportamento oportunista
por parte da concessionária também pode ser aplicada no processo de revisão tarifária.
As soluções são as mesmas: modificar o mecanismo de leilão para reduzir a
probabilidade de comportamento oportunista e o órgão regulador se mostrar mais firme
nas renegociações contratuais.
A novidade que surge agora é a possibilidade de comportamento
oportunista por parte do órgão regulador. Para tanto, basta entender os potenciais
benefícios para o regulador de remunerar inadequadamente o capital da concessionária
após a realização dos investimentos. No curto prazo, uma menor remuneração do capital
permitiria reduzir as tarifas, beneficiando os consumidores e rendendo fortes dividendos
políticos. Afinal, a maior parcela do eleitorado enxerga somente o benefício de uma
redução tarifária em sua conta, sem conseguir distinguir se essa redução é sustentável no
longo prazo ou se terá de ser compensada via aumento de tarifas ou de tributos no
75
futuro. Daí a importância da neutralidade do órgão regulador, que deve ser órgão de
Estado, não de Governo, deve ter independência administrativo-financeira e diretoria
que devida em regime colegiado com mandato pré-estabelecido.
Mas, voltando ao tema, quão longe o Governo pode ir na compressão da
remuneração do capital? A resposta depende de quanto a empresa investiu até o
momento.
Ainda que não seja tão forte quanto no caso da geração e transmissão, na
distribuição parte significativa dos custos corresponde ao investimento inicial. Esses
custos referem-se não somente à aquisição de máquinas e equipamentos, como também
à montagem da estrutura administrativa, formação de recursos humanos etc. Em larga
medida, esses custos são denominados “custos afundados”. Isso significa que, caso a
empresa opte por devolver a concessão, não conseguirá recuperá-los.
Por exemplo, vários equipamentos são feitos sob medida para atender
demandas muito específicas. Em caso de revenda, os custos de readaptá-los para outras
demandas podem ser tão elevados que esses equipamentos seriam vendidos como
sucata. Parte dos gastos referentes à montagem da estrutura administrativa também são
de difícil recuperação. Caso a empresa decida abandonar a concessão e se transferir para
outra região, não conseguiria levar consigo toda a mão de obra para o novo local, nem
tampouco os fornecedores. As despesas com publicidade naquele mercado seriam
igualmente perdidas.
Sendo assim, a concessionária investe em custos afundados iniciais com
o objetivo de recuperá-los ao longo do período de concessão. Para tanto, é necessário
que a receita supere os custos de O & M, pois é com esse excedente que a empresa
conseguirá equilibrar financeiramente o contrato. Suponhamos que, inicialmente, a
tarifa seja fixada de forma a permitir recuperação dos custos afundados. Ocorre que,
depois de incorridos os gastos iniciais, a concessionária continuará operando desde que
a tarifa cubra, pelo menos, os custos de O & M. Afinal, se a empresa se retirar do
negócio, perderá todo o investimento realizado. Se ela continuar operando, qualquer
receita acima dos custos de O & M permitirá que pelo menos parte dos investimentos
seja recuperado. Ou seja, a estratégia da concessionária passa a ser minimizar o
prejuízo, e não mais tentar recuperar o investimento.
76
Observe-se que, após incorrer nos custos afundados, a concessionária
pode se ver obrigada a realizar novos investimentos ao longo do contrato, mesmo
sabendo, de antemão que esses investimentos não serão devidamente remunerados. Para
entender melhor esse ponto vamos utilizar um exemplo. Suponhamos um investimento
inicial de $ 100 e que, quando da revisão tarifária, o Governo altera as regras e decide
que a empresa poderá recuperar, no máximo, $ 60. Como vimos, diante da situação em
que se encontra, a melhor estratégia para a empresa é continuar operando a concessão,
pois, nesse caso, seu prejuízo, de $ 40, é inferior à perda total, de $ 100. Imaginemos
mais, que o Governo, para garantir a qualidade do atendimento e ao mesmo tempo a
modicidade tarifária, exige do concessionário que realize novos investimentos, no valor
de $ 59, e informa que esse investimento não poderá ser recuperado via aumento de
tarifas. Ainda assim valerá a pena para a concessionária realizar o novo investimento,
pois ela recuperaria os $ 59 do investimento adicional e ainda contaria com mais $ 1
para ajudar na recuperação dos $ 100 investidos inicialmente.
O exemplo anterior pode exagerar em alguns aspectos dos termos
contratuais, mas revela a essência do raciocínio. Na realidade, a concessionária que
desiste da concessão pode ter direito a alguma indenização pelo investimento não
amortizado e existe a possibilidade de o concessionário reaver seus direitos na Justiça.
Os problemas são que as indenizações podem subavaliar o custo de aquisição dos
equipamentos. Além disso, elas costumam incidir somente sobre ativos físicos, que
podem ser revertidos para o órgão regulador. Não incluem, portanto, outros custos fixos
e afundados como a organização administrativa, seleção de mão de obra e fornecedores,
publicidade no mercado local etc. Quanto à Justiça, pode ser morosa e não
necessariamente decidirá a favor das concessionárias. Pinheiro (2003) fornece
evidências de que, no Brasil, há uma tendência de os juízes considerarem aspectos
sociais em suas decisões, independentemente do que dizem os contratos.
As consequências do comportamento oportunista por parte do regulador
são péssimas para a oferta de energia no médio e no longo prazos. Em primeiro lugar, as
distribuidoras que se encontram no meio do contrato tenderão a fazer o menor
investimento possível compatível com a qualidade mínima requerida. Afinal, se sabem
que não serão devidamente remuneradas por esse investimento, a tendência será reduzir
seus gastos ao máximo possível. A redução dos investimentos pode ser não somente
consequência de uma estratégia de minimização de prejuízos, mas simplesmente
77
ausência de caixa. Em algumas atividades do setor de energia, é desejável que haja
investimentos em “redundâncias”, equipamentos e instalações que são utilizados para
suprir falhas de outros equipamentos, garantindo maior estabilidade na oferta de
energia. Uma das consequências da redução de investimentos pode ser a redução de
gastos com estruturas redundantes, aumentando a probabilidade de ocorrência de
problemas, como mini apagões.
Em segundo lugar, as empresas anteciparão o comportamento oportunista
por parte do Governo e passarão a exigir, no leilão, preços maiores do que pediriam em
situações normais. Digamos que o contrato estabeleça devida e irretratavelmente a
remuneração do investimento inicial e que somente os investimentos novos estariam
sujeitos ao comportamento oportunista por parte do Governo. Suponhamos que a
empresa espere que esses investimentos novos, ao longo da vigência do contrato, sejam
de $ 1.000, mas que ela só conseguirá recuperar 90%, ou seja, $ 900. Os $ 100 de
prejuízo ela tenderá a embutir no preço ofertado.
Em verdade, ela tenderá a embutir um valor acima de R$ 100, se estiver
incerta em relação ao montante de investimento que terá de realizar. Suponhamos que
os novos investimentos ao longo do contrato possam ser de $ 1000 (que geraria perda de
$ 100) ou $ 1500 (com perda de $ 150) ou $ 500 (e prejuízo de $50). Se a probabilidade
de cada evento for de 1/3, a perda esperada é de $ 100. Entretanto, para aceitar incorrer
no risco, a concessionária exigirá um valor acima de $100, digamos, $ 110. Se todas as
concessionárias forem igualmente avessas ao risco, o resultado final do leilão será a
oferta de energia a um custo maior do que seria necessário.
Ou seja, a tentativa de impor modicidade tarifária por parte do regulador
é bem sucedida somente para as distribuidoras que se encontram no meio do contrato e
já incorreram em elevados custos afundados. Para os futuros contratos, o custo da
energia será, em média, mais elevado do que seria na ausência de comportamento
oportunista. Ou seja, troca-se modicidade tarifária hoje por tarifas maiores amanhã.
Uma terceira consequência do comportamento oportunista por parte do
Governo é reduzir a eficiência dos leilões, devido ao fato de as empresas valorizarem
diferentemente o risco. Conforme discutimos na Subseção II.4.1.a, vencerá o leilão não
necessariamente a empresa mais eficiente, mas aquela que menos valoriza o risco.
Voltando ao exemplo anterior, em que há possibilidades de prejuízo de $ 50, $ 100 e $
150. A firma que se comporta de forma neutra em relação ao risco irá se satisfazer com
78
um sobrepreço de $ 100. Quanto mais avessa ao risco, mais próximo de $ 150 será a
oferta da firma. Dessa forma, a tendência é o leilão ser vencido pela licitante que
oferecer $ 100 como prêmio de risco, mesmo que seu custo de produção seja superior ao
de outras firmas40, ou seja, a vencedora não seria a empresa mais eficiente.
Tendo em vista que tal risco seria totalmente evitável (bastaria remunerar
adequadamente os novos investimentos), o comportamento oportunista por parte do
regulador gera ineficiência alocativa, traduzida, no caso, em tarifas mais elevadas e
concessionárias menos eficientes. Se as empresas mais sérias forem também as mais
avessas ao risco, a prática de sub-remunerar investimentos adicionais aumenta a
probabilidade de o leilão ser vencido por empresas oportunistas.
Um quarto problema é que, com o aumento do risco, haverá uma
tendência de saída de capital do setor. Isso decorre não só do menor interesse que a
atividade de distribuição irá provocar, mas também porque algumas empresas não
conseguirão recuperar os investimentos realizados. Em ambos os casos, compromete-se
a oferta de energia no médio e no longo prazo.
Passemos então a nos preocupar em como resolver o problema. Já vimos
que, simplesmente aceitar o pedido da concessionária não é solução, pois ela tenderia a
dizer que seu custo de oportunidade é muito elevado. Leilões tampouco são opções
viáveis.
Outra solução óbvia seria o Governo se comprometer a não ter um
comportamento oportunista, e agir de acordo. Mas se a credibilidade tiver sido abalada,
será necessário algum tempo para que seja recuperada. Nesse ínterim, serão necessários
instrumentos contratuais que tentem, pelo menos, mitigar os riscos.
Uma possibilidade é travar a Taxa Interna de Retorno (TIR) quando da
assinatura do contrato. Assim, ao longo de todo o período de concessão, a licitante teria
garantido um retorno para os novos investimentos equivalentes à TIR. O problema é
que as condições macroeconômicas se alteram ao longo do tempo. Assim, travar a TIR
pode gerar lucros excessivos para a distribuidora, se a taxa de juros e a percepção de
risco caírem após a realização do leilão, ou gerar prejuízos caso o ambiente
macroeconômico se deteriore.
40
Mais precisamente, considerando os exemplos extremos de firmas que exigem $ 100 ou $ 150, a firma
mais propensa ao risco vencerá o leilão, mesmo se seu custo de produção for até $ 49 superior ao custo de
produção da firma mais avessa ao risco.
79
Pode-se tentar utilizar a TIR ou a remuneração do capital (WACC – do
inglês Weighted Average Cost of Capital) associada a contratos recentes, desde que
sejam justas41. O problema é que, não necessariamente, serão celebrados contratos na
mesma época em que as concessionárias farão os novos investimentos. Além disso, os
contratos poderão ser para áreas com características muito diferentes daquelas em que
os novos investimentos irão ocorrer. Compare-se, por exemplo, o risco e os custos para
eletrificar uma pequena e pacífica cidade do interior de porte médio, com os
investimentos novos para eletrificar uma região de uma metrópole, com altos índices de
violência e, provavelmente, alto nível de roubo de energia.
O contrato pode prever indenizações justas caso a empresa desista da
concessão. A indenização deveria envolver não somente os ativos não depreciados,
como também outros custos não afundados. No caso de ativos não reversíveis, a
indenização não deveria ser integral, para não estimular comportamento oportunista por
parte do regulado42. Mas deveria ser alta o suficiente para desestimular comportamento
oportunista por parte do regulador.
Uma possibilidade é o uso de árbitros. O próprio contrato de concessão já
poderia prever fóruns de renegociação caso haja divergências na remuneração dos
investimentos durante o processo de revisão tarifária. Os árbitros poderiam estipular a
remuneração a ser adotada, bem como definir os critérios de indenização caso a
concessionária optasse por devolver a concessão. O contrato poderia até mesmo prever
o modelo de arbitragem a ser adotado. Por exemplo, há arbitragens em que o árbitro se
compromete a escolher uma solução intermediária entre as propostas. Em outros tipos
de arbitragem, o árbitro se obriga a escolher somente uma das propostas. Há ainda a
possibilidade de o árbitro definir um preço que esteja fora do intervalo dos preços
reivindicados.
Até o momento consideramos somente o problema de remuneração de
investimento, sem considerar ganhos de produtividade. O contrato, entretanto, deve ser
41
No Brasil, contratos entre a estatal Eletrobras e o órgão regulador podem embutir taxas de retorno
muito abaixo do que aquilo que poderia ser considerado justo e, portanto, não deveriam servir como
parâmetro para negociações com o setor privado.
42
Se a empresa não tiver custo algum em devolver a concessão, ela terá maior poder de barganha para
pressionar o regulador a aceitar novas condições contratuais. Isso porque a empresa que viesse a substituíla incorreria em novos custos não afundados (por exemplo, para montar a estrutura administrativa). A
substituição de concessionárias impõe, portanto, custos mais altos para a atividade de distribuição. Diante
disso, o regulador poderia aceitar rever os contratos, desde que os ganhos da atual concessionária sejam
inferiores ao aumento de custos que a troca de concessionárias provocaria.
80
tal que estimule as empresas a perseguir ganhos de produtividade. Na próxima seção
discutiremos esse problema.
II.4.3 – Incentivos para ganhos de produtividade
O objetivo de modicidade tarifária deve ser pensado dinamicamente. Ao
longo de um contrato de longo prazo, novas tecnologias surgem. Vimos que, no caso de
perfeita informação, bastaria ao regulador fixar a tarifa em valor compatível com o
menor custo de produção possível. Com assimetria de informações, entretanto, o
regulador não conhece que custo é esse. Deverá então fornecer incentivos para que o
concessionário adote a melhor tecnologia disponível. Isso permitirá redução de custos
que, em algum momento, poderá ser incorporada às tarifas.
A literatura43 define dois tipos básicos de regulação. A regulação por taxa
de retorno e a regulação por fixação de preços. No primeiro caso, o concessionário
apresenta os custos de produção para o regulador que, se os aceitar após uma auditoria,
aplica uma taxa de retorno para definir a tarifa. Se a auditoria for bem feita, esse sistema
garante que o concessionário terá uma remuneração justa – nem abaixo nem acima do
que seria merecido.
O grande problema da remuneração por taxa de retorno é que não
estimula a adoção de técnicas mais produtivas. Afinal, se independentemente do que
fizer, o investidor tiver seus custos ressarcidos, não há porque se preocupar em inovar,
principalmente quando se leva em consideração os custos e riscos associados à adoção
de novas tecnologias. O termo “novas tecnologias” deve ser entendido de forma ampla,
englobando não somente a aquisição de equipamentos mais modernos, mas qualquer
alteração que permita ganhos de produtividade. Pode ser uma reestruturação
administrativa, uma nova política de formação de estoques ou de relacionamento com
fornecedores, novos métodos de cobrança de contas etc. Para que novas tecnologias
sejam adotadas, é necessário experimentar e, eventualmente, errar, o que implica que há
sempre um risco envolvido. Se o custo decorrente das experimentações não for
devidamente validado pelo órgão regulador, a concessionária se verá na situação em que
se tentar inovar e for mal sucedida sofrerá prejuízo, e se for bem sucedida não auferirá
ganhos extraordinários. O incentivo, nesse caso, é claramente no sentido de não inovar.
43
Sobre formas de regulação, ver Laffont e Tirole (1993).
81
Por isso, a regulação por taxa de retorno é um tipo de regulação classificado como de
baixo poder de incentivos.
A segunda forma mais comum de regulação é por fixação de preço-teto
(price cap, em inglês). Nesse caso, como o nome sugere, o regulador fixa um preçoteto, independentemente dos custos da concessionária. Para garantir modicidade
tarifária, o preço-teto deve ser fixado em um valor que permita a devida cobertura de
custos, mas não gere grandes excedentes para a concessionária. A dificuldade está
justamente em fixar o preço-teto, pois, se for muito baixo, poderá afugentar potenciais
investidores e estimulará comportamento oportunista por parte do regulado.
É fácil ver que a fixação de um preço-teto dá o máximo estímulo para
que a empresa aumente a produtividade, pois qualquer ganho que obtiver em termos de
redução de custos será integralmente apropriado por ela. Ao renovar as concessões, a
empresa, dominando uma tecnologia de menor custo, poderá fazer ofertas mais
competitivas no leilão. Se várias empresas (nas respectivas concessões) tiverem tido a
oportunidade de adotar técnicas mais produtivas, o resultado final será uma redução das
tarifas no longo prazo.
Para alguns reguladores, esperar vencer o período de concessão pode ser
um prazo muito longo. Por isso estabelecem regras que permitam que parte dos ganhos
de produtividade seja transferida para os consumidores já ao longo do contrato de
concessão. Para cumprir esse objetivo os contratos preveem revisões tarifárias,
realizadas normalmente a cada quatro ou cinco anos, em que é avaliada a evolução dos
custos do setor e aplicado o chamado “fator X”. Esse fator corresponde a uma redução
percentual nas tarifas, pré-fixada, e que busca refletir os ganhos de produtividade
ocorridos no intervalo entre duas revisões.
Assim, na revisão tarifária, o regulador olharia para dois custos. Aqueles
custos que não são administrados pela distribuidora – como tributos, tarifas pagas para
transmissão e geração –, são integralmente repassados para as tarifas. Já os custos
administráveis pela distribuidora são reajustados pela inflação (ou por algum outro
índice pré-definido, como variação cambial ou índice de custos do setor) e, sobre eles,
aplica-se o redutor previsto no fator X para se chegar à tarifa final.
Por ser pré-fixado, o fator X também é uma forma de regulação de alto
poder de incentivos. Afinal, como a distribuidora sabe que independentemente do que
82
fizer a tarifa após a revisão tarifária será a mesma, ela terá o máximo incentivo em
adotar a tecnologia que lhe garanta maior produtividade.
Há dois comportamentos que o regulador deveria evitar a qualquer custo.
O primeiro é após observar ex post o ganho de produtividade obtido pela
concessionária, tentar repassá-lo integralmente para o consumidor final. Essa estratégia
garantiria no curto prazo a menor tarifa possível, mas desestimularia a empresa a
investir em novas tecnologias. Afinal, se todo o ganho de produtividade que conseguir
for repassado para os consumidores, não haverá incentivos para a concessionária
aumentar sua produtividade44. Retorna-se, então, a um modelo de regulação de baixo
poder de incentivos, que não gera modicidade tarifária no longo prazo.
O segundo perigo é o regulador exagerar no fator X. Se o redutor for
muito elevado, as empresas terão pouco incentivo para atuar no setor, pois sabem, de
antemão, que, por um lado, todo ganho de produtividade será repassado para os
consumidores, e, por outro, que se não conseguirem reduzir os custos na mesma
velocidade do fator X incorrerão em prejuízo. Nesse caso, ou o setor elétrico observa
uma maior participação de aventureiros, ou as empresas interessadas em atuar na área
de energia passarão a exigir tarifas iniciais mais altas para se precaverem do risco de
não conseguirem reduzir os custos na velocidade requerida.
Em outras palavras, havendo assimetria de informações, o melhor que o
regulador deve fazer para estimular as empresas a adotar tecnologias mais eficientes é
permitir que o regulado se aproprie de pelo menos parte dos ganhos de produtividade
que obtiver. Quanto maior for a parcela apropriada, maior o estímulo para adoção de
tecnologias de menor custo e, portanto, maior a modicidade tarifária no longo prazo.
A questão do estímulo à adoção de tecnologias mais modernas tem-se
tornado particularmente importante nos últimos anos, com o advento do smart grid. Os
smart grids são redes inteligentes, que permitem transmissão em tempo real sobre o
consumo. Também permitem diferenciar consumidores prioritários (por exemplo,
hospitais) de não prioritários. Outros possíveis usos do smart grid são a inserção de
microprodutores de energia (por exemplo, consumidores residenciais que possuem placa
solar) no sistema, que poderiam vender eventuais excessos de produção; a tarifação
44
Em verdade, os incentivos não são nulos porque a distribuidora poderia se apropriar dos ganhos de
produtividade nos intervalos entre duas revisões. Mas, considerando os riscos envolvidos, os incentivos,
apesar de não nulos, são muito baixos.
83
diferenciada ao longo do dia; e a possibilidade de leitura da conta de luz a partir de uma
central, sem necessidade de deslocamento de pessoas até as casas.
Enfim, são inúmeras as possibilidades de uso do smart grid, bem como
as possibilidades de ganhos de produtividade e redução de custos. Entretanto, uma
política em que quase todo ganho de produtividade é transferido para o consumidor
reduz drasticamente os incentivos para as distribuidoras investirem em tais redes. O
resultado, no longo prazo, é o atraso tecnológico das redes de distribuição e custos mais
elevados.
II.5 – Alternativas para redução do custo de energia
Na seção anterior vimos que modicidade tarifária não deve significar o
menor preço a qualquer custo. Deve ser o menor preço compatível com a
sustentabilidade das empresas do setor; do contrário, trocam-se tarifas mais baixas no
presente por tarifas mais elevadas no futuro, com grande probabilidade de oferta
insuficiente para atender à demanda. Exemplo disso já houve no passado recente, com o
racionamento de 2001: as tarifas comprimidas no passado tiveram que ser bastante
elevadas, e a oferta falhou, exigindo sacrifícios e novos hábitos de consumo por parte da
população.
Assim, apesar de uma percepção generalizada de que as tarifas de energia
elétrica são altas no Brasil, principalmente quando se considera o nosso potencial
hidroelétrico, não se deve esperar que a modicidade tarifária seja obtida por meio de
redução unilateral de tarifas, somente por desejo do Governo ou do regulador. É
necessário haver reduções efetivas no custo marginal de produção de energia. As
alternativas apresentadas a seguir sugerem formas de reduzir as tarifas de maneira a não
comprometer o equilíbrio no setor.
II.5.1 – Redução dos riscos regulatórios e negociais
Quanto mais alto for o grau de incerteza, maior retorno um empresário
irá exigir para realizar determinada atividade. Essa regra vale para produtores de
banana, de automóveis, bancos, prestadores de serviços em geral e, naturalmente, para
empresários do setor elétrico. A intuição é simples: para uma dada taxa de retorno
84
esperada, o empresário irá escolher a atividade que lhe garante essa taxa com menor
risco.
Por exemplo, se puder optar por um empreendimento A, que gere taxas
de retorno de 8%, 9% ou 10% ao ano, com igual probabilidade, ou um empreendimento
B, cujas taxas de retorno são 2%, 9% ou 16% ao ano, também com igual probabilidade,
a maioria dos investidores optará pelo empreendimento A, que oferece menor risco,
embora gerem o mesmo retorno esperado (9%). Não é por outro motivo que os títulos
públicos são tão atraentes, pois oferecem baixíssimo risco (pelo menos comparados a
outros títulos brasileiros). Para induzir os empresários a investir no empreendimento B,
será necessário aumentar seu retorno esperado.
Nas seções anteriores, vimos que há características inerentes ao setor
elétrico que se constituem em fontes de risco. Em especial, a longa maturação dos
investimentos e a impossibilidade de prever todas as circunstâncias no contrato
aumentam substancialmente a probabilidade de comportamento oportunista por parte do
Governo.
Para mitigar o risco regulatório, é necessário, em primeiro lugar, contar
com instituições estáveis. Um Poder Judiciário independente e eficiente é importante
para barrar eventuais ações oportunistas por parte do Governo. Recentemente, por
exemplo, o CNPE publicou resolução obrigando os agentes de geração e
comercialização de energia elétrica a arcar com metade dos custos do acionamento das
térmicas. O resultado foi a judicialização da questão, que levou, entre outros prejuízos, à
paralisação da Câmara de Comercialização de Energia (CCEE) por dois meses. A
decisão foi temporariamente suspensa por força de liminar, mas a análise do mérito
pode demorar anos.
O Poder Judiciário também pode contribuir para o desenvolvimento do
setor energético, se conseguir punir exemplarmente ações como atos de vandalismo nos
canteiros de obras e roubo de energia, desestimulando a recorrência de tais atos.
Tão ou ainda mais importante do que um Judiciário independente e
eficiente, é o próprio Poder Executivo emitir sinais críveis de que está comprometido
com a estabilidade das regras. Para ganhar credibilidade, são necessárias ações
reiteradas no sentido de preservar a viabilidade dos negócios. Isso implica estabelecer
preços-teto capazes de atrair o setor privado nos leilões e estabelecer parâmetros que
85
garantam remuneração adequada do capital por ocasião das revisões tarifárias, bem
como somente alterar as regras com prévia discussão com o mercado, mediante
audiências públicas ou outros mecanismos bem aceitos pelas empresas.
Conforme discutimos anteriormente, o Governo tem um incentivo de
curto prazo no sentido de pressionar as tarifas para baixo, pois as empresas, após terem
incorrido nos custos afundados iniciais, têm pouco incentivo para devolver a concessão.
Mas, no longo prazo, a consequência dessa política é afugentar o investimento privado,
comprometendo a oferta de energia.
O Governo também pode reduzir riscos se delinear claramente a política
energética de longo prazo. Na Medida Provisória nº 579, de 2012, o Governo deu o
prazo de um mês para que as concessionárias decidissem se antecipariam ou não a
renovação das concessões. A partir de 2015, várias distribuidoras terão de renovar os
contratos de concessão. Até o momento não foram divulgadas as regras da renovação, e
representantes do Governo já disseram à imprensa que não há pressa na definição dos
termos da renovação. Isso encurta o horizonte de planejamento das empresas do setor, o
que tende a aumentar os custos, pois algumas opções estratégicas somente estão
disponíveis no longo prazo.
II.5.2 – Maior celeridade no fornecimento do licenciamento socioambiental
Um dos custos que muito oneram a construção de novas usinas e linhas de
transmissão é o licenciamento socioambiental. As empresas construtoras desses
empreendimentos, em particular as usinas hidrelétricas, obras maiores e mais
complexas, enfrentam uma série de dificuldades para obter as licenças necessárias à sua
construção, especialmente a Licença Prévia, que viabiliza o início da obra.
A primeira dificuldade pode ser encontrada na falta de uma legislação
adequada ao disciplinamento de todo o processo de licenciamento socioambiental.
Grande parte do assunto está tratado em resoluções do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA) e em outras normas esparsas, não havendo uma legislação única
e bem articulada sobre todo o processo de licenciamento socioambiental. A fragilidade
das normas do CONAMA, que não têm força de lei, e outros motivos têm levado à
judicialização do processo decisório, motivada principalmente pela ação do Ministério
86
Público. Assim, uma legislação única, racional e coerente, destinada a sanar esses
problemas, certamente reduziria os custos do setor.
Em decorrência da falta de uma legislação capaz de racionalizar o processo,
o empreendedor tem que bater à porta de uma quantidade de órgãos públicos que
precisam autorizar a obra e sua posterior operação. Atualmente, além dos órgãos
ambientais, os empreendedores precisam obter anuência da Fundação Nacional do Índio
(Funai), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), da
Fundação Palmares, e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entre
outras instituições públicas. Há casos em que até 15 diferentes órgãos precisam ser
consultados, segundo o Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico, órgão formado por
19 associações de empresas geradoras, transmissoras, distribuidoras e de consumidores
do setor elétrico.
Essa peregrinação adiciona custos ao empreendimento e comumente gera
atrasos no início das obras e da operação do empreendimento, que também se
transformam em custos. De acordo com o Fórum, o maior problema está na obtenção da
Licença Prévia, que demora, em média, de quatro a cinco anos para ser obtida.
Em razão disso, o Fórum entregou proposta ao Governo Federal para a
criação de um “balcão único” para o licenciamento dessas obras, o que pouparia tempo
e esforço dos empreendedores e reduziria os custos das obras e, consequentemente, da
energia. O “balcão único” agilizaria o licenciamento ao concentrar o processo numa
instância responsável por sua gestão e coordenação, interagindo com as entidades que
precisam se manifestar sobre o licenciamento, segundo o Fórum.
Outro aspecto que tem pesado nos custos desses empreendimentos são
exigências de contrapartidas pelo licenciamento que nada têm a ver com o impacto do
empreendimento. Tornou-se comum exigir dos empreendedores obras de saneamento
básico para as cidades afetadas pela obra ou a construção de rodovias. Tratadas como
contrapartidas, demandas dessa natureza são muitas vezes respaldadas pelos órgãos que
devem licenciar o empreendimento e acabam fazendo parte do custo da obra, na falta de
legislação que discipline adequadamente o que pode e o que não pode fazer parte das
compensações socioambientais. Seria adequado que houvesse normas específicas sobre
isso, para reduzir a margem de discricionariedade dos agentes públicos e as incertezas
do empreendedor e, com isso, os custos do empreendimento e da energia.
87
Ademais, é importante lembrar a existência da Compensação Financeira
pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH)45, paga pelas usinas, da qual 45% são
destinados aos municípios atingidos pelos seus reservatórios, o que dispensaria
quaisquer outras formas de compensação prévia à construção de hidrelétricas.
II.5.3 – Redução da tributação e encargos do setor
A energia elétrica é dos serviços mais fortemente tributados no Brasil. De
acordo com estudo da ABRADEE, para um consumidor residencial com consumo
acima de 200 KwH/mês na Região Sudeste46, nada menos que 41% de sua conta de luz
era representada por encargos e tributos. Para um consumidor médio, representando
todas as classes de consumo e todos os estados brasileiros, a soma de encargos e
tributos era de 39%. As estimativas da Abradee referem-se a 2012 e, por isso,
provavelmente não incorporam as recentes desonerações decorrentes da MP 579,
editada no final daquele ano.
A Aneel também fez uma estimativa para um consumidor residencial
com conta no valor de R$ 100,00. Nesse caso, os tributos e encargos representavam
34% do valor da tarifa, antes da MP 579, e 30%, após a MP. Destaque-se que tanto a
Aneel como a Abradee incorporam como tributos somente o PIS/Pasep, Cofins e o
ICMS. Outros impostos como o Imposto de Renda e a Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido não são considerados nos cálculos.
Se considerarmos a carga de 39% calculada pela Abradee para um
consumidor médio como a mais representativa, concluímos que a carga tributária do
setor elétrico é mais alta do que a brasileira, que se encontra em 36% 47. Para um setor
45
Criada pela Lei n.º 7.990, de 28 de dezembro de 1989. O cálculo da CFURH baseia-se na geração
efetiva das usinas hidrelétricas, de acordo com a seguinte fórmula: CFURH = TAR x GH x 6,75%, onde
TAR refere-se à Tarifa Atualizada de Referência estabelecida anualmente pela ANEEL (em R$/MWh) e
GH
é
o
montante
(em
MWh)
da
geração
mensal
da
usina
hidrelétrica.
Destina-se a compensar os municípios afetados pela perda de terras produtivas, ocasionada por inundação
de
áreas
na
construção
de
reservatórios
de
usinas
hidrelétricas.
Do montante arrecadado mensalmente a título de compensação financeira, 45% se destinam aos Estados,
45% aos Municípios, 3% ao Ministério de Meio Ambiente, 3% ao Ministério de Minas e Energia, e 4%
ao Ministério de Ciência e Tecnologia. A gestão da sua arrecadação fica a cargo da ANEEL.
46
A participação de encargos e tributos na conta de luz depende de vários fatores, como a classe do
consumidor (residencial, industrial etc.), do consumo e da Unidade da Federação em que se localiza (pois
as alíquotas de ICMS variam).
47
A carga efetiva sobre o setor elétrico pode ser mais baixa que os 39% mostrados acima. As
desonerações promovidas pela MP 579 podem ter feito a carga cair para 35%, se utilizarmos o mesmo
impacto de 4 pontos percentuais estimado pela Aneel. Por outro lado, esses valores não incluem IR e
88
que produz um insumo tão essencial para a produção e para o consumo final, a
tributação certamente deveria ser mais baixa.
Na comparação internacional, estudo publicado pela Abradee48 concluiu
que, para uma amostra de 18 países, todos da OCDE, com exceção do Brasil, o Brasil
aparece como o 9º país no ranking dos que mais tributam energia elétrica. Contudo, há
países onde a tributação sobre o setor elétrico também é mais elevada, como na
Escandinávia, França e Alemanha. Proporcionalmente à carga tributária geral, o Brasil
foi o 6º país da amostra onde o setor de energia é mais fortemente taxado49.
Além da alta incidência tributária, há vários encargos que representam
subsídios cruzados. Alguns foram eliminados recentemente pela MP 579, como a RGR
e a CCC. Outros, como a CDE, que foi reduzida no âmbito da mesma MP, tem por
função, entre outras, subsidiar os consumidores de baixa renda. Conforme discutimos na
Subseção II.3.1.a, subsídios devem ser arcados pelo Governo (isto é, pelo contribuinte),
e não pelo consumidor de energia. Outro exemplo de distorção é a Taxa de Fiscalização
de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE), destinada a cobrir as despesas da Aneel, mas
que, na prática, sofre contingenciamento por parte do Tesouro. Isso prejudica o
consumidor de energia duplamente: pelo impacto sobre a tarifa e pelo enfraquecimento
da Aneel, que passa a não dispor dos recursos necessários para o bom desempenho de
suas funções50.
O grande desafio na redução de encargos e tributos deve-se à baixa
elasticidade de demanda da energia. A receita total arrecadada de um tributo depende da
alíquota e da quantidade consumida. Como a elasticidade de demanda por energia é
baixa, um aumento de tarifas provocado por um aumento na tributação tende a não
reduzir significativamente a demanda dos consumidores, permitindo forte arrecadação
tributária. Adicionalmente, o ICMS incidente sobre a conta de energia é um imposto
fácil de ser arrecadado, sem probabilidade de sonegação, porque mesmo quando o
consumidor não paga a conta a distribuidora recolhe o imposto. Por isso, na média dos
CSLL. Dessa forma, a carga tributária do setor elétrico está sendo, no mínimo, tão elevada quando à carga
tributária média do País.
48
Vide a apresentação intitulada: “Comparação Internacional de Tarifas de Energia Elétrica”, disponível
em:
http://www.abradee.org.br/imprensa/noticias/1136-abradee-divulga-novo-estudo-comparativo-de-tarifas
49
Neste estudo, a Abradee considerou que uma carga tributária sobre o setor de energia elétrica de 28%
para o Brasil, abaixo das estimativas anteriormente apresentadas. Provavelmente foi um ajuste
metodológico para permitir comparabilidade entre os valores da amostra.
50
Para uma discussão sobre a adequação dos diferentes encargos incidentes sobre a conta de luz, ver
Montalvão (2009).
89
estados, o ICMS incidente sobre o consumo de energia representa 9% da arrecadação
total do tributo, o que explica a forte resistência das Fazendas estaduais em abrir mão
dessa receita.
Um programa de desoneração do setor deveria passar por redução dos
encargos, principalmente aqueles que envolvem subsídios cruzados e que deveriam ser
bancados pelo Tesouro. É também necessário um pequeno pacto federativo, onde União
e Estados entrem em um acordo para reduzir os respectivos tributos incidentes sobre o
setor.
II.5.4 – Estímulo à construção de usinas com reservatórios
O Brasil é dos poucos países que tem a sorte de contar com imenso
potencial hidroelétrico. Trata-se de uma energia renovável e de baixo custo. Entretanto,
na última década, tem-se consolidado uma estratégia de desperdiçar esse potencial,
estratégia essa consubstanciada em uma espécie de veto branco à construção de usinas
com grandes reservatórios. O caso mais emblemático é o de Belo Monte, usina com
potência de 11 mil MW, mas que irá gerar uma média de somente 4,5 mil MW, porque
foi construída sem reservatório, de forma que, na época da seca, não terá água suficiente
para acionar as turbinas.
O grande impedimento para construção de usinas com grandes
reservatórios são elevados custos socioambientais decorrentes da inundação dessas
áreas. Paradoxalmente, a solução que tem se viabilizado é a construção de mais usinas
termoelétricas, que produzem energia bem mais cara e mais poluente do que a
hidroelétrica.
O Capítulo V discutirá em mais detalhes esse grande entrave para uma
efetiva redução de custos de geração no País.
II.5.5 – Estímulo ao mercado livre
A reforma do setor de energia promovida nos anos 1990 foi de cunho
liberalizante. Por um lado, deu-se início às privatizações, sobretudo na atividade de
distribuição. Outro importante passo foi a criação do Mercado Atacadista de Energia,
onde os agentes poderiam negociar livremente preços e quantidades. Foi criada,
90
também, a figura do consumidor livre51. Em 2003, no âmbito da nova reforma do setor
elétrico, esse mercado foi substituído pelo Ambiente de Contratação Livre (ACL).
O ACL foi inicialmente instituído para atender somente a consumidores
com carga igual ou superior a 3 MW. São os chamados consumidores livres.
Posteriormente, o mercado livre passou a permitir também a participação dos chamados
consumidores especiais, definidos como aqueles com carga entre 0,5 MW e 3 MW,
desde que adquiram energia de fontes incentivadas52.
A liberalização do mercado iria requerer importantes alterações no atual
modelo. A atividade de distribuição passaria a se responsabilizar somente pelo
cabeamento e manutenção dos postes. Por ser um monopólio natural, essa atividade
teria de continuar sendo regulada, com tarifas definidos pelo órgão regulador e regras
que garantissem igualdade de acesso. Já o fornecimento de energia ao consumidor final
ficaria a cargo das comercializadoras53.
A nova estrutura de mercado apresentaria diversas vantagens. A
competição entre as diferentes comercializadoras aumentaria o poder de barganha do
consumidor final e pressionaria os preços para baixo. Como a competição seria pelo
consumidor, que se encontra no final da cadeia de produção, a pressão sobre os preços
se refletiria em todas as etapas anteriores da produção de energia. Essas vantagens
devem ser ainda mais evidentes no longo prazo, pois um ambiente mais competitivo
estimula as empresas a buscarem maior produtividade, produzindo mais barato (com
reflexos nas tarifas) ou melhorando a qualidade do produto.
A segunda vantagem é que o mercado livre sinaliza melhor a escassez. O
preço no mercado livre, de uma forma simplificada, deve refletir o preço esperado ao
longo do contrato do Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), que é o preço spot,
utilizado para a liquidação de excedentes54, e é calculado de forma a estimar o custo
51
Lei nº 9.074, de 1995 estabeleceu como consumidores livres aqueles com carga superior a 3.000 kW,
que podem optar pela contratação do fornecimento de qualquer empresa concessionária, permissionária
ou autorizada para a comercialização.
52
São fontes incentivadas eólica, Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs, biomassa ou solar. O incentivo
oferecido para adquirir esse tipo de energia é redução na tarifa de transmissão.
53
Em tese, as geradoras poderiam vender diretamente energia para os consumidores, como ocorre
atualmente. Entretanto, devido à pequena escala de consumo, é pouco provável que as geradoras venham
a se interessar pelo mercado de pequenos consumidores.
54
A comercializadora tem a opção de fechar um contrato de médio prazo, digamos, de três anos, ou de
negociar diariamente sua energia pelo valor do PLD. O preço fixado em contrato deve, portanto, refletir o
custo de oportunidade da comercializadora, que é vender no mercado à vista. Há, contudo, outros fatores,
91
marginal de operação do sistema (CMO) 55. Dessa forma, quando há um desequilíbrio
estrutural entre oferta e demanda, provocando um aumento do custo marginal, o CMO
sobe, fazendo com que o PLD também suba. Isso, por sua vez, deve aumentar o preço
da energia no mercado livre. Observe-se que o preço no mercado livre subirá mais
fortemente quanto maior for a percepção de que o aumento do PLD é duradouro.
Cabe destacar que o mercado regulado também será afetado, uma vez
que as distribuidoras recontratam parte de sua energia (energia existente) anualmente.
Quando da recontratação, os geradores também irão cobrar um prêmio sobre a
expectativa do PLD, tal como ocorreu no leilão A-1, realizado em dezembro de 2013.
Entretanto, o impacto de um aumento do PLD sobre o preço do mercado regulado dá-se
apenas de forma marginal, sobre a energia recontratada. Já no mercado livre, o impacto
é imediato sobre todos os novos contratos. Por esse motivo, o mercado livre é capaz de
sinalizar melhor a escassez de energia.
Observe-se, contudo, que a flutuação de preços no mercado livre não
decorre somente de alterações na relação entre oferta e demanda. Em situações
excepcionais, principalmente quando há desequilíbrio na alocação de energia entre o
ACR e o ACL, pode haver falta de liquidez no mercado livre, permitindo aos agentes
que possuam energia auferir um prêmio elevado. Assim como ocorre em outros
mercados financeiros, o prêmio de liquidez pode ser elevado. No início de 2010, por
exemplo, vários empreendimentos que deveriam entrar em operação atrasaram e foram
forçados a comprar energia no mercado livre para honrar seus compromissos com as
distribuidoras. Em 2015, quando a energia da CESP, da CEMIG e da COPEL será
convertida em cotas e deverá migrar compulsoriamente para o ACR, poderá haver novo
problema de liquidez no mercado livre. Uma maior comunicação entre os dois mercados
(ou, no limite, a total liberalização do mercado) poderá contribuir para que eventos de
falta de liquidez se tornem menos frequentes, fazendo com que o preço no mercado
livre reflita mais adequadamente a escassez relativa de energia.
Além de aumentar a competição e sinalizar melhor a escassez ao
consumidor, a terceira vantagem de uma maior liberalização do mercado é permitir que
a demanda reaja adequadamente aos preços. Maiores preços no mercado livre somente
como o risco de flutuação de preços, que faz com que o valor no mercado livre não seja exatamente igual
ao valor médio esperado do PLD durante a vigência do contrato.
55
O PLD é calculado semanalmente pela CCEE a partir de um software chamado Newave, que leva em
consideração as condições de demanda, de oferta e diferentes cenários hidrológicos.
92
irão se materializar em aumento de oferta se houver perspectiva de que a maior oferta
será acompanhada por maior demanda. Mas o ACR, responsável por 75% do mercado,
não pode contratar livremente a energia e estimular a expansão da oferta de forma
rápida.
Em resumo, é necessário expandir o mercado livre para que a escassez de
energia seja corretamente sinalizada e para que a demanda forneça os estímulos
necessários para viabilizar a expansão da oferta. Devemos lembrar, contudo, que
mercado livre não significa mercado desregulamentado. Para que o mercado livre
funcione adequadamente é necessário dispor de instituições que impeçam o abuso de
poder econômico e garantam efetiva concorrência nas etapas de produção onde a maior
competitividade é desejável56.
A liberalização do mercado também permitiria ganhos de eficiência no
consumo. A comercializadora pode oferecer produtos diferenciados que atendam à
necessidade de produtores e consumidores beneficiando-se de economias de escala e
escopo e, por consequência, incorporando eficiência e redução e custos. Um mercado
mais competitivo também facilita a diversificação de contratos, com a possibilidade de
as empresas oferecerem pacotes com preços diferenciados para determinadas horas do
dia, otimizando o uso da energia. Um regulador, por mais competente que seja, não
dispõe de informações suficientes para precificar a energia de forma tão precisa, ao
longo do dia, do período do ano ou das condições hidrológicas.
O ACL é um mercado importante, que respondeu por 27% do consumo
de energia elétrica em 2012, e que cresceu muito, tendo em vista ser um mercado
recente e em consolidação. De 974 consumidores em 2006, passou-se para 1.632 em
2010, até atingir 3.017 em 2012, aumento de mais de 200% no período 57! Contraste-se
com o número de consumidores cativos, que passou de 59 milhões para 72 milhões
entre 2006 e 2012, um aumento de 22%.
Por ser um mercado restrito a grandes consumidores, o ACL apresenta
distribuição extremamente heterogênea. Mais de 90% de seus consumidores são da
classe industrial. Visto por outro ângulo, se restringirmos a análise ao setor industrial,
56
Tanto a atividade de transmissão como a rede de postes são monopólios naturais e, por isso, devem
sofrer maior regulamentação. Já geração e comercialização ao consumidor final podem ser atividades
concorrenciais, cabendo ao órgão regulador garantir as devidas condições de concorrência.
57
Informações extraídas dos Anuários Estatísticos de Energia Elétrica de 2011 e 2012, publicados pela
EPE.
93
desde 2006 a energia vendida no ACL vem representando mais de 50% do consumo de
energia do setor. Nos últimos anos observa-se, inclusive, uma tendência de crescimento,
partindo de 53%, em 2009, e atingindo 62% em 2012.
Contudo, quando se olha para a evolução recente, percebe-se que o ACL
está relativamente estagnado, com participação relativa flutuando em torno de 25%
desde 200658. De uma forma geral, o que se percebe é uma falta de estímulo para
expansão desse mercado, a despeito de medidas pontuais no sentido de favorecê-lo.
O modelo implantado quando da reestruturação do setor elétrico nos anos
1990 previa aumento gradual da abrangência do mercado livre. Uma proposta que
chegou a ser estudada pela Aneel previa o acesso de todos os consumidores ao mercado
livre a partir de 2005.
A expansão do mercado livre é realidade em vários países. Na Europa,
Austrália, Nova Zelândia, o mercado encontra-se totalmente aberto, inclusive a
consumidores residenciais, no mínimo, desde 2007. Destaque-se, o crescimento do
mercado livre não é privilégio somente dos países desenvolvidos. Na Colômbia,
Guatemala e Panamá, quem consome acima de 100 kW pode escolher livremente seu
fornecedor. No Uruguai, o limite mínimo é de 250 kW, no Chile, de 500 kW, e na
Bolívia e Peru, 1.000 kW59.
No Brasil, a única ampliação que houve no ACL desde a sua criação foi a
inclusão de consumidores especiais, definidos como aqueles cuja carga seja igual ou
maior que 500 kW e que adquiram energia de fontes incentivadas. Ou seja, pelo lado da
demanda tem havido estímulos insuficientes para a ampliação do ACL.
Em relação à oferta, na maioria dos leilões de energia nova de fonte
hidroelétrica, a parcela destinada ao atendimento do mercado livre está limitada a 30%.
A manter essa prática, no longo prazo, o ACL ficará limitado a consumir 30% da
produção da geração hidroelétrica, justamente a fonte de energia mais barata e de maior
interesse para tornar a indústria nacional mais competitiva no mercado internacional.
58
59
A participação mínima foi de 23,2%, em 2009, e a máxima, de 27,5% em 2007.
Informação disponível em: http://mercadolivredeenergia.com.br/post/mercado-livre-de-energia-eletrica/
94
Expansões mais acentuadas do mercado livre podem se tornar inviáveis, pois a carência
de oferta fará com que o preço no mercado livre deixe de ser competitivo.
Outro fator que pode comprometer o desenvolvimento do mercado livre
no médio e no longo prazos é o seu uso para viabilizar preços baixos de energia no setor
regulado. Conforme argumenta Rego (2012)60, os leilões de energia nova dos grandes
projetos estruturantes, como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau foram viabilizados com
um preço surpreendentemente baixo, em grande parte, porque as concessionárias
esperam recuperar receita vendendo energia mais cara no ACL, compensando, assim, as
baixas margens obtidas no mercado regulado.
Ocorre que esse é um equilíbrio instável. Se o preço no ACL tornar-se
sistematicamente superior ao do mercado regulado, as empresas do mercado livre
tenderão a retornar para o mercado cativo. Reconhece-se que há fortes restrições à
mobilidade: a empresa tem de comunicar à distribuidora a intenção de voltar para o
mercado regulado com antecedência mínima de cinco anos. No longo prazo, entretanto,
tais regras não impedirão tal retorno.
Por fim, o ACL pode também ser vítima de uma melhora do ambiente
macroeconômico. O que se viu na última década foi o encolhimento da participação da
indústria no PIB. Como os clientes do ACL são majoritariamente do setor industrial,
isso ajuda a explicar a relativa estabilidade da participação do ACL no consumo
agregado de energia.
Em parte, o encolhimento da participação da indústria no PIB deve-se a
fatores de longo prazo. Mas há causas conjunturais que, uma vez devidamente
encaminhadas, podem permitir uma recuperação de nossa atividade industrial. Mais
especificamente, a retomada do crescimento nas economias centrais propiciará maior
demanda por nossas exportações; uma maior preocupação com estabilidade fiscal
permitirá maior depreciação do câmbio; e um aumento de investimentos em
infraestrutura permitirá aumentar a competitividade da indústria nacional.
Rego, Erik Eduardo: “Proposta de aperfeiçoamento da metodologia dos leilões de comercialização de
energia elétrica no ambiente regulado: aspectos conceituais, metodológicos e suas aplicações.” Tese de
Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2012.
60
95
Se a produção industrial brasileira vier a crescer em ritmo mais forte, a
demanda por energia no ACL tenderá a crescer mais rapidamente do que a demanda
geral por energia. Nesse cenário, restrições à oferta elevarão o preço da energia no
mercado livre, eventualmente, tornando-a mais alta do que no mercado regulado. O alto
custo da energia no ACL poderá não somente inviabilizar a expansão do mercado livre,
poderá mesmo prejudicar a expansão da indústria, retirando parte significativa de
eventuais ganhos de competitividade.
A mais recente ameaça à expansão e até à manutenção do mercado livre
no médio prazo é a conversão da energia das hidrelétricas, que, nas concessões que
estão sendo renovadas, vem sendo alocada, em cotas, somente para o ambiente
regulado. A manter-se essa tendência, o mercado livre terá ainda menor disponibilidade
da fonte de energia mais barata e flexível. Cabe ressaltar que a simples alocação de
cotas para o mercado livre não pode ser encarada como a solução para esse problema,
tendo em vista os problemas apontados anteriormente. É necessário endereçar uma
solução para a disponibilidade de energia hidroelétrica para o mercado livre nos
processos de renovação de concessões que ocorrerão a partir de 2017.
96
Capítulo III - O marco regulatório do setor elétrico brasileiro
III.1 – Introdução
No Capítulo I vimos que, por considerações fiscais e de eficiência, o
capital privado tem um papel imprescindível na oferta de energia elétrica brasileira. No
Capítulo II discutimos a precificação eficiente da energia. Neste Capítulo veremos como
o marco regulatório do setor elétrico tem evoluído no Brasil, tanto no que diz respeito à
participação do setor privado, como à precificação da energia.
O setor elétrico brasileiro vem passando por profundas modificações nos
últimos vinte anos. Iniciou-se na década de 1990, com uma reforma de cunho liberal
que permitiu a entrada de capital privado, com o objetivo de retomar os investimentos e
eliminar diversas distorções que vinham se acumulando.
Em 2003, novas alterações foram feitas no marco regulatório. Ainda que
algumas medidas fossem na direção de liberalizar o mercado, como a criação do
Ambiente de Contratação Livre (ACL), de forma geral essa reforma aumentou o
predomínio do Governo Federal sobre o setor elétrico, com enfraquecimento da agência
reguladora e o retorno ativo de estatais federais aos leilões de novos empreendimentos
de geração e transmissão.
Em 2012, a Medida Provisória (MP) nº 579, convertida posteriormente
na Lei nº 12.783, de 2013, inaugurou o que alguns analistas denominam de novíssimo
modelo do setor elétrico. Esse normativo, junto com outros que se seguiram, permitiu a
renovação de concessões sem licitação, desde que as empresas aceitassem as condições
impostas pelo Governo. Além disso, dentro de um contexto de busca por modicidade
tarifária, o Tesouro Nacional passou a subsidiar a tarifa de energia, dentro de uma
estratégia de impedir que aumentos de custos chegassem ao consumidor final.
Este Capítulo está dividido em três seções, além desta Introdução. A
Seção III.2 descreve a evolução do marco legal do setor elétrico nos últimos vinte anos,
com ênfase no modelo introduzido em 1995 e na reforma do primeiro Governo Lula, em
2003 e 2004.
97
A Seção III.3 descreve a Medida Provisória (MP) nº 579, de 2012, e seus
principais objetivos, e analisa os custos decorrentes das mudanças propostas. Como
veremos, de uma estimativa inicial, contida na Exposição de Motivos da MP, de R$ 3,6
bilhões, atingiu-se uma conta que deverá ultrapassar R$ 10 bilhões, em 2013, e chegar a
até R$ 20 bilhões em 2014.
Já a Seção III.4 trata de medidas que o Governo Federal vem tomando
para impedir que aumento de custos no setor sejam repassados ao consumidor. Trata-se
da assunção, pelo Tesouro (via aportes na Conta de Desenvolvimento Energético), dos
custos decorrentes do despacho de energia elétrica pelas usinas térmicas, de custo mais
alto do que as hidroelétricas. Também nesse contexto, discutiremos a Resolução CNPE
nº 3, de 2013, que tentava obrigar todos os agentes de geração e comercialização de
energia elétrica a pagar metade dos custos decorrentes do acionamento das usinas
térmicas. Essa Resolução trouxe algo relativamente raro no setor elétrico do País: a
judicialização. A guerra judicial teve consequências graves, como a paralisação da
Câmara de Comercialização de Energia (CCEE) por dois meses.
III.2 – A Evolução do Marco Legal
Para entender a reforma da legislação do setor elétrico brasileiro,
promovida a partir de 1995, é importante mostrar como o modelo de negócios que
vigorava até então se mostrou totalmente inadequado para garantir o crescimento da
oferta de energia elétrica no País. Conforme descrito no relatório final da Comissão
Especial Mista do Congresso Nacional destinada a estudar as causas da crise de
abastecimento de energia no país61, concluído em 2002, o financiamento da expansão do
setor elétrico brasileiro apoiava-se, até certo momento, em recursos orçamentários, em
empréstimos externos e na receita própria do setor.
A crise da dívida pública, que se agravou na década de 1980, impediu os
investimentos orçamentários, bem como a tomada de novos empréstimos pelas
empresas estatais. Somou-se a isso uma enorme inadimplência intrassetorial, que
debilitava as empresas do setor, estatais na sua ampla maioria.
61
A Crise de Abastecimento de Energia Elétrica, Relatório, 2002, Senado Federal, disponível em
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=57728.
98
Essa inadimplência, é relevante notar, foi fruto de uma frustrada tentativa
de fazer da política tarifária do setor elétrico um mecanismo de contenção da inflação.
Aliou-se a isso o fato de que as distribuidoras estaduais frequentemente deixavam de
honrar o pagamento das aquisições de energia feitas junto às geradoras federais,
valendo-se de influência política. Tarifas inadequadas e calotes levaram ao “rombo”
finalmente debitado ao Tesouro.
Para se ter uma ideia de valores, a utilização da contenção tarifária como
instrumento de controle da inflação e a inadimplência intrassetorial geraram um rombo
de US$ 26 bilhões, valor entre 20% e 25% da dívida nacional da época, que só veio a
ser equacionado pela Lei nº 8.631, de 1993. Essa Lei proporcionou um encontro de
contas entre Estados e União, coberto com recursos do Tesouro. Ainda assim, os
investimentos seguiram paralisados.
De outra parte, mesmo que a Constituição de 1988 houvesse previsto a
concessão de serviços públicos em seu art. 175, a legislação necessária para que isso
fosse feito ainda não existia. Assim, entre 1988 e 1995, quando foram finalmente
aprovadas as Leis nºs. 8.987 e 9.074, nenhuma concessão nova para empreendimento de
geração de energia elétrica no País foi outorgada para produção independente.
Pouco se acresceu ao parque gerador no período, o mesmo ocorrendo
com a chamada Rede Básica de Transmissão, que interliga todo o Sistema Elétrico
Brasileiro. A falta desses investimentos e dessas obras seria uma das causas do
racionamento de energia elétrica experimentado em 2001, ao lado de uma grande
estiagem, como descrito no mencionado relatório. Como se sabe, a falta de
investimentos leva tempo para produzir efeitos.
Foi esse ambiente de baixo nível de investimentos e de um longo período
de descapitalização das empresas que levou a uma enorme reforma na legislação do
setor elétrico a partir de 1995. Havia uma clara diretriz do novo Governo de privatizar o
setor elétrico, que encontrou forte resistência nos anos seguintes, principalmente por
parte da oposição e da corporação estatal.
A proposta de novo arcabouço legal para o setor foi elaborada pela
consultoria Coopers&Librand, sendo, depois, submetida pelo Ministério de Minas e
Energia a uma ampla consulta pública, da qual participaram centenas de experientes
99
técnicos do setor. Só depois disso a proposta foi enviada ao Congresso Nacional, onde,
graças ao debate prévio havido, foi rapidamente aprovada.
A reforma, de natureza liberal, permitiu o ingresso da iniciativa privada
nos negócios do setor elétrico (Lei de Concessões, regulamentando a Constituição de
1988), notadamente nas atividades de geração e transmissão, mediante licitação de
novas concessões.
Os primeiros movimentos governamentais foram de privatização das
concessionárias de distribuição, estatais estaduais na sua larga maioria, o que resultou
na venda de distribuidoras responsáveis por cerca de 85% do mercado nacional. O
segmento de geração da Eletrosul, subsidiária da Eletrobras, também foi vendido. Foi,
entretanto, a única geradora federal licitada, junto com parte do parque gerador da
CESP, do Governo de São Paulo. As demais geradoras e as linhas de transmissão
existentes seguiram sob controle estatal, via subsidiárias da Eletrobras.
Na margem, entretanto, a participação do setor privado aumentou.
Criaram-se leilões de linhas de transmissão, a partir de 1999, no modelo que perdura até
hoje. Entre 1996 – considerando-se as obras que já vinham em andamento – e 2002
foram agregados novos 11.144 quilômetros62 de linhas à Rede, o que contribuiu para
aumentar a segurança do sistema.
Buscou-se a retomada de 22 empreendimentos de geração já outorgados,
mas que não saiam do papel, num total de 11.549 MW, dos quais 10.489 MW
provenientes de hidrelétricas e 1.060 MW de térmicas, segundo dados da Agência
Nacional de Energia Elétrica. A condição para isso era que 1/3 dos investimentos
fossem privados. A participação do investimento privado nesses empreendimentos
acabou chegando, em média, a 2/3, tal o interesse que despertaram, dada a nova
legislação.
Ao mesmo tempo, foram criados leilões de novos empreendimentos de
geração, em regime de maior lance pelo Uso de Bem Público (UBP). O Governo
Federal precisava arrecadar, frente à crise fiscal, e esse era o modelo que melhor lhe
62
Boletim
Energia
nº
387,
Agência
Nacional
de
http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/noticias_boletim/boletins/boletim_387.html,
06/11/2009.
Energia
Elétrica,
acessado
em
100
convinha, embora tivesse maior impacto nas tarifas ao consumidor, já que os custos dos
lances seriam repassados às tarifas. Esse modelo, de maior ágio, também foi adotado,
pelos mesmos motivos, pelo Governo Federal, nos atuais leilões de privatização dos
principais aeroportos do País.
As reformas da década de 1990, contudo, não se limitaram às
privatizações e participação do capital privado nos novos investimentos. Antes
rigidamente controlado, o setor passou a ser mais livre e competitivo, com a criação das
figuras do Produtor Independente de Energia (livre para empreender e vender a energia
produzida), do Consumidor Livre (inicialmente só para grandes consumidores)63, do
comercializador (broker) e do Mercado Atacadista de Energia (MAE), onde seriam
fechados os negócios de compra e venda; a garantia do livre acesso às redes de
transmissão e de distribuição; a criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico
(ONS), agente público, neutro e regulado pela ANEEL; e a criação de uma agência
reguladora, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).
Outro importante pilar do arcabouço jurídico dessa reforma liberalizante
era a desverticalização do setor elétrico, com a segregação das atividades de geração,
transmissão, distribuição e comercialização. Pelas dificuldades inerentes ao processo de
implantação dessas regras, inclusive com reação das empresas, que não queriam perder
vantagens, a desverticalização somente foi consolidada em 2003, com as novas regras
instituídas no Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio de Medida
Provisória. O que vinha sendo implantado gradualmente, por meio de negociação, foi
imposto pelo Governo.
63
Atualmente, todos os consumidores com carga superior a 3.000 kW, atendidos em tensão igual ou
superior a 69 kV, podem optar pela contratação do fornecimento de qualquer empresa concessionária,
permissionária ou autorizada para a comercialização. A redução de tais limites chegou a ser estudada pela
Aneel. A proposta previa que, a partir de 2003, seriam livres todos os consumidores atendidos em tensão
primária de distribuição e com demanda contratada igual ou maior que 500 kW. A partir de 1º de janeiro
de 2005, todos os consumidores, em qualquer classe de tensão ou carga/demanda, passariam a exercer a
opção de serem livres. Esse mecanismo deveria estabelecer a concorrência de preços e qualidade do
serviço no setor.
101
Por essas novas regras do Governo Lula, a distribuição passou a estar
segregada da geração e da transmissão. As empresas tiveram um prazo para se adaptar
ao novo ambiente, em que somente a geração continuou sendo considerada competitiva,
com seus preços fixados em leilões com preço-teto. A geração e a transmissão poderiam
estar verticalmente integradas, desde que a contabilização e a apropriação dos custos
dessas atividades fossem inteiramente separadas. A autocontratação (compra de energia
por distribuidoras a geradoras do mesmo grupo) passou a não ser mais permitida, com
exceção dos concessionários com mercado inferior a 300 GWh/ano, que ficaram
autorizados a adquirir energia das Pequenas Centrais Hidrelétricas - PCHs64.
A principal premissa do modelo instituído a partir de 1995 era que a
competição, estimulada pela liberdade de escolha do consumidor final de energia,
deveria contribuir, junto com a regulação feita pela Agência, para o aumento da
eficiência, para a queda dos preços e para a melhoria da qualidade do serviço.
Todo esse esforço, no entanto, não foi suficiente para superar a falta de
investimentos de mais de uma década. Veio a crise de abastecimento de 2001, que
contribuiu para a vitória da oposição, francamente contrária à privatização, em 2002.
A vitória do PT, em 2002, pôs em marcha o processo de mudança da
legislação, liderado pela então Ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. O simples
anúncio de mudança de regras, feito em 6 de fevereiro de 2003, paralisou os
investimentos no setor. Todos queriam conhecer as novas regras de negócios antes de os
continuar realizando. A mudança, propriamente dita, somente viria em 11 de dezembro
daquele ano, por meio das Medidas Provisórias nos 144 e 145 – transformadas nas Leis
nos 10.847 e 10.848, respectivamente, em 15 de março de 2004, após duros embates no
Congresso – e dos decretos que as regulamentaram.
As intenções do Governo foram claramente explicitadas na Exposição de
Motivos da Medida Provisória nº 144/2003:
“2. Os objetivos primordiais das mudanças propostas
são a correção das deficiências diagnosticadas no Sistema Elétrico
64
Teodoro, Dilma M., A reestruturação do setor elétrico brasileiro e os reflexos em uma empresa estatal:
um estudo de caso nas Centrais Elétricas de Santa Catarina – CELESC, disponível em
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/88350/236828.pdf?sequence=1
102
brasileiro e a adequação de rumos tomados no passado que
comprometeram a eficácia do planejamento e inibiram os investimentos
na expansão desse Setor, necessários para dar suporte ao crescimento
econômico e ao desenvolvimento social do País.
3. Os princípios básicos para um arranjo institucional
adequado ao Setor Elétrico devem permitir atender às seguintes
finalidades: modicidade tarifária para os consumidores; continuidade e
qualidade na prestação do serviço; justa remuneração aos investidores,
de modo a incentivá-los a expandir o serviço; universalização do
acesso aos serviços de energia elétrica e do seu uso.”.
Vale notar a premissa falaciosa de que “...rumos tomados no
passado(...)inibiram os investimentos na expansão desse Setor...”, quando ocorreu
exatamente o inverso. Independentemente da correção ou não do diagnóstico, o fato é
que, passados dez anos, nenhum dos objetivos declarados das mudanças foi atingido: as
tarifas continuam elevadas e os recentes alívios, como a redução de 20% no Ambiente
de Contratação Regulada (ACR) somente vem se viabilizando a custa de generosos
subsídios do Tesouro e prejuízos impostos a algumas geradoras; os apagões estão aí a
atormentar a população, principalmente por falta de investimentos das estatais na
construção e na manutenção das linhas de transmissão; os investidores reclamam da
remuneração proposta pelo Governo; a universalização ainda não foi atingida, embora
também largamente subsidiada; e a qualidade do serviço vem caindo.
A Lei nº 10.848, de 2004, introduziu inúmeras alterações na legislação do
setor, entre as quais merecem ser destacadas as seguintes: (i) tornou obrigatória a
participação das concessionárias de distribuição em leilões para compra de 100% da
energia necessária à expansão do seu mercado, mediante contratos de longo prazo no
ambiente de contratação regulada (ACR); (ii) obrigou os investidores de geração a
vender energia ao mercado regulado somente através desses leilões; (iii) criou o
ambiente de contratação livre (ACL), onde produtores independentes de energia e
consumidores livres e especiais podem negociar livremente a energia; (iv) transformou
o Mercado Atacadista de Energia, cuja criação fora autorizada pela Lei nº 10.433, de
2002, em Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE); (v) destinou 3% da
103
Reserva Global de Reversão (RGR)65 e 20% dos recursos de P&D (vide Lei nº 9.991, de
2000) para a Empresa de Pesquisa Energética; e (vi) criou a Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), com o objetivo de elaborar estudos e pesquisas destinados a subsidiar
o planejamento do setor energético.
É importante mencionar, também, o Decreto nº 5.163, de 2004, baixado
pelo Governo em função da nova legislação, que regulamentou a comercialização de
energia elétrica, o processo de outorga de concessões e de autorizações de geração de
energia elétrica e deu outras providências.
Por último, o Decreto nº 5.177, de 2004, regulamentou o funcionamento
da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), destinada a viabilizar a
comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional, tanto no Ambiente
de Contratação Regulada (ACR), quanto no de Contratação Livre (ACL), além de
efetuar a contabilização e a liquidação financeira das operações realizadas no mercado
de curto prazo.
O predomínio do Governo Federal sobre o setor elétrico tornou-se
enorme com essas alterações na legislação. Tudo passou a acontecer sob a sua tutela e,
como consequência, a agência reguladora perdeu força. Como diretriz de Governo, as
empresas estatais federais voltaram a participar ativamente dos leilões de novos
empreendimentos de geração e de transmissão. O Capítulo IV discutirá em maior grau
de detalhes os problemas decorrentes do excesso de intervenção estatal nesses leilões.
A grande prioridade do Governo Federal era o Ambiente de Contratação
Regulada (ACR), no qual se abastecem as distribuidoras responsáveis pelo atendimento
à população e às empresas não participantes do mercado livre (ACL). Foi, portanto, um
movimento no sentido oposto ao que se defendia no governo anterior, de uma gradual
liberação do mercado, por meio da qual, no futuro, até mesmo os consumidores
residenciais poderiam escolher seus fornecedores de energia elétrica, a exemplo do que
ocorre na Europa e em outros países, como já visto.
65
Encargo criado com a finalidade de prover recursos para reversão e/ou encampação dos serviços
públicos de energia elétrica, como também para financiar a expansão e melhoria desses serviços. Foi
extinto pela MP nº 579, de 2012.
104
A primeira grande constatação a ser feita sobre a nova legislação foi que
ela deu ao Governo Federal um controle quase absoluto do setor. Se antes as licitações
de novos empreendimentos eram decididas pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel), um órgão de Estado, não subordinado ao Governo, a partir de 2004, a Aneel
passou somente a operacionalizar os procedimentos licitatórios, seguindo as
determinações que lhe fossem dadas pelo Governo.
A concentração dos poderes nas mãos do Governo Federal podem gerar
importantes conflitos de interesse. Por exemplo, decisões relativas ao volume de energia
a ser licitado, bem como aos contratos com as concessionárias podem estar
subordinadas a objetivos não diretamente relacionados com a oferta e segurança
energéticas, como o controle da inflação. Similarmente, há um óbvio conflito de
interesses dentro do governo, na sua dupla condição de formulador da política
energética e de controlador da Eletrobras: nada impede que a política energética venha a
ser decidida no sentido de favorecer a estatal, ainda que em prejuízo do setor como um
todo.
Uma alteração importante no novo modelo foi a alteração do critério de
outorga, que passou do maior valor pago pelo Uso de Bem Público (UBP) para a menor
tarifa oferecida, ainda que os vencedores dos leilões continuem pagando taxas por UBP.
Esse critério tem o mérito de permitir redução das tarifas e permite, em tese, que o
produtor mais eficiente passe a fornecer energia. No Capítulo II, entretanto, vimos que
nem sempre o leilão de menor tarifa garante que o agente mais eficiente irá vencer o
leilão. No Capítulo IV veremos que, na experiência brasileira recente, houve, de fato,
situações em que a busca excessiva por modicidade tarifária levou ao desalinhamento de
preços e a leilões em que o licitante vencedor não teve condições de cumprir os
compromissos assumidos.
III.3 – As alterações recentes no marco regulatório da energia elétrica – a MP 579
A edição da Medida Provisória nº 579, de 2012, introduziu o que alguns
analistas vêm denominando de novíssimo marco regulatório. Em verdade, o alcance da
MP deveria ser bem mais modesto: trataria, basicamente, de permitir a prorrogação do
105
contrato de concessão para as empresas que concordassem com os termos propostos.
Entretanto, o alcance foi bem mais amplo.
Em primeiro lugar, porque o Governo sinalizou que, em futuras
renovações de concessões, as empresas somente serão remuneradas pelos serviços de
operação e manutenção. Em segundo lugar, porque o Governo passou a assumir
diretamente parte do custo das tarifas, em uma política clara de tentar controlar seu
preço final ao consumidor.
A seguir, discutiremos as principais alterações introduzidas pela MP nº
579, de 2012. Na segunda, avaliaremos os custos, para o Tesouro e para as empresas do
setor, decorrentes da MP e da política de controle de preços.
III.3.1 – As alterações produzidas pela Medida Provisória nº 579, de 2012
"Vou ter o prazer de anunciar a mais forte redução que se tem notícia
neste país, nas tarifas de energia elétrica das indústrias e dos consumidores domésticos.
A medida vai entrar em vigor no início de 2013. A partir daí, todos os consumidores
terão sua tarifa de energia elétrica reduzida. Ou seja, a sua conta de luz vai ficar mais
barata. Os consumidores residenciais terão uma redução média de 16,2%. A redução
para o setor produtivo vai chegar a 28% (...).".
Foi, literalmente, com essas palavras que a presidente da República,
Dilma Rousseff deu início à série de mudanças regulatórias por meio do
pronunciamento oficial de 7 de setembro de 201266.
A ação governamental necessária a que essa redução acontecesse se
consubstanciou na Medida Provisória nº 579, de 2012. Aproveitando o fato de que
grande parte das concessões de geração e transmissão de energia elétrica vence até
2015, o Governo Federal decidiu oferecer aos atuais concessionários a possibilidade de
renovação antecipada das concessões, condicionando essa renovação à redução das
tarifas, segundo regras que propôs.
66
CanalEnergia, 06/09/2013, in “MP 579: um ano do 11/9 do setor elétrico”.
106
Isso se tornaria possível porque as tarifas de geração passariam, como já
visto, a remunerar tão somente os custos de O&M das usinas e dariam uma margem de
remuneração ao seu operador. Além disso, o Governo extinguiu e reduziu encargos
setoriais, como a RGR e a Conta de Consumo de Combustíveis para os Sistemas
Isolados (CCC)67.
É importante registrar que, embora a Medida não tenha recebido maiores
contestações, exceto quanto ao uso de Medida Provisória pelo Governo e ao pouco
tempo para a opção dos agentes, o caminho natural previsto na legislação e desejável
numa economia de mercado seria o da licitação dessas concessões antes do seu término,
de modo que o próprio mercado decidisse o valor dos serviços prestados, segundo sua
lógica de negócios.
O Governo deu prazo exíguo, de apenas trinta dias, aos concessionários
para manifestar adesão à sua proposta. O texto da Lei nº 12.783, de 2013, em que foi
convertida a MP 579, determinava o seguinte:
Art. 11. As prorrogações referidas nesta Lei deverão ser
requeridas pelo concessionário, com antecedência mínima de 60 (sessenta) meses da data
final do respectivo contrato ou ato de outorga, ressalvado o disposto no art. 5 o.
§ 1o Nos casos em que o prazo remanescente da concessão for
inferior a 60 (sessenta) meses da publicação da Medida Provisória n o 579, de 2012, o
pedido de prorrogação deverá ser apresentado em até 30 (trinta) dias da data do início de
sua vigência.
§ 2o A partir da decisão do poder concedente pela prorrogação,
o concessionário deverá assinar o contrato de concessão ou o termo aditivo no prazo de
até 30 (trinta) dias contados da convocação.
§ 3o O descumprimento do prazo de que trata o § 2 o implicará a
impossibilidade da prorrogação da concessão, a qualquer tempo.
§ 4o O contrato de concessão ou o termo aditivo conterão
cláusula de renúncia a eventuais direitos preexistentes que contrariem o disposto nesta Lei
A decisão governamental foi amparada, de acordo com Exposição de
Motivos da Medida, em “estudos e avaliações sobre os ativos dessas concessões [que]
demonstraram que a maioria desses ativos encontra-se fortemente amortizada e
depreciada, proporcionando aos consumidores de energia elétrica do País a
67
Subsídio cruzado destinado a custear a geração de energia por fontes térmicas nos sistemas isolados,
localizados, em geral, na Região Norte do País. É gerido pela Eletrobras.
107
possibilidade de se beneficiarem, agora, de menores tarifas para a utilização da energia
elétrica, insumo básico para o setor produtivo e serviço essencial para a sociedade.”.
Desse modo, ainda segundo a Exposição, a MP “busca a captura da
amortização e depreciação dos investimentos realizados nos empreendimentos de
geração e nas instalações de transmissão e de distribuição de energia elétrica,
alcançados pelos artigos 19 e 22 e pelo § 5º do art. 17 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de
1995, em benefício da modicidade tarifária, e visa garantir a segurança energética,
pilares do modelo atual.”. Transferia, assim, de imediato, os ganhos das geradoras para
os consumidores.
Em linhas gerais, a MP tratou de:
i)
prorrogar as concessões vincendas de geração, transmissão e
distribuição de energia elétrica pelo prazo máximo de até 30 anos e as concessões de
geração de energia termelétrica pelo prazo máximo de até 20 anos, por uma única vez,
desde que as atuais concessionárias aceitassem as condições impostas;
ii)
facultar ao segmento de autoprodução a prorrogação, uma única
vez, das concessões de usinas hidrelétricas com potência inferior a 50 MW, pelo prazo
máximo de até 30 anos e a título oneroso, desde que toda a energia produzida seja
destinada para consumo próprio;
iii)
explicitar que as concessões que não forem prorrogadas seriam
iv)
dar diretrizes à questão da indenização dos investimentos
licitadas;
vinculados a bens reversíveis ainda não amortizados ou não depreciados, definindo a
metodologia de valor novo de reposição para calculá-la. Essas indenizações deveriam
ser pagas com recursos da Reserva Global de Reversão (RGR). Caso fossem
insuficientes, os custos ainda a serem amortizados continuariam sendo incluídos nas
tarifas;
v)
permitir a antecipação, em até cinco anos, dos pedidos de
prorrogação a serem apresentados pelos titulares das concessões vincendas (parte da
108
negociação envolveu a garantia de renovação da concessão desde que o concessionário
aceitasse antecipar a renovação nos termos propostos pelo Governo);
vi)
estabelecer redução de encargos setoriais como a Conta de
Desenvolvimento Energético – CDE68 e a Conta de Consumo de Combustíveis – CCC,
bem como a extinção do recolhimento das cotas da Reserva Global de Reversão – RGR
para os contratos de geração, transmissão e distribuição prorrogados no âmbito da MP69;
vii)
estabelecer que a CDE deverá prover recursos para: a) subvenção
econômica aos consumidores de baixa renda; b) promoção da universalização do
serviço de energia elétrica; c) dispêndios da Conta de Consumo de Combustíveis –
CCC; d) reembolso às usinas termelétricas que utilizam carvão nacional como
combustível; e) promoção da competitividade da energia elétrica a partir de fontes
alternativas; e f) eventual necessidade de indenização aos concessionários de energia
elétrica por ocasião da reversão das concessões;
viii)
determinar o uso de até R$ 3,3 bilhões de créditos que a União e
Eletrobras detêm contra Itaipu70 para financiar os gastos decorrentes da redução ou
eliminação de encargos setoriais;
ix)
retirar do consumidor final de energia elétrica os efeitos da
variação cambial decorrentes do uso da energia de Itaipu, por meio de operações
financeiras entre a Eletrobras e o Tesouro, que transfiram, para esse último, o impacto
da depreciação cambial sobre as tarifas. Isso decorre do fato de que a tarifa de repasse
de Itaipu é fixada anualmente em dólares americanos. A variação cambial era
acumulada durante o ano e repassada ao consumidor final a cada reajuste tarifário, o que
passou a ser, a partir da edição da MP, custeado pelo Tesouro.
68
A CDE é um fundo setorial que tem seus objetivos fixados no art. 13 da Lei nº 10.438, de 2002, com
alterações introduzidas, entre outras, pelas Leis nos 12.783 e 12.839, de 2013 (oriundas das MPs.
579/2012 e 609/2013, ambas mencionadas neste texto).
69
O Governo reorganizou os encargos setoriais: extinguiu a RGR para os contratos de geração,
transmissão e distribuição prorrogados no âmbito da MP; inseriu o custeio da CCC no âmbito da CDE,
que, por sua vez, ganhou nova fonte de recursos (créditos da União contra a Itaipu Binacional), o que
diminui o seu impacto nas tarifas ao consumidor. Além disso, fixou na MP os objetivos da CDE, alguns
pré-existentes e outros novos, de forma a disciplinar em definitivo o funcionamento dessa Conta.
70
Para viabilizar sua construção, a Itaipu Binacional contraiu dívida junto à Eletrobras e à União na
década de 1970. O Tesouro e a Eletrobras recebem, em conjunto, cerca de R$ 2,3 bilhões anualmente.
Esse débito deverá ser quitado somente em 2023.
109
A Exposição de Motivos da MP destacou ainda que não haveria impactos
para o exercício de 2012. Para o exercício de 2013, estimou impacto de R$ 3,3 bilhões
com a Medida, a serem custeados pelo Orçamento. Para o exercício de 2014, calculou
um gasto de R$ 3,6 bilhões, sendo R$ 3,3 bilhões correspondentes aos créditos que a
Eletrobras e o Tesouro Nacional detêm junto à Itaipu, e R$ 300 milhões
correspondentes às operações entre Eletrobras e Tesouro Nacional para atenuar os
efeitos cambiais da tarifa de Itaipu. E concluiu acrescentando que “dessa forma, os
efeitos da redução do custo de energia elétrica, conforme citado anteriormente, trarão
uma série de benefícios com destaque para a redução do custo para as empresas, o que
propiciará o aumento do poder aquisitivo da sociedade com a redução de preços ao
consumidor final.”.
Contudo, as coisas não ocorreram conforme o Governo havia planejado.
Várias empresas, em especial, as estatais estaduais Cesp, Cemig e Copel – responsáveis
por cerca de 40% da geração elegível para prorrogação de contratos, nos termos da MP
– não aderiram ao plano proposto e esse fato ameaçou a redução tarifária prometida pela
Presidente Dilma Rousseff em seu pronunciamento de 7 de setembro de 2012. Essa
atitude das geradoras estaduais faria com que as suas tarifas – parcela considerável dos
custos de geração que se tinha expectativa de reduzir – não alcançassem a redução
considerável ensejada pela adesão às regras da MP.
Adicionalmente, a má hidrologia em 2012 obrigou o acionamento de
térmicas, cuja energia é mais cara, para garantir o abastecimento energético71. Para
evitar que as tarifas fossem aumentadas, o Tesouro assumiu o aumento de custo.
Todos esses fatores somados fizeram com que, em vez dos R$ 3,6
bilhões inicialmente previstos, a conta atingisse R$ 15 bilhões72, em 2013, além de R$ 9
bilhões já orçados para 2014, que, provavelmente, necessitarão ser suplementados em
função do maciço despacho de térmicas, já a partir de janeiro, em decorrência da
escassez de chuvas. Para garantir o cumprimento de pelo menos parte da promessa, a
71
Quando os reservatórios das hidrelétricas chegam a determinado nível de esvaziamento, as
termelétricas, que funcionam como reserva segura de geração, são acionadas para garantir o
abastecimento. Mesmo as térmicas mais baratas têm um custo de geração de, no mínimo, o dobro das
hidrelétricas. Contudo, por razões de segurança energética, o Governo pode decidir o despacho das
termelétricas fora da ordem de mérito econômico, como aconteceu em 18 de outubro de 2012.
72
Esse valor corresponde aos R$ 10 bilhões transferidos pelo Tesouro e os R$ 5 bilhões transferidos pela
RGR.
110
presidente da República lançou mão de recursos do Tesouro. Para tanto, editou o
Decreto nº 8.020, de 2013, e a Medida Provisória nº 609, também de 2013, que foi
convertida na Lei nº 12.839, para permitir que os recursos da CDE pudessem ser
utilizados também para compensar descontos aplicados sobre as tarifas de energia
elétrica, bem como para compensar os efeitos da não adesão das geradoras que optaram
por não prorrogar seus contratos.
Na próxima seção discutiremos mais detalhadamente os impactos
financeiros da MP 579, tanto para o Tesouro, como para as empresas.
III.3.2 – Os custos decorrentes da MP 579 e da política de contenção de tarifas
O objetivo desta seção é mostrar que parte significativa dos custos
decorrentes da MP e de outras ações do Governo para controlar as tarifas recaiu sobre o
Tesouro e sobre o setor elétrico. Como se sabe, o principal objetivo da MP era reduzir o
custo da energia ao consumidor final. Essa redução teria importantes impactos positivos
sobre a economia:
i)
aumento da renda real dos consumidores pessoas físicas,
significando ganho de bem estar;
ii)
redução de custos para a indústria, gerando ganhos de
competitividade e, possivelmente, aumento da atividade econômica e do emprego;
iii)
redução da inflação, aliviando pressões sobre a política
monetária, o que também contribuiria para dinamizar a atividade econômica.
A lógica que embasou a MP 579 foi a possibilidade de redução tarifária
por dois canais:
i)
eliminação da parcela associada à depreciação dos investimentos
nas tarifas de energia das geradoras e transmissoras que aderiram aos termos da MP;
ii)
supressão ou redução de encargos.
111
Além desses, outros três mecanismos foram utilizados para garantir a
meta de redução da tarifa ao consumidor final em torno de 20%:
iii)
nem todas as geradoras que aderiram aos termos da MP haviam
depreciado integralmente seus ativos objeto de reversão. A solução encontrada pelo
Governo foi excluir das tarifas as despesas de amortização referentes aos ativos ainda
não depreciados. Esse custo foi parcialmente suportado pelos fundos setoriais e pelo
Tesouro, e parcialmente suportado pelas empresas que não foram integralmente
indenizadas pelos ativos objeto de reversão;
iv)
houve geradoras que não aderiram aos termos da MP. Para
garantir a redução prometida nas tarifas, o Governo passou a assumir parte da diferença
entre o preço anteriormente cobrado por essas geradoras e seu custo de O & M;
v)
transferir para o Tesouro, geradoras e comercializadoras (para
essas últimas, por meio da Resolução nº 3, de 2013, do Conselho Nacional de Energia
Elétrica-CNPE) o custo decorrente do despacho de usinas termoelétricas. Observe-se
que essa desoneração não é consequência direta da MP 579, nem tampouco da Lei
12.783, que se originou da MP. Mas faz parte da lógica de redução das tarifas a
qualquer custo, que motivou a MP, e será tratada na Seção III.4 deste Capítulo.
Analisaremos, a seguir, com maior detalhamento os itens descritos
acima.
III.3.2.a Eliminação da parcela referente à depreciação dos investimentos nas
tarifas de energia
O fim da cobrança da depreciação dos investimentos foi, provavelmente,
o principal fator que propiciou a redução das tarifas. Isso decorre do fato de, no Brasil, o
prazo das concessões de usinas hidroelétricas ser de até 30 anos, período muito inferior
à efetiva vida útil da usina. As tarifas são calculadas de forma tal a permitir ao
empreendedor recuperar o capital investido no período da concessão. Ocorre que, finda
a concessão, as usinas ainda apresentam plena capacidade de operar. Há usinas em
operação há mais de 50 anos. Estima-se, por exemplo, que a vida útil de Itaipu seja
superior a 100 anos.
112
Além do descompasso entre o período de concessão e a vida útil da
usina, outra característica importante da atividade de geração é que o maior custo
incorrido é do investimento. Uma vez que o investimento esteja devidamente
remunerado, o custo de manutenção e operação (O & M) é muito baixo. Assim, de
forma simplificada, a evolução do custo de um empreendimento de geração ao longo do
tempo é extremamente descontínua. Nos seus primeiros trinta anos (ou durante o
período que durar a concessão inicial), o custo é extremamente elevado, pois é quando
todo o investimento é recuperado. A partir do término da primeira concessão, resta
somente O & M, e o custo cai abruptamente.
No caso específico das geradoras que participaram da renovação da
concessão no âmbito da MP, a tarifa média caiu de cerca de R$ 100,00/MWh para algo
em torno de R$ 30,00, ou seja, uma queda de 70%. Observe-se que essa redução de
custos ocorreu na geração, e não na distribuidora, que atende o consumidor final. Como
o custo de geração e transmissão é somente parte do custo total das distribuidoras (em
torno de 45%), e como nem todas as usinas aderiram à proposta do Governo ou
puderam reduzir seu preço73, o impacto final da redução dos custos de geração sobre a
tarifa ao consumidor foi bem menor, estimado em 13%74.
Na Subseção II.3.3 vimos que, para esse caso de descontinuidade de
custos, o correto é a tarifa embutir somente os custos de O & M após o capital ter sido
integralmente depreciado. O problema da MP foi ter imposto ao Governo (e, talvez, às
geradoras) o ônus decorrente da parcela dos investimentos que não havia sido ainda
depreciada. Dessa forma, reduziu artificialmente as tarifas, gerando os problemas de má
alocação discutidos no Capítulo II.
73
Várias usinas estão ainda na fase de recuperação do investimento. Itaipu, por exemplo, somente
amortizará seu investimento em 2023. Até lá, os consumidores de sua energia terão de continuar arcando
com os elevados custos da amortização e depreciação.
74
Vide: Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro. “Nota técnica explica as consequências da MP
579” disponível em: http://www.sengerj.org.br/posts/202-nota-tecnica-explica-as-consequencias-da-mp579
113
III.3.2.b – Eliminação de encargos da tarifa de energia
A Lei nº 12.783, de 2013, eliminou dois encargos da conta de energia – a
Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) e a Reserva Global de Reversão (RGR)75 –
e reduziu a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) a 25% do valor que
vigorava76. Adicionalmente, a Medida Provisória nº 609, de 2012, convertida
posteriormente na Lei nº 12.839, de 2013, alterou o art. 13 da Lei nº 12.438, de 2002,
para autorizar a CDE a prover recursos para compensar descontos aplicados nas tarifas
de energia elétrica e o efeito da não adesão à prorrogação de concessões de energia
elétrica.
Os efeitos da não adesão serão discutidos posteriormente. Exceto por
essa última, todas as medidas são meritórias, conforme será explicado adiante. No caso
da CCC, da CDE e dos descontos aplicados nas tarifas de energia elétrica, eliminam-se
subsídios cruzados que não deveriam mesmo existir. Já no caso da RGR, ela perde o
sentido quando as geradoras e as transmissoras passam a ser remuneradas somente por
O & M.
Até a edição da MP, a CCC era um encargo destinado a subsidiar a conta
dos consumidores de sistemas isolados (do Sistema Interligado Nacional - SIN),
situados no Norte do País. Por não terem acesso às linhas de transmissão do SIN, esses
sistemas isolados utilizam energia predominantemente térmica, muito mais cara que a
hidroelétrica. Para baratear a tarifa paga pelos consumidores desses sistemas isolados,
os recursos da CCC ajudam a subsidiar o custo do combustível utilizado pelas usinas
que os atendem.
Pode-se justificar a concessão desses subsídios utilizando argumentos de
integração nacional, pois o acesso à energia mais barata ajudaria a fixar o homem nas
75
Os dispêndios relativos à CCC passaram a ser debitados à CDE, conforme a nova redação para o inciso
III do art. 13 da Lei nº 10.438, de 2002. Já a RGR foi extinta para: i) as concessionárias e permissionárias
de serviço público de distribuição de energia elétrica; ii) as concessionárias de serviço público de
transmissão de energia elétrica licitadas a partir de 12 de setembro de 2012; e iii) as concessionárias de
serviço público de transmissão e geração de energia elétrica prorrogadas ou licitadas nos termos da Lei
12.783/2013.
76
A redução a 25% do valor original não foi diretamente imposta pela MP, mas foi consequência da
forma como as quotas-parte passaram a ser calculadas. A MP autorizou a União a destinar à CDE os
créditos que possui diretamente e indiretamente, via Eletrobras, junto à Itaipu Binacional. A quota-parte
das distribuidoras, cooperativas permissionárias e transmissoras seria calculada a partir da diferença entre
as necessidades de recursos do fundo e a arrecadação proporcionada pelos créditos de Itaipu e outras
fontes, como multas aplicadas pela Aneel. Ao fazer o cálculo, chegou-se à redução de 75% da quota-parte
das distribuidoras, que impacta diretamente a tarifa ao consumidor final.
114
regiões mais remotas, como já dito. Adicionalmente, a CCC pode ter um impacto
positivo sobre a distribuição de renda, tendo em vista que a renda média dos moradores
das regiões isoladas tende a ser menor do que no restante do País. Destaque-se que
algumas áreas isoladas são áreas relevantes do ponto de vista de ocupação demográfica
e econômica. Manaus, por exemplo, somente foi interligada ao SIN em 2013. Até então
era abastecida pela Usina de Balbina, mas dependia fortemente de energia térmica.
Já a CDE é utilizada majoritariamente para subvencionar a tarifa de
energia para população de baixa renda e para promover a universalização do acesso77,
além das destinações descritas na Seção III.1. Em 2013, a CDE também passou a
financiar a CCC, a compensação referente às geradoras que não aderiram à MP 57978, e
os encargos decorrentes do acionamento das usinas térmicas.
Várias categorias de consumidores usufruem de descontos tarifários.
Sãos os casos de consumidores de baixo poder aquisitivo; de energia adquirida de
empreendimentos hidroelétrico com potência igual ou inferior a mil kW ou de outras
fontes incentivadas; de energia para uso de irrigação e aquicultura; para empresas
fornecedoras de serviços de água, esgoto e saneamento; para consumidores rurais etc.
Até a edição da MP 609, de 2013, quem pagava por esses descontos eram
os demais consumidores da mesma área de distribuição, ou seja, havia um subsídio
cruzado. Com a edição da MP (e, posteriormente, com sua conversão na Lei nº 12.839,
de 2013) esses descontos passaram a ser custeados pela CDE.
Nos casos apresentados anteriormente, há um subsídio cruzado. A CCC
faz com que o consumidor das regiões isoladas seja subsidiado por todos os
consumidores do Sistema. A CDE faz com que o consumidor de energia de maior renda
ajude a pagar a conta do consumidor de menor poder aquisitivo79. Não há qualquer
justificativa econômica para que isso ocorra. Por que é que quem utiliza o ferro elétrico
em São Paulo quem deve ajudar a pagar a conta de quem utiliza microondas no interior
77
Ver Abrace: “Encargos Setoriais”. 3ª edição. Acessível para download em:
http://www.cni.org.br/portal/data/pages/FF808081272B58C001273386EAA80353.htm
78
Vide discussão na Subseção III.3.2.d.
79
Estamos nos referindo aqui somente ao uso dos recursos da CDE, financiados pelo consumidor de
energia elétrica, para subsidiar o consumo de baixa renda. O uso recente da CDE para subsidiar o
despacho de térmicas e a compensação referente às geradoras que não aderiram à MP 579 não pode ser
interpretado como subsídio cruzado.
115
da Amazônia? Por que a conta não deve recair sobre quem vai ao cinema, ou quem
compra roupas, ou quem viaja? Similarmente, por que é que o consumidor de Recife
deve ser responsável por subsidiar projetos de irrigação do Vale do São Francisco? A
questão não é se deve ou não haver subsídio, mas, uma vez entendido que o subsídio se
justifica, a conta deve recair sobre o contribuinte, via o Orçamento Geral da União
(OGU), e não exclusivamente sobre o consumidor de energia.
Além de ser economicamente mais sensato, retirar os encargos da conta
de energia e transferi-los para o OGU tem o ganho adicional de permitir maior
transparência ao uso dos recursos públicos. Na discussão do Orçamento, a sociedade,
por meio do Congresso Nacional, pode decidir se os recursos (sempre escassos) devem
ser utilizados para subsidiar o consumidor de energia das regiões isoladas, os
consumidores de energia de baixa renda, ou se devem ter outro destino, como educação,
saúde, segurança, previdência e assistência social, pagamento de funcionalismo público
etc.
A Lei nº 12.783, de 2013, permitiu, portanto, um ganho de eficiência ao
transferir para o Tesouro um custo que, de fato, deveria ser suportado por todos os
contribuintes, e não pelos consumidores de energia ou pelos consumidores de
determinada classe de renda. Em setembro de 2012, previa-se que o Tesouro teria de
aportar R$ 3,3 bilhões à CDE para compensar a supressão ou redução dos encargos.
Essa conta foi subestimada. A quota-parte mensal das distribuidoras,
principal fonte de receitas da CDE, caiu de R$ 284 milhões em janeiro para R$ 76,5
milhões a partir de fevereiro, o que perfaz uma redução mensal de aproximadamente R$
200 milhões, ou R$ 2,2 bilhões em onze meses. Adicionalmente, a CDE transferiu R$
1,7 bilhão para a CCC ao longo do ano. Dessa forma, a extinção da CCC e a redução da
alíquota da CDE terão um impacto aproximado de R$ 4 bilhões, 20% maior do que o
estimado na MP.
Adicionalmente, a CDE destinou R$ 2,8 bilhões em 2013 para cobrir os
gastos decorrentes do fim dos subsídios cruzados associados a descontos tarifários
(rubrica “pagamento modicidade tarifária” da CDE). A redução e eliminação de
encargos, juntamente com a eliminação de subsídios cruzados gerou queda de
116
arrecadação e aumento de despesas cujo efeito combinado atingiu aproximadamente R$
6,7 bilhões em 2013.
A RGR, o terceiro encargo afetado pela MP, conforme já dito, tem por
objetivo constituir um fundo para indenizar investimentos não amortizados de
empreendimentos do setor ou a reversão de suas concessões. No caso das usinas que
optaram por renovar os contratos no âmbito da MP, suas tarifas passariam a embutir
somente os custos de O & M. Como não haverá mais ativos a serem amortizados, não
faria sentido que a RGR continuasse a ser cobrada da energia gerada por essas usinas.
Observe-se, contudo, que o encargo segue sendo cobrado das demais geradoras.
De acordo com matéria do Valor Econômico, intitulada “Pacote
Recheado”, de 29 de outubro de 2012, a eliminação desses três encargos permitiria
redução de aproximadamente R$ 25,00 por MWh. Considerando as tarifas médias pagas
pelos consumidores residenciais em 2012 no ambiente regulado (R$ 333,47/MWh) e
industriais (R$ 262,32), a eliminação/redução dos encargos permitiria redução
aproximada de 7,5% e 9,5%, respectivamente, de suas contas.
III.3.2.c – Assunção pelo Tesouro e geradoras dos custos associados ao
ressarcimento de investimentos ainda não integralmente depreciados
Para os casos em que não houve ressarcimento integral do valor investido
na data de aplicação da MP foi necessário encontrar uma solução para o valor residual.
O dilema existente é quem irá financiar esse ressarcimento. Uma opção seria permitir
que a parcela não depreciada continuasse a ser incluída na tarifa paga pelo usuário. Só
que tal procedimento contrariava o objetivo principal da política governamental, a
redução tarifária.
Inicialmente,
para
viabilizar
financeiramente
a
indenização
às
concessionárias, o Governo pretendia utilizar os recursos da Reserva Global de
Reversão, que, conforme explicado na Seção II, foi um encargo criado justamente para
117
indenizar os ativos reversíveis quando do término da concessão80. Ao final de 2012, a
RGR dispunha de R$ 15 bilhões.
Estimativas preliminares, com base em critérios contábeis, apontavam
para valores que chegavam a até R$ 48 bilhões (R$ 11,1 bilhões no setor de geração, R$
21,1 bilhões no setor de transmissão e R$ 14,9 bilhões na distribuição)81 para todas as
concessões que expiram até 2015. Nesse caso, como a RGR não disporia de tantos
recursos, não se sabe quem assumiria a diferença: as geradoras, que amargariam um
prejuízo; o Governo; ou os consumidores, na forma de tarifas mais elevadas.
Ainda não é possível saber se os recursos da RGR serão ou não
suficientes e, caso não sejam, quem arcará com a diferença. Isso porque, decorrido mais
de um ano desde a edição da MP 579, ainda não foi estabelecida a metodologia de
definição do valor de todas as indenizações. Em setembro de 2013 a Aneel realizou a
92ª Audiência Pública para regulamentar o cálculo da parcela dos investimentos que não
constavam do projeto básico, realizados até 31 de dezembro de 2012, vinculados a bens
reversíveis dos empreendimentos de geração e que ainda não foram integralmente
amortizados ou depreciados. Similarmente, apenas em dezembro de 2013 a Aneel
consolidou a metodologia para apurar o valor da indenização para investimentos em
ativos de transmissão realizados até maio de 2000.
Como ocorre em qualquer indenização, o risco de subavaliação dos
ativos existe. O próprio método escolhido, de valor novo de reposição, tende a
subavaliar o ativo das empresas. Isso porque esse método precifica o ativo de acordo
com o custo de aquisição de um equipamento novo, capaz de realizar (pelo menos
aproximadamente) as mesmas funções do equipamento que está sendo avaliado, e existe
uma tendência de queda no preço dos bens de capital ao longo do tempo, em
decorrência de inovações tecnológicas. Assim, a empresa que teve um gasto de X para
adquirir determinado equipamento há dez anos, teria, em tese, o direito de recuperar
(com os devidos descontos dos gastos de amortização e depreciação) esses X gastos.
Ocorre que o valor do equipamento novo deve ter preço inferior a X, de forma que a
80
Ativos reversíveis são aqueles que, após o término da concessão, revertem para a União. No caso de
geradoras, por exemplo, as barragens, turbinas e todo equipamento elétrico é entregue à União ao final do
contrato de concessão, para que possam ser operados pela concessionária que vier a assumir a usina.
81
Valor Econômico, 05/12/2011, “Indenização a elétricas pode custar R$ 47 bilhões”, disponível em
https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/12/5/indenizacao-a-eletricaspode-custar-r-47-bilhoes/
118
diferença entre o valor original do equipamento e o atual passa a constituir prejuízo para
a empresa.
Na Audiência Pública nº 92/201382, a Eletrobras apresentou estimativa de
indenizações no valor total de R$ 12,4 bilhões, dos quais R$ 6,7 bilhões referentes a
ativos de geração, e R$ 5,7 bilhões relativos a ativos de transmissão. Estimativas
preliminares da Aneel, entretanto, apresentavam indenização total de R$ 3,7 bilhões (R$
1,7 bilhão na geração e R$ 2 bilhões para a transmissão). Nesse caso, no total, o
prejuízo estimado para o grupo Eletrobras atinge R$ 8,7 bilhões, sendo R$ 5 bilhões
decorrentes de subavaliação de ativos de geração, e R$ 3,7 bilhões para os de
transmissão.
Matéria publicada pelo Brasil Econômico83 diz que, de acordo com a
Companhia Energética de São Paulo (CESP), o valor da indenização devida pelo
Governo Federal à hidroelétrica Três Irmãos é de R$ 3,8 bilhões, mas o Governo
Federal estima essa indenização em somente R$ 1,7 bilhão. Calcula-se que, juntas, a
Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (Cteep), a Cemig (Minas
Gerais), a Companhia Paranaense de Energia (Copel) e a Companhia Estadual de
Geração e Transmissão de Energia Elétrica (CEEE), do Rio Grande do Sul, tenham
direito a R$ 5,6 bilhões.
Essa situação de incerteza claramente afeta a capacidade de
planejamento das empresas. Além de descapitalizá-las, elas têm de registrar em seus
balanços provisões para perdas. Se os prejuízos estimados vierem efetivamente a
ocorrer, a indenização parcial deverá se traduzir em redução de investimentos no médio
e no longo prazos, tanto em decorrência de descapitalização das empresas, como porque
o interesse em investir no setor elétrico deve diminuir.
III.3.2.d Subsídio às distribuidoras para pagar a conta das geradoras que não
aderiram à prorrogação antecipada dos contratos
82
Documento disponível em
http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2013/092/apresentacao/expositor__pedro_hosken_-_eletrobras_-_5_min.pdf
83
Vide reportagem intitulada: “União deve R$ 21 bi a elétricas”, de 12/11/2013, disponível em:
https://www1.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asp?page=&cod=931265
119
Em que pese o descontentamento de várias geradoras, transmissoras e
distribuidoras com os termos da MP 579, todas as transmissoras aderiram à prorrogação
do contrato de concessão, bem como a grande maioria das usinas: somente 14, em um
universo de 123, não aderiram84. A maior resistência veio das estatais estaduais Cesp,
Cemig e Copel, que não aceitaram os termos da renovação de concessão de suas usinas
(apesar de terem renovado a concessão de transmissoras). Juntas, essas empresas
respondiam por cerca de 40% da potência instalada das concessões passíveis de
renovação no âmbito da MP.
Diante da recusa daquelas empresas em aceitar os termos da renovação,
restava ao Governo duas opções. A primeira seria manter suas tarifas. Isso impactaria o
preço final das distribuidoras que compram energia dessas usinas. Os problemas dessa
opção seriam o custo político de não entregar a redução prometida de 20% e o fraco
impacto que a redução das contas de energia teria sobre o IPCA, índice que orienta as
decisões do Banco Central sobre taxa de juros.
A segunda alternativa, que foi a escolhida pelo Governo, foi subsidiar a
energia daquelas empresas. Como essas geradoras não prorrogaram suas concessões,
suas tarifas continuaram a embutir o ressarcimento dos investimentos e os custos de O
& M. Para reduzir o custo das distribuidoras (e, consequentemente, do consumidor
final), o Tesouro passou a pagar para as distribuidoras, via CDE, parte da diferença
entre a tarifa cobrada por aquelas geradoras e seu custo de O & M. Em 2013, o repasse
acumulado da CDE havia atingido R$ 260 milhões.
Assim como não faz sentido econômico o subsídio cruzado, em que
consumidores de energia financiam o consumo de outros (conforme argumentamos na
Subseção III.2.1, o correto é cobrar o subsídio dos contribuintes), tampouco faz sentido
que os contribuintes subsidiem os consumidores, como vem ocorrendo no caso em tela.
Ou seja, o governo está criando um preço artificialmente baixo para as tarifas de energia
à custa dos contribuintes, o que gera sérias distorções alocativas, conforme discutido no
Capítulo II.
Valor Econômico, 17/10/2012, “De 123 usinas, 14 não se interessam por renovação”. Não se pode
esquecer que parte significativa das renovações ocorreu com empresas do grupo Eletrobras que, ainda que
não concordasse com os termos das renovações, tinha de atender as decisões de seu controlador, a União.
84
120
III.4 Represamento de tarifas sem o repasse integral do aumento de custos
decorrente do despacho de energia térmica
III.4.1 – Subsídios do setor público associados ao acionamento das usinas
termoelétricas
Na Seção anterior discutimos como a MP 579 pretendia reduzir as tarifas
ao consumidor final. Parte dessa redução (depreciação completa dos ativos e redução ou
eliminação de encargos) decorria de uma redução genuína de custos. Parte, entretanto,
decorria de reduções tarifárias artificiais, sem contrapartida na efetiva redução de custos
(indenização incompleta de ativos não depreciados e subsídios decorrentes da não
aceitação da Cemig, Copel e Cesp dos termos da MP).
Nesta Seção discutiremos outro importante fator que vem contendo
artificialmente a tarifa de energia ao consumidor final: a assunção (ainda que
temporária) pelo Tesouro dos custos decorrentes do acionamento das usinas
termoelétricas.
O parque gerador brasileiro tem por base a energia hidroelétrica,
responsável por mais de 68% da potência instalada. As usinas térmicas respondem por
cerca de 29% do sistema e funcionam como uma espécie de seguro: como a energia
termoelétrica é mais cara, tais usinas somente são acionadas quando o sistema
hidroelétrico não consegue suprir toda a energia de que necessitamos85. No Capítulo II
discutimos que o encarecimento do custo de energia em decorrência do acionamento das
usinas termoelétricas deveria se refletir nas tarifas, de forma a sinalizar corretamente
para o consumidor a maior escassez do produto.
Por coincidência, a MP 579 foi editada em um ano de hidrologia ruim.
Em 18 de outubro de 2012, para garantir a oferta de energia, já haviam sido acionadas a
maioria das usinas termoelétricas disponíveis, que funcionariam até o início de julho de
2013, quando as 34 mais caras foram desligadas. Houve, assim, forte aumento de custos
na geração de energia. Mas como o Governo estava comprometido com a redução de
85
Trata-se aqui de uma simplificação, pois parte do parque gerador é formado por fontes não
convencionais de energia. Isso, contudo, não invalida o raciocínio.
121
20% nas tarifas residenciais, decidiu assumir esse custo adicional, evitando seu repasse
para as tarifas. Na ausência do subsídio do Tesouro, a redução do preço das tarifas teria
sido somente de 10%, conforme estimativa da Confederação Nacional da Indústria
(CNI)86.
O custo do acionamento das térmicas tem sido o principal custo
decorrente da política de redução das tarifas. A operacionalização do subsídio
governamental tem sido feito por meio de repasses da CDE. Em 2013, os repasses para
financiar os custos das termoelétricas e cobertura da Conta de Compensação de
Variação de Valores de Itens da Parcela A (CVA87) atingiram R$ 9,5 bilhões.
A CDE também foi assumiu outros gastos, como os custos associados da
exposição involuntária das distribuidoras, devido à não realização do leilão A-1 em
dezembro de 2012 e à frustração do leilão A de energia existente, em junho de 2013 88.
Até outubro de 2013, os gastos da CDE para cobrir a exposição involuntária das
distribuidoras havia atingido R$ 200 milhões. Além disso, também tem que ser custeado
pela CDE o risco hidrológico dos geradores – que tiveram suas concessões renovadas –
transferido aos consumidores junto com as cotas de energia “velha” distribuídas pelo
Governo, como determinou a MP 579.
Para possibilitar o pagamento dessas despesas e outras já mencionadas,
como a subvenção para modicidade tarifária, a RGR transferiu cerca de R$ 5 bilhões
para a CDE em maio e junho, e o Tesouro, outros R$ 9,9 bilhões entre junho e
dezembro. Provavelmente o Tesouro só começou a financiar diretamente os custos
decorrentes da nova política tarifária quando constatou que a RGR não dispunha mais
de saldo suficiente para ser transferido para a CDE: o saldo disponível da RGR caiu de
R$ 15,3 bilhões, em janeiro, para pouco mais de R$ 500 milhões em julho de 2013,
chegando, em 2014, com pouco mais de R$ 2 milhões. Essa redução foi, em larga
medida, provocada pelo pagamento de R$ 12 bilhões referentes a indenizações das
geradoras e transmissoras que renovaram suas concessões, no âmbito da MP 579.
CNI. “Relatório de Infraestrutura”. Ano 10 • Número 8 • Setembro de 2013 • www.cni.org.br.
A CVA é uma conta gráfica que acumula os custos decorrentes da aquisição de energia elétrica ao
longo do ano, posteriormente incorporados na tarifa da distribuidora quando do reajuste tarifário, a cada
doze meses. Em 2013, o aumento excepcional desses custos obrigou a Eletrobras a cobrir pelo menos
parte da CVA.
88
A Seção IV.4 discutirá em maior profundidade a questão da exposição involuntária, que se agravou
substancialmente no início de 2014,
86
87
122
Observe-se que a soma das transferências do Tesouro e da RGR – R$
14,8 bilhões – superaram os gastos decorrentes do despacho das térmicas. Ocorre que a
MP 579 impôs outros gastos à CDE, como a transferência de recursos para a CCC, que
totalizou R$ 1,7 bilhão. A decisão de compensar as distribuidoras pela não adesão da
Cemig, Cesp e Copel também gerou gastos de R$ 260 milhões. Por fim, a CDE
devolveu R$ 1,5 bilhão para o fundo RGR.
Em 2014, Tesouro Nacional continua repassando recursos para a CDE. A
previsão orçamentária é de R$ 9 bilhões, mas, provavelmente, essa conta será
ultrapassada em decorrência da exposição involuntária das distribuidoras, que
discutiremos na Seção IV.489. No primeiro trimestre do ano, os repasses já haviam
atingido R$ 2,8 bilhões.
Nesta Seção discutiram-se os subsídios do Tesouro e de outros fundos
públicos para evitar que o aumento de custos decorrente do acionamento das usinas
termoelétricas se refletisse na tarifa ao consumidor final neste ano. Na próxima Seção
será tratada a tentativa do Governo de transferir parte desses custos para as empresas do
setor elétrico, por meio da Resolução CNPE nº 3, de 2013.
III.4.2 – Tentativa do Governo transferir para o setor privado parte dos subsídios
associados ao acionamento das usinas termoelétricas: a Resolução CNPE nº 3, de
2013
A Resolução nº 3, de 6 de março de 2013, do Conselho Nacional de
Política Energética (CNPE), determinou, unilateralmente, que todos os agentes de
geração e de comercialização de energia elétrica deveriam pagar metade do custo
adicional da geração térmica despachada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico
(ONS) fora da ordem de mérito econômico90, em razão da falta de água nos
89
Até a edição deste livro, a solução do problema não estava ainda definida. É provável que o Tesouro
venha a desembolsar recursos, mas talvez não seja via aportes na CDE.
90
O despacho das usinas é feito pelo ONS e segue, em princípio, uma ordem de mérito econômico, isto é,
as usinas de menor custo de geração (as hidrelétricas, em geral) são despachadas prioritariamente.
Contudo, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) baixou a Resolução nº 8/2007, autorizando
o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a acionar extraordinariamente usinas termelétricas fora
da ordem do mérito econômico, com vistas à garantia do suprimento energético, por decisão do Comitê
de Monitoramento do Setor Elétrico – CMSE, presidido pelo Ministro de Minas e Energia e composto por
representantes dos principais órgãos do setor elétrico.
123
reservatórios das hidrelétricas. Esse custo é denominado pelo setor como Encargo de
Serviços do Sistema por Segurança Energética. Essa medida deveria valer até que nova
metodologia, destinada a levar em conta esses custos, fosse implantada nos programas
computacionais do setor elétrico, o que ocorreria em 1º de setembro de 2013.
Em linguagem mais simples, metade do custo maior de geração das
usinas termelétricas a gás e a óleo, despachadas desde 18 de outubro de 2012, por falta
de água nos reservatórios das hidrelétricas, teria de ser paga pelos comercializadores e
geradores, inclusive as usinas térmicas, entre abril e julho de 2013.
Não bastasse a ilegalidade e a ilegitimidade da medida – o CNPE é órgão
de assessoramento da Presidência da República, com a atribuição de propor ao
Presidente da República políticas nacionais e medidas específicas, e suas resoluções não
têm força de lei –, o custo da operação não é pequeno.
Durante o pico de acionamento, 65 das 70 térmicas brasileiras estiveram
ligadas, gerando, a preços que variaram entre 330 e 600 R$/MWh, cerca de 18% da
energia consumida no País. Para se ter ideia do custo adicional com a geração térmica,
as hidrelétricas geram a preços entre 85 e 160 R$/MWh. Paga-se, no mínimo, o dobro
pelo MWh de fonte térmica.
Para reduzir o impacto dessa geração sobre as tarifas ao consumidor, o
Governo anunciou o desligamento de 34 térmicas a óleo diesel e combustível, as mais
caras (num total de 3.800 MW), no dia 3 de julho de 2013. Contudo, estima-se que as
demais térmicas devem ficar ligadas pelo menos até novembro deste ano, quando
termina o período seco.
A Resolução CNPE nº 3, de 2013, provocou uma verdadeira guerra
judicial entre empresas e associações de empresas do setor e o Governo Federal, evento
raríssimo no setor elétrico, tradicionalmente avesso à via judicial. A gravidade da
intervenção fez com a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia
(Abraceel) dissesse aberta e oficialmente, em artigo publicado na sua newsletter de
maio, que “o ambiente de negócios no nosso setor está cada vez mais confuso”, ao
referir-se ao assunto.
124
Cerca de uma dezena de liminares foi concedida a associações do setor
contra a aplicação dessa parte da Resolução nº 3, do CNPE, o que, inclusive, paralisou a
Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) por dois meses.
Com isso, ficaram pendentes de liquidação cerca de dois bilhões de reais
relativos aos valores de geração térmica contestados por geradores e comercializadores,
relativos aos meses de abril a junho. Estima-se que mais um bilhão tenha sido suspenso
judicialmente em julho, o que soma um total de três bilhões. Foram, ainda, suspensas,
naquele período, liquidações de negócios que nada têm a ver com a Resolução nº 3, em
valor superior a 400 milhões de reais, dada a paralisação da Câmara.
Na primeira semana de junho uma decisão judicial destravou a
contabilização e a liquidação na Câmara. Com isso, ela retomou as operações de
liquidação financeira do mercado de curto prazo, ao menos parcialmente. Mas a
liquidação deverá levar em conta as liminares ainda em vigor em favor de agentes e
associações, que serão excluídos do rateio dos custos de geração térmica. A CCEE
também voltou a calcular e publicar os Preços de Liquidação de Diferenças, que não
eram divulgados desde a publicação das liminares que prejudicaram o seu
funcionamento.
A tentativa do setor público de empurrar para empresas do setor elétrico
parcela do custo decorrente do acionamento das térmicas pode ser considerada
desastrada. Em primeiro lugar porque, em decorrência da judicialização do processo,
não conseguiu gerar a receita que esperava. As consequências de longo prazo,
entretanto, devem ser mais graves. O intervencionismo estatal gerou confusão no
ambiente de negócios, reduziu a previsibilidade e tornou mais incerto o retorno
esperado. Isso reduz os incentivos do setor privado de investir no setor elétrico e
aumenta o retorno exigido por parte dos empresários para compensar pelo maior risco
assumido, ou seja, justamente o oposto do que se espera de uma boa regulação:
ampliação da oferta e custos mais baixos.
125
Capítulo IV – A viabilização da modicidade tarifária no setor energético brasileiro
No Capítulo II discutimos os princípios que deveriam nortear a
precificação no setor elétrico, de forma a assegurar o incentivo ao investimento privado
e à eficiência econômica. Mostramos também que a precificação correta não é trivial,
com possibilidade de surgirem problemas tanto na definição do preço inicial do
contrato, definido em leilões, quanto nas revisões tarifárias, ao longo dos contratos de
concessão.
Neste capítulo mostraremos que há evidências de que o Governo vem
buscando modicidade tarifária excessiva no setor elétrico. Nas duas primeiras Seções se
discutirá a modicidade tarifária nos leilões de geração e transmissão, respectivamente.
Conforme veremos, ocorrência de leilões com preços baixos tem sido viabilizada, em
grande parte, pela forte presença estatal. Pudemos constatar que, em alguns casos, a
modicidade tarifária foi atingida em consequência de comportamento oportunista ou de
má avaliação por parte do concessionário. Na terceira Seção se tratará da queda recente
das tarifas pagas às distribuidoras. Como poderemos ver, essa queda é consistente com
o comportamento oportunista por parte do regulador, discutido no Capítulo II. A última
Seção cobre os desafios que a exposição involuntária das distribuidoras vem trazendo
para a política de modicidade tarifária. Trata-se de um problema que se manifestou com
maior intensidade no início de 2014 e para o qual não foi encontrada ainda solução: o
aumento de custos terá de ser bancado pelo Tesouro (leia-se, contribuintes) ou pelos
consumidores, provocando deterioração das contas públicas ou aumento das tarifas e
das pressões inflacionárias.
IV.1 – Modicidade tarifária nos leilões de geração
Um dos paradoxos do setor elétrico brasileiro são as constantes queixas
dos empreendedores em relação aos preços-teto estabelecidos para os leilões de geração
e transmissão e, simultaneamente, um aparente sucesso desses leilões, que têm
conseguido vender os lotes ofertados, frequentemente, com deságios sobre os preçosteto supostamente baixos.
Vimos no Capítulo II que os leilões, se bem desenhados, conseguem
resolver o problema de assimetria de informações e fazer com que a energia elétrica seja
126
ofertada ao menor preço possível capaz de cobrir os custos do empreendedor e
remunerá-lo adequadamente. Vimos também, contudo, que leilão não é garantia de
eficiência: licitantes oportunistas, má avaliação de projetos ou a presença de um
participante que não se preocupa com o lucro (mais especificamente, a estatal
Eletrobras), todos esses são fatores que podem fazer com que o resultado do leilão seja
um preço excessivamente baixo, no sentido de ser incapaz de viabilizar
financeiramente, e de forma sustentável, a atividade.
Antes de discutirmos os resultados dos leilões, é importante relembrar
que, conforme discutimos no Capítulo III, o novo marco regulatório do setor elétrico,
instituído pela Lei nº 10.847, de 2004, e pelos decretos que a regulamentaram, buscou
reverter a tendência liberalizante do modelo anterior. Nesse contexto, um aumento da
participação da Eletrobras seria consequência natural de um modelo que favorece o
fortalecimento do papel estatal.
Em relação aos leilões de energia, o critério de outorga nos anos 1990
baseava-se na maior oferta pelo direito de exploração. A vantagem desse modelo é o
aumento da arrecadação federal, algo particularmente importante em um período em
que o Governo necessitava fazer um forte ajuste fiscal. Cabe lembrar que esse modelo,
de maior ágio, também foi adotado, provavelmente pelos mesmos motivos
arrecadatórios, pelo Governo Federal, nos atuais leilões de privatização dos principais
aeroportos do País. No marco regulatório pós 2004, o critério de outorga de leilões,
consistentemente com o objetivo de modicidade tarifária, passou a ser o de menor preço
oferecido para a tarifa91. O órgão regulador define um preço-teto e os licitantes
concorrem oferecendo preços menores.
O problema que tem ocorrido é que, no afã de buscar menores tarifas, o
Governo Federal tem utilizado preços-teto excessivamente baixos, especialmente para
hidrelétricas. Isso tem o óbvio impacto de afastar os investidores e reduzir a
competição. Ou seja, quando a remuneração não é atraente, o capital privado não
aparece.
91
Não cabe discutir aqui as vantagens e desvantagens de cada modelo. Mas vale lembrar que, quando o
critério de outorga é o maior valor pago pelo direito de exploração do serviço, quem ganha é o
contribuinte, pois a arrecadação do Governo pode reduzir a tributação. Já no critério de menor preço,
quem ganha é o consumidor de energia elétrica.
127
Em análise dos leilões de energia nova ocorridos entre 2005 e 2011, Rego
(2012) mostrou que nada menos que quatorze empreendimentos hidroelétricos não
foram comercializados em decorrência de preços-teto fixados em valores muito baixos.
Desde então, houve outros leilões frustrados.
Os aproveitamentos Estreito e Cachoeira, integrantes do chamado
Complexo do Baixo Parnaíba, entre Piauí e Maranhão, tiveram sua venda frustrada em
duas ocasiões, nos Leilões de Energia Nova de 2010 e de 2012, quando foram postos à
venda em conjunto com o aproveitamento Castelhano e leiloados em bloco.
O aproveitamento Sinop, em Mato Grosso, também teve de ser colocado à
venda por duas vezes, por falta de interessados na primeira oportunidade. Foi
arrematado, finalmente, por um consórcio liderado pela Alupar (51%), com Chesf
(24,5%) e Eletronorte (24,5%), mas logo após o leilão o sócio privado declarou que não
iria continuar no consórcio92. Contudo, ele só deixaria o consórcio após a assinatura do
contrato, quando poderá ser substituído pela Electricité de France (EDF)93, que
participou do leilão junto com a Cemig e está em tratativas com a Eletrobras com essa
finalidade.
O caso mais notório de preço-teto inadequado, entretanto, é dos
aproveitamentos Barra do Pomba e Cambuci, que tiveram seus custos de viabilidade
fixados pela própria EPE em R$ 125,41/MWh e R$ 152,54/MWh, respectivamente, o
que as retirava previamente de um leilão com preço-teto a R$ 125,00. Nesse mesmo
leilão, a EPE permitiu que as térmicas vendessem energia até a R$ 138,00/MWh, valor
que tornaria viável Barra do Pomba Nesse exemplo, portanto, o poder concedente
escolheu uma combinação de preços teto duplamente infeliz, sem sentido do ponto de
vista econômico, pois afugentou potenciais interessados em construir usinas
hidroelétricas e atraiu interessados em construir usinas térmicas, mais caras e mais
poluentes.
Conforme argumenta Rego (2012), além da frustração dos leilões, outra
evidência de que preços-teto baixos afugentam investidores é que até 47% dos
empreendedores tecnicamente qualificados para participar dos leilões deixam de
participar deles após a divulgação do preço máximo pela EPE.
92
93
Jornal do Commercio, 30/08/2013.
Agência CanalEnergia, 22/11/2013.
128
Apesar da frustração de diversos leilões, o Governo tem conseguido, ao
longo do tempo, reduzir o preço da energia contratada nos leilões de energia nova,
conforme pode ser visto na figura abaixo.
Figura IV.1 – Preço médio da energia por ano de contratação
Fonte: Rego (2012)
Nos dois primeiros anos do modelo iniciado em 2003, a energia nova de
fonte hidrelétrica foi contratada aos preços médios atualizados para 2012 de R$
153,00/MWh e de R$158,22/MWh. Entretanto, depois do leilão da Usina Santo
Antônio, o primeiro projeto estruturante do Governo, em 2007, o preço tem caído a cada
certame. Nos três leilões de energia nova de fonte hidrelétrica, realizados em 2010, o
preço médio ponderado de contratação foi de R$ 84,01/MWh, uma diferença
considerável (Rego, 2012). Isso se deve, em parte, aos projetos estruturantes, Jirau,
Santo Antônio e Belo Monte, com peso grande nessa ponderação.
Nos leilões de energia nova de 2012, o preço médio de venda de energia de
fonte hidrelétrica subiu em relação ao dos leilões de 2010, ficando, em média sem
ponderação, em R$ 101,67/MWh, valor, ainda assim, muito abaixo do preço praticado
no início da década anterior.
A redução observada nos primeiros anos pode estar relacionada a um
processo de aprendizagem – afinal, eram os primeiros leilões de energia sob o novo
regime – e porque a referência, até então, era eminentemente estatal, apesar de algumas
privatizações que ocorreram94. Como se sabe, empresas estatais não chegam a ser um
94
Conforme explicamos no Capítulo III, na primeira reforma do setor elétrico, nos anos 1990, o processo
de privatização avançou mais fortemente no setor de distribuição, tendo a atividade de geração
129
modelo de eficiência95. Como já vimos, Abbud e Montalvão (2003) apontaram a queda
de custos nos empreendimento de geração e transmissão a partir de 1995, quando as
empresas privadas ingressaram no mercado brasileiro, tornando-se um novo parâmetro
de eficiência. O custo do kW instalado de hidrelétricas, que oscilava entre US$ 1500,00
e US$ 2.000,00 estimados nos custos modulares da Eletrobras até então, passou a ficar
entre US$ 600,00 e US$ 800,00 nos investimentos privados, a preços de 2003. No
segmento de transmissão, o custo do quilômetro de linha de 500 KV, que chegou a
superar valor equivalente a US$ 300.000,00 no período anterior a 1995, situava-se, em
2003, na faixa de US$180.000,00, com chances de chegar a US$ 150.000,00.
Evidentemente, toda essa queda não pode ser creditada exclusivamente a avanços
tecnológicos. Parte importante dela deve-se, certamente, à eficiência empresarial
privada quando cotejada com a gestão estatal.
A redução de preços decorrente de ganhos de eficiência é uma redução boa
para a economia. É justamente esse tipo de evolução de preços e custos que o marco
regulatório deve buscar. Infelizmente, contudo, essa parece ser somente parte da
história. A queda no preço da energia obtida nos leilões pode ser explicada também
pelos motivos expostos no Capítulo II, não ligados a ganhos de eficiência, conforme
veremos nos exemplos a seguir.
No setor elétrico, via de regra, os participantes são empresas com larga
experiência e conhecimento. Isso, entretanto, não impede que, eventualmente, empresas
aventureiras aportem no setor. O caso mais paradigmático nesse sentido foi a
participação do Grupo Bertin, originariamente controladores de frigoríficos, que chegou
a ter em carteira projetos de construção de termelétricas que totalizavam quase 4.800
MW, o equivalente a quase 35% da capacidade de Itaipu, e consumiriam R$ 7 bilhões
em investimentos.
De acordo com reportagem da Revista Exame96, o Grupo Bertin atuou
agressivamente em leilões de 2008, logo após a quebra do Banco Lehman Brothers, sem
avaliar adequadamente como o novo cenário macroeconômico mundial iria alterar as
permanecido predominantemente estatal. Nos leilões de novos empreendimentos desse período, contudo,
prevaleceu a iniciativa privada.
95
Abbud, O. e Montalvão, E., “A crise de energia de 2001 deveu-se à reestruturação do setor elétrico?
Para
onde
seguir
após
a
crise?”,
2003,
disponível
em
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/840/R157-08.pdf?sequence=4.
96
http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/104402/noticias/o-jeito-e-brigar-na-justica?page=3
130
condições de crédito. De fato, o que veio a ocorrer é que, nesse novo cenário, o Grupo
teria de oferecer R$ 2 bilhões em contragarantias, montante de que não dispunha. O
resultado é que das 22 concessões ganhas, 16 foram revogadas pela Aneel ou vendidas
pelo Grupo. As seis restantes iniciaram obras que, pelo menos desde setembro de 2012,
não apresentam avanço. A experiência mal sucedida levou inclusive o Governo a alterar
as regras de leilão, exigindo garantias maiores.
Trata-se, portanto, de uma situação em que o licitante não conhece
adequadamente os riscos do projeto. O vencedor do leilão, no caso, não foi o licitante
mais eficiente, mas o que menos valorizava o risco. Um leilão mais rigoroso, com
exigência de um plano de negócios e metodologia de execução, certamente teria evitado
esse problema.
No Capítulo II discutimos a importância do Estado na viabilização de
leilões. Nesse sentido, é interessante examinar o que ocorreu com os leilões dos três
projetos estruturantes do Governo, Santo Antônio, Jirau e Belo Monte, para
compreender como esses leilões foram viabilizados, com a venda de energia a preços
considerados, em princípio, inviáveis para os demais participantes do mercado.
No caso do leilão de Santo Antônio, o Governo precisou lutar para
promover concorrência. Um consórcio, do qual faziam parte uma grande empresa de
construção, um gerador estatal e potenciais usuários de grande porte, estava em posição
privilegiada, já que a construtora fizera os estudos de inventário e de viabilidade do
projeto. Além disso, o consórcio tinha acordos de exclusividade com os três maiores
fornecedores de turbinas do mundo.
Superados os acordos de exclusividade, com a interferência da Aneel e do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), três consórcios participaram
do leilão. A presença estatal foi essencial, com as empresas do grupo Eletrobras
concorrendo entre si, participando dos três consórcios, em proporções societárias que
variaram entre 39% e 49%. O lance vencedor, de R$ 78,90/MWh, do Consórcio
Madeira Energia foi mais de 35% menor que o preço-teto, uma redução de preço de R$
43,10/MWh.
No leilão de Jirau, novamente as estatais federais competiram entre si, nos
dois consórcios participantes, em proporções de 39% e 40% - neste último caso com
131
20% da Chesf e 20% da Eletrosul. Isso resultou em constrangimento para essas
empresas. Dada a liderança privada dos consórcios, o Consórcio Jirau Energia ameaçou
entrar na Justiça contra o Consórcio Energia Sustentável do Brasil, vencedor do
certame, sob o argumento de que não tinha havido isonomia no leilão. Isso porque o
Consórcio vencedor propôs mudança do local da barragem originalmente previsto no
projeto, com economia estimada de R$ 1 bilhão, o que permitiu a oferta de lance mais
baixo no leilão. Para um preço-teto definido de R$85/MWh, o lance vencedor, no valor
de R$ 71,40/MWh, representou um deságio de 21,5% em benefício do consumidor.
Se o projeto colocado em leilão fosse aquele com o eixo da barragem no
local onde acabou sendo construído, é possível que outros competidores tivessem feito
ofertas mais baixas. Nesse sentido, ainda que o resultado final da renegociação tenha
sido benéfico para a sociedade, o resultado do leilão provavelmente teria sido melhor se
a informação sobre o melhor local para a localização do eixo da barragem tivesse sido
compartilhada entre os participantes.
O baixo preço em Jirau também pode ser justificado por uma avaliação
inadequada dos riscos associados ao projeto ou por uma atitude mais arriscada por parte
dos vencedores do leilão. Greves, atos de vandalismo e atrasos no desembaraço de
equipamentos pela Receita Federal atrasaram o início do fornecimento de energia em
mais de seis meses. A Aneel já havia permitido o adiamento de 52 dias para o
fornecimento de energia em decorrência do atraso da Receita Federal. Já a autorização
para adiamento em decorrência de greves e atos de vandalismo ainda está sob análise do
órgão regulador.
Independentemente da decisão da Aneel, o fato é que, pelo menos as
greves estão, em larga medida, sob o controle da concessionária. Por isso, os custos
decorrentes dessas greves deveriam ser integralmente suportados pela geradora. Pode
ser, entretanto, que o consórcio não tenha condições financeiras de suportar esse risco.
A renegociação de prazos transforma-se, assim, em um típico problema do
comportamento oportunista: a empresa vence o leilão oferecendo um preço muito baixo,
ciente de que poderá renegociar os termos contratuais caso cenários adversos, ainda que
evitáveis, se materializem. Afinal, para o órgão regulador, a opção à renegociação pode
ser, em casos mais extremos, a falência do consórcio e paralisação total do restante das
obras.
132
O atraso nas obras tem um impacto direto sobre a viabilidade do projeto.
Em princípio, o consórcio responsável por Jirau teria de adquirir energia no mercado
livre (mais caro) para fornecer às distribuidoras, conforme havia previsto nos contratos.
Esse custo pode chegar a R$ 400 milhões97.
O impacto indireto é que, originariamente, o consórcio vencedor pretendia
não só não atrasar as obras, como antecipar o início de fornecimento de energia. Nesses
meses de antecipação, poderia vender a energia no mercado livre e, com isso, recuperar
parte dos custos.
Assim, o baixo preço ofertado em Jirau é consistente com a hipótese
levantada no Capítulo II, de que alguns licitantes podem fazer suas ofertas considerando
somente a viabilidade financeira associada ao cenário mais provável, sem considerar os
riscos associados a cenários menos favoráveis.
No caso de Belo Monte, o preço-teto de venda da energia foi considerado
insatisfatório pelo mercado. As construtoras Odebrecht e Camargo Corrêa, que haviam
disputado as duas usinas do Madeira desistiram de participar do leilão. Até a data do
início do depósito das garantias para participar do leilão, que precisou ser prorrogada,
não havia dois consórcios. A competição só ocorreu por ação do Governo, em conjunto
com a Eletrobras.
Também foi necessário buscar outras formas de compensação para o
preço-teto baixo, com o BNDES alongando para 30 anos o prazo de financiamento,
elevando sua participação no limite permitido pelo Conselho Monetário Nacional e
reduzindo custos. A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia também
colaborou, concedendo desconto de 75% do Imposto de Renda do projeto.
Nesse contexto, o Consórcio Norte Energia ofereceu um lance de R$
77,97/MWh, 6% inferior ao teto permitido de R$ 83,00/MWh, e venceu o leilão, o de
menor deságio dos três certames de projetos estruturantes, certamente pela baixa
concorrência. O Consórcio Belo Monte Energia ofereceu seu lance exatamente no valor
do preço-teto, como se estivesse apenas cumprindo papel figurativo no leilão.
Dessa forma, vimos que os baixos preços obtidos nos leilões estruturantes
podem ser explicados pela participação estatal, seja diretamente (via Eletrobras) ou
97
Ver: http://www.cerpch.unifei.edu.br/noticias/atrasos-encarecem-jirau-e-hidreletrica-espera-perdao.html
133
indiretamente (via BNDES e outros benefícios concedidos), e pela avaliação inadequada
dos riscos envolvidos.
Há ainda um último fator importante que pode ter viabilizado os baixos
preços ofertados nos leilões dos projetos estruturantes: o fato de que 30% da energia
nova é, em geral, reservada para comercialização no mercado livre (ACL), do qual
participam grandes consumidores de energia. Por serem vendidos a preços mais altos,
representam uma espécie de “subsídio cruzado” aos preços da energia a ser vendida ao
mercado cativo (ACR), abastecido pelas distribuidoras de energia ao valor do lance
vencedor dos leilões. Ou seja, a energia vendida a valores mais altos no mercado livre
faz parte dos cálculos dos valores dos lances a serem ofertados nos leilões pelos
consórcios participantes.
No caso de Santo Antônio, de acordo com matéria do jornal Valor
Econômico98, sob o título “Tarifa no mercado livre será decisiva para definir leilão”,
esses 30% teriam que ser comercializados no mercado livre entre R$ 130,00 e
140,00/MWh (valor acima do teto de R$ 122,00/MWh) para viabilizar o lance ofertado
de R$ 78,90/MWh, o que elevaria o preço médio de comercialização da energia da usina
para R$ 95,00/MWh.
O mesmo ocorreu no leilão de Jirau. Segundo matéria do jornal O Estado
de S. Paulo, os 30% da energia da usina não poderiam ser comercializados em valor
inferior a R$ 130/MWh para tornar viável o atendimento do mercado cativo ao preço do
lance vencedor de R$ 71,40.
Observe-se que, nesse caso, o preço baixo não decorre de nenhum
comportamento oportunista por parte do regulado, nem tampouco de uma avaliação
incorreta dos riscos. O que estaria explicando o baixo preço é a intervenção do Governo,
distorcendo o mercado de modo a favorecer o ambiente regulado, em detrimento do
ambiente livre. A modicidade tarifária, portanto, tem de ser entendida como modicidade
ao consumidor regulado. Destaque-se que a distorção de preços a favor do mercado
regulado também esteve presente na MP 579, que determinou que toda a energia barata,
decorrente da renovação dos contratos, fosse vendida no mercado cativo.
98
Valor Econômico, 10/12/2007.
134
A prática de favorecer o mercado regulado, em detrimento do mercado
livre, traz alguns problemas. O primeiro é que a indústria nacional perde
competitividade ao ter de adquirir energia mais cara para “subsidiar” os consumidores
não participantes do mercado livre. A participação no ACL, que deveria constituir fator
de competitividade para as grandes empresas atuantes no Brasil, deixa de ser vantajosa.
Se isso ocorrer, gradualmente os atuais participantes do mercado livre
poderão deixá-lo, em busca de energia mais barata, o que gerará a perda dessa
capacidade de “subsídio” do mercado livre ao mercado cativo, podendo até chegar a
extingui-lo. Por outro lado, a migração de empresas do ACL para o ACR poderá, ex
post, inviabilizar financeiramente os projetos de Santo Antonio, Jirau e Belo Monte,
uma vez que eles contam com a energia mais cara vendida no mercado livre para
compensar a energia mais barata vendida no mercado regulado. Esse cenário, apesar de
pouco provável, pois dependeria de migração em massa das atuais empresas do ACL
para o ACR, não pode ser descartado.
Dessa forma, o aparente sucesso dos leilões dos projetos estruturantes
pode ser creditado à forte participação estatal, tanto diretamente, via Eletrobras, como
indiretamente, via oferta de crédito subsidiado por meio do BNDES; à mudança do
projeto original, como em Jirau; e à possibilidade de ganhos extras decorrentes da venda
no mercado livre.
A distorção de preços não está limitada ao ACR e ACL. A definição de
diferentes preços-teto para diferentes fontes de energia teve como consequência o
aumento da participação da energia térmica em nossa matriz energética. Assim, a
modicidade tarifária que o Governo vem buscando, intencionalmente ou não, é restrita à
geração hidroelétrica e direcionada ao mercado cativo.
No primeiro leilão de novos empreendimentos, realizado em 2005, o preço
de R$ 116,00/MWh não viabilizou a venda de 4.352 MWmédios de fonte hidrelétrica.
Em contrapartida, 2.278 MWmédios de fontes térmicas (biomassa, carvão, gás natural e
óleo) foram contratados a R$ 127,60/MWh (para um preço-teto fixado em R$
139,00/MWh), em claro prejuízo da eficiência econômica. Um potencial de energia
renovável deixou de ser contratado por uma diferença de apenas R$ 11,60/MWh, sendo
substituído por fontes poluentes e mais caras, um paradoxo para quem busca
modicidade tarifária tão avidamente.
135
Essa tendência prosseguiu nos leilões subsequentes. No segundo Leilão de
Energia Nova, em junho de 2006, o preço-teto para fontes hidrelétricas foi elevado para
R$ 125,00/MWh e o de térmicas foi fixado em R$ 140,00/MWh. Embora isso tenha
permitido uma venda maior de energia de fonte hidrelétrica (51,3% do total ofertado) e
de PCH (27,5% da oferta), ainda assim 654 MWmédios de fontes térmicas foram
comercializados, dos quais 574 MWmédios de térmicas a óleo diesel e combustível,
mais caras.
A tendência manteve-se igual nos quatro leilões subsequentes de energia
nova. No quarto, em julho de 2007, só térmicas a óleo foram contratadas, num total de
1.304 MWmédios. 1.545 MWmédios de hidrelétricas não foram negociados. No quinto,
em outubro de 2007, 69% da energia contratada era térmica. 561 MWmédios de fonte
hídrica sobraram. No sexto, só foram vendidos 1.076 MWmédios de térmicas, oito a
óleo e duas a gás. No sétimo Leilão de Energia Nova, foram comercializados 3.004
MWmédios de fonte térmica e 121 MWmédios de fonte hídrica.
O que se pode concluir, a partir do exame feito por Rego (2012) dos
diversos leilões de geração, é que preços-teto elevados não causam dano ao consumidor,
já que estimulam a participação de um maior número de competidores, aumentam a
competição e derrubam o preço-teto fixado. Em contrapartida, a adoção de preços-teto
baixos pode, sim, causar danos ao consumidor, tanto pela redução na oferta de produtos,
que pode até não ocorrer, quanto pela baixa competição. Adicionalmente, preços-teto
inadequados, sobretudo nos leilões de energia hidroelétrica, inibem novos investimentos
e acabam por aumentar os preços médios ao consumidor, uma vez que centrais
geradoras térmicas, com custos variáveis elevados serão despachadas com maior
frequência.
Em linhas gerais, o que se observa é que a falta de crença na capacidade
que o mercado tem de fazer baixar os preços da energia nova, por meio de competição
entre os agentes, aliado à ansiedade de reduzir as tarifas de energia elétrica, tem feito
com que o Governo empurre os preços-teto para baixo, afastando competidores, o que
surte efeito contrário ao desejado ou mesmo a frustração dos leilões, por falta de
participantes interessados, o que também tem se verificado.
136
IV.2 – Modicidade tarifária nos leilões de transmissão
Na Seção anterior, vimos que comportamentos oportunistas, má
avaliação de riscos e voluntarismo estatal podem ser as principais explicações para
preços exageradamente baixos observados em leilões de geração. No caso dos leilões de
transmissão, o que chama mais atenção não são os baixos preços, mas o forte aumento
da participação estatal, que tem trazido, como consequência, a não entrega das linhas no
prazo contratual. Isso reforça a necessidade de o processo licitatório impor maior rigor
na análise técnica e na capacidade econômico-financeira do licitante.
Diferentemente do ocorrido com os leilões de geração, as regras dos
leilões de linhas transmissão de energia elétrica integrantes da chamada Rede Básica de
Transmissão, que interliga produtores e consumidores de praticamente todo o território
nacional, foram mantidas inalteradas na reforma da legislação do setor elétrico
empreendida em 2003. O critério de outorga permaneceu sendo as ofertas de maior
deságio em relação à Receita Anual Permitida (RAP), previamente estabelecida pela
EPE.
Se isso não mudou, a diretriz governamental sobre a participação das
empresas do grupo Eletrobras nos leilões foi radicalmente alterada. Onde antes havia
restrição quase total à participação dessas empresas nos leilões de novas linhas, a partir
de 2003, com as mudanças de Governo e da legislação, foi estabelecida nova orientação
no sentido de que elas participassem ativamente dos leilões de linhas de transmissão. Os
números são eloquentes, como se pode ver na Figura IV.2.
Figura IV.2 – Vencedores dos leilões de linhas de transmissão
Tipo de empresa
% do total
% do total
(só ou como líder de consórcio)
03/12/1999 a 15/08/2002
23/09/2003 a 12/07/2013
Privada
71,43
57,23
Grupo Eletrobras
4,76
36,75
Estatal estadual
23,81
6,02
Total
100,00
100,00
Fonte: Aneel
Na primeira fase dos leilões, de 1999 a 2002, a iniciativa privada e as
estatais estaduais ficaram com 95,24% dos lotes leiloados, restando apenas 4,76% para
137
Furnas. Esse percentual refere-se, neste caso, a apenas um dos 21 lotes leiloados, a LT
Bateias-Ibiuna, componente da Interligação Sul-Sudeste. Três lotes não tiveram
interessados nesse período: dois foram leiloados posteriormente, e um foi atribuído a
Furnas, por se tratar de obra prioritária.
Cabe lembrar que nos três anos em que foram realizados os seis
primeiros leilões de linhas de transmissão, essa era uma experiência inteiramente nova
para o setor, tanto para quem leiloava as linhas, no caso, a Aneel, que atuava em nome
do poder concedente, sem interferência governamental, quanto para as empresas.
Na ausência das empresas do Grupo Eletrobras, tradicionais construtoras
e operadoras de linhas de transmissão, a iniciativa privada e as estatais estaduais
começaram a participar dos leilões. A julgar pelo número de participantes nos dois
últimos leilões desse período, os de nº 03/2001 e 02/2002, o número de interessados em
disputar essas linhas crescia a cada leilão. No leilão de 2001, dez empresas e cinco
consórcios depositaram as garantias para poder oferecer seus lances. No de 2002, seis
empresas e 17 consórcios depositaram garantias. A grande maioria era de
empreendedores privados.
Curiosamente, a despeito do número de interessados, o deságio no leilão
de nº 03/2001 foi de apenas 0,87%. No de nº 02/2002, o deságio foi maior, alcançando
9,82%. A média do valor de deságio nos lotes dos seis leilões desse período foi de
apenas 7,07%, sendo o maior deles de 20,27%, alcançado exatamente no primeiro leilão
de linhas de transmissão realizado no País, em 1999. Mas essa era uma realidade que
estava prestes a mudar com a participação ativa das empresas estatais do Grupo
Eletrobras, a partir de 2003.
A partir do momento em que foram autorizadas a participar dos leilões de
linhas de transmissão, as estatais federais do Grupo Eletrobras lançaram-se a eles com
disposição. Já no primeiro leilão de 2003, elas participaram de sete dos 17 consórcios
que depositaram garantias. A Eletrosul liderou dois deles e Furnas, Chesf e Eletronorte
participaram de outros cinco. Essa atuação iria se repetir nos leilões seguintes, com pelo
menos uma das estatais participando ativamente de todos eles, sozinha ou em consórcio.
Os números apresentados na Figura IV.2 mostram que as empresas do
Grupo Eletrobras aumentaram a sua participação de 4,76%, no período de 1999 a 2002,
138
para expressivos 36,75%, entre 2003 e 2013. Ganharam, sozinhas ou liderando
consórcios, 61 lotes, dos 166 leiloados, e participaram minoritariamente de consórcios
que venceram outros 22.
Perderam apenas para a iniciativa privada, que continuou com a maior
fatia dos leilões, mas com uma queda expressiva, de 71,43% do total, no primeiro
período, para 57,23%, de 2003 para cá. Empresas privadas adquiriram 95 lotes, sozinhas
ou liderando consórcios. As estatais estaduais perderam espaço, até porque uma delas, a
CTEEP, de propriedade do Governo paulista, foi vendida à iniciativa privada em 2006.
Ficaram com apenas dez lotes nos casos em que entraram sós na disputa ou liderando
consórcios. Treze lotes apenas não tiveram interessados.
Certamente graças à participação das estatais do Grupo Eletrobras e
também por causa da experiência adquirida pelos participantes nos leilões, o deságio
médio nos leilões aumentou bastante entre 2003 e 2013. A média do período foi de
28,45% contra os poucos mais de 7% do período 1999/2002. Houve 133 lotes, em 166
leiloados, com deságio igual ou superior a 10%, maiores que o deságio médio de cerca
de 7%, praticado no período de 1999 a 2002. Além disso, 87 lotes tiveram deságio
maior que 28,45% e outros 50 tiveram deságio igual ou maior que 40%. Os detalhes dos
deságios entre 2003 e 2013 podem ser vistos na Figura IV.3.
Figura IV.3 – Deságios nos leilões de linhas de transmissão 2003-2013
Vencedor
Deságio igual ou
Deságio superior à
Deságio igual ou
superior a 10%
média de 28,45%
superior a 40%
(80% dos leilões)
(52% dos leilões)
(30% dos leilões)
Privado
59,40%
58,82%
57,14%
Eletrobras
36,84%
36,47%
38,78%
Estaduais
3,76%
4,70%
4,08%
Fonte: Aneel
Várias considerações podem ser feitas sobre esse fenômeno. A primeira
delas é o fato conhecido de que empresas privadas só pagam deságios altos quando os
preços-teto estão inflados ou quando há alguma possibilidade de lucro desconhecida dos
demais participantes do leilão. O mesmo não ocorre com as empresas estatais federais,
139
que, não tendo objetivo de lucro e sendo suportadas pelo Governo, além de orientadas
por ele nesse sentido, podem ir bastante mais longe na sua disposição de pagar ágios
altos. Tendo em vista que a iniciativa privada venceu mais lotes que as estatais do
Grupo Eletrobras e as estaduais juntas, não é demais supor que os preços iniciais dos
leilões de transmissão estavam superestimados. Nesse caso, a causa de tantos deságios
altos eram mesmo preços limites mal estimados, trazidos para baixo com folga pela
competição nos leilões.
Outro aspecto a concluir é que a participação das subsidiárias da
Eletrobras não trouxe benefícios do ponto de vista da redução de tarifas ao
consumidor99. Se não era para implementar uma política de redução tarifária, porque a
estatal participou dos leilões de linhas de transmissão, por meio de suas subsidiárias?
A primeira resposta que vem à mente é a crença estatista e o desejo de
controle sobre os leilões e sobre o setor por parte do novo Governo, o que seria mais
fácil por meio das empresas nas quais ele é acionista majoritário. Nesse sentido, é
bastante esclarecedora a declaração de Adão Linhares Muniz, presidente da Câmara
Setorial de Energia Eólica do Ceará, ao jornal O Estado de S. Paulo, por ocasião do
leilão de reserva de energia (geração eólica), realizado em 23 de agosto de 2013, em que
CHESF e Furnas arremataram 38 dos 66 projetos oferecidos. Segundo ele, a CHESF
entrou “pesado” no leilão "porque queria o domínio do Nordeste", isso apesar de ter tido
prejuízo de R$ 5,2 bilhões, em 2012, e de R$ 265 milhões, no primeiro semestre deste
ano.
A segunda causa sobre a qual se pode especular é o corporativismo
dessas estatais, que possuem forte poder de pressão sobre as autoridades. Por último,
resta a hipótese de que os políticos gostam de empresas estatais, porque podem nomear
seus “afilhados” para os cargos nelas existentes, prática de pleno conhecimento público,
na raiz de muitos escândalos da história recente do País.
Tão importante quanto avaliar as causas, é entender as consequências
dessa política, que aparentemente não vem sendo boa para o País. Tem havido atrasos
nas obras, que fragilizam o Sistema Interligado Nacional e, junto com a falta de
99
Destaque-se que estamos falando em redução das tarifas. Certamente, se uma empresa do grupo
Eletrobras venceu o leilão é porque ofereceu um preço mais baixo que as demais, de forma que, na
ausência da estatal, o consumidor iria pagar uma tarifa mais alta. Assim, ainda que a Eletrobras não tenha
contribuído para uma queda na tarifa, certamente contribuiu para que ela não aumentasse.
140
manutenção, ensejam a ocorrência de apagões, que têm se tornado mais frequentes de
2003 para cá. Apenas entre 22 de setembro e 26 de outubro de 2012, foram registrados
cinco apagões de maior ou menor monta, um deles afetando inclusive a Capital Federal.
Em decorrência do apagão que afetou o Nordeste do País em agosto de
2013, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico autorizou o acionamento de usinas
termelétricas naquela região, que geraram 1,1 mil MW, para compensar a redução do
intercâmbio de energia do Sudeste/Centro-Oeste e Norte de 3,8 mil MW para 2,7 mil
MW. A decisão, segundo o secretário executivo do Ministério de Minas e
Energia, Márcio Zimmermann, foi uma medida de segurança para evitar que a
possível ocorrência de mais queimadas provocasse um novo blecaute na região.
Esse despacho, feito em setembro de 2013, adicionou R$ 200 milhões
aos custos da energia para o consumidor, de acordo com o diretor-geral do Operador
Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Hermes Chipp. Segundo Chipp, o mês de
setembro é um mês de alta intensidade de queimadas e o despacho teve de ser aplicado
pelo menos por todo mês de setembro100.
Outro problema decorrente da participação das estatais do Grupo
Eletrobras nos leilões tem sido o atraso nas obras de novas linhas. Chesf, Furnas,
Eletronorte e Eletrosul estão engasgadas com o naco que abocanharam nos leilões de
transmissão. Segundo levantamento da Aneel, 96 obras de transmissão da Chesf
sofreram atrasos e chegaram a apresentar um atraso médio de 495 dias. Havia, entre as
obras atrasadas, linhas que chegaram a ter atrasos de até 2.294 dias.
O caso mais notório de atraso em obras de transmissão da Chesf é o dos
28 parques eólicos, construídos na Bahia e no Rio Grande do Norte, com potência de
678 megawatts, prontos para gerar energia desde julho de 2012, mas que ainda não
entraram em operação até agora, por falta de linhas de transmissão, que deveriam ter
sido entregues pela Chesf em maio de 2012.
Só os parques da Bahia possuem quase 300 megawatts de potência,
formam o maior conjunto eólico da América Latina, e têm capacidade para abastecer
uma cidade do porte de Brasília. Custaram R$ 1,2 bilhão, em 17 meses de obras.
100CanalEnergia,
12/09/2013.
141
Poderiam estar ajudando a economizar água dos reservatórios das usinas hidrelétricas
desde 9 de julho de 2012, ou gerando energia mais barata do que a das térmicas,
acionadas em outubro de 2012 para enfrentar essa falta d’água. A energia dos parques
eólicos baianos, mesmo não sendo gerada, está sendo paga pelo consumidor desde
julho, já que o cronograma do empreendimento de geração foi cumprido. Essa
remuneração soma um prejuízo total estimado pela Aneel em cerca de 770 milhões de
reais.
A Agência, que multou a Chesf em 11,5 milhões de reais pelos atrasos,
só nesse caso, encaminhou relatório detalhado à Advocacia-Geral da União (AGU),
apontando as causas do problema. A AGU terá que decidir se vai à Justiça para cobrar
esse prejuízo da Chesf, mas, de uma forma ou de outra, a conta desse desastre
certamente irá para o bolso do consumidor de energia elétrica. As linhas de transmissão
que ligarão os parques eólicos ao SIN, ao que se sabe, só ficarão prontas em 2014.
No total, a Chesf já foi multada pela Aneel – com 26 penalidades
irrecorríveis em âmbito administrativo – em mais de R$ 25 milhões, aí incluída essa
multa pelas linhas de conexão dos parques eólicos.
Já Furnas chegou a ter, segundo a Aneel, 39 obras atrasadas, com um
atraso médio de até 710 dias. Entre as obras não concluídas havia atrasos de até 2.525
dias. Furnas tinha cinco infrações administrativas irrecorríveis, num total de mais de R$
4,5 milhões.
A Eletronorte tinha cinco multas irrecorríveis. Chegou a ter 49 atrasos
em obras, tendo alcançado a média de 344 dias de atraso. Havia obra com atraso de
1.736 dias em sua carteira. A estatal federal em melhor situação era a Eletrosul, que
tinha apenas três infrações irrecorríveis, relativas a um atraso médio que chegou apenas
a 51 dias.
Os atrasos levaram o Poder Concedente a instituir regra para impedir
que as empresas inadimplentes com suas obrigações continuassem arrematando
empreendimentos. Passou a fazer parte dos editais dos leilões regra que inviabiliza a
participação de empresas que apresentem tempo médio de atraso na entrada em
operação comercial de instalações de transmissão superior a 180 dias em relação às
142
datas previstas nos respectivos contratos de concessão ou atos de autorização,
considerando as obras concluídas nos últimos 36 meses, ou que deveriam ter sido
concluídas até a publicação do Edital, e que tenham sofrido, no mesmo período, três ou
mais penalidades relacionadas a atraso na execução de obras de transmissão, já
transitadas em julgado na esfera administrativa.
Em razão dessa nova regra, Furnas e Chesf ficaram impedidas de
participar dos quatro últimos leilões só ou na liderança de consórcio e não puderam
participar do leilão do dia 13 de dezembro de 2013. A Eletronorte ficou impedida de
participar do leilão de 19 de dezembro de 2012.
Fora essas estatais, apenas a CEEE-GT, empresa de economia mista
gaúcha, e a IESul, privada, foram proibidas de participar de leilões. A IESul não pode
participar do leilão de dezembro de 2013, e também não havia participado dos três
anteriores (três atrasos, três multas irrecorríveis e atraso médio de 812 dias). A CEEEGT não pode participar dos dois últimos leilões (55 atrasos e quatro multas
irrecorríveis).
Uma última questão em relação aos leilões de linhas de transmissão
ainda merece análise. É fato que os deságios vêm caindo nos três últimos leilões –
14,67% em 10/05/2013; 11,63% em 12/07/2013; e 7,15% em 14/11/2013, o valor mais
baixo desde 2008 – e que dos 30 lotes oferecidos, nove (quase 1/3) não receberam
ofertas.
Há duas causas para isso. A primeira seria a taxa de retorno oferecida
nesses leilões aos empreendedores, que desde julho de 2013 caiu de 5% para 4,6%, no
momento em que os juros e o câmbio começavam a subir101. Tanto isso parece ser
verdade, que a Aneel está colocando em audiência pública proposta em que sugere o
valor real de 10,45% ao ano para o custo de capital próprio, mas mantém o custo do
capital de terceiros em 3,31% ao ano, em termos reais, como previsto na Resolução
Normativa 539, de 2013102. Esses valores influem no cálculo da receita permitida dos
leilões de linhas de transmissão.
101
102
Valor Econômico, 20/11/2013.
CanalEnergia, 19/11/2013.
143
O outro aspecto que prejudicou os leilões foi uma ação do próprio
Governo, com a MP nº 579, de 2012, convertida na Lei nº 12.783, de 2013. 67% do
sistema de transmissão foi incluído na renovação de concessões e faz jus a algo como
R$ 13 bilhões a receber em indenizações. Só a Eletrobras, entre geração e transmissão,
tem algo como R$ 14 bilhões a receber103.
As estatais foram as mais atingidas. Dessa forma, mesmo se todas as
empresas do grupo Eletrobras estivessem habilitadas a participar dos leilões, sua
participação ficaria comprometida, pois estão descapitalizadas e não sabem quando
receberão as indenizações a que têm direito. O Governo chegou a cogitar um
empréstimo da Caixa para a Eletrobras pagar dívidas com o setor elétrico, operação que
teve de ser cancelada diante da repercussão negativa.104 Com isso, segundo a
Associação Brasileira das Grandes Empresas de Transmissão de Energia Elétrica
(Abrate), cerca de R$ 500 milhões em investimentos foram represados em 2013.105
Os efeitos da MP 579 se fizeram sentir no leilão de 13 de dezembro de
2013. Três lotes não tiveram interessados. No leilão anterior, outros quatro já não
tinham tido ofertantes. CPFL, Cemig e Cteep, esta a maior empresa privada de
transmissão do Brasil, não participaram do leilão. "A Cteep não entrou por causa do
impacto da prorrogação das concessões na companhia", segundo Carlos Ribeiro,
presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Concessionárias
de Energia e gerente do Departamento de Operação da Empresa. Além da queda na
receita causada pela MP 579, por causa da redução das tarifas, a Cteep aguarda o
pagamento de parte da indenização por ativos não amortizados. Até lá, a empresa não
deve participar de nenhum leilão, incluindo o da linha de Belo Monte. A falta de
competição ajudou a derrubar o deságio, que ficou em 7,15%, ante a média histórica de
28,45% registrada a partir de 2003106.
Em síntese, vimos que a situação no setor de transmissão é um pouco
diferente do que ocorre na geração. A forte competição no setor tem permitido deságios
importantes nos leilões, independentemente da participação estatal. Contudo, os leilões
não têm sido eficazes em revelar o licitante capaz de oferecer o serviço de transmissão a
103
Valor Econômico, 20/11/2013.
Folha de S. Paulo, 05/12/2013.
105
O Estado de S. Paulo, 14/10/2013.
106
Folha de S. Paulo, 15/11/2013.
104
144
um menor custo e, simultaneamente, com qualidade. Os constantes atrasos na entrega
das linhas, sobretudo das subsidiárias do grupo Eletrobras, mostram a necessidade de
uma avaliação rigorosa do plano de negócios e de uma metodologia de execução em
uma fase prévia à qualificação dos candidatos.
Um melhor desenho dos leilões torna-se ainda mais necessário quando
se lembra que, de acordo com o próprio Governo Federal, será necessário investir cerca
de R$ 15 bilhões, até 2017, em 10,5 mil quilômetros de novas linhas e 21 subestações.
Somente na linha de Belo Monte será necessário investir cerca de R$ 4 bilhões para
construir a linha com 2,1 mil quilômetros de extensão107.
IV.3 – Revisões tarifárias e o impacto sobre as tarifas das distribuidoras
No Subseção II.4.1 vimos que, para geração e transmissão, o leilão pode
levar a uma precificação incorreta da energia produto. Na seção anterior constatamos
que o que poderia ser um bom princípio revelador de eficiência e de custos do setor,
parece ter-se transformado em instrumento governamental para obtenção de modicidade
tarifária a qualquer custo e maior participação estatal no setor. Para as distribuidoras,
esse problema ainda não se colocou porque os primeiros contratos de concessão
firmados sob o novo regime, na década de 1990, somente serão renovados a partir de
2015.
Nesta seção iremos discutir as principais características das revisões
tarifárias. As revisões tarifárias estão previstas nos contratos de concessão de
distribuidoras e transmissoras, além das geradoras que aderiram à prorrogação dos
contratos no âmbito da Lei nº 12.783, de 2013. A seguir, iremos analisar as revisões
aplicadas às tarifas das distribuidoras, uma vez que elas impactam diretamente as tarifas
de todos os consumidores do mercado regulado e já embutem todos os custos da cadeia
produtiva.
Na primeira parte desta Seção iremos mostrar o impacto do 3º Ciclo de
Revisão Tarifária Periódica (3CRTP) sobre as tarifas de distribuição, e possíveis
consequências futuras para distribuidoras e consumidores. Em seguida discutiremos os
principais determinantes da redução tarifária: a nova metodologia para o cálculo do
107
O Estado de S. Paulo, 14/10/2013.
145
Fator X, a ser definido adiante, e a menor remuneração do capital regulatório 108. Por
fim, comentaremos sobre outros aspectos da metodologia de determinação das tarifas.
IV.3.1 Evolução recente das tarifas das distribuidoras
Em 2003 teve início o primeiro ciclo de revisões tarifárias. Os ciclos são
de quatro anos, de forma que o segundo ciclo iniciou-se em 2007, e o terceiro, em 2011.
Para cada ciclo são estabelecidas regras que deverão ser aplicadas para todas as
distribuidoras que forem submetidas à revisão tarifária, nos termos contratuais. Para a
grande maioria das distribuidoras, as revisões ocorrem a cada quatro ou cinco anos.
Somente para a Escelsa (que atende à maior parte do Espírito Santo) o contrato prevê
revisões a cada três anos.
Conforme se argumentará ao longo desta seção, o 3º Ciclo de Revisão
Tarifária Periódica (3CRTP) alterou a remuneração do capital e as regras de reajuste
anual, o que levou a reduções mais acentuadas de tarifas, impondo perdas às
distribuidoras e consequentes ganhos para os consumidores no curto prazo. A Figura
IV.4, a seguir, mostra a evolução média das tarifas ao consumidor final para as maiores
distribuidoras que passaram pelo processo de revisão tarifária em 2011, doravante
denominadas Distribuidoras 2011, e para aquelas que passaram pelo processo somente
em 2013, que denominaremos Distribuidoras 2013. Por maiores distribuidoras
queremos dizer as maiores distribuidoras de cada estado, com um mercado mínimo de
500 mil consumidores, ou as distribuidoras que, mesmo não sendo as maiores de sua
respectiva área de concessão, tenham um mercado mínimo de um milhão de
consumidores109.
Conforme discutimos no Capítulo III, a MP 579, ao transferir para as
tarifas a redução de custos com a depreciação das geradoras, permitiu uma queda de
tarifas da ordem de 20%. Como o objetivo aqui é analisar o impacto das alterações
metodológicas introduzidas no 3CRTP sobre as tarifas, expurgamos, na figura abaixo, o
108
A forte queda nas tarifas entre 2012 e 2013 deve-se, em grande parte, ao impacto da MP 579, de
2012/Lei nº 12.783, de 2013, tema tratado no Capítulo III.
109
Com esses critérios, nossa amostra é composta por:
i)
Distribuidoras com revisão tarifária em 2011: Coelce, Eletropaulo, Celpa, Elektro,
Bandeirante e CPFL Piratininga;
ii)
Distribuidoras com revisão tarifária em 2013: Cemat, Cemig-D, CPFL Paulista, Enersul,
AES Sul, Coelba, Cosern, Celpe, RGE, Escelsa, Ceal, Cemar, Cepisa, EPB, Celg,
Amazonas e Light.
146
impacto da MP 579. Também normalizamos em 100 o valor das tarifas em 2010 para
facilitar a comparação.
Figura IV.4: Evolução das tarifas de energia elétrica entre 2010 e 2013 para as
distribuidoras com revisão tarifária em 2011 e 2013.
120,00
115,00
110,00
105,00
Revisão 2011 sem MP 579
100,00
Revisão 2013 sem MP 579
95,00
90,00
85,00
80,00
2010
2011
2012
2013
Fonte: Aneel, dados trabalhados pelos autores.
Para interpretar o gráfico acima, é importante ter em mente que, entre
2010 e 2012, os reajustes tarifários anuais para as empresas cuja revisão tarifária
ocorreu em 2013 foram feitos com base na metodologia do 2º Ciclo de Revisões
Tarifárias Periódicas (2CRTP). Já os reajustes anuais para as empresas com revisão em
2011 foram determinados de acordo com as regras do 3CRTP. Entre 2010 e 2012, a
diferença entre as duas trajetórias reflete, em grande parte, o impacto das alterações
metodológicas embutidas no 3CRTP110.
As Distribuidoras 2011 mantiveram suas tarifas inalteradas quando da
revisão tarifária. Se não tivesse havido a revisão, provavelmente teriam tido um reajuste
próximo ao que as Distribuidoras 2013 tiveram, de 8,2%, refletindo a inflação e a
variação dos custos não gerenciáveis no período. A diferença mais clara entre o 2CRTP
e o 3CRTP pode ser vista na variação entre 2011 e 2012. Nesse período todas as
concessionárias sofreram somente reajuste. Para as Distribuidoras 2011, o reajuste
médio foi de -0,1%, enquanto que, para as Distribuidoras 2013, foi de 5,3%. Essa
110
Há aspectos idiossincráticos tanto nos reajuste anuais, como na revisão periódica. Em relação aos
reajustes anuais, o índice de cada empresa depende do custo da energia que adquiriu, e isso depende,
entre outros fatores, da proporção da energia comprada de Itaipu (cujo preço é fixado em dólar) e da
compra de energia gerada por usinas termoelétricas. O fato de a maioria das empresas que sofreram
revisão em 2011 ser de São Paulo pode distorcer um pouco os resultados quantitativos. Observe-se,
contudo, que as tarifas da CPFL-Paulista, cuja revisão ocorreu em 2013, tiveram comportamento mais
semelhante ao das outras empresas que tiveram revisão em 2013 do que ao de suas congêneres paulistas.
147
diferença, superior a 5 pontos percentuais, pode ser vista, grosso modo, como resultante
do impacto das alterações metodológicas embutidas no 3CRTP.
Por fim, em 2013, as Distribuidoras 2011 tiveram um reajuste positivo de
2,8%, revertendo a redução próxima a 18%, observada no início do ano em decorrência
da MP 579. No caso das Distribuidoras 2013, a revisão tarifária garantiu que, em média,
a variação de preços continuasse negativa, mas o reajuste médio final, de -6% ficou bem
aquém da redução média de 18% decorrente da revisão extraordinária111.
Ainda é difícil avaliar o impacto da redução tarifária sobre as
distribuidoras e consumidores. Para as distribuidoras, uma das poucas evidências é a
queda em suas margens de lucratividade observada nos últimos anos. A Figura IV.5
mostra a média aritmética da margem líquida e da rentabilidade sobre o patrimônio
líquido de uma amostra de empresas de energia controladoras de concessionárias de
distribuição, bem como o resultado para a média das empresas listadas no anuário Valor
1000, publicação do jornal Valor Econômico, que lista os resultados das mil maiores
empresas brasileiras do setor não financeiro por ativos.
Figura IV.5: Margem líquida e rentabilidade sobre o PL de empresas do setor elétrico e
de empresas que formam a base do Valor 1000
Margem Líquida
2012
2010
Rentabilidade sobre o PL
Variação
2012
2010
Variação
Amostra distribuidoras
6,8
12,4
-5,6
9,3
15,5
-6,3
Distribuidoras 2011
7,6
13,8
-6,2
9,5
19,6
-10,1
10,4
-1,9
6,9
13,8
-6,9
Valor 1000
8,5
Fonte: Valor 1000, 2013, e Valor 1000, 2011.
Os resultados acima devem ser lidos com bastante cautela, pois os
balanços referem-se a grupos empresariais, e não a distribuidoras específicas. Assim, na
linha “Distribuidoras 2011”, utilizamos os resultados referentes aos grupos
controladores das distribuidoras que passaram por revisões tarifárias em 2011112. Como
111
Esses valores parecem contradizer fortemente os resultados coletados pelo IBGE, que, até outubro de
2013, mostram que o custo da energia elétrica caiu 15%. Alguns fatores que explicam essas diferenças
são o fato de a inflação calculada pelo IBGE levar em consideração somente as principais regiões
metropolitanas do Brasil, com as devidas ponderações pela população, ao passo que aqui utilizamos a
média aritmética simples. Além disso, o IBGE considera a média das tarifas ao longo do período, e aqui
estamos considerando somente um valor final. Assim, se o preço de um serviço é alterado somente no
último mês do ano, seu impacto sobre a inflação em doze meses será mínimo, pois não influenciará
significativamente o preço médio do período. Já aqui estamos considerando somente o preço de final de
período.
112
Os grupos que fazem parte da amostra Distribuidoras 2011 foram: Endesa, controladora da Coelce;
Brasiliana de Energia, controladora da Eletropaulo; Equatorial Energia, controladora da Celpa; Elektro;
148
pode ser visto, na média, a margem líquida de todas as grandes empresas caiu entre
2010 e 2012. Entretanto, a queda foi mais acentuada para as empresas do setor elétrico,
e foi particularmente mais aguda para os grupos que controlam as Distribuidoras 2011.
Observe-se que, em 2010, os grupos controladores de distribuidoras tiveram, em média,
margem líquida superior à das empresas que integram o Valor 1000. Já em 2012, a
margem líquida daquelas empresas havia ficado aquém da média do Valor 1000.
Já a redução da rentabilidade sobre o patrimônio líquido (PL) foi
ligeiramente menor para as empresas do setor elétrico em geral, porém, mais acentuada
para as controladoras das Distribuidoras 2011. Observe-se que a rentabilidade sobre o
patrimônio líquido tende a ser superestimada para as empresas do setor elétrico, uma
vez que há exigência de elevados investimentos iniciais que, para efeitos de balanço,
não são corrigidos. Isso subestima contabilmente os ativos e, consequentemente, o
patrimônio líquido (que corresponde à diferença entre ativo e passivo), aumentando
artificialmente a rentabilidade sobre o PL.
O que se vê, então, é que a contrapartida da redução das tarifas tem sido a
menor rentabilidade das distribuidoras. Ao contrário do que possa parecer em uma
primeira leitura, essa não é uma conclusão tautológica. Conforme discutido na Seção
II.5, as tarifas podem ser reduzidas por meio de efetivas reduções de custos, sem
prejudicar a rentabilidade das distribuidoras. Ainda é uma questão em aberto como a
busca da modicidade tarifária irá afetar a vida futura das empresas e consumidores. É
possível que as empresas viessem gozando de rentabilidade elevada e, agora, em
decorrência de pressões do Governo, estariam obtendo uma remuneração justa. Mas é
igualmente possível que a modicidade tarifária esteja deprimindo os retornos do
investimento a um nível que possa comprometer a sustentabilidade do setor. O fato de,
em 2012, três empresas da amostra113 terem apresentado margem líquida negativa e de a
média das empresas ter obtido rentabilidade menor que a média das mil maiores são
indícios de que a busca por modicidade tarifária pode ter sido excessiva.
Nesse caso, os benefícios de curto prazo, traduzidos na forma de contas
de luz mais baixas, devem ser pesados contra possíveis consequências de longo prazo,
EDP, controladora da Bandeirante; e CPFL, controladora da Piratininga. Para a amostra geral, incluímos
ainda Eletrobras, Cemig, Neoenergia, Copel, Light, Celesc, CEEPar e Energisa. Todos esses grupos
foram listados na publicação Valor 1000 de 2013 e 2011.
113
Eletrobras, Celesc e CEEE-Par.
149
como queda na capacidade de investimento ou deterioração na qualidade do serviço
oferecido, experiência, aliás, já vivida no Brasil, na década de 1980. Uma maior
capacidade de o órgão regulador conseguir extrair todos os ganhos de eficiência também
pode se traduzir, no longo prazo, em custos mais altos para o setor, conforme
discutimos na Seção II.4.3.
Nas próximas seções, discutiremos mais detalhadamente as alterações
metodológicas do 3CRTP que permitiram a redução (ou, pelo menos, aumentos mais
parcimoniosos) das tarifas de energia elétrica. A discussão se centrará sobre os
chamados custos gerenciáveis das distribuidoras, também conhecida como Parcela B. A
Parcela A, que representa cerca de 75% da tarifa final, é composta dos chamados custos
não gerenciáveis, aqueles custos em que a distribuidora é obrigada a incorrer, mas que
não é capaz de influenciar. Tais custos incluem a compra e transmissão de energia, as
perdas técnicas, os encargos setoriais e respectivos custos financeiros. Uma vez que a
distribuidora não tem controle sobre a Parcela A, esses custos não são objeto de
discussão quando das revisões tarifárias.
IV.3.2 – Ajuste dos custos operacionais e no Fator X no 3CRTP
Nesta seção iremos inicialmente descrever as novas metodologias
incorporadas no 3CRTP para o cálculo do custo operacional regulatório e do Fator X. O
custo operacional regulatório corresponde ao custo operacional que o regulador
considera justo para a concessionária exercer suas atividades. Não é, portanto, o custo
operacional efetivamente incorrido pela empresa, mas o custo que, idealmente, essa
empresa deveria ter. O custo operacional regulatório é essencial para se estabelecer o
reposicionamento tarifário (ou seja, a tarifa que irá vigorar imediatamente após a
revisão tarifária) e para o cálculo do Fator X.
O Fator X é um índice definido durante o processo de revisão tarifária e
que tem por objetivo repassar ao consumidor eventuais ganhos de produtividade das
concessionárias durante os reajustes anuais, entre os ciclos de revisão. Grosso modo, o
reajuste anual é dado pela inflação menos o Fator X. Quanto mais alto for esse fator,
maior o repasse de ganhos de produtividade para o consumidor. Como veremos, um dos
componentes do Fator X depende da comparação entre o custo operacional efetivo da
concessionária e o custo operacional regulatório.
150
Os custos operacionais compreendem despesas com pessoal, materiais,
serviços de terceiros, seguros, etc., e representam, em média, 60% da Parcela B. Além
disso, eles são mais flexíveis, podendo ser ajustados com maior rapidez,
comparativamente aos custos com capital. Por sua maior flexibilidade, a experiência de
diversos países tem demonstrado que são os custos operacionais que sofrem maior
redução em resposta a mecanismos de incentivo à eficiência114.
Nos dois primeiros ciclos tarifários, a Aneel adotava o conceito de
Empresa de Referência (ER) para estimar os custos operacionais regulatórios. Trata-se
de uma empresa fictícia, eficiente, e cujos custos deveriam balizar o valor das tarifas.
Os custos da ER eram calculados a partir de centenas de parâmetros e, para cada
empresa, havia uma análise de fatores específicos, que permitiria ajustar a tarifa final às
idiossincrasias da concessionária. No terceiro ciclo, buscou-se alterar a base de
referência, saindo-se do conceito de ER para o de benchmarking. No benchmarking, a
Aneel compara as concessionárias, e a meta de eficiência passa a ser a eficiência média,
onde a média é estimada considerando somente as empresas que apresentaram ganho de
produtividade entre os ciclos de revisão.
Para não alterar substancialmente as tarifas em decorrência da mudança
de metodologia, a Aneel optou por uma transição gradual do modelo de ER para o de
benchmarking. Didaticamente, a nova metodologia de precificação foi dividida em três
etapas.
Na primeira etapa é calculado o custo operacional regulatório para fins de
reposicionamento tarifário. Esse custo corresponde ao custo da ER obtido no 2CRTP,
após alguns ajustes115, com as seguintes alterações:
i)
Atualização monetária;
ii)
Atualização pela variação do produto, sendo o produto um índice
que sintetiza a variação da extensão da rede, dos consumos de alta, média e baixa
Vide
Nota
Técnica
nº
452/2013
–
SRE/ANEEL,
disponível
em:
http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/consulta_publica/documentos/Nota%20T%C3%A9cnica_452_2013_
SRE%20Aprimoramentos%20da%20Metodologias%20de%20Revis%C3%A3o%20Tarif%C3%A1ria%2
0Discuss%C3%A3o%20Conceitual.pdf
115
Os ajustes referem-se à: i) dedução dos custos relativos à geração própria, que são tratados na Parcela
A; ii) dedução das receitas com serviços taxados, que são tratadas na metodologia de Outras Receitas;
iii) exclusão dos custos de capital associados às anuidades relativas a veículos, sistemas de informática e
aluguel de móveis e imóveis administrativos, que são tratados como Base de Anuidade Regulatória –
BAR na metodologia de definição da Base de Remuneração Regulatória; iv) exclusão dos custos
adicionais relativos ao crescimento dos processos e atividades comerciais e de operação e manutenção.
114
151
tensão, e do número de consumidores em cada mercado. O objetivo desse procedimento
é ajustar o custo total à produção efetiva da concessionária;
iii)
Desconto pela produtividade, calculada pela média do período,
definida em 0,782% ao ano.
A segunda etapa corresponde a uma análise de eficiência relativa, e é
feita em dois estágios. No primeiro, avalia-se como a produtividade da empresa116 se
posiciona na média do setor, lembrando que a média é calculada considerando somente
as empresas nas quais houve ganhos de produtividade no período. Digamos que uma
empresa tenha um índice de eficiência de 110%. Isso significa que seu custo operacional
eficiente será o seu custo operacional real multiplicado por 110%.
O primeiro estágio considera somente a produção e os custos totais das
empresas. Para refinar o cálculo, foi adicionado o segundo estágio, que analisa os
chamados fatores ambientais, que podem influir na produtividade. São fatores
ambientais o nível médio salarial na região (salários maiores estão associados a custos
mais altos), regime pluviométrico (regiões com mais chuvas requerem maior
manutenção), concentração do mercado (os custos por unidade de produto caem quando
os consumidores estão mais próximos uns dos outros), e nível de complexidade no
combate a perdas não técnicas (que inclui a probabilidade de furto de energia). Esse
segundo estágio é utilizado para estabelecer um intervalo de confiança para o custo
operacional encontrado no primeiro estágio. Assim, definem-se um limite inferior e um
limite superior para o custo operacional efetivo ajustado pela eficiência relativa.
Se o custo operacional da ER calculado na primeira etapa se situar dentro
do intervalo de confiança, não há ajustes a fazer. Se o custo se situar acima do limite
superior do intervalo de confiança, o que significa que a empresa foi mais eficiente do
que a média, há uma queda nas tarifas, mas a redução não é imediata. Ela é feita ano a
ano, por meio do componente T do Fator X. O Componente T do Fator X pode variar
entre -2% (para as empresas menos eficientes) a 2% (para as empresas mais eficientes).
Resumidamente, o componente T é um fator de ajuste, que tem por objetivo ajustar o
custo operacional de forma a fazer a transição entre o custo regulatório estimado pela
ER (modelo que vigorou até o 2CRTP) para o custo decorrente do modelo de
benchmarking.
116
A produtividade é medida pela relação entre o custo e o índice de produto.
152
Além do Componente T, o Fator X contém outras duas parcelas: o termo
Pd, que reflete ganhos de produtividade, e a parcela Q, que tem por objetivo estimular
as empresas a prestarem serviços de melhor qualidade.
Até o 3CRTP, a qualidade era mensurada pelo fator Xc, mensurado com
base em pesquisa de avaliação dos consumidores de energia, consolidada no Índice
Aneel de Satisfação do Consumidor (IASC). O problema desse índice é que incentivava
os consumidores a avaliarem negativamente sua distribuidora, pois isso se refletiria em
fator Xc mais baixo e, consequentemente, em tarifas menores. No 3CRTP, o fator Xc foi
substituído pela parcela Q para mensurar a qualidade.
A qualidade é mensurada por um índice formado por dois indicadores:
DEC (Duração Equivalente de Interrupção), que mede o tempo em que, em média, o
consumidor ficou sem luz, e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção), que mede o
número de vezes em que houve queda do fornecimento. Quanto maiores forem DEC e
FEC, pior a qualidade do serviço. A parcela Q varia de -1% (para as empresas que
apresentaram melhor qualidade) a 1%. Lembrando que, como o Fator X entra com sinal
negativo no cálculo do reajuste tarifário, isso significa que as empresas que oferecerem
serviços de melhor qualidade terão direito a uma tarifa mais alta. Trata-se, portanto, de
um estímulo para que as empresas busquem aumentar a qualidade de seus serviços. A
parcela Q não é definida ex-ante, quando da revisão contratual. Ela é calculada
anualmente, com base no desempenho ocorrido, para integrar o reajuste tarifário.
Quanto à parcela Pd, ela já existia nos ciclos anteriores (com o nome de
Parcela Xe), mas a forma de cálculo era diferente. A produtividade é medida,
basicamente, em função da variação do consumo e do número de unidades atendidas. A
hipótese subjacente é que há fortes ganhos de escala no consumo, de forma que
aumentos no consumo permitem aumentar a receita sem aumentos equivalentes de
custos. Já aumentos no número de consumidores tendem a impactar os custos mais
fortemente do que as receitas, pelo menos em um primeiro momento, quando é
necessário expandir os serviços.
No 2º Ciclo, a Parcela Xe era estimada a partir de projeções para as
receitas, consumo e número de consumidores para os anos seguintes. Também havia um
componente que captava a diferença entre o investimento planejado, anunciado pela
distribuidora, e o investimento efetivamente ocorrido. Esse componente representava,
então, um importante mecanismo para lidar com o problema de assimetria de
informações, pois deixava para a própria distribuidora declarar o quanto iria investir. Se,
153
ao final do período, o investimento não tivesse sido efetivado, ela seria penalizada, com
redução na tarifa.
No 3º Ciclo, a parcela Pd passou a ser estimada com base nos dados
efetivamente ocorridos entre as duas revisões. Em princípio, como o fator X incidirá
sobre reajustes futuros, o mais correto seria utilizar uma estimativa do crescimento
esperado da produtividade. Ocorre que, na prática, as estimativas de crescimento
baseiam-se em dados ocorridos e estão mais sujeitas a erros.
Por outro lado, utilizar ganhos de produtividade ocorridos no passado
pode ser inadequado quando há motivos para se acreditar que o ambiente
macroeconômico se alterou. Um dos principais determinantes da demanda por energia –
o crescimento da economia – caiu substancialmente entre 2007-2010 e 2011-2014
(considerando as projeções). Nesse cenário de desaceleração econômica, o cálculo de
ganhos de produtividade considerando valores passados tenderá a superestimar os
ganhos efetivamente observados.
Exceto pelo problema acima, a alteração metodológica do 3º Ciclo parece
ter sido adequada e, em princípio, é neutra para empresas e consumidores. Tudo
depende de como era a qualidade das estimativas antes e após a alteração metodológica.
Outra alteração entre o 2º e o 3º Ciclos de Revisão foi a eliminação do
componente Xa. O objetivo desse componente era ajustar a tarifa em decorrência de
variações de preços relativos. Mais especificamente, o reajuste básico é dado pela
variação do IGP-M, que é um índice geral, formado por uma média ponderada da
inflação no atacado, ao consumidor e na construção civil. Entretanto, a evolução de
alguns custos, como salários, pode ser mais bem descrita pela evolução de um índice de
preços ao consumidor, como o IPCA. Dessa forma, quando o IPCA subia mais
fortemente que o IGP-M, o fator Xa era negativo, levando a um reajuste mais elevado
das tarifas (lembrando que para estabelecer a nova tarifa, o Fator X é subtraído do IGPM), o que refletia adequadamente o aumento de custos das empresas. Similarmente,
quando o IGP-M subia mais fortemente, o reajuste tarifário era mais baixo.
Como, a priori, não há porque esperar que a inflação medida por um
índice seja maior que outra, a exclusão do componente Xa do Fator X, em princípio, é
neutra para consumidores e distribuidoras. Entretanto, gera um aumento desnecessário
de risco para as empresas, pois o reajuste anual das tarifas passa a refletir com menor
fidelidade o real aumento de custos dos insumos. Em 2009, por exemplo, a inflação
medida pelo IPCA foi de 4,1%, enquanto que a do IGP-M foi negativa, de -1,72%. Ou
154
seja, houve um diferencial de quase seis pontos percentuais que deixaria de ser
considerado caso o 3º Ciclo já estivesse em vigor.
A Figura IV.6 mostra o Fator X estabelecido no 2º e 3º Ciclos de Revisão
para as vinte maiores distribuidoras, segundo o número de consumidores atendidos117.
Para o 2º Ciclo não estamos considerando o componente Xa, que é definido a cada ano.
No caso do 3º Ciclo não consideramos a Parcela Q, pois essa também é definida ex post.
Figura IV.6 Componentes do Fator X no Terceiro e Segundo Ciclos de revisão
tarifária, por concessionária118.
terceiro ciclo
Pd
T
segundo ciclo
Total
Xe
Total
CEMIG
1,15
0,68
1,83
0,84
0,84
ELETROPAULO
1,03
0
1,03
2,42
2,42
COELBA
0,84
2
2,84
1,15
1,15
CPFL Paulista
1,25
0
1,25
0,83
0,83
CELPE
1,27
0,51
1,78
0,37
0,37
COELCE
1,53
2
3,53
2,82
2,82
Celesc
1,33
0
1,33
1,08
1,08
CELG
1,29
0
1,29
0
0
ELEKTRO
1,33
2
3,33
1,24
1,24
CEMAR
1,31
1,45
2,76
1,06
1,06
CELPA
0,46
2
2,46
0,43
0,43
BANDEIRANTE
1,08
0
1,08
0,74
0,74
RGE
0,77
0
0,77
0,66
0,66
ESCELSA
0,99
1,68
2,67
0,95
0,95
AES SUL
1,12
0
1,12
1,5
1,5
Média
1,13
0,72
1,86
1,02
1,02
A Tabela acima permite concluir que, na média, o Fator X aumentou do
2º para o 3º Ciclo de Revisões, o que implica reajustes tarifários mais baixos. Das 16
concessionárias da amostra, em somente uma (Eletropaulo), houve queda no Fator X. O
componente T, que, em tese, poderia variar entre -2% e mais 2% foi sempre não
negativo para as maiores distribuidoras do País.
117
As distribuidoras Ampla e Copel não foram incluídas na amostra porque ainda não tiveram o 3CRTP
concluído ou porque não havia dados disponíveis.
118
Para o segundo ciclo, a tabela considera os valores de Xe homologado nas revisões tarifárias. O Xe
efetivo poderia ser recalculado, caso o valor investido pela distribuidora fosse menor do que o anunciado.
155
Sem uma análise caso a caso de cada distribuidora, e sem conhecer
detalhadamente os modelos utilizados, não é possível, em princípio, definir qual medida
de crescimento da produtividade é mais correta – se a que embasou Xe ou Pd. Mas o
fato é que, para a grande maioria das concessionárias, o 3º Ciclo incorporou nas tarifas
um ritmo mais rápido de aumento de produtividade. Se, por um lado, isso contribui para
a modicidade tarifária, por outro, pode comprometer a sustentabilidade do setor. A
redução da rentabilidade das empresas, discutida na seção anterior, pode ter sido, em
parte, influenciada pela nova metodologia de cálculo do Fator X.
IV.3.3 – Remuneração do capital
Além dos custos operacionais, as revisões tarifárias têm de definir o
custo do capital. Conforme discutido no Capítulo II, o objetivo do regulador é estimular
o regulado a incorrer nos chamados custos eficientes, de forma que os investimentos
garantam o suprimento adequado de energia com um nível de qualidade satisfatório.
Compete ao regulador, por um lado, evitar gastos excessivos e desnecessários, e, por
outro, garantir que os investimentos necessários sejam realmente concretizados, em um
ambiente caracterizado por fortes assimetrias de informação.
O custo do capital depende de dois fatores: da base de remuneração e da
taxa que irá remunerar o capital investido. Em linhas gerais, a base de remuneração
regulatória, que representa o valor do capital que a Aneel reconhece para fins de
remuneração, depende, grosso modo, dos gastos efetivamente ocorridos. Já a
remuneração do capital é estimada pelo órgão regulador independentemente do real
custo de oportunidade das empresas. O objetivo, nesse caso, é estimulá-las a encontrar a
forma mais barata de financiamento. Trataremos desses dois tópicos a seguir.
Em princípio, integram a base de remuneração regulatória o ativo
imobilizado em serviço (AIS) 119, avaliado e depreciado; o almoxarifado de operação; o
ativo diferido; e as obrigações especiais. Porém a Aneel somente reconhece os ativos
considerados necessários para o provimento de serviços. Em geral são reconhecidos
todos os ativos, exceto os não utilizados diretamente na atividade fim do serviço
público. Por exemplo, imóveis da concessionária utilizados para clubes de funcionários
119
Alguns ativos fixos, como veículos e imóveis de uso administrativo e softwares não integram a base de
remuneração regulatória, mas fazem jus a uma anuidade.
156
não são considerados investimentos elegíveis para fins de composição da base de
remuneração regulatória.
Uma vez precificado o ativo, é feita nova correção pelo índice de
aproveitamento, que vai de 0% (situação hipotética em que nenhum ativo é
efetivamente utilizado) a 100% (quando todos os ativos são utilizados). O objetivo
desse índice é evitar o sobreinvestimento por parte da concessionária.
Para calcular o índice de aproveitamento no caso de uma subestação, por
exemplo, projeta-se a demanda para os dez anos seguintes. Se algum equipamento, por
exemplo, um transformador, se mostrar redundante para essa demanda projetada, esse
equipamento será considerado como reserva e não integrará o índice de aproveitamento.
Em termos práticos, os equipamentos de reserva, por não integrarem a base de
remuneração regulatória, transformam-se em um custo não recuperável para as
empresas e, por isso, há forte desestímulo para que sejam adquiridos120.
A questão que se coloca para os ativos elegíveis para compor a base de
remuneração é sua precificação. Para tanto, a Aneel os divide dois grupos. O primeiro é
formado pela chamada “base blindada”. Trata-se dos ativos reconhecidos no ciclo de
revisão tarifária anterior. No caso dos bens de capital, expurgam-se da base blindada os
ativos que foram baixados no período, e os remanescentes são corrigidos
monetariamente pelo IGP-M, bem como sofrem o desconto referente à depreciação do
período. Os itens que compõem a base blindada, portanto, não estão sujeitos a nova
avaliação.
Para os investimentos incrementais, a metodologia utilizada é a do Valor
Novo de Reposição (VNR). De forma geral, o VNR corresponde ao custo de se adquirir
um equipamento novo igual ou similar ao que está em operação. Para tanto, a Aneel
utiliza o banco de preços da distribuidora, formado com base nas informações de todas
as compras efetivamente realizadas pela concessionária nos dois anos que antecedem a
data-base do laudo. Assim, o VNR corresponde a um valor de referência para o
equipamento, que pode divergir do valor efetivamente pago para sua aquisição.
120
Em situações excepcionais a Aneel pode reconhecer alguns equipamentos de reserva para fins de
compor a base de remuneração regulatória.
157
A proposta de precificar o ativo pelo valor de referência é meritória, se o
valor de referência, de fato, for compatível com a média de preços praticada no
mercado. Conceitualmente, as principais vantagens de se utilizar o valor de referência
são a menor probabilidade de sobreavaliação de custos e o incentivo para as empresas
buscarem fornecedores mais baratos. A desvantagem é dificultar a escolha de produtos
customizados. Por exemplo, um fornecedor “A” pode oferecer um equipamento por um
preço mais baixo do que um fornecedor “B”, mas este, no pacote, incluiria melhor
assistência técnica ou melhores condições de financiamento, de forma que o pacote
agregado de serviços e produto torna-se mais barato. Embora haja espaço para
renegociação junto à Aneel, o excesso de burocratização pode desestimular escolhas
eficientes.
Do ponto de vista prático, o problema mais sério da precificação pelo
Valor Novo de Reposição (VNR) é que ela só considera o valor médio do equipamento
referente aos dois últimos anos. Ocorre que equipamentos adquiridos na primeira
metade do ciclo tarifário, de quatro anos, podem sofrer significativas alterações de
preços, principalmente em decorrência da variação cambial.
Observe-se que a formação da base blindada encontra pleno respaldo na
teoria. Conforme discutimos no Capítulo II.4.2, precificar os investimentos incrementais
ocorridos ao longo do contrato pelo VNR (ali falávamos no custo marginal) iria
requerer uma remuneração para o risco de obsolescência. Como esse risco não é
reconhecido pelo órgão regulador, a viabilidade financeira do investimento requer que o
custo considerado seja o custo de aquisição do equipamento, e não seu custo corrente.
Entretanto, também dentro de um ciclo de revisões tarifárias – e não somente entre
ciclos – existe o risco de o preço de um equipamento variar. Isso requer que o preço
correto a ser considerado deveria ser o da época de aquisição do bem, e não o preço que
vigeu nos dois últimos anos do ciclo tarifário.
Uma vez definida a base de remuneração regulatória, o passo seguinte é
determinar como essa base será remunerada. Em um mundo sem assimetria de
informações, a remuneração correta seria o custo de oportunidade do capital. Remunerar
acima desse custo faria com que os consumidores pagassem uma tarifa
desnecessariamente mais elevada. Já remunerar abaixo desse custo não atrairia
investidores interessados. Afinal, os proprietários do capital avaliam as diferentes
158
oportunidades de negócio, sendo o setor de energia somente um deles. O investimento
fluirá para o setor somente se a perspectiva de remuneração do capital oferecida por
aquele setor for compatível com os demais usos possíveis para esse mesmo capital.
O mundo, entretanto, não é de perfeita simetria de informações, e a
agência reguladora não conhece o custo de oportunidade dos investidores em energia.
Dessa forma, a Aneel tenta estimar esse custo através do Custo Médio Ponderado do
Capital – WACC (do inglês Weighted Average Cost of Capital). O termo “ponderado”
refere-se à proporção de capital próprio e de terceiros utilizados no financiamento da
empresa.
Resumidamente, a Aneel estimou a remuneração do capital próprio a
partir de um modelo CAPM121, que analisa a combinação risco/retorno eficiente para
diferentes ativos. Como a remuneração do capital próprio está intrinsecamente
associada ao retorno de ações, a Aneel utilizou como base o comportamento acionário
norte-americano, que possui uma série histórica mais longa. Para a remuneração do
capital de terceiros, a Aneel considerou a remuneração de títulos do governo norteamericano como proxy de um ativo livre de risco, adicionou o risco de crédito para
empresas com classificação de risco Baa3, segundo classificação da Moody’s
(correspondente à nota mínima para o emissor obter o “grau de investimento”), e o risco
Brasil. A metodologia detalhada do cálculo do custo do capital encontra-se em Aneel
(2011). Quanto à ponderação entre capital próprio e de terceiros, a Aneel utilizou os
dados observados para as empresas entre 2006 e o ano de revisão tarifária no 2CRTP, e
encontrou uma razão capital de terceiros/capital total de 55%.
Observa-se que o WACC vem caindo sucessivamente ao longo dos ciclos
de revisão, passando de 11,26%, no primeiro ciclo, para 9,95%, no segundo, até atingir
7,5% no terceiro. A questão que se coloca é, em que medida essa redução no WACC
reflete uma redução no custo de oportunidade do capital? E em que medida a busca por
modicidade tarifária está estimulando o regulador a agir de forma oportunista na forma
descrita na Seção II.4.2? Afinal, as empresas de distribuição estão em certa medida
presas ao contrato, e, exceto no caso de a remuneração do capital cair a níveis
absolutamente insustentáveis, será vantajoso para tais empresas manterem a concessão,
121
Sobre o modelo CAPM, ver Ross et al (2006).
159
mesmo que os investimentos estejam sendo remunerados abaixo de seu custo de
oportunidade.
Não se pode deixar de reconhecer que o ambiente macroeconômico
melhorou substancialmente no Brasil entre 2003 e 2011, quando foram definidos os
parâmetros do primeiro e terceiro ciclos de revisão: a taxa Selic caiu de 26% ao ano,
para 11,5% (dados referentes ao início dos respectivos anos), e o risco País, medido
pelo Embi-Br, caiu de aproximadamente 1.400 pontos base para cerca de 200 pontos
base. Igualmente houve ampliação do mercado de crédito e concomitante queda dos
spreads. Assim, seria bastante razoável esperar que o custo de oportunidade caísse no
período.
Mas também há evidências de que a redução do WACC pode ter ido
além da queda do custo de oportunidade. Conforme discutimos anteriormente, a
rentabilidade das empresas do setor de energia elétrica incluídas na relação Valor 1.000
caiu mais fortemente do que a média nos últimos dois anos. Outra evidência importante
é a Aneel ter deixado de considerar o risco cambial e o risco regulatório neste 3CRTP.
De acordo com a Aneel, o risco regulatório pode até existir, mas vários
autores já tentaram mensurá-lo e, se encontraram algum resultado, foi que as empresas
do setor elétrico apresentam menor risco que as demais. Quanto ao risco cambial, a
Aneel argumenta que ele já está embutido no risco País.
Trata-se de argumentos incorretos, em nossa opinião. Qualquer risco
varia ao longo do tempo e utilizar os valores passados, fixando-os para um período de
quatro anos, pode ser temerário, principalmente para uma economia volátil como a
brasileira. No Capítulo III mostramos como tem havido um crescente intervencionismo
do Estado brasileiro no setor elétrico, o que tende a aumentar o risco regulatório.
Tome-se como exemplo as idas e vindas com a MP 579. Já se passou
mais de um ano desde sua edição e ainda não está definido o valor que será utilizado
para indenizar os ativos não depreciados. Para as várias concessões que irão se encerrar
a partir de 2015, o Governo já anunciou – reiteradamente – que irá alterar as regras, mas
ainda não as anunciou. Um reflexo da maior instabilidade do setor pode ser visto no
comportamento das ações das empresas do setor elétrico, que, nos doze meses
160
encerrados em 1º de novembro de 2013, apresentaram volatilidade média acima da
média das ações das empresas que compõem o IBOVESPA.
Concordamos, entretanto, que é difícil mensurar o risco regulatório.
Ainda assim, isso não é motivo para excluí-lo das contas. Especialistas do mercado
financeiro certamente poderão precificar o risco.
No que diz respeito ao risco cambial, defendemos a tese de que se trata
de um risco diferente do risco Brasil, ainda que ambos possam ser fortemente
correlacionados. O risco País tenta capturar a probabilidade de o país honrar seus
compromissos em moeda estrangeira. Já o risco cambial busca mensurar a volatilidade
do preço da taxa de câmbio. São, portanto, riscos distintos. Conforme esclarece Hall
(2013)122, bônus emitidos na moeda local por países emergentes são inerentemente mais
voláteis que bônus emitidos pelo mesmo país, porém denominados em dólar. Deve-se
ter em consideração que o investidor internacional está preocupado com sua
remuneração em dólar, e não em reais, pesos, rúpias ou yuans. Além disso, mercados
emergentes apresentam maior volatilidade na taxa de juros (com óbvios reflexos sobre a
taxa de câmbio) e estão mais sujeitos a riscos regulatórios, como controle de saída de
capitais. Por esse motivo, não se pode concluir que o risco País representa
adequadamente o risco cambial. São dois riscos a que estão sujeitos os investidores no
Brasil.
Além da eliminação dos riscos cambial e regulatório – que tem o claro
propósito de reduzir o WACC –, a metodologia está sujeita a outras críticas, como se
verá a seguir.
Em primeiro lugar, não nos parece correto o uso da média de mercado
para estabelecer a estrutura ótima de capital próprio/terceiros. O capital de terceiros é
substancialmente mais barato do que o capital próprio – custos de 11,26% ante 13,43%,
respectivamente. Como mais da metade da chamada estrutura ótima de capital é
constituída por capital de terceiros, isso contribui para reduzir o WACC. Sem uma
análise de risco/retorno não há porque utilizar a média do mercado e rotulá-la como
estrutura ótima. Além disso, a diferença de acesso ao capital de terceiros pode ser muito
122
Ver
https://www.mfs.com/wps/FileServerServlet?servletCommand=serveUnprotectedFileAsset&fileAssetPat
h=/files/documents/news/mfse_emdusd_wp.pdf
161
diferente entre as empresas. Por exemplo, se a Eletrobras tiver maior facilidade de
acesso ao crédito subsidiado do BNDES do que a média do mercado, a estrutura ótima
dessa empresa deveria conter uma maior parcela de crédito de terceiros.
O cálculo da taxa de retorno do capital próprio a partir de dados norteamericanos também é criticável. Entende-se perfeitamente que, para os Estados Unidos,
há séries mais longas e menos quebras estruturais, por se tratar de uma economia mais
estável do que a nossa. Assim, as estimativas são mais confiáveis. Entretanto, isso não
quer dizer que essas estimativas sejam mais representativas de nosso custo de
oportunidade. Por exemplo, um parâmetro importante na determinação do custo de
oportunidade, o parâmetro beta, que mede a correlação entre os retornos do ativo em
questão e uma cesta de ativos, pode ser totalmente diferente do que o observado no
Brasil. Igualmente diferentes podem ser (e provavelmente o são) a relação entre o
retorno da bolsa de valores e de títulos do Tesouro no Brasil e nos Estados Unidos. Por
fim, no caso do capital de terceiros, consideraram-se as taxas referentes a dez anos.
Como os prazos de concessão são usualmente mais longos, se a Aneel tivesse
considerado prazos mais compatíveis, como de trinta anos, provavelmente teria
encontrado um valor mais alto para a remuneração do capital.
Há outros riscos idiossincráticos à atividade de distribuição. A parcela A,
que representa os custos não gerenciáveis, representa cerca de 80% da tarifa ao
consumidor. Ou seja, sobre esses 80%, a distribuidora não tem qualquer controle,
embora seja obrigada a pagar mensalmente o custo da energia que adquire. A flutuação
do custo da energia pode influenciar dramaticamente o caixa das empresas e, portanto,
representa um risco que deveria ser devidamente remunerado no WACC. Na próxima
Seção discutiremos o problema recente de exposição involuntária das distribuidoras,
onde veremos que esse risco pode ser extremamente alto.
Outro problema que merece reflexão é sobre que base remuneratória
deve incidir o WACC. Atualmente, o WACC definido no mais recente ciclo de revisão
é utilizado para remunerar todo o capital elegível. Cabe discutir se cada ativo não
deveria ser remunerado de acordo com o WACC que vigia no período em que foi
adquirido. Trata-se de um argumento similar ao que justificou a blindagem dos
investimentos que já haviam sido precificados no ciclo de revisão anterior. As
condições de financiamento podem se alterar substancialmente entre uma revisão
162
tarifária e outra. Ao se remunerar todo o capital pelo WACC mais recente, está-se, na
prática, exigindo que a empresa renegocie periodicamente todos os seus compromissos
financeiros, o que aumenta os custos de transação e, ainda assim, isso pode ser
insuficiente para resolver o problema.
Pode-se pensar que se a empresa contratar somente empréstimos com
taxas flutuantes estará protegida de variações do WACC. Afinal, se as condições
econômicas melhorarem, os juros pagos automaticamente cairiam, o que viabilizaria
uma redução do WACC. Isso é parcialmente correto. Juros flutuantes, de fato, podem
resolver parte do problema de adaptação a alterações no ambiente macroeconômico.
Mas somente parte. Em primeiro lugar, uma estratégia ótima de composição de ativos
dificilmente será uma constituída por 100% da dívida com juros flutuantes. O portfolio
ótimo certamente conterá títulos em renda fixa e mesmo denominados em outras
moedas.
Mesmo para operações com juros flutuantes é necessário levar em
consideração que, quando uma operação é contratada, há também um spread que reflete
o risco do tomador. Esse spread usualmente é fixo, de forma que, ainda que a percepção
de risco oferecido por aquele agente melhore ao longo do tempo, ele continuará
pagando spreads mais altos referentes aos empréstimos mais antigos. Dessa forma, o
ideal seria que a WACC refletisse, pelo menos em parte, a parcela do financiamento que
é pouco sensível a variações no custo de oportunidade.
As questões aqui levantadas têm como objetivo não somente uma
eventual alteração da metodologia adotada, mas, principalmente, chamar atenção para a
necessidade de árbitros, quando uma das partes se julgar prejudicada. Conforme
argumentamos no Capítulo II, a necessidade de pesados investimentos iniciais favorece
o comportamento oportunista por parte do órgão regulador. A escolha da metodologia
de definição da base de remuneração e da metodologia de cálculo pode ser
adequadamente manipulada de forma a forçar uma redução excessiva da remuneração.
A possibilidade contratual de levar demandas para arbitragem pode contribuir
fortemente para a redução de comportamentos oportunistas.
A melhor solução, entretanto, é o órgão regulador evitar se comportar de
forma oportunista, e reconhecer que modicidade tarifária deve ser obtida dentro dos
limites do possível, no caso, respeitando o custo de oportunidade do investidor.
163
IV.4 – Novos desafios para a política de modicidade tarifária: a exposição
involuntária das distribuidoras
A partir da Lei nº 10.848, de 2004, as distribuidoras passaram a ser
obrigadas a contratar 100% da sua demanda via leilões de compra e venda de energia.
Para tanto, as distribuidoras devem planejar sua demanda e informá-la ao Governo,
encarregado de organizar os leilões de suprimento, segundo o decreto nº 5.163, de 2004.
Os leilões organizados pelo Governo são A-5, para suprimento às distribuidoras em
cinco anos (energia nova, hidrelétrica); A-3, para suprimento em três anos (energia
nova, em geral térmica ou eólica); A-1, que funciona como leilão de ajuste da demanda
das distribuidoras, para entrega de energia existente (energia velha) no ano seguinte, e
Leilão de Ajuste, para entrega imediata, um ajuste finíssimo da demanda.
O suprimento às distribuidoras tem apresentado alguns problemas. Tem
sido comum a realização dos leilões de energia nova no final do ano calendário, o que
reduz o prazo dos empreendedores para a construção das usinas123. Da mesma forma, os
leilões de novas linhas de transmissão somente são realizados após os leilões de
geração, o que também diminui o prazo dos seus vencedores para a construção das
linhas. Em ambos os casos, o licenciamento ambiental e a ação do Ministério Público e
de ONGs ligadas aos movimentos socioambientais têm sido as causas mais frequentes
de atraso na entrega da energia. Contudo, com a edição da MP nº 579, de 2012, surgiu
um novo problema para o suprimento das distribuidoras.
O atendimento da demanda das distribuidoras de energia elétrica
mediante os contratos firmados no 1º Leilão de Energia Existente, realizado em
07/12/2004, para suprimento de energia no período entre 01.01.2005 e 31.12.2014 –
ocasião em que foram negociados 17.000 MWmed –, foi feito em conformidade com
determinação constante do decreto nº 5.163, de 2004, editado para regulamentar a Lei nº
10.848, de 2004. Esses contratos, oriundos do 1º Leilão de Energia Existente,
começaram a vencer em 31.12.2012.
Ao final de 2013, verificou-se que, quando do término desses contratos,
havia, por uma série de motivos que serão descritos a seguir, uma falta de 3.700
MWmed de energia no suprimento das distribuidoras, que necessariamente terá que ser
123
Os leilões A-5 preveem a entrega de energia a partir de 1º de janeiro do quinto ano adiante,
independentemente da época do ano em que foi realizado. O mesmo ocorre com os leilões A-3, com
entrega para o terceiro ano.
164
comprada ao Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), o preço spot do mercado de
energia elétrica. Esse preço já havia chegado a R$ 822,00/MWh em 31 de janeiro de
2014, em razão da falta de chuvas em pleno período úmido,um salto enorme comparado
com o valor de em torno de R$ 100,00/MWh que vinha sendo praticado nos contratos
que se encerraram, ou com os R$ 192,00/MWh que foram acordados nos leilões de
energia A-1 no último bimestre de 2013.
Como dito, há várias causas para essa situação. Um delas é que usinas
vencedoras de leilões não foram construídas, ou seja, a oferta de energia nova cresceu
menos do que se esperava. Os casos mais conhecidos são do grupo Bertin (610 MWmed
previstos para 2011 e 920 MWmed para 2012) e Multiner (os dois casos com térmicas a
óleo), que deveriam estar suprindo um volume total em torno de 2.000 MWmed.
Também houve algumas térmicas a biomassa de cana que não entraram em operação.
Em 2012, a Aneel revogou as concessões de cerca de 800 MWmed desses contratos que
não vingaram e considerou a exposição das distribuidoras como involuntária. O custo
decorrente dessa exposição foi para a tarifa e acabou sendo paga pelo consumidor.
Em 11 de setembro de 2012 – quando os reservatórios das hidrelétricas já
prenunciavam a inevitabilidade do despacho maciço das térmicas –, a Medida
Provisória nº 579, transformada na Lei nº 12.783, e regulamentada pelo decreto nº
7805/12 e pela resolução Aneel nº 1.410/13, ao renovar as concessões das usinas
hidrelétricas e se apropriar da energia existente para fins de redução tarifária, destinou
toda essa energia ao mercado cativo (distribuidoras), na forma de cotas de garantia
física de energia e de potência da usina hidrelétrica, a serem alocadas pela Aneel às
distribuidoras, de forma a reduzir a tarifa aos consumidores finais de todas elas por
igual.
Por essa ocasião, as distribuidoras já tinham demanda declarada de 9.800
MWmed, necessária para cobrir o término dos mencionados contratos, firmados em
2004, que estavam terminando. A alocação de cotas de energia existente, feita pela
Aneel às distribuidoras, em obediência à MP 579, cobriu cerca de 7.800 MWmed.
Ficaram faltando, portanto, 2.000 MWmed para cobrir a demanda existente.
Em razão da edição da MP 579 o Governo não realizou o leilão A-1, de
energia existente, previsto para 2012, porque tinha a expectativa de que toda a energia
das usinas com concessões renovadas se transformasse nas cotas a serem alocadas às
165
distribuidoras pela Aneel, como mandava a MP. Isso não ocorreu porque CESP,
CEMIG e COPEL não concordaram em renovar suas concessões de geração nos termos
propostos pela Medida Provisória, o que gerou déficit da quantidade de energia prevista
nas contas do Governo para ser alocada em cotas às distribuidoras.
Em vista do problema criado, o Governo tentou realizar o Leilão A, em
24/06/2013, para negociar Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente
Regulado por quantidade, para suprimento no período de 1º de julho de 2013 a 30 de
junho de 2014, para todas as fontes energéticas, com o objetivo de suprir a demanda das
distribuidoras, mas o leilão resultou vazio em razão do preço-teto fixado pelo Governo,
de R$ 171,80/MWh, considerado insuficiente pelos agentes que tinham energia para
vender. O problema continuou vivo.
No leilão A-1, realizado em 17/12/2013, havia uma demanda declarada
pelas distribuidoras de 6.300 MWmed, mas foram negociados apenas 2.600 MWmed, a
um preço-teto de R$ 192,00/MWh. Esse preço foi definido pelo Ministério de Minas e
Energia, conforme o disposto no art. 19, § 3º, do Decreto nº 5.163, de 30 de julho de
2004, que regulamentou o modelo estabelecido pelo Governo em 2003. O decreto diz
que esse preço “não poderá superar o valor médio resultante dos leilões de compra de
energia elétrica proveniente de novos empreendimentos realizados no ano "A - 5" de
2009”, uma das medidas adotadas na ocasião, com o objetivo de redução tarifária. Por
sorte, o preço foi alto no leilão de 2009, o que permitiu a oferta de R$ 192,00/MWh.
Ainda assim, restou uma falha de suprimento de 3.700 MWmed para 2014.
Embora o preço desse leilão A-1, de 2013, tenha sido estimulante para a
comercialização de energia em um horizonte de 12 meses, os preços para contratos de
18 e 36 meses não foram bons, o que resultou em baixa venda de energia. Para 18
meses, só foram vendidos 98 MWmed da CESP. Para 36 meses, foram vendidos 819
MWmed, dos quais 783 MWmed foram vendidos pela Eletronorte, estatal federal,
possivelmente compelida a vender esse montante pelo seu acionista majoritário.
Os detentores de energia que participaram desse leilão certamente não
venderam tudo o que tinham na expectativa de venda dessa energia a PLD, no futuro,
com expectativa de bom preço, uma vez que o PLD estava alto naquela ocasião (em
torno de R$ 250,00/MWh em 31/12/2013) e já chegou aos R$ 822,00/MWh, por causa
da falta de chuvas no período úmido 2013/2014. Como os reservatórios ficaram baixos
166
em 2012/13, a escassez deve permanecer ainda que chova bem na estação úmida
2013/14, o que não ocorreu até o fim de janeiro.
O resultado é que esse montante que falta, de 3.700 MWmed, terá que ser
comprado pelas distribuidoras ao preço spot do mercado de energia elétrica (PLD), um
valor maior que o quádruplo do preço de contratação do leilão A-1, de 2013.
Considerado um PLD atual de R$ 822,00/MWh e um valor de R$ 192,00/MWh, do
leilão A-1, de 2013, o custo adicional desse suprimento poderá chegar a algo em torno
de R$ 20 bilhões!
As oscilações de preço da energia que as distribuidoras têm que comprar
e que não são repassadas automaticamente (por mecanismo pass through, estabelecido
em lei ou contrato) às tarifas ao consumidor vão para uma conta gráfica, cujo repasse de
valores somente é autorizado pela Aneel nos reajustes tarifários ordinários, realizados
apenas uma vez por ano. Só então esses valores vão para a tarifa ao consumidor final e
são recuperados pelas distribuidoras, que os financiaram até então. Incluem-se aí ESS
(despacho térmico quando falta água nos reservatórios das usinas) e as cotas de energia
demandadas pelas distribuidoras não satisfeitas (como na exposição involuntária das
distribuidoras no caso presente ou como na ocorrida quando a Aneel cancelou os 800
MWmed, conforme já citado).
Quando esses valores ficam muito altos e comprometem o caixa das
distribuidoras, tem havido, em regra, duas soluções possíveis: revisão tarifária
extraordinária – com repasse imediato desses custos ao consumidor, como ocorrido no
passado, por causa de variações cambiais nas cotas da energia de Itaipu, cotadas em
dólar e compradas obrigatoriamente pelas distribuidoras – ou socorro do Tesouro, via
Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Em resumo, resta decidir quem pagará a
conta, se o consumidor de energia elétrica ou o contribuinte. Considerando que 2014 é
um ano eleitoral, a última hipótese será a mais provável.
Mas há outro efeito colateral da MP 579, que também terá impacto sobre
os consumidores. Os riscos do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), bolsa que
equalizava os recebimentos dos geradores que são despachados pelo Operador Nacional
do Sistema Elétrico (ONS), e, portanto, têm sua geração de energia e seus ganhos
determinados por um terceiro, em razão da necessidade de otimização do Sistema
167
Interligado Nacional (SIN), passaram dos geradores para as distribuidoras, isto é, para o
consumidor final.
Em outras palavras, quando a produção total das usinas do MRE for
inferior a garantia física total, que é o lastro que as geradoras podem comercializar em
contratos, os geradores devem comprar essa diferença a PLD na proporção de sua
garantia física. Agora, como eles são apenas operadores de usinas, remunerados pelos
custos de O&M, por determinação da MP 579, não têm mais essa responsabilidade e a
diferença de preço da energia que faltar terá que ser custeada pelo consumidor final,
porque essa diferença, quando ocorrer, irá para os distribuidores e repassada à tarifa.
168
Capítulo 5 – A necessidade de construir usinas com reservatórios
Por diversas motivações de natureza socioambiental (para evitar
interferências com terras indígenas e parques florestais, bem como conflitos com
ambientalistas), o Brasil tem abdicado de construir usinas hidrelétricas com
reservatórios, ainda que isso esteja previsto em Lei, uma vez que os potenciais
hidrelétricos nacionais são considerados bens da União, vale dizer, de todos os
brasileiros, de acordo com a Constituição Federal.
Neste capítulo, examinaremos essa questão para mostrar que há uma
“política pública de fato”, que gera uma perda irremediável de energia elétrica barata e
limpa, por causa da construção de hidrelétricas “a fio d’água”, aquelas que geram
energia elétrica apenas com o fluxo natural do curso d’água onde são construídas.
Trataremos inicialmente do potencial hidrelétrico nacional, da nossa
matriz energética e das vantagens das hidrelétricas sobre as demais fontes de geração, a
começar pelos seus custos. Posteriormente abordaremos o catastrofismo criado por
visões ambientalistas equivocadas, que se recusam a ver as hidrelétricas como fontes
limpas, e querem a preservação absoluta da Floresta Amazônica.
Por último, discutiremos as contradições da política governamental para
o setor e as suas consequências: a Lei prevê o aproveitamento pleno dos potenciais, os
dirigentes governamentais negam restrições aos reservatórios, mas, na prática, poucas
usinas com reservatórios têm sido construídas no País, ainda que isso seja tecnicamente
viável.
O potencial hidrelétrico brasileiro é de 260 mil MW, de acordo com o
último inventário realizado no País, em 1992124. Para dar uma ideia dessa grandeza,
Itaipu – ainda hoje a maior hidroelétrica do mundo naquilo que verdadeiramente
interessa, a quantidade de energia gerada – tem uma potência instalada de 14 mil MW.
Em 2008, quando bateu seu recorde histórico até então, a usina produziu energia
suficiente para suprir todo o consumo mundial por dois dias ou o de 23 aglomerados
urbanos do porte da grande Curitiba por um ano125. Esse recorde foi novamente
quebrado em 2012, com uma geração de 98,2 milhões de MWh, quase quatro milhões
de MWh de energia gerados a mais que em 2008.
124
125
Atlas de Energia Elétrica do Brasil, 3ª. ed., 2008, Agência Nacional de Energia Elétrica.
Ver http://www.itaipu.gov.br/?q=pt/node/418&foto=sli_faq.jpg, acessado em 01/10/2009.
169
Esse potencial coloca o Brasil num seleto grupo de países privilegiados
pela natureza com a fonte mais barata e mais limpa de geração de energia elétrica.
Dispomos do terceiro maior potencial hídrico do mundo, com 10% da disponibilidade
mundial, atrás da China, que tem 13% do total, e da Rússia, que conta com 12%. Depois
do Brasil, vêm o Canadá, com 7%; o Congo e a Índia, com 5%, cada; e os Estados
Unidos, com 4%.
Do total desse potencial, mais de 85.000 MW já se transformaram em
usinas em produção, o que representa quase 70% da capacidade de geração nacional. O
restante ainda está por ser explorado. Desse conjunto de potenciais hidrelétricos, estimase que mais de 126 mil MW têm viabilidade efetiva, de acordo com o Plano Nacional de
Energia 2030, da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão de planejamento
energético nacional, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Contudo, se se quiser
evitar interferências em florestas e parques nacionais e em terras indígenas, esse
potencial inexplorado cai para pouco mais de 77 mil MW, 48 mil MW a menos,
segundo o Plano.
Mas é importante notar que desses 77 mil MW ainda não foram descontados
os volumes de potência instalada previstos no projeto da Usina Hidrelétrica (UHE) Belo
Monte, no Rio Xingu, nem os das UHEs Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira.
Deduzida essa capacidade, o potencial ainda aproveitável reduz-se a menos de 60.000
MW, volume cuja escala chega a ser comparável com os quase 50.000 MW que foram
aprioristicamente restringidos no Plano por motivos socioambientais. Trata-se de um
aproveitamento sobre o qual o País ainda terá que decidir, mas dada a vantagem
comparativa espetacular que isso representa, é necessário avaliar bastante antes de
abdicar do seu uso.
O sistema brasileiro de geração de energia elétrica, conhecido como
Sistema Interligado Nacional, é hidrotérmico. A geração hidroelétrica precisa de
complementação e a maneira mais segura de se fazer essa complementação é por meio
de geração térmica (a gás, a óleo, a carvão ou nuclear). Essa forma de geração,
entretanto, é mais cara e mais poluente, especialmente no que diz respeito à emissão de
gases de efeito estufa – exceção feita à geração nuclear. Quando não chove o bastante e
não há água suficiente nos reservatórios das hidrelétricas nos períodos de estiagem, as
170
térmicas são acionadas, gerando prontamente a energia necessária ao abastecimento do
País.
Em razão disso 28,5% da capacidade instalada nacional são provenientes
de térmicas convencionais. 1,7% provem de parques eólicos, cujos preços se tornaram
mais competitivos recentemente, e 1,58% é originário das Usinas Angra I e Angra II, as
termonucleares de que dispomos atualmente. Como se sabe, está em construção a Usina
Angra III, que, em 2018, deverá agregar mais 1.405 MW ao parque gerador nacional.
É importante ter em mente que somente a energia elétrica gerada por
fontes hídricas ou térmicas asseguram abastecimento. No debate sobre fontes de
energia, há quem sustente que a expansão do parque eólico ou de energia solar poderia
ser uma alternativa ecologicamente mais correta à energia hidroelétrica. Trata-se,
contudo, de um erro conceitual. A geração de fonte eólica e solar, por ser intermitente,
não pode figurar na base de qualquer matriz energética. São fontes eminentemente
complementares à energia hidráulica ou térmica. Além disso, conforme se mostrará
mais à frente, a geração de fonte solar também traz problemas ambientais.
O principal aspecto que torna os potenciais hídricos uma dádiva da
natureza é o custo da geração, conforme se nota na Figura V.1 a seguir.
171
Figura V.1 - Preço de geração de energia elétrica por fonte (R$/MWh)126
Fonte
Custo fixo
CVU
(R$/MWh)
Preço final
Hidroelétrica de grande porte
84,58
–
84,58
Eólica (*)
Hidroelétrica de médio porte
124,43
–
124,43
147,46
–
147,46
Pequena central hidroelétrica
158,94
–
158,94
Térmica nuclear
145,48
21,44
166,92
159,34
176,85
336,19
Térmica a biomassa
Térmica a gás natural
171,44
186,98
358,42
166,94
259,3
426,24
Térmica a óleo combustível
166,57
669,24
835,81
Térmica a óleo diesel
166,57
790,13
956,7
Térmica a carvão
(*)
Solar Fotovoltaica (*)
Não informado
Fonte: Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
127
(*) Fontes intermitentes, que não podem operar na base da matriz.
Para se ter uma ideia do impacto que os preços da geração térmica
convencional causam nas tarifas de energia elétrica, examinemos o ocorrido a partir do
dia 18 de setembro de 2012, quando, por escassez de água nos reservatórios das usinas
brasileiras, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) determinou o despacho
térmico maciço de algo em torno de 13.200 MW médios, de acordo com dados do
próprio ONS, energia equivalente à geração de mais de uma Itaipu128.
Isso fez com que os Encargos de Segurança Energética, que cobrem os
custos desse despacho superassem os R$ 6 bilhões nos doze meses completados em
126
Os custos fixos de geração da Figura V.1 são preços médios dos Leilões de Energia Nova do período
de 2005 a 2010, com exceção do custo da energia eólica, que é o valor médio alcançado no Leilão A-3 de
18/11/2013. O custo fixo de geração de térmica nuclear é o valor da tarifa estabelecida pela ANEEL para
as Usinas Angra I e II. Os valores de CVU médios (custo variável de geração quando a térmica é
chamada a gerar), informados pelo ONS, são os considerados na elaboração do Plano Mensal de
Operação Março/2013. Para as UTEs participantes dos Leilões de Energia, os valores são atualizados
mensalmente pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), com base no reajustes dos
respectivos combustíveis no mercado internacional.
127
De acordo com a página da Norte Energia, concessionária da Usina Belo Monte
(http://pt.norteenergiasa.com.br/2011/04/26/por-que-belo-monte/), acessada em 19/12/2011, o preço da
energia de fonte solar fotovoltaica é estimado em R$ 500,00/MWh.
128
Adotado neste trabalho o valor refencial de 10.500 MW médios para a Usina de Itaipu.
172
setembro de 2013129. A média desses Encargos ficou em R$ 150 milhões entre 2003 e
2007, para efeito de comparação130.
Para os consumidores do mercado livre, o impacto financeiro da geração
termelétrica foi imediato, já que eles têm que pagar mensalmente o sobrecusto da
geração térmica. Esse impacto no mês de fevereiro de 2013 praticamente anulou os
ganhos da redução tarifária implantada pelo Governo Federal, por meio da MP nº 579,
de 2012, de acordo com a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais
de Energia e de Consumidores Livres (ABRACE)131. A tarifa caiu, em média, R$ 24 por
MWh, vantagem praticamente anulada pelo custo adicional da geração térmica, que
chegou a R$ 22 por MWh, segundo a ABRACE. Mas essas foram apenas algumas das
consequências do maciço despacho térmico de outubro de 2013. O tema foi bastante
discutido por Tancredi e Abbud (2013).
Voltando à discussão sobre as vantagens das hidrelétricas, outros fatores
que as tornam uma fonte de primeira grandeza é o fato de que elas geram energia
renovável e oferecem, além disso, múltiplos benefícios à sociedade, como, por exemplo,
o suprimento de água, o controle de cheias, a irrigação, a melhoria da navegação, o
turismo e a recreação. Assim, consideradas as características do nosso Sistema, as
usinas hidrelétricas são também mais vantajosas do ponto de vista socioambiental. Isso
decorre do fato de que a única alternativa que pode dar confiabilidade ao abastecimento
em substituição à geração hidrelétrica são as usinas térmicas, mais caras e mais
poluentes
As fontes eólica e solar, favoritas dos ambientalistas, assim como as
térmicas a bagaço de cana, também consideradas limpas, não podem operar na base,
dada a sua intermitência, conforme assinalado na Figura V.1. Servem, como já dito,
apenas como fontes complementares, capazes de economizar água dos reservatórios das
usinas. Em resumo, a única alternativa segura à geração hidrelétrica é a geração térmica,
bastante poluente, como veremos a seguir. As emissões provenientes da geração térmica
têm aumentado no Brasil, dado o aumento de sua participação na matriz energética,
notadamente a partir de 2001, quando entraram em operação os primeiros 951,8 MW de
129
Boletim Infomercado, da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), novembro/2013,
disponível em www.ccee.org.br.
130
O Estado de S. Paulo, 10/2/2013.
131
Folha de S. Paulo, 28/2/2013
173
usinas do Programa Prioritário de Termeletricidade, instituído pelo Governo Federal em
2000.
Para ficar apenas nos anos mais recentes, entre 2008 e 2012, as emissões de
CO2 geradas por usinas térmicas, no Brasil, aumentaram 42,7%, com um crescimento,
de 2011 para 2012, da ordem de 91,6%132, o que indica uma aceleração, possivelmente
causada pelo despacho térmico maciço de outubro de 2012. E a tendência ao aumento
de emissões de CO2 continua firme, em paralelo à necessidade da participação das
térmicas na matriz de geração nacional. Tanto isso é verdade que a própria EPE, ao
preparar o Plano Decenal de Expansão de Energia para o período de 2012 a 2022,
projetou um aumento de 106,8% nas emissões nesse período, um crescimento de 44
para 91 MtCO2eq133.
Num mundo em que a escassez de água fresca é tão alardeada, a maior
parte do armazenamento de água fresca em reservatórios artificiais brasileiros é feita em
aproveitamentos hidrelétricos: 653 km³ dos 724 km³ totais. Segundo Gomide (2012), os
reservatórios pertencentes ao setor elétrico brasileiro que permitem essa acumulação
benéfica ocupam 37.000 km², muito pouco se levarmos em conta os 8.500.000 km² do
território nacional. Para efeito de comparação, o autor mostra que 90% dos 90.990 km³
de água fresca armazenada em lagos naturais no mundo estão concentrados em apenas
onze sítios, com ocupação média de 44.800 km². Oito desses lagos estão no hemisfério
norte, três na África e nenhum na América do Sul. Só os Estados Unidos dispõem de
mais de 75 mil barragens em seu território, com idade superior a 50 anos na média.
Essas barragens respondem pela acumulação de algo entre 800 e 1.000 km³ de água
fresca, contra os 19.000 km³ de água fresca armazenada em lagos naturais.
Entretanto, se não dispomos de lagos naturais, contamos com um nível de
pluviosidade excepcional em relação ao resto do mundo. Ainda de acordo com Gomide,
“a precipitação pluvial média anual medida em terra firme é inferior a 800 milímetros
(Shiklomanov and Sokolov, 1983). Não muda muito de continente para continente
(Europa, 790 mm; Ásia, 740 mm; África, 740 mm; América do Norte, 756 mm;
Austrália e Oceania, 791 mm). A exceção é a América do Sul, onde a precipitação
anual é de 1600 mm, o dobro dos 800 mm médios. No Brasil, é maior ainda: 1800 mm.
132
Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2013, Empresa de Pesquisa Energética, Ministério de Minas e
Energia.
133
MtCo2eq. – milhões de toneladas de CO2 equivalente
174
Na Amazônia Brasileira, excede 2200 mm. Na Amazônia como um todo, excede 2400
mm, mais que o triplo dos 800 mm médios!”. Essa seria, sem dúvida, uma forte razão
adicional para construirmos hidrelétricas com reservatórios de forma a nos
beneficiarmos desse regime de chuvas.
Mas há uma militância ambientalista radical e equivocada, que, sem
qualquer base científica, se opõe fortemente à construção de novas usinas hidrelétricas
desde os anos 1980. Em nome da proteção ambiental e da preservação dos sistemas
naturais, passaram a exercer pressão, inclusive com forte campanha de imprensa, sobre
os órgãos multilaterais de crédito, como o Banco Mundial, para reduzir o apoio técnico
e financeiro à construção de hidrelétricas. Segundo esses grupos, a hidreletricidade não
poderia ser considerada energia limpa e renovável por causa dos reservatórios.
A raciocinar por essa lógica, reservatórios também não seriam aceitáveis
para suprimento de água, para o controle de cheias, para a irrigação, a melhoria da
navegação, o turismo e a recreação etc., os usos múltiplos dos reservatórios criados pela
geração hidrelétrica que nenhuma outra forma de geração oferece. A oposição irracional
a barragens, reservatórios e outras obras de infraestrutura contribuiu, segundo o já
citado Gomide, para que o século XX se encerrasse com 850 milhões de pessoas sem
acesso adequado à água, 1,6 bilhão de pessoas sem acesso à eletricidade e 2,9 bilhões de
pessoas tentando sobreviver com renda inferior a 2 dólares por dia.
É certo que a preservação da natureza é um imperativo, mas, como alerta
Gomide o “desenvolvimento sustentável implica a ‘conversão ótima dos recursos
naturais em benefícios para a humanidade’ (atual e futura geração). Não há conflito
algum entre o avançado grau de consciência ambiental felizmente predominante e o
aproveitamento efetivo, oportuno e conveniente dos extraordinários recursos hídricos
brasileiros.”
Há elementos que demonstram isso fartamente. A grande maioria dos
aproveitamentos hidrelétricos viáveis no Brasil está na Amazônia, tida pelos
ambientalistas mais radicais como um santuário natural intocável. Mas de acordo com
dados da Empresa de Pesquisa Energética, todas as usinas hidrelétricas existentes e a
serem ainda construídas ocupariam menos de 10.500 km² de floresta, ou seja, apenas
0,16% de todo o bioma amazônico, com seus 6,5 milhões de km², se incluída a sua parte
situada em território estrangeiro, como apontaram Abbud e Tancredi (2010).
175
Para efeito de comparação, entre agosto de 2007 e julho de 2008, as
queimadas destruíram 12.911 km² da Floresta Amazônica, segundo o Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE). Esse número caiu bastante nos últimos anos, mas agora
revela nova tendência de alta. De acordo com o INPE, o desmatamento na Amazônia
Legal entre agosto de 2012 e julho de 2013 foi de 2765 km², uma alta de 35% em
comparação com o período entre agosto de 2011 e julho de 2012, quando houve a
derrubada de 2.051 km² de vegetação. O total de floresta destruída é duas vezes superior à
área do município do Rio de Janeiro.
Não parece difícil concluir que a utilização da área de Floresta Amazônica
necessária ao pleno aproveitamento da nossa capacidade de geração hidrelétrica – coisa
que a maioria dos países que dispõem dessa fonte já esgotou – não representa uma ameaça
terrível de destruição desse importante patrimônio nacional. Ademais, é necessário lembrar
que após o impacto inicial da obra de uma hidrelétrica, a própria natureza se encarrega do
estabelecimento de um novo ecossistema estável, embora diferente do original.
Também é interessante notar que quando se fala em utilização de uma
determinada área para geração de energia elétrica, vem à baila outro aspecto nunca
considerado pelos defensores do uso das fontes ditas limpas, eólica e solar. São os
efeitos colaterais do uso dessas fontes para abastecimento em larga escala. Exemplo
evidente disso é citado por Montalvão, Faria e Abbud (2012), que discutiram em
trabalho recente os impactos ambientais das diversas fontes de geração de energia
elétrica.
Nesse trabalho, os autores se referem à inutilização das extensas áreas
ocupadas pelos parques solares, que se tornam praticamente inservíveis para outros fins.
Por exemplo, o parque Solar Waldpolenz, na Alemanha, instalação que pode ser
considerada modelar do ponto de vista de aproveitamento de energia solar, é capaz de
gerar 18,2 GWh/ano por km2 ocupado. Já Belo Monte, com seus 516 km², tem uma
produtividade energética de 77,6 GWh/ano por km2, cerca de quatro vezes maior!
Assim, como conclui o estudo, para gerar a mesma quantidade de energia que Belo
Monte, uma usina solar com as mesmas características técnicas de Waldpolenz
precisaria ocupar uma área equivalente a 2.200 km² com painéis solares, esterilizando
essa imensa área para efeito de quaisquer aproveitamentos em outras finalidades úteis,
uma vez que toda ela teria uma única destinação: produzir energia elétrica quando
houver insolação.
176
Mas há ainda outro aspecto relevante em discussão quando se trata da
construção de usinas hidrelétricas no Brasil. É a questão dos reservatórios, importantes
para retardar o despacho de usinas termelétricas, mais caras e mais poluentes, nos
períodos de estiagem. Por uma série de motivos, o Brasil vem abandonando a
construção de usinas hidrelétricas com os reservatórios que seriam ideais, preferindo
construir as chamadas “usinas a fio d’água”.
De início, é preciso chamar a atenção para o fato de que esse é um
prejuízo irreversível para o País. Uma vez que uma usina tenha sido assim construída,
estará perdido, durante o seu tempo de vida útil (que não raro ultrapassa um século!),
todo o potencial de geração que aquela usina poderia ter caso tivesse um reservatório
adequado e, eventualmente, o de outras usinas construídas rio abaixo (a jusante), já que
a água poupada pelo reservatório de uma usina também é usada para gerar em usinas a
jusante. Vale notar que esse patrimônio desperdiçado é bem da União, segundo o inciso
VIII, art. 20, da Constituição Federal. Logo, é bem de toda a população brasileira,
inclusive daqueles que se insurgem contra o seu melhor aproveitamento, seja por que
motivos for. Como bem descreveu tecnicamente o já citado Gomide,
“Há um tamanho ótimo para reservatórios: nem
tão pequeno que se torne pouco útil, nem tão grande que viole a
lei dos rendimentos marginais decrescentes. (...) [Já] foi
mostrado (Gomide, 2012) que, para uma curva de
regularização aplicável a condições brasileiras típicas, pode-se
“firmar” mais de 85% da vazão média de longo termo (VMLT)
com menos de 30% do armazenamento necessário para
“firmar”100% da VMLT.
A localização do aproveitamento hidráulico
(“tomada de água”) pode não ser compatível com a
implantação de um reservatório de certo porte. A solução, que
sempre existe, é mover-se para montante, à procura de sítios
mais adequados. (...)No caso de regularização de energia e não
simplesmente de vazão fluvial, a flexibilidade é imensa: o
armazenamento nem precisa estar a montante! O adequado
sistema de transmissão transportará a energia de um ponto
(onde está disponível) a outro (onde é necessária).
Adicionalmente, à medida que o sistema cresce, integrando
usinas novas localizadas em regiões hidrologicamente diversas,
o desvio padrão da afluência total cresce menos que a sua
média. Em outras palavras, o coeficiente de variação decresce e
a eficiência do armazenamento aumenta. O sinérgico setor
elétrico brasileiro tem sido, há décadas, uma demonstração
177
interessante dessa propriedade matemática das somas parciais
de variáveis aleatórias.”
O autor se refere ao Sistema Interligado Nacional, já mencionado
anteriormente, que graças à cobertura de praticamente todo o território nacional, integra
as diversas bacias hidrográficas brasileiras por meio de linhas de transmissão, operando
com tal sinergia que permite que o Sistema possa ser manobrado conforme as condições
hidrológicas de cada região se mostrem mais ou menos favoráveis. Essa interligação,
rara no mundo, oferece ao Brasil enorme vantagem comparativa. Estima-se que a sua
existência gere um efeito sinérgico tal que agrega uma capacidade adicional de 30% à
toda energia gerada no País. Para ser mais bem explorada, no entanto, ela precisa dos
reservatórios das usinas.
A regra para se projetar reservatórios adequados é definida, no Brasil,
pela Lei nº 9.074, de 1995. No § 3º, do art. 5º, essa Lei estabelece o que se chama de
aproveitamento ótimo: “Considera-se ‘aproveitamento ótimo’, todo potencial definido
em sua concepção global pelo melhor eixo do barramento, arranjo físico geral, níveis
d’água operativos, reservatório e potência, integrante da alternativa escolhida para
divisão de quedas de uma bacia hidrográfica.”
No entanto, como apontaram os já mencionados Abbud e Tancredi
(2010), o embate entre a urgente necessidade de construir novos empreendimentos
hidrelétricos e a forte oposição que vários grupos de pressão fazem a isso, por razões
socioambientais equivocadas, repita-se, acabou por instituir uma “política pública de
fato”, que não encontra amparo na Lei.
Essa política pública de fato, de construção de usinas a fio d’água, que
teoricamente
teriam
menores
custos
e
menos
problemas
de
licenciamento
socioambiental, passou a vigorar nos últimos dez ou quinze anos, em que pesem as
declarações públicas de autoridades do setor de que não há nenhuma diretriz nesse
sentido.
Os fatos contradizem as declarações oficiais e o resultado dessa política
pode ser constatado pelos dados da Aneel relativos às hidrelétricas leiloadas de 2000 a
2012. De 42 empreendimentos, que somam 28.834,74 MW, apenas dez são usinas com
reservatórios. Essas usinas agregam somente 1.940,6 MW de potência instalada ao
sistema elétrico. Os outros 32 empreendimentos, com 26.894,14 MW, são de usinas a
178
fio d’água, ou seja, sem qualquer capacidade de guardar água para geração de
eletricidade nos períodos secos. Como se vê, apenas 6,73% da capacidade de geração
desses empreendimentos são provenientes de usinas com reservatório (Tancredi e
Abbud, 2013).
É necessário reconhecer que não haveria o menor sentido em construir
usinas com reservatórios em muitos casos, tendo em vista o fato de que o relevo da
região onde se encontram os empreendimentos seria totalmente desfavorável a isso. É o
caso das usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, que somam 6.900 MW, e que
não comportariam reservatórios, dada a suave topografia da região em que se
encontram.
Em contrapartida, a viabilização da Usina Belo Monte, o empreendimento
que se tornou o ícone da contestação do radicalismo socioambiental, transformou-se no
principal exemplo de concessões feitas pelo Governo Federal a essas pressões. Em
síntese, sacrificou-se, ali, na bacia do Xingu, mais do que uma Belo Monte equivalente,
do ponto de vista do ótimo legal, representando um total não aproveitado de mais de 5
mil MWmédios de energia firme. Para que se tenha noção da escala desse valor, basta
dizer que ele é equivalente à metade do valor alcançado pela Usina de Itaipu, maior
produtora mundial de energia hidrelétrica. O trade off estabelecido nesse caso está
detalhadamente descrito por Abbud e Tancredi, em “Por que o Brasil está trocando as
hidrelétricas e seus reservatórios por energia mais cara e poluente?”, citado
anteriormente.
Mas, de qualquer forma, é importante ressaltar que a diferença entre os
custos de geração desses 5 mil MWmédios – que seriam gerados por Belo Monte a R$
77,97/MWh, num valor total de R$ 3,37 bilhões/ano, e os mesmos 5 mil MWmédios,
gerados por térmicas a gás, a R$ 393,33/MWh, num total de R$ 16,9 bilhões ano –
montaria a R$13,6 bilhões/ano! – isso sem contar os prejuízos ambientais das emissões
de CO2 decorrentes da geração térmica.
Além dessa concessão, o Governo Federal assumiu compromisso público,
por meio da Resolução CNPE nº 6, de julho de 2008, de resumir a exploração do
potencial energético do Rio Xingu ao aproveitamento de Belo Monte. Foi, na prática,
179
uma rendição ao radicalismo socioambiental, ainda insuficiente para conter os ânimos
que insistem em inviabilizar a construção de Belo Monte e, a cada dia, até com ações
violentas, contribuem para encarecer a obra que, a esta altura, já não tem como ser
interrompida. Resulta disso que todo o potencial hidrelétrico da Amazônia está em risco
de não ser adequadamente explorado para o bem do País.
Demonstração clara disso é o que está acontecendo com o projeto da Usina
São Manoel, que faz parte do conjunto de usinas a serem construídas no Rio Teles Pires,
na divisa entre Mato Grosso e Pará. O projeto original foi reduzido de 900 para 700
MW, uma perda que poderia abastecer uma cidade com 700 mil pessoas, para evitar que
o lago atingisse terras indígenas. A área alagada, no projeto reduzido, é de apenas 66
km² e a usina está situada a quase dois quilômetros do limite da terra dos Kayabi, onde
vivem cerca de mil índios. A cerca de 150 quilômetros abaixo da represa encontra-se
ainda a terra Munduruku, onde cerca de nove mil índios não querem nem ouvir falar em
construção de hidrelétricas.
Por causa disso, a usina, com previsão de ser licitada no leilão de 13 de
dezembro de 2013, teve a sua licitação proibida pela Justiça Federal. Segundo o MP,
que representou à Justiça contra o leilão da usina, a sua construção hidrelétrica causará
significativo impacto para os povos indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká, e o Estudo
do Componente Indígena (ECI), feito para a usina – necessário para a obtenção da
licença –, estaria incompleto, sem ter o reconhecimento da Fundação Nacional do
Índio134.
Recentemente, lideranças dos índios munduruku pediram ao Ministro de
Minas e Energia que suspenda a construção de usinas no Rio Tapajós. As lideranças
desses indígenas querem que o Tapajós permaneça intocado e garantem que vão resistir.
“Não vamos permitir que usinas ou até mesmo estudos sejam feitos. Vamos unir nossa
gente e vamos para o enfrentamento. O Tapajós não vai sofrer como sofre hoje o
Xingu”, disse à imprensa o cacique Arnaldo Munduruku135.
Como consequência do aumento do consumo de energia elétrica no País e
da política de construção de usinas a fio d’água, a capacidade de armazenamento dos
reservatórios das hidrelétricas integradas ao Sistema Interligado Nacional, que já foi
134
135
CanalEnergia, 10/12/2013.
Extra, 22/02/2013
180
plurianual, vem caindo ano a ano. Desde a década de 1990 o Sistema perdeu essa
capacidade e a tendência para o futuro é de piora, conforme dados do ONS, expressos na
Figura V.2, a seguir, que mostra a evolução da relação entre a energia armazenada
máxima nos reservatórios e a carga do SIN.
Figura V.2: Relação entre Energia Armazenada Máxima e Carga do SIN (projeção 2012-2016)
Fonte: Relatório do Plano Anual da Operação Energética – PEN 2012.
A tendência de queda nessa capacidade de reservação continua acentuada.
As previsões do já mencionado Plano Decenal apontam para uma capacidade de apenas
3,35 meses, em 2021, e de 3,24 meses, em 2022136, uma tendência que somente poderá
ser atenuada por uma política clara de construção de usinas com reservatórios onde isso
for recomendável pela boa técnica estabelecida na legislação em vigor.
Felizmente, as instâncias decisórias nacionais já começam a dar atenção ao
tema. No dia 13 de agosto de 2013, as Comissões de Serviços de Infraestrutura e de
Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle do Senado Federal
realizaram audiência pública conjunta para que fossem prestadas informações a respeito
da construção de usinas hidrelétricas a fio d’água como opção preferencial para a
expansão da geração hidrelétrica no Brasil.
136
Agência CanalEnergia, 14/11/2013.
181
Entre outras personalidades, participaram da audiência o Secretário
Executivo do Ministério de Minas e Energia, Marcio Zimmermann, que declarou, na
ocasião, desconhecer qualquer política de Governo que fosse vinculada a usinas a fio
d’água, e que a construção de usinas a fio d’água ou com reservatório não é uma opção
política de Governo, mas uma questão técnica137.
Mas é preciso mais que isso. Há um compromisso expresso do Governo
com a preservação ambiental. Além disso, a modicidade tarifária foi transformada em
importante diretriz governamental, expressa, aliás, na Exposição de Motivos da Medida
Provisória nº 144, de 2003, que alterou a legislação do setor no início do Governo do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com esse objetivo, entre outros. Assim, é
fundamental que haja também diretrizes e ações objetivas, claramente expressas para
agentes governamentais e empresariais, no sentido do aproveitamento ótimo do
potencial hidrelétrico nacional, na forma que determina a Lei.
Em razão disso, a construção de hidrelétricas com reservatórios na
Amazônia parece uma decisão acertada para o País em termos de modicidade tarifária e
de preservação ambiental. Para um desmatamento ínfimo da Floresta Amazônica
(0,16% do total do bioma, como visto), que resultará em novos ecossistemas estáveis
após as obras, teremos energia barata e evitaremos grandes e prejudiciais emissões de
CO2.
A contribuição da construção de usinas hidrelétricas com reservatórios para
essa finalidade é inestimável, como se procurou demonstrar, especialmente porque o
País poderá se beneficiar dos baixos custos de geração dessas usinas após a amortização
dos investimentos feitos na sua construção, o que corresponde a estimados 70 anos.
Como bem questionam Tancredi e Abbud (2013), “quando o País abre mão
de seu potencial hidrelétrico, em nome de questões de natureza socioambiental, o
ambiente passa a sofrer com quantidades crescentes de carbono jogadas na atmosfera,
perdendo-se, ao mesmo tempo, um poderoso fator de desenvolvimento tão importante
para uma economia como a brasileira: a energia barata. Qual a racionalidade de tal
encaminhamento?”
137
Jornal do Senado, 15/08/2013.
182
Conclusões
A economia brasileira tem crescido pouco nos últimos anos, e as
perspectivas não são muito animadoras. Dificilmente conseguiremos, de forma
sustentável, atingir taxas de crescimento muito acima de 3% ao ano, o que está longe de
ser suficiente para nos levar ao patamar de desenvolvimento que a sociedade almeja.
Um dos principais limitadores de nossa economia são os baixos níveis de investimento
que, por sua vez, são limitados por baixas taxas de poupança.
Tendo em vista nossa reduzida capacidade de investir, é necessário que,
pelo menos, o investimento seja feito em ativos que permitam maiores ganhos de
produtividade. Por esse motivo, investimentos em infraestrutura são tão importantes,
pois permitem que o aumento de produtividade se irradie por toda a economia. No caso
específico da energia elétrica, trata-se de um insumo fundamental para o bem estar das
famílias e para a produtividade da economia.
Considerando o enorme potencial hidroelétrico do País e nossa dotação
de recursos, expandir o parque gerador de energia permitirá aproveitar plenamente
nossas vantagens comparativas, em indústrias eletrointensivas como a metalúrgica (com
destaque para o alumínio) e a siderúrgica. A energia elétrica também é importante
insumo para a irrigação, permitindo fortes ganhos de produtividade para a agricultura. A
produtividade do trabalho pode igualmente ser fortemente beneficiada pela energia
elétrica, por meio de diversos mecanismos: aumento do conforto, que torna as pessoas
mais dispostas a produzir; maior eficiência dos gastos, com a possibilidade de estocar
alimentos em geladeiras e freezers; aumento da informação, com o uso de televisão e
computadores; redução do tempo de deslocamento, com a construção de linhas de metrô
e trens urbanos, etc.
A baixa capacidade de investimento do setor público e a tendência de o
setor privado ser mais eficiente faz com que a participação do capital privado seja
essencial para expansão de nosso parque elétrico. Contudo, para que isso se viabilize, é
necessário garantir um ambiente propício para o investimento.
Há várias peculiaridades no setor de energia elétrica que fazem com que
a atividade precise ser regulada pelo setor público. No caso da hidroeletricidade, o
principal insumo – a água – é de propriedade da União. As linhas de transmissão e
183
distribuição formam monopólios naturais. Os diferentes regimes pluviométricos do Sul
e Norte do Brasil requerem um sistema de coordenação e interligação nacional que
garanta o melhor aproveitamento da água, do qual, felizmente, já dispomos.
No Brasil, optou-se por um sistema em que o setor fosse dividido em
quatro grandes segmentos: geração; transmissão, responsável por levar a energia até os
centros de distribuição; distribuição, responsável por levar a energia até o consumidor
final, que, via de regra, não tem opção de fornecedor (no chamado Ambiente de
Contratação Regulada – ACR); e comercialização, responsável pela venda de energia
para grandes consumidores, no chamado Ambiente de Contratação Livre – ACL.
No ACR, que atende à imensa maioria dos consumidores e responde por
cerca de 70% da energia consumida no País, os preços são regulados. Nesse contexto, a
definição do preço é fundamental para o bom desempenho do setor. O que se tem
observado, contudo, é uma preocupação aparentemente excessiva com modicidade
tarifária e na participação estatal no mercado, que podem comprometer a oferta de
energia, a qualidade do serviço prestado e até mesmo a própria modicidade tarifária no
longo prazo. Na medida em que parte da modicidade tarifária tem sido financiada pelo
Tesouro, há ainda o efeito colateral de deterioração das contas públicas.
Em um mundo sem assimetria de informações, o preço da energia
elétrica deveria refletir o custo marginal de longo prazo. Isso garantiria a eficiência
alocativa dos fatores de produção e sinalizaria adequadamente, para o consumidor, a
escassez relativa do produto. Em certas situações, como aquelas em que o uso de
energia possa trazer importantes externalidades ou onde a energia mais barata possa ser
uma forma de inclusão social, justifica-se o uso de subsídios. Mas, como regra geral, é
ineficiente vender a energia a um preço abaixo do custo marginal, e é isso que tem
ocorrido na prática, com o consumidor pagando uma tarifa que corresponde à média das
diferentes geradoras. Ao se cobrar uma tarifa abaixo do custo marginal, gera-se uma
demanda artificialmente elevada pela energia, o que força a expansão ineficiente do
setor, com aumento da produção de energia oriunda de fonte termoelétrica, mais cara e
poluente do que a hidroelétrica.
Quando há assimetrias de informação, o problema do regulador consiste
em desenvolver instrumentos que lhe permitam obter uma estimativa dos custos
eficientes dos produtores. Afinal, havendo assimetria de informações, há um incentivo
184
natural para os produtores inflarem seus verdadeiros custos de produção e se
acomodarem em processos não eficientes. Uma forma de resolver esse problema são os
leilões. Ao forçar a competição entre os diferentes produtores, eles tenderiam a fazer
propostas que se aproximem de seu verdadeiro custo de produção.
Contudo, mesmo o mecanismo de leilões pode ser falho. Existe a
possibilidade de licitantes apresentarem propostas irrealisticamente baixas em
decorrência de avaliação incorreta do projeto, de não computar todos os riscos, ou de
acreditar que, uma vez outorgada a concessão, poderá renegociar os termos do contrato
de forma que lhe seja favorável. Uma forma de contornar esse problema é evitar a
inversão de fases nos leilões e exigir plano de negócios detalhado na fase de
qualificação.
Um problema específico do Brasil é a forte presença da Eletrobras,
empresa estatal do setor elétrico e principal geradora do País. Por pressões de sua
controladora – a União – a Eletrobras pode se ver forçada a fazer propostas que não
remuneram adequadamente seu capital. No longo prazo, isso implica menor capacidade
de investimento da estatal ou necessidade de aportes do Tesouro, com prejuízo para
todos os contribuintes e para seus acionistas minoritários.
O poder concedente também tem de ficar atento para as condições dos
leilões. Em algumas situações, a busca excessiva por modicidade tarifária fez com que o
preço-teto fixado não fosse suficiente para atrair empresas interessadas em oferecer
energia, nem mesmo a Eletrobras. Trata-se de uma estratégia equivocada. Em vários
leilões, se fosse oferecido um preço-teto mais alto, a competição poderia ter sido mais
acirrada e o preço final obtido poderia refletir mais adequadamente os reais custos de
produção. É, aliás, o que ensina a teoria: preços-teto altos atraem um maior número de
competidores e a disputa se encarrega de reduzir o preço de forma eficiente.
A definição do preço inicial do contrato não é o único desafio do poder
concedente. Como os contratos são de longo prazo, muitas vezes de 30 anos, é
necessário estabelecer regras que estimulem a empresa a investir adequadamente
durante o período de concessão, buscando obter ganhos de produtividade. Isso é
particularmente importante para as distribuidoras, para as quais é impossível definir,
quando da assinatura do contrato, onde, quanto e quando investir, pois isso dependerá
de se e como ocorrerá a expansão geográfica em sua área de concessão.
185
É necessário criar regras claras e estáveis para a remuneração desses
investimentos adicionais. Corre-se o risco de o regulador adotar uma postura
oportunista, reduzindo o retorno desses investimentos, pois sabe que, diante dos
elevados custos afundados já incorridos, dificilmente a concessionária cancelará o
contrato de concessão. No médio e no longo prazos, contudo, esse comportamento
oportunista reduz o interesse de empresas atuarem no setor e aumenta o risco
regulatório, o que acaba por aumentar os preços exigidos e comprometer a oferta de
energia. Além disso, cai a qualidade do serviço.
É igualmente necessário criar incentivos para que a empresa invista em
equipamentos e processos que permitam alcançar ganhos de produtividade. Tendo em
vista a existência de assimetria de informações, a teoria e as melhores práticas
recomendam permitir que a empresa se aproprie de parte daqueles ganhos, na forma de
maiores lucros. Se todos os ganhos de produtividade forem transferidos para os
consumidores, via menores tarifas, as concessionárias não terão incentivos para buscar
reduções de custos, frustrando o objetivo de se obter modicidade tarifária no longo
prazo.
Os preços de energia definidos nos leilões de geração e transmissão
caíram substancialmente desde o início da década de 2000. As revisões tarifárias a que
estão sujeitas as distribuidoras têm levado a reduções cada vez mais fortes das tarifas,
via menor taxa de remuneração do capital regulatório ou aumento do chamado Fator X.
Desde a primeira revisão tarifária, o WACC (Weighted Average Cost of Capital), que
define a taxa de remuneração do capital, caiu de 11,26% para 7,5%. O Fator X, que
consiste em um desconto nas tarifas com o objetivo de repassar para o consumidor os
ganhos de produtividade das empresas, aumentou de 1,02% para 1,86% do segundo
(entre 2007 e 2010) para o terceiro (entre 2011 e 2014) ciclo de revisão tarifária.
Em parte, a redução de tarifas pode estar associada a uma redução de
custos. Afinal, certamente houve ganhos de produtividade ao longo dos últimos anos. O
simples fato de haver economias de escala, conjugado com o forte aumento do consumo
de energia ocorrido na última década, já justifica tais ganhos. Mas há evidências de que
a redução tarifária está indo além da redução de custos: a forte presença estatal nos
leilões, denotando o desinteresse do setor privado de participar no setor aos preços
estabelecidos; a incapacidade de empresas do grupo Eletrobras de entregarem linhas de
186
transmissão no prazo contratual; a queda na rentabilidade das empresas de energia; o
aumento da participação dos financiamentos subsidiados pelo BNDES nos gastos totais
de investimento, como forma de viabilizá-los financeiramente; a possibilidade de
vender 30% da energia no mercado livre, viabilizando tarifas mais baixas no mercado
regulado e a ausência de ofertas em alguns leilões. Todos esses são fatores que sugerem
que a modicidade tarifária pode estar ultrapassando o limite daquilo que seria prudente,
comprometendo a capacidade do setor de investir e de se manter de forma sustentável
no futuro.
Um importante passo na busca de redução das tarifas foi dado com a
edição da Medida Provisória nº 579, de 2012. Ali, em troca da possibilidade de
renovação antecipada de contratos, a concessionária de geração deveria aceitar as novas
tarifas impostas pela Aneel, substancialmente mais baixas do que as que vigoravam. A
forte redução nas tarifas deve-se ao fato de que as geradoras já amortizaram os
investimentos feitos para a construção das usinas, ao longo dos quase 30 anos de
contrato de concessão, e de que, a partir de agora, somente incorreriam nos custos de
operação e manutenção, cerca de 70% mais baixos. Também pode se considerar
meritória a redução de alguns encargos, como a CDE e a CCC, bem como a extinção da
Reserva Global de Reversão.
Apesar de a ideia que norteou a redução de custos ser tecnicamente
correta, a implementação pode ter gerado fortes prejuízos para algumas empresas. O
principal problema foi a indenização pelos ativos ainda não depreciados, que, no caso
da Eletrobras, pode ter atingido R$ 14 bilhões. Outro problema da MP é que a redução
de custos favoreceu somente o mercado cativo. O ideal é que o desconto também tivesse
beneficiado o mercado livre, que atende a parcela significativa de nossa indústria
eletrointensiva, garantindo-lhe maior competitividade.
Em parte devido à hidrologia ruim, em parte devido à fraca expansão do
parque gerador de fonte hídrica, em parte devido à forte expansão do parque térmico
entre 2006 e 2008, foi necessário acionar usinas termoelétricas a partir de outubro de
2012 para garantir o abastecimento. Em longos períodos de 2013 esse acionamento foi
máximo. Entretanto, apesar de as usinas termoelétricas fornecerem energia mais cara, a
tarifa ao consumidor final ainda não foi afetada porque o Tesouro e a CDE bancaram o
187
aumento de custos decorrente do despacho das térmicas, que, em 2013, consumiu R$
9,5 bilhões.
Em princípio, trata-se somente de uma espécie de empréstimo, pois tais
custos irão acabar se refletindo na conta de luz. Entretanto, diante do calendário
eleitoral; do objetivo de se controlar preços de serviços públicos para controlar inflação;
e, talvez, da uma crença na capacidade do Estado de precificar corretamente os bens e
serviços, não se sabe se aqueles custos serão repassados para a conta de luz, quando e
em qual proporção. Mesmo que o repasse venha a ser integral, de forma a não
pressionar as contas públicas, cabe criticar a distribuição temporal do aumento de
custos. O correto seria que tais custos fossem repassados quando a energia estivesse
cara, o que sinalizaria corretamente a escassez do produto para o consumidor, forçando
a racionalização do seu consumo.
Em janeiro de 2014, a exposição involuntária de mais de 3.700 MW das
distribuidoras, que pode representar gastos adicionais de R$ 20 bilhões para as
distribuidoras, impôs novo dilema à política energética. Como as distribuidoras estão
com dificuldades de caixa para honrar esse aumento de despesas, restam ao governo
duas opções: i) manter as tarifas ao consumidor e fornecer algum tipo de ajuda
financeira para as distribuidoras, pressionando as contas públicas e gerando distorções
no consumo; ou ii) aumentar as tarifas ao consumidor, pressionando a inflação e
enfrentando o ônus político associado.
Conclui-se este trabalho lembrando que a melhor forma de se obter
modicidade tarifária não é via controle de preços, mas por meio de reduções
sustentáveis de custo. Para tanto considera-se recomendável:
i)
Redução dos riscos regulatórios e negociais;
ii)
Maior celeridade no fornecimento do licenciamento ambiental;
iii)
Redução da tributação e encargos do setor;
iv)
Estímulo ao desenvolvimento do mercado livre;
v)
Estímulo à construção de usinas com reservatórios.
Sobre esse último ponto, cabe destacar que o Brasil é dos poucos países
que tem a sorte de ainda contar com imenso potencial hidroelétrico a ser explorado, que
permite a geração de energia limpa, renovável e de baixo custo. Entretanto, o país vem
188
desperdiçando esse potencial em decorrência de uma espécie de veto branco à
construção de usinas com grandes reservatórios, como em Belo Monte, onde a opção de
construir uma usina a fio d’água pode, como visto, custar R$ 13,6 bilhões por ano ao
país.
Em síntese, sem mecanismos que garantam a remuneração adequada aos
investidores, o aumento de produtividade e um ambiente sem demasiada interferência
estatal, podemos nos ver no médio e longo prazo sem a ampliação da oferta de energia
de que o Brasil tanto precisa.
189
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