ARTIGO - _A MEDICALIZAÇÃO_André Furian

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A medicalização da vida contemporânea
Até a Segunda Grande Guerra, a psicanálise foi valorizada e utilizada como
tratamento pelos psiquiatras. Com os avanços da ciência a partir da Guerra em vários
campos, mas principalmente no campo farmacológico, a psicanálise começa a perder
terreno. Segundo Roudinesco1 (2000, p.21) “a partir de 1950, as substâncias químicas – ou
psicotrópicos – modificaram a paisagem da loucura. Esvaziaram os manicômios e
substituíram a camisa-de-força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa.”
Os avanços farmacológicos do século passado permitiram à medicina ultrapassar
barreiras que pareciam intransponíveis. É inegável que o homem ganhou muito com essas
descobertas médicas. Foram encontradas curas e vacinas para diversas doenças, tratamentos
e medicamentos mais eficazes, etc.
É válido lembrarmos que Freud, já no fim de sua vida, previra que um dia a
farmacologia imporia limites à psicanálise. Ainda, é pertinente registrar que os avanços da
farmacologia são visíveis e que sua utilização e eficiência são indiscutíveis para o bemestar e qualidade de vida do homem contemporâneo.
Márcio Peter Souza Leite2 escreve que muitos cientistas “afirmam que a conduta
humana pode ser explicada totalmente em termos biológicos. (...) ao proporem uma causa
neurobiológica para os transtornos mentais, negam a causalidade psíquica em
psicopatologia, o que fez com que a psiquiatria atual tenha encontrado nas neurociências
seus fundamentos epistemológicos e metodológicos.” (MAGALHÃES, 2001, p.138)
Ancorada nas neurociências, a psiquiatria atual é capaz de ver o cérebro como uma
máquina manipulável quimicamente. A psiquiatria, segundo Leite, “coerente com a
hipótese dos sintomas serem condicionados somente pelas alterações dos
neurotransmissores, indica, como único tratamento, uma ação neles.” (MAGALHÃES,
2001, p.147).
Uma das grandes dificuldades de entendimento entre a psiquiatria e a psicanálise é,
justamente, que a segunda demonstra a existência de um sujeito que não pode ser reduzido
a um funcionamento cerebral. Obviamente que nem todos os psiquiatras e outros médicos
participam da idéia de reducionismo orgânico cerebral. Há aqueles que acreditam na visão
dualista da relação corpo-mente. A partir da investigação da conversão histérica, Freud
demonstra a existência de um corpo que não é somente orgânico. Lacan amplia a tese
freudiana com a Teoria do Estádio do Espelho, elevando o antes chamado corpo erógeno a
corpo narcísico.
Segundo Lacan, “o fato de o bebê não poder ter uma unidade corporal mostraria a
impossibilidade de existir um Eu fundado pelas funções biológicas.”. Evidencia que “antes
de a coordenação motora ser neurologicamente possível, a criança já se reconhece no
espelho, o que demonstraria a existência de um Eu, entendido como corpo unificado.”
(LEITE, 2001, p. 143). Dessa maneira, fica demonstrado que no estádio do espelho há uma
antecipação das funções psicológicas em relação às biológicas, contrariando a hipótese da
existência de um Eu sustentado somente pela atividade cerebral.
Em psicanálise, o sujeito é constituído em relação a um outro, de quem depende
para a subsistência, dependência esta mediada pela linguagem, o que determina que o
2
Médico psiquiatra e psicanalista. Diretor geral da Escola Brasileira de Psicanálise-SP. Escreve artigo
publicado no livro Psicofarmacologia e Psicanálise, organizado por Maria Cristina Rios Magalhães.
sujeito, na busca de sua satisfação, reatualize os registros que anteriormente tornaram a
satisfação possível, mesmo que sejam irrecuperáveis. O bebê nasce em estado de
prematuração neurológica e tem seu corpo como puro real.
“É a incidência do simbólico sobre o real orgânico que o tornará o corpo de um
sujeito desejante. Isso ocorre pela via do desejo do Outro. Com o suporte de seu
olhar, com o manuseio significante, traduzindo as reações corporais da criança
em palavras e as palavras em ações e estabelecendo a dialética da presençaausência através da linguagem, o desejo do Outro recorta buracos no corpo, de
onde se desprendem objetos que jamais serão reencontrados, objetos que passam
da ordem da necessidade, do real, para o campo do desejo, do significante, do
simbólico.” (SIBEMBERG3, 2001, p.71)
O tratamento analítico inclui a presença do outro, através da pessoa do analista.
Assim cria-se a possibilidade de se reproduzir na transferência a estrutura em que o Sujeito
demanda a um outro uma resposta sobre o que lhe falta. O analista coloca-se como um
ouvinte privilegiado da busca que o analisante faz de sua própria verdade. Portanto,
notamos que a relação analista-analisante é bastante privilegiada em psicanálise,
possibilitando que emirja a subjetividade do sujeito tendo no amor de transferência o motor
da análise. Enquanto isso, a medicina contemporânea tem deixado em segundo plano a
relação médico-paciente, privilegiando demasiadamente os sinais e sintomas que reduzem
tal relação numa determinada doença catalogada nos DSM ou CID-10.
O uso da medicação e tecnologia, não somente pela psiquiatria atual, mas pela
medicina como um todo vem sofrendo algumas críticas importantes devido ao fato de
serem provenientes da própria classe médica, a qual tem condenado a prática reducionista
medicamentosa e o crescente uso da tecnologia em detrimento da relação médico-paciente.
O cardiologista carioca Luiz Roberto Londres4 é um dos médicos que criticam o
modo como a medicina vem sendo praticada e divulgada hoje em dia. Londres condena a
medicalização da vida e critica o primado da tecnologia nos diagnósticos. Segundo ele, as
pessoas sentem-se obrigadas a seguir rigorosamente as normas médicas que lhes são
impostas. Critica também a forma como são apresentadas pesquisas e estudos baseados em
hipóteses, as quais, no entanto, trazem consigo suposições apresentadas em tom de
afirmação. Neste sentido, podemos observar o Discurso do Mestre operado pela ciência que
acaba por transformar uma suposição em verdade. Esse tipo de coisa, diz Londres, “passa a
idéia de que todos os dados ali contidos estão comprovados, são verdades absolutas”.
As pesquisas farmacêuticas, na verdade, contém elementos perturbadores no sentido
de que se sabe que muitos resultados são “fabricados” pelos cientistas. Muitos dos
pesquisadores estão vinculados como sócios dos laboratórios para os quais produzem a
pesquisa e recomendam a utilização do produto. Produto, aliás, parece ser uma maneira
honesta de se denominar um medicamento atualmente. Temos notícias de que o negócio
farmacêutico envolve cifras bilionárias e segredos bem guardados que poderiam beneficiar
muita gente, não fosse o interesse de poucos. Todos esses motivos levam os próprios
médicos a desacreditar no próprio medicamento que receitam ao seu paciente e, talvez por
3
Nilson Sibemberg é psicanalista e escreve sobre “Psicanálise e neurociências” em publicação da Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n.21 de dezembro de 2001.
4
Dr. Luiz Roberto Londres é médico cardiologista e concedeu entrevista à Revista Veja, edição1768 de 11 de
setembro de 2002, sob o título de “Médicos ditadores”.
isso, muitos estejam se voltando para a riqueza da relação médico-paciente na elaboração
de um diagnóstico ou tratamento.
O Dr. Londres ainda diz: “Os aparelhos, que deveriam ser coadjuvantes, roubaram
a cena principal. A tecnologia tornou-se a vassoura da feiticeira: adquiriu vida própria.
Os médicos perderam o contato com os pacientes, não os ouvem como deveriam”. Além
disso, relata uma pesquisa apontando que o uso de tecnologia pesada não melhora o
diagnóstico, com exceção do câncer. E que de todos os métodos diagnósticos, o que se
mostrou mais conclusivo foi o relato da história clínica do paciente seguido de exame
físico. Cita também um médico espanhol do século XII chamado Maimônides, que diz:
“Uma consulta deve durar uma hora. Por cinqüenta minutos ausculte a alma do paciente.
Nos outros dez faça de conta que o examine”. Talvez um exagero para os dias de hoje, mas
sem dúvida esta frase demonstra a importância da dimensão humana.
Parece que temos notícia de um movimento de resgate desta dimensão humana.
Percebemos que os próprios médicos estão criticando a maneira como a medicina tem sido
conduzida, isto é, tem havido um privilégio pela técnica, pelo alívio rápido do sintoma, pela
pressa no atendimento ao paciente, pela priorização da relação custo-benefício, enfim.
Notamos que a medicina se dá conta de que relegou a um segundo plano a relação médicopaciente em prol de uma medicalização da vida contemporânea.
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