PREFÁCIO À QUARTA EDIÇÃO Dissipadas as correntes da guerra, pode-se verificar com satisfação que o interesse pela psicanálise permanece ileso no mundo em geral. Mas nem todas as partes da doutrina tiveram o mesmo destino. As colocações e constatações puramente psicológicas da psicanálise sobre o inconsciente, o recalcamento, o conflito que leva à doença, o lucro extraído da doença, os mecanismos da formação de sintomas etc., gozam de crescente reconhecimento e são consideradas até mesmo por aqueles que em principio as contestam. Mas a parte da doutrina que faz fronteira com a biologia, cujas bases são fornecidas neste pequeno escrito, continua a enfrentar um dissenso indiminuto, e as próprias pessoas que por algum tempo se ocuparam intensamente da psicanálise foram movidas a abandoná-la para abraçar novas concepções, destinadas a restringir mais uma vez o papel do fator sexual na vida anímica normal e patológica. Ainda assim, não posso decidir-me pela suposição de que essa parte da doutrina psicanalítica possa afastar-se muito mais que as outras da realidade apurada. A memória e o reexame constantemente reiterado dizem-me que ela brotou de uma observação igualmente esmerada e isenta de expectativas; ademais, o esclarecimento dessa dissociação percebida no reconhecimento público não apresenta nenhuma dificuldade. Em primeiro lugar, os primórdios aqui descritos da vida sexual humana só podem ser confirmados por investigadores que tenham paciência e habilidade técnica suficientes para reconduzir a análise até os primeiros anos da infância do paciente. É freqüente, ademais, não haver possibilidade disso, porquanto a prática médica exige que se despache com mais rapidez, aparentemente, o caso patotógico. Salvo pelos médicos que exercem a psicanálise, entretanto. ninguém pode ter acesso algum a esse campo, nem qualquer possibilidade de formar por si um juízo que não seja influenciado por suas próprias aversões e preconceitos. Soubessem os homens aprender através da observação direta das crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido escritos. Mas convém lembrar ainda que parte do conteúdo deste escritos. — a saber, sua insistência na importância da vida sexual para todas as realizações humanas e a ampliação aqui ensaiada do conceito de 11 sexualidade - tem constituido, desde sempre, o mais forte motivo para a resistência que se opõe à psicanálise. No afã de encontrar tópicos grandiloqüentes, chegou-se até a falar no “pan-sexualismo” da psicanálise e a fazer a esta a absurda censura de que ela explicaria “tudo” a partir da sexualidade. Só é possível assombrar-se com isso quando se esquece quão confuso e distraído se pode ficar em decorrência dos fatores afetivos. Já faz um bom tempo que o lilósofo Arthur Schopenhauer mostrou aos homens em que medida seus feitos e interesses são determinados por aspirações sexuais — o sentido corriqueiro da expressão —. e parece incrivel que todo um mundo dc leitores tenha conseguido banir de sua mente, de maneira tão completa. uma advertência tão impressionante! E quanto à “ampliação’ do conceito de sexualidade, que a análise das crianças e dos chamados perversos tornou necessária, todos aqueles que desde seu ponio de vista superior olham desdenhosamente para a psicanálise deveriam lembrar-se de quanto essa sexualidade ampliada da psicanálise se aproxima do Eros do divino Platão. (Cf. M. Nachmansohn. “Freuds Libidotheorie verglichen mit der Eroslehre Platos”, Int. Z. Psychoanal 3, 65, 1915.) Viena, maio de 1920 12