GUSTAVO DANTAS CARVALHO O DIREITO AO TRABALHO DO PRESO COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: a necessidade de um regime jurídico específico São Cristóvão 2017 GUSTAVO DANTAS CARVALHO O DIREITO AO TRABALHO DO PRESO COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: a necessidade de um regime jurídico específico Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Carlos Augusto Alcântara Machado. São Cristóvão 2017 BANCA EXAMINADORA ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ AGRADECIMENTOS Nenhum trabalho se desenvolve sozinho. O diálogo constante é o principal responsável pelas ideias aqui apresentadas. As discussões travadas em sala de aula com os colegas mestrandos e com todos os professores do programa foram essenciais para esta dissertação. À Tássia, por tudo. O seu companheirismo e afeto de uma década já fazem parte da minha personalidade. Sem você nenhum trabalho faria sentido. Sem a sua paciência e amor eu não estaria aqui. Obrigado. Ao professor, orientador e amigo, Carlos Augusto Alcântara Machado, pelas aulas, ajuda, confiança, paciência e sempre preciosas lições. Aos professores Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva pelas valiosas contribuições por todo a jornada do Mestrado e Henrique Ribeiro Cardoso pelas observações no Exame de Qualificação. Aos amigos da Defensoria Pública de Sergipe, companheiros de lutas e indignações com o mundo jurídico. Aos colegas de Mestrado, pela ajuda durante todo o curso. Por fim, aos meus pais, Eunice e Antônio Carlos, aos meus avós, Theobaldo, Sônia, Creuza e Murilo e à toda a minha família pela formação de caráter durante toda a minha vida. Obrigado por todo o suporte afetivo sempre presente. Gustavo Dantas Carvalho O DIREITO AO TRABALHO DO PRESO COMO CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO: a necessidade de um regime jurídico específico RESUMO A presente dissertação, adotando o método dedutivo, tem como objetivo estudar os referenciais teóricos do direito ao trabalho do indivíduo penalmente condenado, defendendo, inicialmente, a fundamentalidade de tal direito como expressão da etapa fraternal do constitucionalismo contemporâneo, bem como a sua exigibilidade perante o Estado, uma vez que este, ao privar o indivíduo de sua liberdade, estabelece com o condenado uma relação jurídica especial, assumindo para o si o dever de dar plena efetividade aos direitos dos presos, tanto como forma de garantir a ressocialização destes, como também concretizar o direito ao desenvolvimento por eles titularizado, particularmente em razão da sua condição de grupo socialmente vulnerável. Por fim, discute-se o regime jurídico aplicado ao trabalho encarcerado em uma perspectiva constitucional, uma vez que a ausência de disciplina normativa sobre o tema, bem como a inadequação das normas atualmente vigentes com a Constituição Federal de 1988 provocam uma proteção insuficiente da ordem jurídica direito de trabalhar do apenado. Palavras-chave: Direito ao trabalho. População carcerária. Desenvolvimento humano. Regime jurídico. Gustavo Dantas Carvalho THE RIGHT TO WORK OF THE PRISONER AS IMPLEMENTATION OF THE RIGHT TO THE DEVELOPMENT: necessity of a specific legal regime abstract This dissertation, adopting the deductive method, aims to study the theoretical framework of the right to work of the incarcerated individuals, defending, initially, the fundamentality of such right as an expression of the fraternal stage of contemporary constitutionalism, as well as its enforceability towoards the State since, by depriving the individual of his freedom, he establishes with the condemned a special juridical relation, assuming the duty to give full effect to the rights of the prisoners, both as a way of guaranteeing their re-socialization, as well as implement the right to development that they hold, particularly because of their status as a socially vulnerable group. Finally, it's discussed the legal regime applied to the incarcerated work in a constitutional perspective, since the absence of normative discipline on the subject, as well as the inadequacy of the norms currently in force with the Federal Constitution of 1988, causes insufficient protection of the legal order to the right to work of the imprisoned. Keywords: Right to work. Prison population. Human development. Legal regime. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................8 2 O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO......................................................11 2.1 Do Estado Liberal ao Estado Fraternal............................................................12 2.1.1 A Fraternidade da Constituição Federal de 1988..............................................17 2.2 O Trabalho como direito fundamental de caráter social………….…..………21 2.3 O Direito do trabalho nas normas internacionais………………….………...…33 2.3.1 Instrumentos internacionais do direito ao trabalho em geral……..…..….…......34 2.3.2 Normas internacionais sobre o trabalho encarcerado……………..…………….36 3 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO DOS GRUPOS VULNERÁVEIS.….……..…38 3.1 O Direito ao desenvolvimento…………………………………….….….…..….…38 3.1.1 Desenvolvimento humano, crescimento econômico e direito econômico do desenvolvimento…………………………………………………………………...……….44 3.1.2 Direito ao desenvolvimento e direitos humanos……………………….....………46 3.2 Direito ao desenvolvimento dos grupos vulneráveis: a população carcerária………………………………………………………………………...…………63 3.2.1 População carcerária como grupo vulnerável…………………………..……..…65 3.2.2 A responsabilidade estatal no desenvolvimento do preso……………..…….…68 4 A NECESSIDADE DE UM REGIME JURÍDICO DO TRABALHO ENCARCERADO…………………………………………………………………..………86 4.1 Constitucionalização do Direito……………………………………………...……87 4.2 A Lei de Execuções Penais frente à Constituição Federal de 1988…...…….90 4.3 O direito de trabalhar e o dever de trabalhar…………………………...……….94 4.4 A Necessidade de Estatuto Jurídico do preso trabalhador…………..….….102 4.4.1 Regime jurídico do trabalhador condenado em regime aberto ou semiaberto................................................................................................................103 4.4.2 Regime jurídico do trabalhador condenado em regime fechado………...……105 4.4.2.1 A criação de Estatuto Jurídico do preso trabalhador…………………...……111 4.4.2.2 Interpretação conforme da CLT e não recepção da LEP…………....….…..113 5 CONCLUSÃO………………………………………………………………………...…115 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………...………118 8 1 INTRODUÇÃO Esta dissertação busca discutir a efetividade do direito ao trabalho da população carcerária. Três são os focos principais do trabalho. Inicialmente, pretende-se demonstrar que o direito ao trabalho foi incorporado ao ordenamento jurídico como direito fundamental de segunda dimensão. Após, serão realizadas algumas considerações sobre o trabalho como método de se concretizar o desenvolvimento humano da pessoa presa. Por fim, será discutido o regime jurídico aplicado ao trabalho realizado no cárcere. Cumpre destacar que o presente trabalho não pretende discutir os motivos pelo qual o indivíduo teve a sua liberdade privada, ou seja, não se trata, aqui, de um trabalho de criminologia em que se discute a reação social aos fatos tidos como criminosos. Parte-se do pressuposto de que o direito ao trabalho foi reconhecido pela Constituição Federal de 1988 - CF/88 - como um direito fundamental, compondo a segunda dimensão de tais direitos, também denominados de direitos econômicos, sociais e culturais. A marca característica destes direitos é a sua dimensão positiva, pela qual o Estado deve garantir a todos o exercício da liberdade plena mediante prestação dos bens jurídicos garantidos pelo ordenamento jurídico. O objetivo dos direitos sociais é que seja alcançada a igualdade em sua perspectiva material, e não meramente formal, como ocorre nos direitos de primeira dimensão. Diferentemente dos demais direitos sociais, como a saúde, educação e moradia, o direito ao trabalho não exige, em regra, uma prestação direta por parte do Estado, uma vez que a real oferta de empregos está condicionada a diversos fatores econômicos e sociais em que o Estado possui ingerência meramente reflexa, através de suas políticas macroeconômicas. No entanto, acredita-se que, ao privar a liberdade de um indivíduo, o Estado passa a ter a obrigação de prover as condições necessárias para que esta pessoa tenha a possibilidade de concretizar o seu direito social ao trabalho, uma vez que o indivíduo passa a ter uma relação especial de sujeição ao Estado. Outrossim, por determinação da Lei de Execuções Penais - LEP, o trabalho, além de dever social, deve possuir finalidade educativa e produtiva. Ou seja, o trabalho oferecido pelo 9 Estado deve, também, efetivamente capacitar o condenado a ingressar no mercado de trabalho. Em outra vertente, se buscará analisar o conteúdo e a exigibilidade do direito ao trabalho em razão do direito ao desenvolvimento, demonstrando que os indivíduos privados de sua liberdade, por se tratarem de pessoas em especial situação de vulnerabilidade, merecem tratamento diferenciado na busca da concretização do direito ao desenvolvimento, o que transforma o direito em debate em autêntico direito subjetivo, exigível, portanto, pelos indivíduos encarcerados em face do Estado. Outrossim, outro ponto a ser discutido é a aplicação ou não da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT - ao trabalho exercido pela população carcerária, uma vez que o §2º do art. 28 da LEP dispõe expressamente que não se aplica este diploma legislativo ao trabalho do preso. Pretende-se discutir a validade desta norma em uma perspectiva constitucional, além de ser feita uma diferenciação entre trabalho interno e externo, uma vez que neste há a possibilidade de contratação do encarcerado, ainda que em regime fechado, por órgãos da Administração Direta ou Indireta e até mesmo por entidades privadas. Assim, pretende-se analisar se a não aplicação da CLT nesses casos viola ou não o princípio da igualdade, pois estabelece regimes jurídicos diversos a pessoas em situações assemelhadas. Cumpre destacar que, no plano internacional, diversos instrumentos normativos reconhecem o direito ao trabalho em geral, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador). Especificamente sobre o tema proposto, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas aprovou as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, estabelecendo que “deve ser dado trabalho suficiente de natureza útil aos reclusos de modo a conservá-los ativos durante o dia normal de trabalho”. A população carcerária constitui uma parte da sociedade civil que, em regra, não possui poder de pressão sobre o Estado de forma a reivindicar que sejam efetivados os seus direitos sociais constitucionalmente assegurados. Assim, a 10 presente dissertação tem como objetivo geral defender a concretização de tais direitos para esse grupo populacional que costumeiramente fica excluído da participação da sociedade. Os objetivos específicos desta dissertação são estudar os referenciais teóricos acerca da função estruturante do Estado na concretização dos direitos fundamentais, verificar o alcance dos direitos social ao trabalho insculpido no art. 6º da Constituição Federal de 1988 e a sua efetividade em relação aos indivíduos privados de sua liberdade, compatibilizar a obrigação de trabalhar dos indivíduos encarcerados (art. 39, V da LEP) com a vedação das penas de trabalhos forçados (art. 5º, XLVII, “c” da CF/88 e art. 1º da Convenção nº 29 da OIT sobre o trabalho forçado ou obrigatório), bem como examinar a necessidade de proteção do trabalho do preso através de estatuto jurídico próprio. Esta dissertação adotou o método dedutivo, tendo como fonte primária a revisão bibliográfica de autores que se debruçaram sobre o tema discutido. Como fonte secundária, foi analisada a jurisprudência dos tribunais a respeito das questões aqui discutidas. O primeiro capítulo temático demonstrará a fundamentalidade do direito ao trabalho, apresentando a evolução dos modelos de Estado, do liberalismo ao fraternalismo, para, ao final, defender o direito ao trabalho do preso como forma de concretização da igualdade do indivíduo na sociedade. Em seguida, como consequência da perspectiva igualitária do direito defendido, o segundo capítulo apresentará o direito ao desenvolvimento e demonstrará que o trabalho do indivíduo encarcerado possibilita o seu desenvolvimento humano. O capítulo final discutirá o estatuto jurídico a ser aplicado ao trabalho encarcerado, uma vez que a vedação da aplicação da CLT sem que seja criado um novo estatuto para regulamentar a relação laboral revelar-se-ia incompatível com o princípio da igualdade. 11 2 O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO O direito à vida é o direito mais básico do ser humano. Contudo, especialmente na sociedade capitalista, os meios de se garantir tal direito advém primordialmente dos frutos do trabalho. O labor é o primeiro direito social reclamado pelos indivíduos. Se a subsistência do direito à vida depende do trabalho, o direito ao trabalho deve ser garantido a todos. Desta forma, cria-se uma relação íntima de conexão entre a vida e o trabalho. O trabalho é a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, o sistema de produção atual não possibilita liberdade real ao indivíduo, pois lhe retira a possibilidade de escolher entre usufruir da vida ou trabalhar, na medida em que o labor se tornou necessidade que se impõe como forma de garantia da mera subsistência. É nesse sentido a lição de Ivan de Carvalho Junqueira (2005, p. 73): É o labor inerente à vida humana, essencial mesmo à desenvoltura do Homem com um mínimo de dignidade. Inobstante hoje estar ele reduzido à mera garantia da subsistência, pela não possibilidade do efetivo gozo frente a outras necessidades das mais prazerosas, reveste-se, sem dúvida, de imperiosa importância prática. E bastante acirrada tem-se mostrado a disputa por postos de trabalho à vigência da ordem capitalista, sendo exigida, então, mão-de-obra cada vez mais qualificada, o que, por outro lado, exclui milhares de outros trabalhadores. Levando em consideração que os bens materiais se revelam indispensáveis à proteção do direito à vida, e tendo em vista que a aquisição de tais bens depende, em regra, dos ganhos salariais decorrentes do trabalho, assegurar o direito ao trabalho significa assegurar a própria existência do ser humano. Afastando-se do capitalismo puro, a reivindicação do trabalho como direito social a ser prestado, direta ou indiretamente, pelo Estado surge como exigência de proteção da vida do ser humano. Diante disso, compete às políticas públicas estatais promover intervenções na economia como forma de estimular a criação de empregos. Não se pode admitir que a proteção da propriedade privada ganhe maior importância do que a proteção da vida dos membros da sociedade. Assim, Rafael 12 Sastre Ibarreche (1996, p. 26) ensina que o Estado deve garantir que os indivíduos, especialmente os mais necessitados, possam vender a sua força de trabalho ao mercado. Contudo, não conseguindo fazê-lo, cabe ao próprio Estado garantir a satisfação das necessidades vitais dos indivíduos1. 2.1 Do Estado Liberal ao Estado Fraternal Na perspectiva liberal clássica, o mercado asseguraria a possibilidade de trabalho para todos aqueles que assim quisessem. Desta forma, somente de forma excepcional deveria o Estado intervir, já que, em regra, sempre haveria emprego para aqueles que se disponibilizassem a vender a sua força de trabalho. No entanto, a história demonstra que a autorregulamentação do mercado se demonstrou inapta a suprir as demandas sociais dos indivíduos. Em seu início, o Estado Liberal era fortemente marcado pelo critério do acúmulo de riquezas. A cidadania (participação da vida política do Estado) somente se expressava através da propriedade, no instituto do voto censitário. Entretanto, diante da luta por direitos da classe trabalhadora, o Estado Liberal se viu obrigado a evoluir nos seus conceitos. Como o objetivo não era alterar o status quo da classe dominante ou promover qualquer forma de revolução no próprio sistema de produção, houve uma ampliação do sujeito de direitos civis e políticos, incorporando os trabalhadores nos critérios de exercício da cidadania. Assim, incorporou-se ao ordenamento jurídico as reivindicações do proletariado, incluindo nos textos constitucionais e na legislação infraconstitucional os direitos sociais e econômicos. Com isso, houve uma mudança de paradigma, o Estado Liberal, marcado pela limitação do poder estatal através dos direitos fundamentais de primeira dimensão, se converteu em Estado Social, cuja característica é a tentativa, ao menos a nível teórico, da participação de todos no exercício da vida política e do poder do Estado. “Incluyendo el derecho al trabajo, puesto que, si el Estado ha de garantizar la reproducción de la fuerza laboral, tiene que facilitar que los menesterosos puedan verderla en el mercado; pero si éste falla, él mismo tiene que proporcionar trabajo para permitirles satisfacer sus necesidades vitales.” 1 13 O constitucionalismo não ignorou essa mudança paradigmática. O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado Liberal, empenhado em limitar o poder político tanto internamente, pela sua divisão de poderes, como externamente, através da redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade. O constitucionalismo liberal evoluiu para o constitucionalismo social, que, por sua vez, evoluiu para o neoconstitucionalismo2. Da antiguidade clássica até o final do século XVIII não existiam constituições escritas, mas apenas um conjunto de princípios com forte influência religiosa que garantiam a existência de direitos perante o monarca, limitando o seu poder. O constitucionalismo liberal, surgido com as revoluções liberais do final do século XVIII, tinha como foco os direitos civis e políticos, também conhecidos como direitos de defesa, pregando o Estado mínimo, que sustenta que o Estado devese limitar à defesa da ordem e segurança públicas, ou seja, deveria haver um Estado abstencionista, que interviria de forma mínima na economia e nas relações sociais. O constitucionalismo clássico decaiu porque as desigualdades sociais aumentaram em decorrência de uma grave crise econômica gerada pelo liberalismo puro. Observando-se que a igualdade de partes, pressuposto desta fase do constitucionalismo, ficou limitada ao nível teórico, deu-se a crise do liberalismo, que motivou a evolução para o constitucionalismo social. Na fase do constitucionalismo social foram incluídos no rol dos direitos fundamentais direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem, via de regra, uma atividade positiva por parte do Estado. Os direitos sociais representam, essencialmente, a luta pela igualdade material e consequente expansão das possibilidades de cada indivíduo. Tais direitos ganharam relevo na história constitucional a partir dos movimentos organizados da 2 Não se ignora que parte da doutrina, seguindo a proposta do jurista argentino José Roberto Dromi, passou a defender a possibilidade de um Constitucionalismo Universal como sucessor do neoconstitucionalismo, o que recebeu a denominação de Constitucionalismo do Futuro. No entanto, como se trata de teoria que, segundo o próprio autor, ainda não é aplicável aos sistemas jurídicos, deixa-se de trabalhar com tal conceito na presente dissertação. Sobre o tema, ver: DROMI, José Roberto. La Reforma Constitucional: El Constitucionalismo del “por-venir”. In: ENTERRIA, Eduardo Garcia de; ARÉVALO, Manuel Clavero (coord). El derecho Público de Finales de Siglo: Una Perpectiva Iberoamericana. Madri: Fundación BBV, 1997, p.107-116. 14 sociedade civil em favor dos grupos minoritários ou sem forte expressão e poder político. Neste tema, ensina Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 78-79): A luta pela igualdade, enquanto luta pela redução das desigualdades socioeconômicas, veio muito mais tarde com os direitos sociais e econômicos. Mas tudo isto ocorre dentro do paradigma da igualdade. Este paradigma só foi questionado quando grupos sociais discriminados e excluídos se organizaram, não só para lutar contra a discriminação e a exclusão, mas também para pôr em causa os critérios dominantes de igualdade e diferença e os diferentes tipos de inclusão e exclusão que o legitimam. […] Há já alguns anos, resumi esta grande transformação na luta pelos direitos humanos com a seguinte formulação: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos trivializa. A característica básica do Estado Social é a intervenção nos âmbitos social, econômico e laboral com o objetivo de se garantir um mínimo de bem-estar aos indivíduos que compõe o corpo da sociedade (Welfare State). As experiências vividas na segunda guerra mundial demonstraram a necessidade de se consagrar a dignidade da pessoa humana como base da reconstrução dos direitos humanos. Assim, com o reconhecimento definitivo da força normativa da Constituição, esta passou a servir de centro gravitacional da ordem jurídica. Ou seja, a Constituição passou a abranger normas de diversos ramos do direito, no fenômeno da constitucionalização do direito, bem como restou assentada a ideia de interpretação das normas conforme a Constituição. Luís Roberto Barroso ensina que este movimento foi denominado de neoconstitucionalismo que, como modelo constitucional, tem três marcos: o histórico, o filosófico e o teórico. O marco histórico na Europa Continental foi o constitucionalismo do pósguerra. No Brasil, este marco foi a Constituição Federal de 1988 e o processo de redemocratização pós ditadura militar. Ainda seguindo a lição de Luís Roberto Barroso, o marco filosófico é o póspositivismo, com a aproximação entre o direito e a ética, além da valorização dos direitos fundamentais. Por fim, o marco teórico do novo constitucionalismo é marcado pelo reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação 15 constitucional, baseada no reconhecimento da normatividade dos princípios e na valorização da argumentação e ponderação entre normas constitucionais3. Se ao constitucionalismo liberal correspondeu o Estado Liberal e ao constitucionalismo social o Estado Social, ao neoconstitucionalismo não corresponde uma nova forma de Estado estabelecida, em que pese a evidente necessidade. As características das fases do constitucionalismo demonstradas acima indicam que as constituições do Estado Liberal eram marcadas pelos direitos baseados na ideia da liberdade, enquanto que as Constituições do Estado Social eram marcadas pela inclusão dos direitos com fundamento na busca da igualdade material entre os indivíduos. Por outro lado, o neoconstitucionalismo como nova fase do Direito Constitucional não apresentou novos elementos às Constituições, mas sim uma nova forma de leitura de suas normas, com a incorporação dos valores morais através de princípios constitucionais e de direitos fundamentais. Ao enunciar as dimensões (ou gerações) de direitos humanos, costuma-se fazer referência aos lemas da revolução francesa: ”liberté, égalité, fraternité”, ou seja, liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, apesar da existência do Estado Liberal e do Estado Social, não houve a consolidação do terceiro lema da revolução. O Estado Fraternal, e, consequentemente, o constitucionalismo fraternal representa a inclusão dos direitos de solidariedade social aos textos constitucionais, além da leitura dos direitos individuais e sociais com a perspectiva fraternal. Sobre a evolução do constitucionalismo culminando na etapa fraternal, leciona Carlos Ayres Britto (2003, p. 216): Efetivamente, se consideramos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chegando nos dias presentes à etapa fraternal esta fase em que as constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da 3 Sobre o tema, ver: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf> Acesso em: 09 abr. 2016. 16 Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do Desenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da Democracia e até de certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer a interação de uma verdadeira comunidade; isto é, uma comunhão de pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da mesma sorte ou destino histórico. A luta pelos direitos das minorias são travadas tradicionalmente no âmbito coletivo, já que, a nível individual, tais segmentos sociais historicamente desfavorecidos mencionados acima por Carlos Ayres Britto dificilmente conseguem o reconhecimento dos seus direitos. É nesse sentido a lição de Boaventura Sousa Santos (2013, p. 62-64): Porque os direitos coletivos não entram no cânone originário dos direitos humanos, a tensão entre direitos individuais e direitos coletivos decorre da luta histórica dos grupos sociais que, por serem excluídos ou discriminados enquanto grupos, não podiam ser adequadamente protegidos por direitos humanos individuais. […] Os direitos coletivos existem para minorar ou eliminar a insegurança e a injustiça de coletivos de indivíduos que são discriminados e vítimas sistemáticas de opressão por serem o que são e não por fazerem o que fazem. O tema da fraternidade foi exaustivamente discutido pelo Procurador de Justiça Carlos Augusto Alcântara Machado em sua tese de doutorado “A garantia constitucional da fraternidade: constitucionalismo fraternal”. Citando o ex-ministro Carlos Ayres Britto acima mencionado, discorre o professor (2014, p. 170): Especificamente na doutrina pátria, define Carlos Ayres Britto, em conferências e entrevistas, o Constitucionalismo Fraternal como “a terceira e possivelmente a última fase, o clímax do constitucionalismo”. Acrescenta, que o Constitucionalismo Fraternal, como evolução histórica do constitucionalismo, é a “fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade”. O constitucionalismo fraternal traz consigo um novo modelo de Estado: o Estado Fraternal. 17 O Estado Fraternal tem como característica diferenciadora a inclusão de direitos de titularidade coletiva no rol dos direitos protegidos pelo ordenamento jurídico. Foram incluídos entre os objetivos do Estado assegurar a igualdade de oportunidades para os grupos sociais vulneráveis (negros, mulheres, homossexuais, deficientes físicos etc.) mediante ações positivas por parte dos poderes constituídos. Ou seja, o Estado não deve mais se limitar a garantir a liberdade e a igualdade a todos os indivíduos, passando a se obrigar, também, a atuar mediante ações afirmativas com a finalidade de possibilitar o desenvolvimento humanos de todos os grupos, concretizando-se, assim, a dignidade inerente à toda pessoa humana. A fraternidade tem como fundamento não apenas a igualdade formal entre todos, mas sim a igualdade jurídica, ou, nas palavras de Carlos Augusto Alcântara Machado, a “igualdade em dignidade”. É neste sentido a sua lição (2014, p. 117): No entanto, para enfrentar tão singular tema, considerado ainda por muitos – e particularmente pelos juristas em geral (é de se insistir) – como extrajurídico ou meta jurídico, impõe-se a fixação de premissa, sem a qual a fraternidade não poderá ser perseguida: o reconhecimento da igualdade jurídica entre todos os seres humanos. Evidentemente que tal igualdade é antes de tudo uma igualdade em dignidade. Mas dignidade compreendida numa perspectiva dinâmica e não estática. Ou, por outra, entender a pessoa – e as pessoas em geral (considerando a conduta humana em interferência intersubjetiva) em comunidade, numa dimensão comunitária, em um contexto relacional. Apesar dos poucos estudos sobre o tema, nota-se que este novo modelo de Estado foi apresentado na Constituição Federal de 1988. 2.1.1 A Fraternidade da Constituição Federal de 1988 Conforme exposto, um dos aspectos que permitem se falar em um novo modelo de Estado é o fato de que houve a incorporação de novos elementos às Constituições. Alguns exemplos podem ser mencionados na própria Constituição Federal de 1988. Com efeito, a consagração da defesa do meio ambiente como 18 forma de proteção intergeracional representa um dos elementos do constitucionalismo fraternal4. No entanto, este não é o único exemplo presente na Lei Fundamental brasileira. Neste tema, ensina Carlos Ayres Britto (MACHADO, 2014, p. 170 apud BRITTO, 2007, p. 34-35): Democracia fraternal, caracterizada pela positivação dos mecanismos de defesa e preservação do meio ambiente, mais a consagração de um pluralismo conciliado com o não-preconceito, especialmente servido por políticas públicas de ações afirmativas que operem como fórmula de compensação das desvantagens historicamente sofridas por certos grupamentos sociais, como os multirreferidos segmentos dos negros, dos índios, das mulheres e dos portadores de deficiência física (espécie de igualdade civil-moral, como ponto de arremate da igualdade política e econômico-social). Ademais, ainda seguindo as lições de Carlos Augusto Alcântara Machado, deve-se mencionar que a intenção da Constituição Federal de 1988 em criar um constitucionalismo fraternal pode ser evidenciada já em seu preâmbulo, que demonstra a pretensão de se instituir no Brasil um Estado de Direito democrático “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Após o preâmbulo, já no art. 3º, inciso I, a Lei Fundamental de 1988 anuncia como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Trata-se, aqui, da positivação do já conhecido lema da Revolução Francesa. Consagrou-se a finalidade estatal de se garantir a liberdade, a igualdade (em sua acepção material, ou seja, justiça na concretude) e a fraternidade (representada, aqui, pela solidariedade interpessoal). A fraternidade pode ser justificada na perspectiva Kantiana, que ensina que a dignidade da pessoa humana é inerente a todos os indivíduos. Desta forma, não podem os homens ser considerados diferentes uns aos outros por critérios subjetivos adotados por um outro grupo. Explica-se. 4 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 19 Se todos os homens são iguais em dignidade, o que justifica o tratamento fraternal aos indivíduos, não se pode criar formas arbitrárias de discriminação, como a cor da pele, a orientação sexual, o gênero, a religião ou a classe social a que pertence o indivíduo. Neste tema, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776, já reconhecia a inerente igualdade entre os indivíduos, afirmando: “consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a procura da felicidade” (tradução livre)5. Não se falava, à época, de direitos transindividuais, mas nota-se na declaração a presença da premissa do fraternalismo: todos os homens são evidentemente iguais. Importa salientar que a evolução das fases do constitucionalismo não importaram supressão das conquistas das fases anteriores, em que pese tenham havido mudanças substanciais, em especial em relação à postura do Estado perante o indivíduo. As formas do Estado evoluem, mas não substituem umas pelas outras. Ou seja, o Estado Social não ignorou as conquistas do Estado Liberal, ao contrário, incorporou ao seu modelo os direitos já conquistados. Da mesma forma, o Estado Fraternal não ignora as conquistas do Estado Social, ao contrário, as aprofunda, incluindo um viés humanista ao constitucionalismo. Diante de tal panorama, o objeto de estudo do presente texto, qual seja, o direito ao trabalho da população carcerária, por se tratar de direito social, tem aproximação ideológica com o constitucionalismo social. No entanto, aprofundando-se o tema, defende-se, aqui, a conexão do direito em debate com o Estado Fraternal acima explicitado, uma vez que o tratamento jurídico emprestado ao direito ao trabalho encarcerado é essencialmente distinto daquele dado ao trabalhador livre. Inicialmente, enquanto o trabalhador livre pode, em tese, escolher com o que quer trabalhar e aonde exercerá seu labor, o indivíduo privado de sua liberdade não tem igual oportunidade. Como o Estado é o responsável pelo encarceramento, é ele Diz o texto original: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness”. 5 20 quem disponibiliza o trabalho ao preso, não havendo, por parte deste, qualquer escolha. Dessa forma, qual seria, então, o fundamento da disponibilização do trabalho para o indivíduo encarcerado? Se o objetivo é tratar a pessoa com dignidade, reinserindo-o na sociedade como igual membro dela, não se trata apenas de buscar a igualdade entre todos, o que caracterizaria o constitucionalismo social, mas sim garantir a dignidade humana entre iguais, sem preconceitos, observando-se a marca característica da fraternidade, qual seja, tratar a todos como iguais em prol do bem comum. Em Vidas do Carandiru: Histórias Reais, Humberto Rodrigues destaca o evidente, mas por muitas vezes esquecido: o preso é um ser humano, que deve ser tratado de forma digna, até porque, inevitavelmente, voltará ao convívio em sociedade. Diz Rodrigues (2002, p. 260): Se errar é humano e perdoar é divino, ser obrigado a prosseguir com o erro é sobre-humano. Portanto, cabe aos legisladores, às leis e à Justiça restituir ao ser humano o seu devido valor, a sua dignidade. Se é que através dos tempos ele teve o seu valor reconhecido. Devemos repudiar o crime, abominar o delito. Todavia, não podemos esquecer que, sempre atrás desses eventos, haverá o ser humano, que, como tal, deverá ser tratado e recuperado para o seu convívio com a sociedade. Anabela Miranda Rodrigues defende que o Estado possui um dever de auxiliar o retorno do apenado à sociedade, estando tal dever fundado justamente na solidariedade, uma vez que a ressocialização do preso significa não só a concretização de seus direitos fundamentais, como também serve ao melhor interesse da sociedade. Leciona Rodrigues (2001, p. 54): Para além do «dever ético de solidariedade» a que, entre nós, se referia Eduardo Correia, incumbe ao Estado um específico dever jurídico de prestação ao cidadão recluso: a oferta do auxílio necessário para que este, querendo, conduza a sua vida futura sem praticar crimes. Um dever duplamente fundado: por um lado, nos direitos fundamentais do recluso; por outro, em interesses da sociedade constituída em Estado. 21 Ademais, conforme será exposto adiante, o indivíduo privado de sua liberdade faz parte de um grupo social vulnerável, que merece tratamento diferenciado por parte do Estado na forma de ações afirmativas, método típico de concretização do viés fraternal da Constituição. 2.2 O Trabalho como direito fundamental de caráter social O labor é um direito social por excelência. Não por outro motivo, o art. 6º da Constituição Federal de 1988, que inaugura o Capítulo dos Direitos Sociais, desde a sua redação originária, faz menção ao direito ao trabalho6. Como direito social, o trabalho é, também, direito fundamental. Sobre a fundamentalidade do direito ao trabalho na ordem constitucional brasileira, defende Maria Hemília Fonseca (2009, p. 142): No tocante ao direito ao trabalho, as análises realizadas até o presente momento nos autorizam a concluir que se trata de um direito elevado à categoria de fundamental em nosso ordenamento jurídico, eis que a sua normativa base está prevista no art. 6º, do Capítulo II, do Título II, ou seja, está contido no catálogo de direitos da Constituição de 1988. A menção expressa ao direito ao trabalho como direito fundamental não é exclusividade brasileira. A título de exemplo, as Constituições espanhola de 19787, 6 Algumas Emendas Constitucionais alteraram o art. 6º da Constituição Federal. A redação originária do dispositivo era a seguinte: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. As Emendas Constitucionais nº 26, 64 e 90 incluiram, respectivamente, a moradia, a alimentação e o transporte ao rol dos direitos sociais. 7 Artículo 35. 1. Todos los españoles tienen el deber de trabajar y el derecho al trabajo, a la libre elección de profesión u oficio, a la promoción a través del trabajo y a una remuneración suficiente para satisfacer sus necesidades y las de su familia, sin que en ningún caso pueda hacer-se discriminación por razón de sexo. 2. La ley regulará un estatuto de los trabajadores. Artículo 40. 1. Los poderes públicos promoverán las condiciones favorables para el progreso social y económico y para una distribución de la renta regional y personal más equitativa, en el marco de una política de estabilidad económica. De manera especial realizarán una política orientada al pleno empleo. 22 italiana de 19478 e portuguesa de 19769 (com a VII Revisão Constitucional de 2005) tratam expressamente do direito ao trabalho, determinando, em essência, que todos os seus nacionais tem o direito fundamental ao trabalho, devendo o Estado adotar políticas que garantam a concretização de tal direito de forma digna, sempre tendo em mente a liberdade individual de cada trabalhador. O direito ao trabalho se apresenta no ordenamento jurídico brasileiro como um direito fundamental, decorrente da valorização do princípio da dignidade da pessoa humana no direito pátrio. Neste ponto, Maria Hemília Fonseca (2009, p. 98) defende que “a exigência de um direito a trabalhar, além do simples objetivo da sobrevivência física, vincula-se à ideia de dignidade da pessoa humana e, consequentemente, à valoração do trabalho como forma de realização pessoal”. Os direitos fundamentais, nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 105), “ao menos de modo geral, podem (e assim efetivamente o são) ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana”. Tamanha é a importância do princípio da dignidade da pessoa humana que, nos termos do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, ele serve de fundamento da República Brasileira, o que significa que o Estado brasileiro existe para atender as aspirações dos seus cidadãos, concretizando a dignidade que lhe são inerentes. 8 Art. 4. La Repubblica riconosce a tutti i cittadini il diritto al lavoro e promuove le condizioni che rendano effettivo questo diritto. Ogni cittadino ha il dovere di svolgere, secondo le proprie possibilità e la propria scelta, una attività o una funzione che concorra al progresso materiale o spirituale della società. 9 Artigo 58. (Direito ao trabalho) 1. Todos têm direito ao trabalho. 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego; b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores. Artigo 59. (Direitos dos trabalhadores) […] 2. Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente: […] 23 O pensamento jusnaturalista fortaleceu o desenvolvimento da ideia de dignidade da pessoa humana. Neste sentido, para Immanuel Kant, “o homem não é uma coisa, não é, por conseguinte, objeto para ser tratado unicamente como meio, senão que, pelo contrário, deve ser considerado sempre, em todos os seus atos, como fim em si.”10 Ora, a dignidade é uma qualidade intrínseca que todo ser humano possui e não um direito atribuído pelo ordenamento. Com efeito, a Constituição não atribui, especificamente, a dignidade às pessoas, mas a promove e a protege por meio dos direitos fundamentais. Portanto, a dignidade da pessoa humana possui uma íntima relação com tais direitos, uma vez que eles existem para promover e proteger a dignidade. Por sua vez,a dignidade da pessoa humana é o fundamento, o núcleo, de todos os direitos fundamentais. Sobre o tema, Rafael Sastre Ibarreche também entende que o valor dignidade é o substrato básico sobre o qual se assentam todos os demais direitos fundamentais (1996, p. 74): El valor dignidad constituye el sustrato básico sobre el que, en términos globales, se asientan los derechos fundamentales […] Desta forma, uma das consequência jurídicas decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana é o dever de proteção e promoção de tal princípio por parte do Estado. Nesse contexto, a concretização dos direitos sociais se revela essencial para que se tenha uma proteção suficiente da dignidade da pessoa humana por parte do Poder Público. Importante destacar a característica de fundamentalidade também presente nos direitos sociais. A disposição topográfica dos direitos sociais (Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais) já revela a evidente fundamentalidade dos direitos sociais no ordenamento jurídico brasileiro. Não por outro motivo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal - STF, Gilmar Ferreira Mendes, no julgamento do pedido de suspensão de tutela antecipada n. 10 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Companhia Editora Nacional. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2015. 24 238, sustentou que os “direitos fundamentais sociais foram acolhidos pela Constituição Federal de 1988 como autênticos direitos fundamentais”11. Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 57) vai além, afirmando que “os direitos sociais fazem parte do acervo histórico, jurídico, ético e cultural dos povos civilizados. Integram o patrimônio cultural do povo brasileiro”. Há direitos fundamentais que criam obrigações positivas ao Estado, exigindo, muitas vezes, a disponibilização de recursos para a sua completa implementação. Apesar de tal característica estar acentuada quanto aos direitos sociais, há outros direitos fundamentais que também exigem uma prestação do Estado com a alocação de recursos. Com efeito, o direito à participação política (direito fundamental de primeira dimensão) exige uma ampla participação ativa do Estado para a sua concretização. Por outro lado, há direitos sociais que não necessitam, em regra, de alocação de recursos ou de concretização legislativa para a sua plena efetividade, reclamando apenas uma abstenção por parte do Estado. Exemplificando-se, o direito de greve é um típico direito social que não depende de gastos públicos para a sua garantia, requer apenas uma conduta omissiva por parte do Estado ou do empregador para que se efetive. Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 185), entendendo que a liberdade dos indivíduos depende de uma postura ativa por parte do Estado, sustenta que os direitos sociais a prestações positivas do Estado objetivam “não apenas a liberdadeautonomia (liberdade perante o Estado), mas também, da liberdade por intermédio do Estado”. O já citado desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, utilizando a classificação de Dieter Murswiek, divide as prestações estatais em quatro grupos (SARLET, 2001, p. 283-284): a) prestações sociais em sentido estrito, tais como a assistência social, aposentadoria, saúde, fomento da educação e do ensino, etc; b) subvenções materiais em geral, não previstos no item anterior; c) prestações de cunho existencial no âmbito da providência social (Daseinsvorsorge), como a utilização de bens públicos e instituições, além do fornecimento de gás, luz, água, etc.; d) participação em bens 11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 238. Relator(a): Min. PRESIDENTE, Presidente Min. GILMAR MENDES, julgado em 21/10/2008, publicado em DJe-204 DIVULG 28/10/2008 PUBLIC 29/10/2008 RDDP n. 70, 2009, p. 169-177. 25 comunitários que não se enquadram no item anterior, como, por exemplo, a participação (no sentido de quota-parte), em recursos naturais de domínio público. Robert Alexy (2008, p. 444), por sua vez, divide o direito a prestações em sentido amplo em três grupos: direitos a proteção, que são direitos fundamentais em face do Estado, exigindo deste a proteção contra a intervenção de terceiros em seus bens pessoais através de uma atuação positiva; direitos a organização e procedimento, que se trata de uma normatização como meio de concretizar os direitos fundamentais; e direitos a prestações em sentido estrito. Diz o autor alemão (ALEXY, 2008, p. 499): Direitos a prestação em sentido estrito são direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares. Quando se fala em direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, direitos à assistência à saúde, ao trabalho, à moradia e à educação, quer-se primariamente fazer menção a direitos a prestação em sentido estrito. Estes direitos a prestações positivas em sentido estrito estão intrinsicamente relacionados ao Estado do Bem-Estar social e a busca da igualdade real através da correção das desigualdades fáticas. Cumpre ressaltar que, conforme amplamente difundido, as normas constitucionais não são meras sugestões ou declarações de boas intenções. Assim, positivados os direitos sociais no texto constitucional, surge a obrigação do Estado em garantir a plena efetividade de tais direitos. É neste sentido a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 11): A Constituição não é um simples ideário. Não é apenas uma expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos. […] Como se sabe, as normas jurídicas não são conselhos, opinamentos, sugestões. São determinações. O traço característico do Direito é precisamente o de ser disciplina obrigatória de condutas. 26 Ademais, os direitos sociais não se tratam de direitos irrealizáveis. Todos eles, por mais que possuam custos, podem ser garantidos pelo Estado através de suas políticas públicas. Neste sentido, critica-se a proposta de emenda constitucional n°19 de 2010 justamente pela falta de efeitos práticos que ela é capaz de gerar. Esta proposta de emenda pretende alterar o artigo 6° para incluir a expressão “essenciais à busca da felicidade”, ficando o artigo com a seguinte redação: Art. 6º São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (sem destaque no original). Com esta redação haveria o reconhecimento de que os direitos sociais servem para a busca da felicidade, mas qual seria então a prestação a que o Estado estaria obrigado? Evidentemente, o Estado não poderia ser compelido a uma prestação egoísta de um indivíduo sob o pretexto de garantir a sua felicidade. Por outro lado, prestações envolvendo os demais direitos sociais encontram neles o seu fundamento constitucional, se revelando desnecessária a alteração constitucional. Assim, haveriapouca efetividade na norma proposta, algo inconcebível em uma Constituição, em razão de sua força normativa. Este amplo rol de direitos sociais previsto no art. 6º da Lei Fundamental é alvo de diversas críticas por doutrinadores que entendem que, em razão da diferença entre a realidade socioeconômica nacional e os direitos garantidos constitucionalmente, a norma constitucional não poderia determinar a realização de algo faticamente impossível, uma vez que tal conduta comprometeria a sua efetividade. Affonso Arinos, em discurso proferido na sessão de 05 de outubro de 1988 do Congresso Nacional, também criticou este extenso rol de direitos sociais e a sua possível falta de efetividade, in verbis: Hoje poderíamos juntar algo de mais grave, que é o seguinte: a aplicabilidade dos textos depende, paradoxalmente, da sua aplicação. Esta situação anômala manifesta-se fortemente no texto de 1988, confirmando-se aquilo que Oliveira Viana chamou de “idealismo constitucional”. É importante insistir neste ponto. A garantia dos direitos individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições contemporâneas, mas a garantia dos direitos 27 coletivos e sociais, fortemente capitulada nos textos, sobretudo nos países em desenvolvimento e, particularmente, nas condições do Brasil, torna-se extremamente duvidosa (para usarmos uma expressão branda), quaisquer que sejam as afirmações gráficas existentes nos documentos, como este que estamos, hoje, comemorando. Afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão, ou falta de sinceridade, quem sabe de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem garantia – eis a situação12. A Constituição não pode esquecer a realidade social e impor algo impossível ao Estado, mas ela também não deve ficar adstrita ao grau de realização dos direitos fundamentais à época de sua promulgação, pois possui como objetivo primordial a alteração da sociedade em busca dos objetivos traçados pelo próprio constituinte. Ou seja, nas palavras de Konrad Hesse (1991, p.5), “a Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser”. Assim, “graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social”. Diversos direitos sociais (aqueles ditos prestacionais) pressupõe uma conduta positiva por parte do Estado, consistindo em uma prestação de natureza fática em favor do indivíduo através da disponibilização efetiva ou potencial do objeto da norma aos indivíduos. Os direitos prestacionais são, para Rafael Sastre Ibarreche, direitos fundamentais que exigem, em geral, uma ação do Poder Público como condição necessária para a sua efetivação (1996, p. 74): La acción de los poderes públicos se presenta, de este modo, como condición necesaria para la efectividad de los derechos fundamentales, en general, y, especialmente, de los derechos económicos y sociales. Versando sobre os direitos sociais, José Eduardo Faria (1994, p. 105) ensina que tais direitos “não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das 12 Discurso proferido na sessão de 5 de outubro de 1988, publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14377-14378. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de1988/constituinte-1987-1988/pdf/Affonso%20Arinos%20%20DISCURSO%20REVISADO.pdf>. Acesso em: 9 abr. 2016. 28 preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios”. No âmbito prisional, os direitos fundamentais titularizados pelos apenados gera para o Estado o dever de possibilitar a sua concretização, seja através de uma abstenção, nos casos dos direitos de primeira dimensão, seja através de uma atuação positiva, nos casos dos direitos sociais. É neste sentido a lição de Anabela Miranda Rodrigues (2001, p. 165): Para além disso, a titularidade de direitos fundamentais por parte do recluso impõe ao Estado deveres de abstenção relativamente a intervenções lesivas desses direitos (nihil nocere) e deveres de prestação que permitam a sua efectiva realização, sobretudo - mas não só - no que diz respeito aos chamados direitos sociais, nomeadamente o direito à saúde, à educação e ao trabalho (omnia prodesse). Não se pode negar que o melhor meio de prestar os direitos sociais é através de políticas públicas de caráter universal, desde que efetivamente respeitem as normas constitucionais e não se limitem ao denominado mínimo existencial, observando, por consequência, o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Ainda que as políticas públicas tenham por escopo a proteção coletiva dos direitos fundamentais, há de se garantir a possibilidade de proteção individual de tais direitos, sempre através da análise do caso concreto, com todas as circunstâncias que o circulam. Deve-se reconhecer que a própria Constituição cria um direito subjetivo a uma prestação social, passível de concretização independentemente de atuação legislativa posterior. Trata-se de um direito individual subjetivo exigível inclusive judicialmente. Costuma-se apontar como óbice à efetividade dos direitos sociais a característica inerente à tais direitos consistente na não exigibilidade imediata da prestação, pois esta não se constituiria um direito subjetivo do cidadão. Sobre o tema, Maria Hemília Fonseca defende a exigibilidade dos direitos sociais, independentemente da natureza da obrigação correspondente. Leciona a autora (2009, p. 80): 29 Existem níveis de obrigações comuns a todos os direitos: estes compreendem ao menos uma obrigação de respeito, uma obrigação de proteção e uma obrigação de satisfação. De tal modo que nenhuma categoria de direito é mais ou menos exigível, pois a cada direito correspondem distintos tipos de obrigações exigíveis. É possível perceber, portanto, que o Estado tem a obrigação de efetivar tais direitos, seja através de mecanismos políticos e jurídicos, e de resguardar o seu cumprimento nas relações entre particulares. Celso Antônio Bandeira de Mello, defendendo uma atualização da noção de direito subjetivo, leciona que deve-se dar ao direito público subjetivo a mesma funcionalidade já deferida ao direito subjetivo na esfera privada, sob pena de, não o fazendo, criar-se ruptura da legalidade. Sobre o tema, sustenta Bandeira de Mello (2009, p. 43-44): Em sua, entre nós, deve-se considerar que está em pauta arguição de direito subjetivo quando (a) a ruptura da legalidade cause ao administrado um agravo pessoal do qual estaria livre se fosse mantida íntegra a ordem jurídica ou (b) lhe seja subtraída uma vantagem a que acederia ou a que pretenderia aceder nos termos da lei e que pessoalmente desfrutaria ou faria jus a disputá-la se não houvesse ruptura da legalidade, nada importando que a ilegalidade arguida alcance a um ou a um conjunto de indivíduos conjuntamente afetados, por se encontrarem na mesma situação objetiva e abstrata. As normas constitucionais que dispõe acerca de direitos sociais inegavelmente possuem alto grau de generalidade, sendo cabível a densificação dos preceitos através das normas infraconstitucionais, havendo, neste ponto, a discricionariedade do Poder Legislativo. No entanto, esta discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, estando, assim, limitada pela própria Constituição. Ao Poder Público é vedado o descumprimento dos imperativos constitucionais, ou seja, a discricionariedade que lhe é dada não inclui o non facere. Foi nesse sentido o voto do Ministro Celso de Mello no Agravo no Recurso Extraordinário nº 271.286-8 RS13, in verbis: Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, 13 RE 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409. 30 paraalém da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Ora, quando o direito social é previsto constitucionalmente, o Estado fica obrigado a emprestar efetividade a tais normas, pois, caso não o faça, estará em situação de violação direta aos termos da Constituição Federal. As obrigações criadas aos poderes estatais através da previsão constitucional do direito ao trabalho são elencadas por Rafael Sastre Ibarreche, para quem o Poder Legislativo recebe duas obrigações, uma negativa, consistente na proibição de revogar normas já existentes dirigidas a facilitar a criação de empregos, e uma positiva, consistente no dever de produzir normas que favoreçam o direito ao trabalho. Ao Poder Executivo, é dada a obrigação de adotar políticas com limitações semelhantes àquelas aplicáveis ao Poder Legislativo. O Poder Judiciário, por sua vez, recebe a obrigação de interpretar as normas no sentido que mais favorável à pretensão de criação de empregos, bem como a obrigação de deixar de aplicar normas violadoras do texto constitucional. Diz o autor (1996, p. 122-123): De este modo, el reconocimiento constitucional del derecho al trabajo genera una serie de obligaciones y, por lo tanto, de pretensiones a comportamientos correlativos, susceptibles de esquematizarse de la siguiente forma. Respecto del poder legistativo, hace surgir obligaciones tanto de signo negativo - no derogar normas ya existentes dirigidas a provocar o facilitar ocasiones de trabajo sin sustituirlas por otras similares - como positivo - orientar las intervenciones prescritas en la Constitución hacia el objetivo del máximo empleo -, aun cuando el efectivo cumplimiento de la obligación de producir normas favorecedoras del derecho al trabajo presenta arduas dificultades. Por lo que se refiere a la Administración, se trataría de que el ejercicio de Su postedad reglamentaria y de Su función ejecutiva se orientara al favorecimento de la ocupación, en la línea de lo indicado para el poder legislativo. Y, por último, en relación al poder judicial, obrigaría a interpretar las normas según el sentido más favorable para satisfacer la pretensión al trabajo, esto es, a dar prioridad al interés relativo a la exigencia del trabajo y a no aplicar la normas contrarias al derecho constitucional. Maria Hemília Fonseca, discorrendo sobre os sujeitos passivos do direito ao trabalho previsto na Constituição Federal de 1988, defende que o Estado possui 31 diversos deveres de atuação como forma de proteger tal direito, seja por atitudes positivas, seja negativas. Diz a autora (FONSECA, 2009, p. 175-176): Visto que o direito ao trabalho foi elevado à categoria de fundamental no referido texto, ele impõe ao poder legislativo obrigações tanto de caráter negativo - não derrogar normas já existentes dirigidas a provocar ou facilitar ocasiões de trabalho sem substituí-las por outras similares - como positivo - orientar as intervenções prescritas na Constituição até o objetivo do máximo emprego. A indeterminação interna dos direitos sociais de caráter prestacional é reconhecida por Rafael Sastre Ibarreche como um problema à determinação da própria existência de normatividade, eficácia e garantias de tais direitos (1996, p. 75): En primer término, y como contraste respecto de los derechos de libertad clpasicos, los derechos de prestación plantean una compleja problemática relativa a su propia indeterminación interna, que se plasma en la existencia de numerosas dudas acerca de su normatividad, eficacia y garantías. Conforme já exposto, o trabalho é o direito social por excelência, estando previsto em diversos diplomas internacionais tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador). A Constituição Federal de 1988 dispõe acerca do trabalho e do direito ao trabalho em diversas ocasiões. Trata-se de um fundamento da república14, de um direito fundamental de primeira dimensão (com base na liberdade)15, da base da ordem social16, além de um direito social previsto no art. 6º e disciplinado no art. 7º. 14 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; 15 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) 32 A Constituição espanhola também prevê o direito ao trabalho, disciplinando-o como direito fundamental, especificando, ainda, que os presos tem o direito constitucional ao trabalho. Sobre o assunto, José Luis de la Cuesta Arzamendi leciona (1996, p. 211): El derecho al trabajo de los penados encuentra, además, una peculiaridad adicional, cual es su previsión explícita y “en todo caso” por el art. 25.2 de la Constitución, precepto incluindo en la sección correspondiente a los “derechos fundamentales y libertades públicas”, susceptible, em principio, del máximo nivel de protección constitucional. No âmbito prisional, diversos são os fundamentos atuais para o trabalho encarcerado. Inicialmente, o trabalho serve como forma de ressocialização do preso, preparando-o para o seu retorno à sociedade como membro ativo, já que o trabalho implica capacitação do indivíduo para o exercício de atividade remunerada quando em liberdade. Ademais, o trabalho serve também para o preso galgar benefícios durante o cumprimento da pena, como a remição da pena. Sobre o tema, Aldacy Rachid Coutinho defende que o trabalho não apenas é importante para a reinserção social do preso, mas também para a constituição da personalidade do preso. Diz Coutinho (1999, p. 13): Atendido na sua dignidade humana, o trabalho se instaura como instrumento de constituição da própria personalidade e, nestes termos, consubstancia-se em um instrumento de auxílio eficaz no atendimento do escopo de reinserção social dos apenados. O direito ao trabalho teve os seus fundamentos alterados conforme período histórico ou linha política e de forma de produção adotada. Maria Hemília Fonseca sintetiza tal discussão da seguinte forma (2009, p. 99): De todas as formas, o significado do direito ao trabalho no decorrer da história sofreu variações expressivas segundo o campo políticoideológico adotado. Inicialmente, ele foi concebido como um direito a exercer um trabalho ou ofício (liberdade de trabalho), em seguida XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; 16 Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bemestar e a justiça sociais. 33 passou a significar uma exigência ante o Estado de se ter um trabalho adequado à capacidade dos sujeitos e chegou, até mesmo, a ser identificado com certas ações assistenciais. A justificativa para o trabalho em cárcere também sofreu mutações no tempo. Com efeito, se antes, devido à forte influência cristã, o trabalho era considerado fundamento da regeneração moral do preso, após, com a ampla aplicação de penas de trabalhos forçados, hoje vedadas, passou-se a entender o trabalho encarcerado como a própria punição estatal. Somente após estas fases é que o trabalho passou a ser considerado forma de ressocialização do preso. É neste sentido a lição de Ivan de Carvalho Junqueira (2005, p. 73-74): Ainda que breve, restringir-se-á a análise deste tema, obviamente, ao âmago do direito penitenciário, podendo-se identificar, desde logo, três grandes estágios à concepção do termo trabalho prisional. Pelo primeiro deles, de tradição nitidamente cristã e em especial atenção ao calvinismo, constitui a atividade laborativa o fundamento à regeneração moral do condenado, vez que permite o referido intento a plenitude do afastamento da vida ociosa (pecaminosa), de conformidade com o binômio: regeneração moral e integração social. Em diversa perspectiva, assenta a segunda teoria na idéia do trabalho, ainda que forçosamente imposto, o elemento da própria punição. À terceira das concepções, muito em voga aos dias atuais, caberá ao trabalho intramuros, a ressocialização do encarcerado. Assim, em sendo hodiernamente o direito ao trabalho um direito fundamental de caráter social com função ressocializadora, deve ele garantido pelo Estado, seguindo-se o princípio da máxima efetividade que lhe é inerente. 2.3 O Direito ao trabalho nas normas internacionais No plano internacional, diversos instrumentos normativos reconhecem o direito ao trabalho em geral, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos17, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais18 e o 17 Artigo 23 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 34 Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador)19. Especificamente sobre o tema proposto, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas aprovou as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, estabelecendo que “deve ser dado trabalho suficiente de natureza útil aos reclusos de modo a conservá-los ativos durante o dia normal de trabalho”20. 2.3.1 Instrumentos internacionais do direito ao trabalho em geral Inicialmente, a Declaração Universal de Direitos Humanos - DUDH - dispõe, em seu art. 23, que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. Ademais, todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. Conforme leciona Fábio Konder Comparato (2005, p. 223-224), “a Declaração Universal dos Diretos do Homem é uma recomendação que a Assembléia das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta das Nações Unidas, artigo 10)”. No entanto, o mesmo autor reconhece que negar a força vinculante da Declaração é se apegar ao formalismo, uma vez que o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento da DUDH, é uma exigência consensual da doutrina jurídica contemporânea. Ademais, Valério de Oliveira Mazzuoli (2011, p. 861) entende que “é possível (mais que isso, é necessário) qualificar a Declaração Universal como norma de jus 18 ARTIGO 6º 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito. 19 Artigo 6 Direito ao trabalho 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, o que incluí a oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita, livremente escolhida ou aceita. 20 Resoluções 663 C (XXIV), de 31 de Julho de 1957 e 2076 (LXII), de 13 de Maio de 1977.Resolução 663 C (XXIV) do Conselho Econômico e Social. Artigo 71. 35 cogens internacional”. Isto porque os direitos elencados na DUDH correspondem aos costumes e princípios internacionais já praticados. Logo, tendo em vista que o Direito Internacional também é composto por estas fontes normativas, a Declaração é uma norma imperativa de direito internacional. A norma extraída do art. 23 da DUDH possui clareza meridiana. Todos tem direito ao trabalho, sem discriminação alguma. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõe que toda pessoa deve ter o direito de levar uma vida digna por meio do desempenho de uma atividade lícita livremente escolhida. Trata-se de convenção internacional ratificada pelo Brasil, possuindo, portanto, eficácia normativa. No sistema americano de Direitos Humanos, a despeito da omissão do Pacto San José da Costa Rica a respeito do direito ao trabalho, o referido Pacto é complementado pelo Protocolo de São Salvador (Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), que cria para os Estados subscritores a obrigação de adotar medidas que garantam a plena efetividade do direito ao trabalho de todos os cidadãos21. Desta forma, o Estado deve dar plena efetividade ao direito ao trabalho, possuindo obrigações específicas na consecução do pleno emprego tendo em vista as particularidades dos diversos grupos, incluindo-se, aqui, a proteção de grupos vulneráveis, quais sejam, os deficientes e, em certa medida, as mulheres22. Sem pretender exaurir o tema, essas são algumas das normas que versam sobre o direito ao trabalho em geral. Conforme observado, elas não adentram no conteúdo do Direito do Trabalho, se limitando a anunciar o trabalho como direito humano e a criar responsabilidade estatais nas políticas de acesso ao emprego. 21 Artigo 6º, 2. Os Estados Partes comprometem‐se a adotar medidas que garantam plena efetividade do direito ao trabalho, especialmente as referentes à consecução do pleno emprego, à orientação vocacional e ao desenvolvimento de projetos de treinamento técnico‐profissional, particularmente os destinados aos deficientes. Os Estados Partes comprometem‐se também a executar e a fortalecer programas que coadjuvem um adequado atendimento da família, a fim de que a mulher tenha real possibilidade de exercer o direito ao trabalho. 22 O tema da responsabilidade estatal na concretização do direito ao trabalho de grupos vulneráveis será tratado no próximo capítulo deste trabalho. 36 2.3.2 Normas internacionais sobre o trabalho encarcerado Tratando sobre o tema do direito ao trabalho do preso, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas aprovou as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos de 1955, adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes. As regras previstas pela ONU dispõem não só que todos os encarcerados devem trabalhar, como também deve ser fornecido trabalho suficiente de natureza útil aos reclusos. Especifica-se, assim, uma obrigação estatal: disponibilizar trabalho ao preso23. Em 2015 estas regras foram atualizadas pelas denominadas Regras de Nelson Mandela, em homenagem ao falecido Presidente da República Sul-Africana Nelson Rolihlahla Mandela, que passou 27 anos preso por sua luta por direitos humanos, igualdade, democracia e paz. As novas regras de tratamento de presos da ONU explicitam que os presos devem ter a oportunidade de trabalhar e participar se sua própria reabilitação, conservando-os ativos através do exercício de trabalho de natureza útil24. Assim, ao dispor que o prisioneiro deve ter a oportunidade de trabalhar e participar de sua própria reabilitação, bem como que trabalho útil e suficiente deve 23 O item 71 destas regras assim dispõe: 71. 1) O trabalho na prisão não deve ser penoso. 2) Todos os reclusos condenados devem trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com determinação do médico. 3) Deve ser dado trabalho suficiente de natureza útil aos reclusos de modo a conservá-los ativos durante o dia normal de trabalho. 4) Tanto quanto possível, o trabalho proporcionado deve ser de natureza que mantenha ou aumente as capacidades dos reclusos para ganharem honestamente a vida depois de libertados. 5) Deve ser proporcionado treino profissional em profissões úteis aos reclusos que dele tirem proveito, e especialmente a jovens reclusos. 6) Dentro dos limites compatíveis com uma seleção profissional apropriada e com as exigências da administração e disciplina penitenciária, os reclusos devem poder escolher o tipo de trabalho que querem fazer. 24 Trabalho Regra 96 1. Os presos condenados devem ter a oportunidade de trabalhar e/ou participar ativamente de sua reabilitação, sendo esta atividade sujeita à determinação, por um médico ou outro profissional de saúde qualificado, de sua aptidão física e mental. 2. Trabalho suficiente de natureza útil deve ser oferecido aos presos de modo a conservá‐los ativos durante um dia normal de trabalho. 37 ser fornecido para manter os presos ativos no dias normais de trabalho, as Regras de Mandela, adotadas na forma de Resolução pela Assembleia Geral da ONU, explicitam as obrigações estatais já mencionadas acima, quais sejam, o Estado deve garantir ao preso a possibilidade de exercer trabalho e este deve possuir natureza útil. Qual é, portanto, a aplicabilidade do direito ao trabalho para a população carcerária? Esta análise exige o entendimento do direito ao desenvolvimento do indivíduo que teve a sua liberdade privada. 38 3 DIREITO AO DESENVOLVIMENTO O direito ao desenvolvimento provoca ao Estado o dever jurídico de adotar todas as medidas possíveis para que o direito ao trabalho do indivíduo encarcerado se concretize. O direito econômico do desenvolvimento não se confunde com o direito ao desenvolvimento em si, especialmente tendo-se em vista que aquele é objeto de estudo do direito econômico, enquanto este, por estar incluído no catálogo de direitos humanos de terceira dimensão, é objeto de estudo deste ramo do direito. Por se tratar de direito do indivíduo, cumpre ao Estado possibilitar o seu exercício, adotando medidas que levem os aprisionados a se desenvolver. Nesse contexto, os indivíduos privados de sua liberdade, já que se tratam de pessoas em especial situação de vulnerabilidade, merecem tratamento diferenciado na busca da concretização do direito ora discutido. Tendo em vista que a ressocialização é, ou deveria ser, o principal objetivo da pena, o direito ao desenvolvimento do preso engloba a possibilidade concreta de se reinserir na sociedade, contribuindo como membro ativo na participação social. 3.1 O Direito ao desenvolvimento O direito ao desenvolvimento, apesar de ser de difícil definição, poder ser visto como o meio pelo qual se concretizam todos os demais direitos humanos, expandindo as liberdades e reduzindo as desigualdades dentro de um espírito de cooperação e solidariedade. Para Carla Abrantkoski Rister (2007, p. 8), “o desenvolvimento, em sentido lato, estaria intimamente ligado ao progresso e à paz, consistindo num dos direitos fundamentais do homem”. Amartya Kumar Sen, em sua tese “Desenvolvimento como Liberdade”, defende que o desenvolvimento é a expressão da expansão das liberdades dos indivíduos. Diz o autor (2000, p. 3): O que as pessoas podem efectivamente realizar é influenciado pelas oportunidades económicas, pelas liberdades políticas, pelos poderes sociais e por condições de possibilidade como a boa saúde, a educação básica, e o incentivo e estímulo às suas iniciativas. 39 Bernardo Brasil Campinho defende que o direito ao desenvolvimento se apresenta como um complemento à autodeterminação dos povos, podendo ser caracterizado como um direito humano coletivo com reflexos individuais. Registra o autor (2010, p. 157): O direito ao desenvolvimento seria o complemento da autodeterminação na medida em que se apresentaria como instrumento de verdadeira independência, da negação do colonialismo e do pleno acesso dos povos aos bens e direitos inerentes a um estágio de desenvolvimento que garanta o bem-estar econômico e social de cada um dos cidadãos de um Estado nacional. Neste ponto, é um direito humano coletivo, com reflexos indiretos na esfera individual de cada integrante de um povo. André Luiz Cavalcanti Cabral e Maria Luiza Pereira Alencar Mayer Feitosa entendem que o desenvolvimento representa a inclusão humana dos povos do planeta, aduzindo que “o fim último do desenvolvimento é a dignidade humana, para esta e para futuras gerações, não comportando limitações, assim, quanto mais plena, mais próxima estará da sua essência” (2013, p. 60). A ideia base do direito ao desenvolvimento é a de que não há liberdade real sem igualdade material. Rafael Sastre Ibarreche entende que o valor igualdade determina uma das marcas características que distinguem os direitos sociais, podendo se afirmar que tal valor representa as exigências de concretização do princípio da igualdade (1996, p. 74): En efecto, el valor igualdad determina, com su presencia inspiradora, uno de los rasgos característicos que distinguen a los derechos sociales, pudiendo afirmarse que, históricamente, éstos se presentan como un intento de concreción de las exigencias derivadas del princípio de igualdad. Ou seja, não se pode dizer que uma pessoa é efetivamente livre quando ela não tem opções de vida. Em síntese, o poder de escolha é requisito para exercício da liberdade plena. Neste ponto, Maria Hemília Fonseca defende a expansão da liberdade através do trabalho. Diz a autora que “o trabalho deveria ser um prazer para o homem e não um castigo, mas para se alcançar este objetivo seria necessário 40 assegurar a todos os indivíduos um mínimo existencial em qualquer ocasião” (2009, p. 101). Exemplifica-se para melhor entendimento. Se um indivíduo não pode optar pela profissão que mais o satisfaça, pois tal escolha o privaria do acesso aos bens materiais que garantem a subsistência, não há real liberdade profissional. O indivíduo em questão acaba sendo obrigado a se conformar com a profissão que seja mais apta a garantir os rendimentos necessários para a sua subsistência dentro do sistema capitalista, em detrimento daquela que promoveria maior satisfação pessoal. Neste sentido, conforme relembra o professor Henrique Ribeiro Cardoso (2007, p. 86), “o desenvolvimento não pode ser concretizado acaso não restem completamenteremovidas as barreiras que mais contribuem para a sua não materialização, como a pobreza e a destituição social sistemática”. O direito ao desenvolvimento tem fundamento na solidariedade e na fraternidade. Nele, todos os povos são responsáveis pelos povos em si, sendo a cooperação internacional e interna essenciais à concretização do direito. Para Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 86), “o direito coletivo ao desenvolvimento, particularmente reivindicado pelos países africanos, só muito tardiamente foi reconhecido, e mesmo assim de forma parcial”. Após o fim da segunda guerra mundial, a sociedade internacional passou a se preocupar concretamente com o respeito à dignidade da pessoa humana, voltando a sua atenção à proteção dos direitos humanos. Flávia Piovesan (2012, p. 59) ensina que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 inovou a gramática dos direitos humanos, uma vez que estendeu os direitos humanos a todos os indivíduos. Sobre o tema, comenta Piovesan: Sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. No entanto, apesar de o denominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos” ser de criação recente, pode-se traçar os seus fundamentos filosóficos ao jusnaturalismo presente já na antiguidade clássica. 41 Com efeito, em Antígona, Sófocles (2005) trata do conflito humano entre respeitar a lei pública da autoridade ou o que impõe a lei divina, considerada, aqui, a perspectiva mundana do que é justo. Quando Antígona é levada a julgamento, acusada de ter infringido a lei positivada que proibia dar sepultura ao seu irmão, ela questiona a ordem posta pelo Rei, reclamando direito sobre o corpo do irmão. Assim, Antígona resiste à determinação normativa do Estado, sob o argumento de que ela resulta do arbítrio de um governante e que não foi promulgada pelos Deuses, ou seja, haveria uma base de direitos naturais que o Estado não poderia criar entraves à sua concretização. O direito ao desenvolvimento também encontra raízes filosóficas em Aristóteles. Em Ética a Nicômaco, o filósofo grego ensina que a justiça é um meiotermo, é a intermediação dos extremos, admitindo certa ambiguidade no próprio conceito de justiça, que comporta diversos significados, podendo ser justiça geral ou particular. Dentro do conceito de justiça particular, Aristóteles ensina que a justiça distributiva se expressa nas relações sociais como forma de proporcionalidade. Assim, justifica a diferença de tratamento entre pessoas que se encontram em situações fáticas diferentes, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, dentro da máxima “se não são iguais, não receberão coisas iguais” (ARISTÓTELES, 1991, p. 101). O direito ao desenvolvimento está conectado a esta lógica da justiça particular distributiva no sentido de que, diante da dicotomia entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, e levando-se em conta, também, as desigualdades regionais existentes em um determinado país, deve-se deferir tratamento diferenciado para aquele que se encontra em posição inferior de desenvolvimento, seja este um país ou uma região de um Estado. Outros fundamentos para os direitos humanos também podem ser encontrados no curso da história. O Antigo Testamento já transmitia a ideia de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, representando o objeto principal da criação divina. Do cristianismo, herdamos a ideia de que todos os homens são iguais em dignidade. Na Idade Média, Tomás de Aquino, em sua obra SummaTheologica, defendia a existência de duas ordens distintas, uma formada pelo direito natural e outra pelo 42 direito positivo. Com essa diferenciação, já defendia a possibilidade de desobediência ao direito positivo quando violasse o direito natural. Dentro da doutrina tomista encontra-se, também, a defesa da dignidade da pessoa humana como característica intrínseca a qualquer ser humano, fundamentando o pensamento jusnaturalista até os dias de hoje. Conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 44), John Locke contribuiu para o pensamento jusnaturalista pois foi ele o “primeiro a reconhecer aos direitos naturais do homem (vida, liberdade, propriedade e resistência) uma eficácia oponível, inclusive, aos detentores de poder”. Já no âmbito do Iluminismo, vale lembrar o já citado Immanuel Kant que, em seu livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes25, ensina que o homem é um fim em si mesmo, e não um meio, um objeto a ser utilizado para a concretização de finalidades diversas. Assim, concluiu-se que a dignidade é uma qualidade intrínseca que todo ser humano possui, não se constituindo em um direito atribuído pelo ordenamento. Conforme leciona Fábio Konder Comparato em “A afirmação histórica dos direitos humanos” (2005, p. 54), a primeira fase da internacionalização dos direitos humanos “teve início na segunda metade do século XIX e findou com a 2ª Guerra Mundial, manifestando-se basicamente em três setores: o direito humanitário, a luta contra a escravidão e a regulação dos direitos do trabalhador assalariado”. A partir de 1945, com as atrocidades cometidas na guerra, houve a mudança paradigmática referida no início deste capítulo: passou-se a compreender o valor supremo da dignidade humana. Foi neste ano, com a edição da Carta da Organização das Nações Unidas ONU, que se deu início ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. No Capítulo IX, que versa sobre a cooperação internacional econômica e social, a Carta dispõe que, tendo em vista a necessidade de se criar condições de estabilidade, as Nações Unidas devem favorecer os níveis mais altos de desenvolvimento como forma de garantir a igualdade e a autodeterminação dos povos26. 25 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Companhia Editora Nacional. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2016. 26 Artigo 55 43 Com isso, a ONU se comprometeu em promover a melhoria na qualidade de vida dos seres humanos, através da cooperação internacional e do esforço de cada país, utilizando-se das instituições internacionais com o objetivo de alcançar avanços na área econômica e social. Em 1948, com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos DUDH - que, apesar de ter natureza jurídica de Resolução da Assembleia Geral da ONU, alcançou o status de costume internacional, sendo, assim, direito cogente (ius cogens), o tema do desenvolvimento voltou ao cenário internacional, ao lado da declaração dos direitos humanos em geral em si. O objetivo era não só impedir que novos conflitos gerassem o desrespeito à vida humana que ocorreu nos anos que a antecederam, mas também estimular o desenvolvimento da sociedade como um todo. Não por outro motivo, o art. 22 do citado diploma menciona expressamente o desenvolvimento como direito do homem, indispensável à concretização de sua dignidade27. Conforme relembra Robério Nunes dos Anjos Filho (2013, p.71), “na época em que foram redigidos os documentos acima [Carta da ONU e DUDH] ainda tinha primazia o paradigma que identificava desenvolvimento e crescimento econômico”. Importante, portanto, distinguir tais conceitos, bem como diferenciar direito econômico do desenvolvimento do direito ao desenvolvimento. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; 27 Artigo 22 Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. 44 3.1.1 Desenvolvimento humano, crescimento econômico e direito econômico do desenvolvimento Inicialmente, o desenvolvimento não se confunde com o crescimento econômico. Com efeito, o desenvolvimento não se resume ao crescimento econômico, abrangendo, também, aspectos sociais, culturais e políticos. Não é objetivo da presente dissertação dispor sobre as teorias acerca do que consiste o crescimento econômico, mas pode-se sintetizar tal conceito como sendo o aumento do Produto Interno Bruto - PIB - (soma de todos os bens e serviços produzidos durante um período determinado)de um país. Assim, o crescimento econômico se revela apenas como uma parte do desenvolvimento humano, que abrange, também, variáveis sociais, uma vez que a mera ampliação da economia de um país não significa melhor distribuição de renda, melhor acesso aos bens de consumo por parte da população, melhores indicadores de saúde pública, melhores índices de alfabetização, melhores condições de trabalho, mais respeito às instituições democráticas etc. É neste sentido a lição de Carla Abrantkoski Rister (2007, p. 2): O processo de desenvolvimento poderia levar a um salto, de um estrutura social para outra, acompanhado da elevação do nível econômico e do nível cultural-intelectual comunitário. Daí por que, importando a consumação de mudanças de ordem não apenas quantitativa, mas também qualitativa, não poderia o desenvolvimento ser confundido com a idéia de crescimento. Este último, meramente quantitativo, compreenderia uma parcela da noção de desenvolvimento. O desenvolvimento humano vai além da análise limitada aos recursos e à renda da sociedade, avaliando, também, a qualidade de vida das pessoas que a integram. Obviamente, a renda é um importante fator de análise do desenvolvimento, mas deve ser vista apenas como um meio para ele, e não como um fim em si. Como forma de medir o desenvolvimento humano, sem desprezar o crescimento econômico, mas levando-se em conta outros fatores diretamente ligados à pessoa humana, foi criado o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, que mede o progresso do desenvolvimento através de três dimensões básicas: a renda, a saúde e a educação. 45 O IDH serve como contraponto ao indicador do PIB per capita, que se limita a considerar o crescimento econômico, não incluindo a análise do efetivo desenvolvimento humano. Este indicador foi criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, com o objetivo de sintetizar o desenvolvimento humano, apesar de ignorar fatores como a democracia, a participação popular, a sustentabilidade etc. Conforme exposto, o IDH possui três fatores de análise básicos. A saúde é medida através da expectativa de vida; a educação é medida a partir do número de anos de educação recebidos e a expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar; a renda é medida pelo PIB per capita, expressa em poder de paridade de compra constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência28. O IDH é sempre publicado dentro de um Relatório de Desenvolvimento Humano - RDH, relatório cujo objetivo é demonstrar que as condições básicas de qualidade de vida de um povo dependem não somente da produção de riquezas, mas também daquilo que elas podem usufruir, como uma vida saudável, educação e oportunidades. Em síntese, “desenvolvimento humano é o processo de ampliação das liberdades das pessoas, no que tange suas capacidades e as oportunidades a seu dispor, para que elas possam escolher a vida que desejam ter”29. A relação entre crescimento econômico e desenvolvimento é sintetizada por Carla Abrantkoski Rister (2007, p. 520) da seguinte forma: […] o crescimento econômico consiste numa condição necessária (embora não suficiente) para acabar com a pobreza. Podemos dizer, desta forma, que o desenvolvimento pressupõe o crescimento, e, para se garantir a sustentabilidade do processo, deve-se buscar a implementação de mecanismos de redistribuição (não só de rendas, como de oportunidades), de cooperação e de difusão do conhecimento econômico, eis que, em matéria econômica, faz-se necessário procurar estabelecer uma democracia direta (e não representativa), pois tal conhecimento é essencialmente prático e individual, não se podendo admitir que uma ampla parcela da 28 Outras informações acerca do IDH podem ser obtidas no site: <http://www.pnud.org.br/IDH/IDH.aspx?indiceAccordion=0&li=li_IDH>. 29 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal Brasileiro. Brasília: PNUD, Ipea, FJP, 2013. 46 população fique privada do acesso aos bens de conteúdo econômico que irão assegurar não somente a sua subsistência, mas também sua dignidade. O direito ao desenvolvimento também não se confunde com o direito econômico do desenvolvimento, apesar das fortes influências deste naquele. O direito internacional do desenvolvimento nasceu como uma vertente do Direito Internacional Econômico. O Tratado de Versalhes, que encerrou a Primeira Guerra Mundial e criou a Liga das Nações, mencionava o progresso econômico e social das regiões menos desenvolvidas como um meio para que fossem alcançados os objetivos do tratado (Anexo do tratado, item IV). Esta disposição demonstra, conforme leciona Robério Nunes dos Anjos Filho (2013, p. 69), que a Liga, que foi sucedida pela ONU, já tinha como preocupação os problemas relacionados ao crescimento econômico e ao desenvolvimento. 3.1.2 Direito ao desenvolvimento na perspectiva internacional Em tratados e convenções internacionais, apenas a Carta Africana de Direitos Humanos, de 27 de junho de 1981, também conhecida como Carta de Banjul, prevê expressamente o direito ao desenvolvimento. Trata-se de tratado aplicável ao Sistema Regional Africano de direitos humanos, assinada pelos países membros da Organização da Unidade Africana. O artigo 22º do referido diploma reconhece o direito ao desenvolvimento como direito humano, dispondo que todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, devendo o Estado garantir a efetivação de tal direito30. No sistema global de direitos humanos, embora não haja previsão expressa ao direito ao desenvolvimento, pode-se extrair de convenções multilaterais a garantia de tal direito. 30 Artigo 22º 1.Todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao gozo igual do patrimônio comum da humanidade. 2.Os Estados têm o dever, separadamente ou em cooperação, de assegurar o exercício do direito ao desenvolvimento. 47 Conforme anteriormente exposto, o Tratado de Versalhes já trazia diversas preocupações com o desenvolvimento humano, apesar de não fazer menção expressa a tal direito. O art. 23 deste diploma demonstra que a Sociedade das Nações buscou alcançar uma sociedade com condições de vida e trabalho justas, respeitando as diferenças culturais sem perder de vista a liberdade individual e as relações econômicas entre os países signatários31. Após, a ONU, já em sua Carta de criação, conforme já exposto no artigo 55 colacionado anteriormente, repetiu a preocupação em promover o progresso social, devendo se empregar, para tanto, um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Ademais, o artigo 1º, item 3, da Carta dispõe como propósito da ONU a cooperação internacional com a finalidade de resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, bem como promover o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais32. Portanto, ficou registrado, já em 1945, que a cooperação internacional no campo econômico é um dos meios de solucionar o problema do subdesenvolvimento. 31 Artigo 23. Sob a reserva e em conformidade com as disposições das Convenções internacionais atualmente existentes ou que serão ulteriormente concluídas, os membros da Sociedade: 1. esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o homem, a mulher e a criança nos seus próprios territórios, assim como em todos os países aos quais se estendam suas relações de comércio e indústria e, com esse fim, por fundar e sustentar as organizações internacionais necessárias; 2. comprometem-se a garantir o tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à sua administração; […] 5. tomarão às disposições necessárias para assegurar a garantia e manutenção da liberdade do comércio e de trânsito, assim com equitativo tratamento comercial a todos os membros da Sociedade, ficando entendido que as necessidades especiais das regiões devastadas durante a guerra de 1914 a 1918 deverão ser tomadas em consideração; […] 32 Artigo 1 […] 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; […] 48 A Declaração Universal dos Direitos do Homem também se preocupou com a questão do desenvolvimento, reafirmando a cooperação internacional como meio de afirmação do desenvolvimento. Diz o seu artigo 22 que todo homem tem direito à realização, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade33. Um dos instrumentos desta cooperação internacional foi regulamentado na segunda Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e desenvolvimento (II UNCTAD), pelo qual foi criado um mecanismo que possibilita aos países desenvolvidos a concessão, unilateral e sem exigência de reciprocidade, de isenções e benefícios tarifários na importação de determinados produtos exportados por países em desenvolvimento, o que ficou denominado como Sistema Geral de Preferências - SGP. Este tratamento diferenciado entre países passou a ser doutrinariamente denominado de Direito Internacional do Desenvolvimento, como ramo específico do Direito Internacional Econômico. Portanto, o Direito Internacional do Desenvolvimento regulamenta a relação entre Estados, sendo, assim, interestatal e servindo “para redistribuir de forma mais equânime e justa os recursos da economia no âmbito internacional” (ANJOS FILHO, 2013, p. 73). Robério dos Anjos Filho (2013, p. 74) defende ainda que “os países subdesenvolvidos tem uma espécie de hipossuficiência e que, portanto, merecem tratamento diferenciado, com base em princípios de solidariedade.” Ou seja, apesar de se respeitar a soberania, paradigma principal do Direito Internacional até a Segunda Guerra, enfrenta-se a realidade social de que existem países que, igualmente soberanos, são economicamente bastante distintos. Ainda no âmbito do sistema global, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC - de 1966, promulgado no Brasil em 1992, 33 assegura diversos direitos intimamente relacionados ao direito ao Artigo 22 Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. 49 desenvolvimento, como o direito ao trabalho, com condições justas e favoráveis, o direito à previdência social, à liberdade sindical, ao mais elevado nível de saúde física e mental, à educação, à cultura etc. Nos sistemas regionais, a Carta da Organização da Unidade Africana de 1963 mencionou, em diversos dispositivos, garantias voltadas aos direitos humanos, bem como a cooperação entre os Estados-membros para o desenvolvimento progressivo do continente. Foi no contexto desta Carta, hoje revogada pelo Ato Constitutivo da União Africana, que foi aprovada a anteriormente referida Convenção Africana de Direitos Humanos, que contém previsão expressa do direito ao desenvolvimento em seu artigo 22. O Ato Constitutivo da União Africana também dispõe acerca do direito ao desenvolvimento. Já em suas considerandas, ficou exposto, em tradução livre, que as nações africanas estão convencidas da necessidade de acelerar o processo de implementação do Tratado estabelecendo a Comunidade Econômica Africana como meio de se promover o desenvolvimento socioeconômico da África para enfrentar de forma mais efetiva os desafios apresentados pela globalização 34. Após, elencando os objetivos da União Africana, o artigo 3º, item j, dispõe como objetivo a promoção do desenvolvimento sustentável a nível econômico, social e cultural, bem a integração das economias africanas35 . Em seguida, o artigo 4º determina que a União Africana deve funcionar de acordo com o princípio da promoção da justiça social para assegurar o desenvolvimento econômico balanceado36. 34 CONVINCED of the need to accelerate the process of implementing the Treaty establishing the African Economic Community in order to promote the socio-economic development of Africa and to face more effectively the challenges posed by globalization; Em tradução livre: CONVENCIDOS da necessidade de acelerar o processo de implementação do Tratado estabelecendo a Comunidade Econômica Africana com o objetivo de promover o desenvolvimento sócio-econômico da África e enfrentar de forma mais efetiva os desafios impostos pela globalização. 35 Artigo 3 […] j) promote sustainable development at the economic, social and cultural levels as well as the integration of African economies; […] Em tradução livre: promover o desenvolvimento sustentável a nível econômico, social e cultural, bem como a integração das economias africanas. 36 Artigo 4 […] promotion of social justice to ensure balanced economic development; […] 50 Na história da constituição da União Europeia, desde o Tratado de Instituição da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço de 1951 até o Tratado de Lisboa de 2007 diversas são as disposições que envolvem o direito ao desenvolvimento, como os direitos humanos, a cooperação internacional e o desenvolvimento econômico sustentável. O Tratado de Lisboa promoveu alterações no Tratado da União Europeia, tendo sido estabelecido como objetivo a promoção da paz e do bem-estar dos povos, bem como o empenho em favor de um desenvolvimento sustentável da Europa com um crescimento equilibrado que vise o pleno emprego e o progresso social, melhorando-se a qualidade do ambiente37. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950 considera que a finalidade do Conselho da Europa “é realizar uma união mais estreita entre os seus Membros e que um dos meios de alcançar esta é a protecção eo desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”. No Sistema Interamericano, a Carta de Constituição da Organização dos Estados Americanos - OEA - de 1948 dispõe expressamente, já em seu preâmbulo, que “a missão histórica da América é oferecer ao Homem uma terra de liberdade e um ambiente favorável ao desenvolvimento de sua personalidade e à realização de suas justas aspirações”. O artigo 2º, item “f”, por sua vez, estabelece como propósito essencial da OEA a promoção, por meio da ação cooperativa, do seu “desenvolvimento econômico, social e cultural”. Após, a Carta da OEA dedica o Capítulo VII integralmente ao tema do “desenvolvimento integral”, estabelecendo, por exemplo, que os Estados membros da OEA se comprometem a promover a justiça social para alcançar o desenvolvimento integral dos povos nos campos econômico, social, cultural, Em tradução livre: promoção de justiça social para garantir um desenvolvimento econômico balanceado. 37 Artigo 2º […] 3. A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assente num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social, e num elevado nível de protecção e de melhoramento da qualidade do ambiente. A União fomenta o progresso científico e tecnológico. […] 51 científico e tecnológico, sendo essencial a cooperação interamericana para a consecução de tal fim38. Por fim, a Carta da OEA também prevê, em seu artigo 45, que o Homem somente poderá realizar as suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada de desenvolvimento econômico. Assim, devem os Estados envidar os maiores esforços no sentido de que todos os seres humanos, sem qualquer distinção, “têm direito ao bem-estar material e a seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade, dignidade, igualdade de oportunidades e segurança econômica”. O mesmo dispositivo (artigo 45) dispõe sobre importante tema para os fins deste trabalho, uma vez que, em seu item “b”, estabeleceu-se que “o trabalho é um direito e um dever social”, que confere dignidade à pessoa humana, devendo ser assegurado um “regime de salários justos”, que assegurem“a vida, a saúde e um nível econômico digno ao trabalhador e sua família”. Também de interesse para esta dissertação é o disposto no item “f” do artigo 45 da Carta da OEA, que estabelece como meta dos Estados a incorporação e participação efetiva dos setores marginais da população como forma de se alcançar a finalidade principal do desenvolvimento e progresso da comunidade 39 . Assim, conforme será argumentado adiante, em se constituindo os presos em um grupo 38 Artigo 30 Os Estados membros, inspirados nos princípios de solidariedade e cooperação interamericanas, comprometem-se a unir seus esforços no sentido de que impere a justiça social internacional em suas relações e de que seus povos alcancem um desenvolvimento integral, condições indispensáveis para a paz e a segurança. O desenvolvimento integral abrange os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, nos quais devem ser atingidas as metas que cada país definir para alcançá-lo. Artigo 31 A cooperação interamericana para o desenvolvimento integral é responsabilidade comum e solidária dos Estados membros, no contexto dos princípios democráticos e das instituições do Sistema Interamericano. Ela deve compreender os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, apoiar a consecução dos objetivos nacionais dos Estados membros e respeitar as prioridades que cada país fixar em seus planos de desenvolvimento, sem vinculações nem condições de caráter político. 39 Artigo 45 […] f) A incorporação e crescente participação dos setores marginais da população, tanto das zonas rurais como dos centros urbanos, na vida econômica, social, cívica, cultural e política da nação, a fim de conseguir a plena integração da comunidade nacional, o aceleramento do processo de mobilidade social e a consolidação do regime democrático. O estímulo a todo esforço de promoção e cooperação populares que tenha por fim o desenvolvimento e o progresso da comunidade; 52 vulnerável, deve o Estado garantir o seu desenvolvimento através da ampliação de sua participação na sociedade. Ademais, ainda no sistema interamericano, o artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (ou Pacto de San José da Costa Rica), dispõe que os Estados devem cooperar entre si para efetivar, progressivamente, os direitos econômicos, sociais e culturais40. O Protocolo de San Salvador, por sua vez, reconhece, em seu preâmbulo, “os benefícios decorrentes do fomento e desenvolvimento da cooperação entre os Estados e das relações internacionais”. Também no preâmbulo, reconhece “o direito de seus povos ao desenvolvimento, à livre determinação e a dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais”. Sobre o histórico do reconhecimento internacional do direito ao desenvolvimento, sintetiza Boaventura de Sousa Santos (2013, p. 86): A consagração do Direito ao Desenvolvimento deu os primeiros passos com a Declaração sobre o Progresso Social e Desenvolvimento (1969) e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (1981), ganhando destaque com Declração do Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas em 1986 e com as Conferências Mundiais das Nações Unidas realizadas na década de 1990. Conclui-se, portanto, que o Direito Internacional do Desenvolvimento tem como foco o desenvolvimento econômico dos Estados e objetiva superar as desigualdades existentes entrea capacidade econômica deles, buscando a igualdade material, estando os elementos essenciais de tal direito presentes em diversos sistemas de proteção internacional aos direitos humanos. De outra vertente, o direito ao desenvolvimento é um direito humano que tem como foco a ampliação das liberdades dos indivíduos. Flávia Piovesan (2012, p. 59) ensina que o direito ao desenvolvimento contempla três dimensões centrais: a justiça social, representada na obrigação de 40 Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. 53 “prover igual oportunidade a todos no acesso a recursos básicos, educação, saúde, alimentação, moradia, trabalho e distribuição de renda”; participação e accountability, componente democrático do direito, sendo “dever dos Estados encorajar a participação popular em todas as esferas como um importante fator ao direito ao desenvolvimento e à plena realização dos direitos humanos”; e programas e políticas nacionais e cooperação internacional, uma vez que o direito ao desenvolvimento compreende tanto uma dimensão nacional, como uma dimensão internacional. A autora continua argumentando que o “human rights-based approach é uma concepção estrutural ao processo de desenvolvimento”, objetivando “integrar normas, standards e princípios do sistema internacional de direitos humanos nos planos, políticas e processos relativos ao desenvolvimento”. Com a mudança de paradigma do Direito Internacional ocorrida no pósguerra, que colocou o ser humano como centro do Direito, dentro da concepção moderna de direitos humanos, fortaleceu-se a ideia de que o desenvolvimento humano é essencial para a concretização dos direitos elencados nos tratados internacionais. Conforme leciona Craig Mokhiber (2011, p. 2), o termo “direito ao desenvolvimento” foi primeiramente utilizado pelo jurista senegalês Kéba Mbaye em “O direito ao desenvolvimento como um direito do Homem”, palestra inaugural do Curso de Direitos Humanos do Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo em 1972. Apesar de ter sido utilizado pela primeira vez relativamente há pouco tempo, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, através da Resolução n. 4 (XXXIII) de 1977, portanto, apenas cinco anos após a sua utilização por Kéba Mbaye, reconheceu o direito ao desenvolvimento como um direito humano, com fundamento na cooperação internacional entre os Estados. Seguindo-se a classificação proposta por Karel Vasak, que desenvolveu a ideia de três gerações de direitos, cada uma ligada a um lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), pode-se dizer que o direito ao desenvolvimento encontra-se na terceira geração, ou seja, aquela ligada à ideia de fraternidade. É neste sentido a lição do autor (VASAK, 1977, p. 29): 54 The international community is now embarking upon a third generation of human rights which may be called “rights of solidarity”. Such rights include the right to development, the right to a healthy and ecologically balanced, the right to peace, and the right to ownership of the common heritage of mankind. Since these rights reflect a certain conception of community life, they can only be implemented by the combined efforts of everyone: individuals, states and other bodies, as well as public and private institutions 41. É também neste sentido a lição de Bernardo Brasil Campinho (2010, p. 155), que registra que “a figura do direito ao desenvolvimento como um direito humano aparece associada a uma terceira geração/dimensão dos direitos humanos, que se caracteriza por ser aquela que se assenta sobre a fraternidade […]”. Atualmente, como forma de evitar o entendimento de que haveria sobreposição de uma geração sobre a outra, quando, na realidade, todas elas se complementam, a doutrina passou a utilizar a designação de “dimensões de direitos”, havendo, inclusive, quem classifique os direitos humanos em quatro ou cinco dimensões. No entanto, conforme leciona Norberto Bobbio em “A era dos direitos” (2004, p. 22), “o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los”. Nesse contexto, há pouca importância prática em se acrescentar nova dimensão de direitos humanos quando sequer as três dimensões “clássicas” foram efetivamente concretizadas, especialmente quanto à dimensão voltada à solidariedade entre as pessoas e os povos. Com efeito, os direitos humanos devem ser efetivamente respeitados e protegidos, independentemente das gerações ou da evolução histórica dos direitos. Sobre o tema, leciona Boaventura de Sousa Santos, (2013, p. 42): A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discurso de direitos humanos. Deve pois 41 A comunidade internacional está agora defendendo uma terceira geração de direitos humanos que podem ser chamados de "direitos de solidariedade". Tais direitos incluem o direito ao desenvolvimento, o direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, o direito à paz e o direito à propriedade do patrimônio comum hereditário da humanidade. Uma vez que esses direitos refletem uma certa concepção de vida em comunidade, eles só podem ser implementados pelos esforços conjuntos de todos: indivíduos, estados e outros organismos, bem como instituições públicas e privadas (tradução livre). 55 começar por perguntar-se se os direitos humanos eficazmente a luta dos excluídos, dos explorados discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. servem e dos Logo, dentro do espírito de fraternidade (ou, para alguns, solidariedade), o direito ao desenvolvimento encontra-se na terceira dimensão dos direitos humanos, necessitando, para a sua plena concretização, o estímulo estatal e a cooperação humana. Marcus Maurer de Salles também defende que o direito ao desenvolvimento é um direito de terceira geração, sustentando que a normativa internacional retirou o desenvolvimento do campo exclusivo das relações econômicas para colocá-lo no espectro dos direitos humanos. Diz o autor (SALLES, 2014, p. 136): O direito do desenvolvimento como direito humano se insere na chamada terceira geração de direitos, caracterizada pela titularidade coletiva, como à paz e a um meio ambiente sadio. Ao ser colocado na temática dos direitos humanos, o desenvolvimento sai do campo exclusivo das relações econômicas para adentrar os âmbitos sociais, culturais e políticos. Importante instrumento normativo acerca do tema em debate é a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Resolução n.º 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Esta declaração contou com cento e quarenta e seis votos a favor, oito abstenções e apenas um voto contrário (dos Estados Unidos da América). Apesar de não ser uma convenção internacional, sintetiza o entendimento doutrinário acerca do direito ao desenvolvimento. Na Declaração, consta, já no seu preâmbulo, que “o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos”. Ainda nesta parte do texto, reconhece “que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que essa política de desenvolvimento deveria assim fazer do ser humano o principal participante e beneficiário do desenvolvimento”. Também reconhece o fato de que “a criação de condições favoráveis ao desenvolvimento dos povos e indivíduos é a responsabilidade primária de seus Estados”. 56 Neste ponto, note-se que foi utilizado o artigo “a” antes da palavra “responsabilidade”, o que significa que o estímulo ao desenvolvimento não é uma das responsabilidades do Estado, mas sim a responsabilidade primeira, primária, principal dos Estados. É importante perceber o uso da língua portuguesa neste ponto. Falar que “é a responsabilidade primária de seus Estados” tem sentido distinto de falar que “é responsabilidade primária de seus Estados”. No primeiro caso, diz-se que o objetivo principal dos Estados é estimular o direito ao desenvolvimento. No segundo, dir-seia que o estímulo ao direito ao desenvolvimento é de responsabilidade dos Estados, excluindo-se, a priori, a participação dos demais atores da sociedade neste ponto. Para evitar qualquer erro de interpretação e tradução, considerando que o português não é língua oficial utilizada no âmbito da ONU, destaca-se o fato de que, em inglês, uma das línguas oficiais das Nações Unidas, a Declaração fala: “recognizing that the creation of conditions favourable to the developmentof peoples and individuals is the primary responsibility of their States”. Assim, se se quisesse indicar que o estímulo ao direito ao desenvolvimento é de responsabilidade dos Estados, estaria disposto que “States have the primary responsibility”, como o faz no art. 3º. Saindo do preâmbulo, já no artigo 1º, a Declaração dispõe que “o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político”. Para não se analisar artigo por artigo, deve-se destacar o fato de que a Declaração estabelece que a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento, sendo ele de responsabilidade de todos e primordial do Estado, devendo haver a cooperação interestatal para a realização do direito ao desenvolvimento (arts. 2º e 3º). Os Estados têm o dever de, individual e coletivamente, formular as políticas públicas com vistas à facilitar a plena realização do desenvolvimento, sendo necessária ação permanente para promover o desenvolvimento acelerado dos países subdesenvolvidos (arts. 4º e 10). Em 1992, na cidade do Rio de Janeiro, ocorreu a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento - Declaração do Rio. Neste 57 documento, defendeu-se a ideia não só de desenvolvimento, mas de desenvolvimento sustentável. Entre os princípios elencados, destacam-se o primeiro e o terceiro, pelos quais os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável e o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras. Este é o conceito chave do desenvolvimento sustentável: possibilitar o desenvolvimento da geração atual sem comprometer a possibilidade das gerações futuras proverem as suas próprias necessidades. Outro marco do direito ao desenvolvimento é a Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena de 1993. Este documento reforçou a necessidade da cooperação internacional para a concretização dos direitos humanos, dispondo que a democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos Direitos do homem e pelas liberdades fundamentais são interdependentes e reforçam-se mutuamente. Interessante destacar o item I.10 da Conferência, que reafirma o direito ao desenvolvimento como direito universal e inalienável, parte integrante dos Direitos do homem fundamentais, sendo a pessoa humana o sujeito central de tal direito. Ademais, tal dispositivo também estabelece que a falta de desenvolvimento não pode ser invocada para justificar a limitação de direitos do homem internacionalmente reconhecidos, bem como que a cooperação internacional se revela essencial para assegurar a eliminação dos entraves ao desenvolvimento, sendo dever dos Estados a efetivação de políticas públicas nacionais coma finalidade de concretizar tal direito42. 42 10.A Conferência Mundial sobre Direitos do Homem reafirma o direito ao desenvolvimento, conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, enquanto direito universal e inelianável e parte integrante dos Direitos do homem fundamentais. Conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa humana é o sujeito central de desenvolvimento. Enquanto o desenvolvimento facilita o gozo de todos os Direitos do homem, a falta de desenvolvimento não pode ser invocada para justificar a limitação de direitos do homem internacionalmente reconhecidos. Os Estados deverão cooperar entre si para assegurar o desenvolvimento e eliminar os entraves que lhe sejam colocados. A comunidade internacional deverá promover uma cooperação internacional efectiva com vista à efectivação do direito ao desenvolvimento e à eliminação de entraves ao desenvolvimento. O progresso duradouro no cumprimento do direito ao desenvolvimento requer políticas de 58 Assim, observa-se a consagração do direito ao desenvolvimento como direito universal e inalienável, parte integrante dos Direitos Humanos. A Conferência Mundial sobre Direitos do Homem ainda recomenda que as organizações não-governamentais e outras organizações populares devem desempenhar, em cooperação com os Governos, um papel mais significativo a nível nacional e internacional na implementação do direito ao desenvolvimento. A Declaração do Milênio (ONU, 2000), por sua vez, considera o desenvolvimento como uma forma de exercício da igualdade, valor fundamental das relações internacionais. No seu item III (O desenvolvimento e a erradicação da pobreza), foi firmado o compromisso de realizar o desenvolvimento para todos e libertar toda a humanidade dacarência. No item V (Direitos Humanos, democracia e boa governança), ficou expresso pelos países signatários (ONU, 2000):“Não pouparemos esforços para promover a democracia e fortalecer o estado de direito, assim como o respeito por todos os direitos humanos e liberdades fundamentais internacionalmente reconhecidos, nomeadamente o direito ao desenvolvimento.” Em setembro de 2015, foram estabelecidas as novas metas do milênio, a “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. Neste documento foram estabelecidos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas para os próximos anos, objetivando a concretização dos direitos humanos de todos. No documento, além das diversas outras disposições, se objetivou a criação de “um mundo justo, equitativo, tolerante, aberto e socialmente inclusivo em que sejam atendidas as necessidades das pessoas mais vulneráveis” (ONU, 2015). Portanto, somente da análise dos documentos aqui apresentados, que não são os únicos que tratam do tema, percebe-se que o direito ao desenvolvimento já está amplamente aceito como direito universal e inalienável da pessoa humana, integrando os Direitos Humanos e, dentro da classificação proposta por Karel Vasak, localiza-se na terceira geração (atualmente, dimensão43) de tais direitos. desenvolvimento efectivas a nível nacional, bem como relações económicas equitativas e um ambiente económico favorável a nível internacional. 43 A doutrina contemporânea critica o uso do termo “geração de direitos fundamentais” pois, neste caso, tal nomenclatura poderia significar que ao se alcançar uma nova geração de direitos, as demais ficam superadas. Com isso, prefere-se o uso do termo “dimensões de direitos fundamentais”, na medida em que não há uma sobreposição de uma dimensão sobre a outra, mas sim uma complementação de umas com as outras. Sobre o tema, ver 59 Conforme leciona Robério Nunes dos Anjos Filho (2013, p. 89), “atualmente, as discussões dizem mais respeito aos obstáculos e aos mecanismos de implementação do direito ao desenvolvimento do que à sua existência, já reconhecida majoritariamente”. Ultrapassado este ponto, necessário se demonstrar que o direito ao desenvolvimento possui exigibilidade dos indivíduos perante o Estado, não constituindo mero interesse a se atingir. Tendo em vista a indivisibilidade dos direitos humanos, cumpre destacar a lição de Flávia Piovesan (2012, p. 49): Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A ideia da não acionabilidade dos direitos sociais é meramente ideológica e não científica. São eles autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e demandam séria e responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como caridade, generosidade ou compaixão. Neste contexto, observa-se que as mesmas objeções que os direitos sociais enfrentaram (e, em alguma medida, ainda enfrentam) são utilizadas para obstar a plena exigibilidade do direito ao desenvolvimento. Isto ocorre porque o direito ao desenvolvimento abarca os diversos outros direitos humanos, especialmente levando-se em consideração a sua interdependência com conceitos chave da sociedade desenvolvida, como a democracia, a participação, a liberdade e a igualdade. A doutrina costuma se referir ao direito ao desenvolvimento com um direito síntese de todos os direitos humanos. As críticas à exigibilidade do direito ao desenvolvimento se referem, principalmente, ao argumento de que é difícil identificar os sujeitos ativo e passivo de tal direito, bem como o seu conteúdo material, o que faria com que ele carecesse de justiciabilidade. No que toca aos direitos sociais, em especial aqueles que dependem de uma prestação do Estado, a identificação do conteúdo material comumente depende da individualidade de cada cidadão, uma vez que nem todos possuem as mesmas SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 50 e seguintes. 60 necessidades, apesar de boa parte do dever do Estado ser virtualmente idêntico para todos. Exemplificando, o dever de prestar a saúde, fornecendo os serviços exigidos para o restabelecimento desta para o cidadão, depende da necessidade de cada um, identificando-se, assim, o conteúdo material do direito. Por outro lado, ainda no tocante ao direito à saúde, a prevenção de doenças iguala diversos grupos sociais. Nesses casos, a prestação material (conteúdo do direito) é a mesma dentro do grupo. Em ambos os exemplos, fica bem identificado o sujeito ativo do direito (ou credor), qual seja, o indivíduo, assim como o sujeito passivo (ou devedor): o Estado. No mesmo sentido, o sujeito ativo do direito ao desenvolvimento é primordialmente o indivíduo, o sujeito passivo é primariamente o Estado e o conteúdo do direito varia conforme o caso, apesar de haver certa padronização nas necessidades sociais dos mais diversos grupos quanto à obrigação do Estado na concretização do direito ao desenvolvimento. Os povos e os Estados também podem ser sujeitos ativos do direito ao desenvolvimento, na medida em que podem receber, de outros Estados, a prestação objetivando a efetivação do desenvolvimento. No entanto, conforme ficou bem estabelecido nas novas Metas do Milênio, é essencial o papel “dos parlamentos nacionais através da promulgação de legislação e adoção de orçamentos, bem como seu papel na garantia da responsabilização para a implementação efetiva dos nossos compromissos” (ONU, 2015). Robério Nunes dos Anjos Filho (2013, p. 198) ensina que “é lógico e natural que o Estado tenha responsabilidades primárias pela promoção do direito ao desenvolvimento e seja assim o seu principal devedor no plano interno”. Isto decorre do fato de que é o Estado que propõe as políticas públicas de estímulo ao desenvolvimento humano, à efetivação dos direitos sociais e ao fomento à economia. Carla Abrantkoski River também defende a integração da atuação do Estado e da sociedade como forma de concretizar o direito ao desenvolvimento. Diz a autora (2007, p. 523): Como um direito de solidariedade e que não pode ser implementado somente com a atuação dos Estados, requer a participação de toda a sociedade em sua promoção, seja por participação de toda a sociedade em sua promoção, seja por intermédio das empresas, das 61 associações, das organizações não governamentais e dos cidadãos individualmente considerados, muito embora, estes últimos, na prática encontrem-se em situação de desvantagem para promovê-lo, perante os interesses dos grupos organizados, que frequentemente conseguem fazer valer seus propósitos de uma forma mais eficiente. Dentro do espírito de cooperação necessário à concretização do direito ao desenvolvimento, o particular também pode figurar como sujeito passivo da relação jurídica, afinal, conforme leciona Flávia Piovesan (2012, p. 60), “o direito ao desenvolvimento demanda uma globalização ética e solidária”. Neste sentido, Antônio Augusto Cançado Trindade leciona que “os direitos humanos se impõem e obrigam os Estados, e, em igual medida, os organismos internacionais e as entidades ou grupos detentores do poder econômico.”44 Especificamente sobre a população carcerária, a sociedade deve entender que o sujeito egresso do sistema prisional é um membro da comunidade como todos os demais. Não pode ela virar as costas para esse indivíduo após a condenação. Faz-se necessária a solidariedade dentro da comunidade, recebendo tal indivíduo de volta ao pleno convívio social. Conforme leciona Francesco Carnelutti, “o nosso comportamento diante dos condenados é a indicação mais segura da nossa civilidade”. Diz o autor (2013, p. 39): Depois da condenação não basta mais. O condenado é o pobre, por excelência, na sua nudez. Não há uma necessidade mais angustiante do que a necessidade de amor. É necessário vê-los, dentro do rude rústico de grandes listras, feito para separatismos-los dos outros homens, lançar sobre nós uma olhada, na qual se expressa, ainda quando trate de ocultar, a consciência mortífera da sua inferioridade, para compreender o bem que pode levar a eles um sorriso, uma palavra, uma carícia. Um bem do qual, num primeiro momento, não se dão conta. Ao qual podem, em princípio, tratar de resistir, mas que depois, pouco a pouco, insinua-se neles, apoderase deles, conquista-os, estabiliza-os, tirando do coração deles sentimentos que pareciam sepultados e de seus lábios palavras que pareciam esquecidas. É necessário ter vivido esta experiência para compreender que o nosso comportamento diante dos condenados é a indicação mais segura da nossa civilidade. 44 Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Início do Século XXI. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/407490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf>. Acesso em: 3 dez. 2015. 62 No entanto, conforme amplamente exposto anteriormente, a responsabilidade primária pela concretização do direito ao desenvolvimento é dos Estados, se caracterizando como a principal razão de ser do próprio Estado, apesar de não se negar a importância da participação da sociedade, conforme adiante será explanado. Por último, cumpre destacar que, em que pese a não constitucionalização explícita do direito ao desenvolvimento, Robério Nunes Anjos Filho (2013, p. 232) ensina que como o direito ao desenvolvimento é um direito humano, “não é indispensável que o direito positivo interno contenha uma previsão expressa a seu respeito”. Como o desenvolvimento é um objetivo da República Federativa do Brasil45, e diante da análise conjunto da cláusula aberta aos direitos materialmente fundamentais prevista no art. 5º, § 2º46, da Constituição Federal de 1988, deve-se entender que o direito ao desenvolvimento foi recepcionado no nosso ordenamento jurídico como verdadeiro direito fundamental. É neste sentido que Robério Nunes Anjos Filho conclui o seu livro (2013, p. 237): A tese é reforçada pelo fato de que a atuação do Brasil no foro internacional contribuiu para a afirmação do direito ao desenvolvimento, não só por ser um Estado integrante das Nações Unidas, mas, também, porque é signatário de documentos convencionais e do soft law que sustentam esse direito. Além disso, a Constituição de 1988 determina que as relações internacionais do Brasil serão guiadas, dentre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos, o que implica atuação constante da diplomacia brasileira no sentido do fortalecimento do direito ao desenvolvimento, já que este, como dito, é um direito humano. Assim, seria um contrassenso negar o direito ao desenvolvimento no plano nacional. Sobre o tema, Melina Girardi Fachin advoga a consagração do direito ao desenvolvimento como um direito fundamental na Constituição de 1988, argumentando que “o preâmbulo da Carta Constitucional fixa o direito ao 45 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: II - garantir o desenvolvimento nacional; 46 Art. 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 63 desenvolvimento como diretriz para a construção do Estado Democrático brasileiro” (2010, p. 192) e que “a Constituição brasileira fala, dentre os objetivos da República, no desenvolvimento nacional” (2010, p. 193), sendo que esta expressão abrangeria tanto o desenvolvimento econômico e financeiro como o direito ao desenvolvimento em si. Portanto, conclui-se pela incorporação ao Direito brasileiro do direito ao desenvolvimento, como direito síntese dos direitos elencados na Constituição Federal de 1988. 3.2 Direito ao desenvolvimento dos grupos vulneráveis: a população carcerária Na perspectiva antes apresentada, os indivíduos, e também as coletividades internas (os povos) podem se apresentar como sujeitos ativos do direito ao desenvolvimento. Neste contexto, essencial se destacar a importância da garantia da efetivação desse direito aos grupos vulneráveis, em especial, ao menos para os objetivos deste trabalho, a população carcerária. Conforme exposto, da mesma forma que ocorre com os direitos sociais (parte integrante do direito ao desenvolvimento), as necessidades dos sujeitos ativos do direito são distintas, não se podendo generalizar a prestação necessária para a garantia do direito como uniforme em uma sociedade. Logo, como os interesses e necessidades internas de uma sociedade são distintos dentro dos seus subgrupos, deve-se diferenciar a forma de concretização do direito ao desenvolvimento nessas coletividades. Sobre o tema, ensina Amartya Kumar Sen em “Desenvolvimento como liberdade” (2000): A acumulação de desigualdades de rendimento com desigualdades na conversão de rendimentos em potencialidades intensifica as carências dos grupos desfavorecidos. Uma pessoa deficiente, doente ou idosa pode ter dificuldades para obter um rendimento decente, e dificuldades ainda maiores em converter esse rendimento em potencialidades e numa vida melhor. Estes grupos desfavorecidos (ou grupos vulneráveis) merecem tratamento não só diferente, mas também prioritário por parte do Estado, uma vez que 64 enfrentam dificuldades não experimentadas pela população em geral ao tentar concretizar o seu direito ao desenvolvimento. Pode-se conceituar grupo vulnerável como o conjunto de pessoas que, não necessariamente pertencente a uma minoria, tem a sua participação na sociedade dificultada, de forma a se incompatibilizar, por criação de desigualdade, o acesso aos bens e serviços estatais. Conforme leciona Robério Nunes dos Anjos Filho (2013, p. 216-222), os grupos vulneráveis são aqueles vítimas de desigualdades, que devem ser abolidas através da implementação dos direitos humanos em geral, em especial aqueles voltados à não discriminação e não exclusão dos cidadãos dentro do contexto da sociedade para que se busque a concretização do direito ao desenvolvimento. Neste tema, há uma íntima conexão entre o desenvolvimento e o constitucionalismo fraternal apresentado no capítulo inicial desta dissertação. Com efeito, umas das preocupações da etapa fraternal dos Estados é a preocupação com os direitos dos grupos vulneráveis. Foi nesse sentido o voto do Ministro Carlos Ayres Britto na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI - 3128/DF, julgada em 18 de agosto de 200447: Depois, porém, apercebi-me de que a solidariedade, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, em verdade, é fraternidade, aquele terceiro valor fundante, ou inspirador da Revolução Francesa, componente, portanto -- esse terceiro valor --, da tríade"Liberté, Igualité, Fraternité", a significar apenas que precisamos de uma sociedade que evite as discriminações e promova as chamadas ações afirmativas ou políticas públicas afirmativas de integração civil e moral de segmentos historicamente discriminados, como o segmento das mulheres, dos deficientes físicos, dos idosos, dos negros, e assim avante. Apesar de não ter sido feita referência à população carcerária como grupo vulnerável que requer ações afirmativas do Estado para a concretização do direito ao desenvolvimento, o próximo tópico da presente dissertação pretende demonstrar a vulnerabilidade dos presos. 47 A íntegra do voto pode ser conferida em: <http://www.stf.jus.br/noticias/imprensa/VotoBrittoInativos.pdf>. Acesso em 12 out. 2016. 65 3.2.1 População carcerária como grupo vulnerável Dentro do conceito apresentado anteriormente, pode-se incluir na condição de grupo vulnerável a população carcerária, uma vez que se tratam de pessoas ligadas por uma situação comum que dificulta ou impossibilita o acesso aos bens e serviços fornecidos pelo Estado, criando, ou, mais especificamente, agravando, a desigualdade entre os cidadãos. Esta parcela da população é comumente esquecida nos debates acerca do direito ao desenvolvimento. No entanto, como seres humanos que são (lembrando que o ser humano é o epicentro do Direito Internacional moderno no contexto do pós segunda guerra mundial), titularizam o direito em debate, tendo como sujeito passivo o Estado e também a sociedade. Na sociedade, existe a ideia simplória de que a criminalidade decorre de problemas de caráter do indivíduo criminoso, desconsiderando as desigualdades sociais, e,consequentemente, o subdesenvolvimento, como geradoras de violência, especialmente no direito penal de forte cunho patrimonialista como é o nosso. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht dizia: “do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Ora, muito se diz da violência dos réus de ações penais, condenados ou não. No entanto, pouco se fala sobre os fatores que levaram tais pessoas a delinquir; pouco se fala sobre o descaso que tais pessoas experimentam quando tem a sua liberdade cerceada pela ação estatal. A desigualdade social experimentada no sistema capitalista indubitavelmente é geradora de criminalidade. Especialmente nos crimes contra o patrimônio, o indivíduo, seja por não ter acesso aos bens básicos para a sua subsistência, seja por almejar um padrão de consumo que não é realizável diante das suas perspectivas de emprego e salário, é levado à delinquência, praticando os fatos previstos pelo Estado como criminosos. Sobre o tema, leciona Ivan de Carvalho Junqueira (2005, p. 67): Ab ovo, faltam educação e cultura, saúde, habitação, terras à reforma agrária… Surge a criminalidade. E essa mesma sociedade que concede ao capital importância maior que a vida humana, apresenta-se indiferente e impassível frente às arbitrariedades diante daqueles que poucas oportunidades tiveram por toda a vida. Punese, tão-somente, Humilha-se. 66 O encarceramento não é natural à sociedade. A privação da liberdade é uma invenção humana, utilizada como forma de reação social às condutas escolhidas politicamente como criminosas. Hassemer (2005), lecionando sobre a teoria criminológica do labelling approach, explica que “a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social”. Segundo dados do International Centre for Prison Studies48, o Brasil já é o quarto país que mais encarcera no mundo, com 607.731 presos computados. Portanto, percebe-se que este grupo vulnerável é composto por um universo numeroso de cidadãos. Caso não se altere a realidade dos presídios e do tratamento dos presos, o resultado inevitável será o aumento da violência. Em sentido oposto, a Suécia, comprovando que a criminalidade pode ser reduzida através do tratamento digno dos presos, fechou quatro prisões e um centro de detenção no ano de 2013 por falta de presos. Segundo o The Guardian 49 , a causa provável da redução na criminalidade neste país está relacionada com o forte foco dado à reabilitação dos presos. Não é esse o tratamento deferido aos presos brasileiros. A crise carcerária nacional é fato público e provocou, inclusive, manifestação do STF em julgamento de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, que, nacionalizando a ideia de “Estado de Coisas Inconstitucional” surgida na Corte Constitucional Colombiana, entendeu que o quadro de “violação massiva e persistente de direitos fundamentais” dos presos requer atuação efetiva dos poderes públicos, determinando, assim, a realização de audiência de custódia para a apresentação do preso perante a autoridade judiciária no prazo de 24 horas após a efetivação de prisão em flagrante. […] SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS 48 Disponível em: <http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total>. Acesso em: 03 dez. 2015. 49 Disponível em: <http://www.theguardian.com/world/2013/nov/11/sweden-closes-prisonsnumber-inmates-plummets>. Acesso em: 04 dez. 2015. 67 ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. […] AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.(ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016) Na “Sentencia T-025/04”, a Corte Constitucional Colombiana sistematizou os critérios para que uma situação seja considerada em “Estado de Coisas Inconstitucional”, definindo como requisitos para a sua caracterização: i) a violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afeta um número significativo de pessoas; ii) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir tais direitos; iii) a adoção de práticas inconstitucionais, como a necessidade de judicialização para cumprimento do direito afetado; iv) a não adoção de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias necessárias para evitar a violação de tais direitos; v) a existência de um problema social cuja solução depende da intervenção de várias entidades, bem como da adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações, além da disponibilização de recursos adicionais substanciais; vi) a possibilidade de congestionamento do Poder Judiciário caso todas as pessoas afetadas pelo problema ajuízem demandas para garantir a proteção de seus direitos50. Em sua língua original, o trecho da Sentencia T-024/04 diz: “Dentro de los factores valorados por la Corte para definir si existe un estado de cosas inconstitucional, cabe destacar los siguientes: (i) la vulneración masiva y generalizada de varios derechos constitucionales que afecta a un número significativo de personas; (ii) la prolongada omisión de las autoridades en el cumplimiento de sus obligaciones para garantizar los derechos; (ii) la adopción de prácticas inconstitucionales, como la incorporación de la acción de tutela como parte del procedimiento para garantizar el derecho conculcado; (iii) la no expedición de medidas legislativas, administrativas o presupuestales necesarias para evitar la vulneración de los derechos. (iv) la existencia de un problema social cuya solución compromete la intervención de varias entidades, requiere la adopción de un conjunto complejo y coordinado de acciones y exige un nivel de recursos que demanda un esfuerzo presupuestal adicional importante; (v) si todas las personas afectadas por el mismo 50 68 Ou seja, encarando uma necessidade real de diminuição da população carcerária, ainda que não focada especificadamente em um ou outro preso, o STF, a partir da importação de teoria oriunda da Colômbia, decidiu que o Sistema Carcerário brasileiro encontra-se em “Estado de Coisas Inconstitucional”, determinando, assim, a criação de uma política pública em que o preso em flagrante deve ser apresentado à autoridade judiciária competente no prazo de 24 horas para que se verifique a legalidade do flagrante, sem entrar no mérito de eventual acusação por parte do Ministério Público. Para Luís Roberto Barroso (2013, p. 81), “o sistema punitivo no Brasil não realiza adequadamente nenhuma das funções próprias da pena criminal: não previne, não ressocializa nem prevê retribuição na medida certa”. A população carcerária deve receber medidas especiais de proteção, diferentes das medidas adotadas para o resto da população, uma vez que as suas necessidades para a concretização do direito ao desenvolvimento são sensivelmente distintas daquelas requeridas pela população em geral. 3.2.2 A responsabilidade estatal no desenvolvimento do preso Compete ao Estado e à cooperação entre os atores da sociedade civil, imbuídos no espírito fraternal, eliminar todas as formas de discriminação da população presa, bem como eliminar todas as formas de exclusão tanto do preso, como também do egresso do sistema prisional. Os Estados já possuem a responsabilidade primária pelo direito ao desenvolvimento. Em especial, quando Estado toma para si o monopólio do exercício da violência, representada, aqui, pela privação da liberdade, adquire, também, posição de sujeição especial e agravada quanto à responsabilidade pela concretização do direito em comento. problema acudieran a la acción de tutela para obtener la protección de sus derechos, se produciría una mayor congestión judicial”. A íntegra da decisão pode ser encontrada em <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm>. Acesso em: 12 out. 2016. 69 O cidadão preso, diante da universalidade inerente aos direitos humanos, como pessoa humana integrante da sociedade, titulariza todos os direitos humanos, incluindo-se, aqui, o direito ao desenvolvimento. A finalidade da pena é bastante discutida entre os penalistas. Inicialmente, a teoria absoluta (ou retributiva) explica que a função da pena é a retribuição ao mal, sem qualquer outra função. No tema, Inácio de Carvalho Neto, citando Hegel, defende que a teoria absoluta promove a negação da negação do Direito. Diz o autor (CARVALHO NETO, 1995, p. 15): Pela teoria absoluta, a pena tem uma finalidade retribucionista, visando à restauração da ordem atingida. HEGEL assinalava que a pena era a negação da negação do direito. Já KANT disse que, caso um estado fosse dissolvido voluntariamente, necessário seria antes executar o último assassino, a fim de que sua culpabilidade não recaísse sobre todo o povo. Para esta teoria, todos os demais efeitos da pena (intimidação, correção, supressão do meio social) nada têm a ver com a sua natureza. O importante é retribuir com o mal, o mal praticado. Para a teoria relativa (ou preventiva), a função da pena não é a retribuição do mal, mas sim prevenir a prática de delitos, através da prevenção geral, voltada à sociedade e da prevenção especial, que tem como foco o próprio delinquente. Segundo esta teoria, “a pena serviria como um meio de prevenção da prática do delito, inibindo tanto quanto possível a prática de novos crimes, sentido preventivo (ou utilitarista) que projeta seus efeitos para o futuro” (SOUZA, 2006, p. 75). Anabela Miranda Rodrigues defende que a pena passou a ser fundada na prevenção, geral e especial, em razão da secularização do direito penal, que retirou, em grande medida, a função retributiva da pena. Com isso, a pena deve passar a possuir uma finalidade positiva, ressocializadora. Assim, destaca Rodrigues (2001, p. 30-31): A atribuição à pena desta finalidade de prevenção está associada à secularização do direito penal. Superada a legitimação teológica e metafísica do ius puniendi, a pena perdeu, em grande parte, a sua função de cunho retributivo. O direito de punir passa a justificar-se à luz da necessidade - uma «amarga necessidade», como já foi dito - e a pena ganha uma finalidade não escatológica mas terrena, dirigida à prevenção do cometimento de outros crimes (prevenção geral e especial). 70 Mas a libertação da pena do plano metafísico significa também que, agora, o sistema sancionatório repousa na concepção básica de que a privação da liberdade constitui a ultima ratio da política criminal. Desta concepção derivam consequências a dois níveis, que o legislador procura levar tão longe quanto possível. Em primeiro lugar, o da reconformação da pena de prisão no sentido de se minimizar o seu efeito negativo e criminológico e outorgar-lhe, em contrapartida, um sentido positivo, prospectivo e socializador. Acerca da teoria mista, Gilberto Ferreira (2000, p. 29) defende que, “a pena tem duas razões: a retribuição, manifestada através do castigo; e a prevenção, como instrumento de defesa da sociedade”. Sobre o tema, Francesco Carnelutti entende que a pena deve servir não apenas para intimidar os outros (teoria preventiva), mas também para redimir o preso (CARNELUTTI, 2013, p. 38): Dizem, facilmente, que a pena não serve somente para a redenção do culpado, mas também para as advertências dos outros, que poderiam ser tentados a delinquir e por isso deve os assustar; e não é este um discurso que deva se tomar por chacota; pois ao menos deveria dele a conhecida contradição entre função repressiva e a função preventiva da pena: o que a pena deve ser para ajudar o culpado não é o que deve ser para ajudar os outros; e não há, entreesses dois aspectos do instituto, possibilidade de conciliação.Ao menos, o que se pode concluir é que o condenado, ainda que tenha redimido antes do término fixado por interesse alheio, encontra-se na mesma linha do inocente, sujeito à condenação por um daqueles erros judiciários, que nenhum esforço humano conseguirá jamais eliminar. Atualmente, seguindo a ideia de prevenção especial, incorporou-se à finalidade da pena a ressocialização do condenado. Reinserir o preso na sociedade é, hoje, o principal objetivo teórico da privação da liberdade, apesar de frequentemente relevado pelo Estado. Michel Foucault defende que a ressocialização deve se dar, também, através da “pedagogia do trabalho”, ou seja, deve-se ensinar ao preso a importância e o valor do trabalho, tanto intramuros como extramuros, uma vez que, assim, permitirse-ia a melhora da vida do apenado, inclusive após o cumprimento da pena. Defende o filósofo (1987, p. 141): Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema de interesses em 71 que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que trabalhar. Obrigação do trabalho, mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu destino durante e depois da detenção (sem grifos no original). A efetiva ressocialização do preso concretiza o direito ao desenvolvimento não só dele, mas também da sociedade, uma vez que se integra o condenado à comunidade, gerando efeitos positivos tanto para esta, como para aquele. Sem mencionar a questão do trabalhador encarcerado, José Carlos Callegari (2010, p. 491) apresenta uma conexão entre o direito ao desenvolvimento e labor, registrando que “o desenvolvimento econômico não pode ser compreendido sem levarmos em conta no estudo da questão o fator trabalho”, uma vez que “o trabalho é a única fonte geradora de valor”. Ivan de Carvalho Junqueira aparenta discordar da possibilidade de ressocialização através da pena de prisão, ao menos da forma como ela é aplicada no Brasil. Diz Junqueira (2005, p. 14): A prisão, da maneira em que foi concebida, apenas dessocializa e degenera o indivíduo que nela ingressa. Longe de promover a reinserção do condenado, retira-lhe, ainda, a pouca dignidade, dentro e fora do cárcere, vez que o ex-presidiário será sempre um expresidiário. Logo, diante da evidente crise do sistema penitenciário brasileiro, que falha em cumprir a suposta principal finalidade da pena, qual seja, a ressocialização do preso, o trabalho encarcerado pode ser visto como uma forma de garantir que a pena não tenha a finalidade meramente retributiva, que nada mais é do que a vingança institucionalizada pelo Estado. Anabela Miranda Rodrigues (2001, p. 47) defende que a pena não apenas deve promover a ressocialização, como também deve “evitar a dessocialização do recluso”. Ou seja, deve-se ter em mente que a subcultura prisional provoca um efeito negativo ao apenado, devendo tal efeito ser combatido, afastando as “consequências negativas da privação da liberdade”. Assim, o trabalho se caracteriza como o principal meio para que seja cumprido o objetivo exposto no art. 1º da LEP, que é a “harmônica integração social do condenado e do internado”. 72 Em “Reincidência Criminal no Brasil” (BRASIL, 2015), pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, em cooperação técnica com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, um dos presos entrevistados demonstrou a consciência na importância da ressocialização e os métodos para a sua efetivação: Ressocializar é virar a vida da pessoa de ponta à cabeça, do pior para o melhor. É capacitar a pessoa, educar, mostrar para ela como é a vida de um ser humano normal, ter um trabalho, esquecer todo aquele negócio negativo, mostrar a ela o que é um homem, dar educação, profissionalizá-la, capacitar. Dar oportunidade de emprego para ela ver como é a vida de um homem direito, de um homem de verdade, de um cidadão, mostrar que a vida é essa, não essa vida de presídio. Saber tratar melhor as pessoas, educar, trabalhar para sustentar a família e não precisar voltar para essa vida, que é uma vida horrível, que eu não desejo para ninguém (Condenado do regime semiaberto). Neste relato, percebe-se a importância do desenvolvimento humano do condenado. Na percepção do próprio preso, a obrigação do Estado é a de demonstrar que o preso é um “ser humano normal”, que merece respeito à sua dignidade, recebendo educação e capacitação para sair da prisão de forma mais desenvolvida do que entrou. Partindo-se do princípio de que não há pena de prisão perpétua no Brasil, a pessoa condenada, eventualmente, retornará à sociedade. Logo, a concretização do seu direito ao desenvolvimento funciona como forma evitar um descompasso entre a sua realidade individual e aquela que encontrará fora do sistema prisional. Tal desequilíbrio, em se concretizando, inevitavelmente provocará a reincidência, que, a depender do método de pesquisa utilizado, atualmente encontra-se entre 29%51 e 70%52 dos egressos da prisão. Importante destacar que, além da suspensão temporária dos direitos políticos para o definitivamente condenado, o único direito que o preso tem privado é a sua liberdade, que é parte relevante do direito ao desenvolvimento, mas não a única. 51 ADORNO, Sérgio. A prisão sob a ótica de seus protagonistas. Itinerário de uma pesquisa. Tempo Social, São Paulo, v. 3, n. 1/2, p. 7-40, dec. 1991. ISSN 1809-4554. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84813>. Acesso em: 23 dec. 2016. 52 “Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa”. Pesquisa do publicada pelo IPEA em 2015. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_rei ncidencia_criminal.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2016. 73 Assim, deve-se respeitar e garantir ao cidadão encarcerado o cumprimento dos demais componentes do seu direito ao desenvolvimento. Conforme exposto acima, o IDH atualmente é medido através da análise dos dados referentes à saúde, medida através da expectativa de vida; à educação, medida a partir do número de anos de educação recebidos e a expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar; à renda, medida pelo PIB per capita, expressa em poder de paridade de compra constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência. Nesse contexto, todas essas medidas de referência podem ser aplicadas ao preso. Tem ele o direito à melhoria de suas condições de saúde, de educação e também renda. Logo, há de se respeitar e promover o seu direito ao desenvolvimento. Diante da atual crise do sistema carcerário brasileiro, reconhecida em âmbito nacional e internacional53, em que são flagrantes as violações aos direitos humanos, se faz essencial a concretização do direito ao desenvolvimento deste grupo vulnerável como forma de respeito aos próprios direitos humanos. Desenvolvendo os presos dentro do sistema prisional, tendo em vista que o direito em comento abrange aspectos referentes a diversos outros direitos, concretizar-se-á a dignidade da pessoa humana, foco central da própria existência dos direitos humanos. Diversos métodos podem ser propostos como forma de realização desse direito. No entanto, os mais simples (e possivelmente mais eficazes) já são exaustivamente conhecidos. É necessário se possibilitar ao preso condições de trabalho, estudo e cultura. José Luis de la Cuesta Arzamendi leciona (1996, p. 208) que “la función del trabajo penitenciario puede ser esencial, pelo evidentemente, sólo si impregnado de la orientación que ha de imbuir totalmente la vida penitenciaria: el postulado resocializador”. 53 Em caso julgado em 2014 envolvendo Henrique Pizzolato, condenado na Ação Penal 470 do STF, a Corte de Apelação de Bolonha indeferiu o pedido de extradição, sob o argumento de que o sistema prisional brasileiro é inadequado e viola os direitos humanos. Notícia disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-11/agu-recorre-corte-decassacoes-de-roma-pela-extradicao-de-pizzolato> Acesso em 23 dez. 2016. 74 Foucault (1987, p. 203), por sua vez, ensina que “o trabalho penal deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o prisioneiro violento, agitado, irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade”. Citando Faucher, o autor continua (1987, p. 204): “o trabalho é a providência dos povos modernos; serve-lhes como moral, preenche os vazios das crenças e passa por ser o princípio de todo o bem. O trabalho deveria ser a religião das prisões”. Patricia Kurczyn Villalobos (1998, p. 351) entende que “el trabajo y la capacitación para el mesmo encabeça los médios de la resocialización. El trabajo, además de dignificar, exerce una función de terapia ocupacional”. Ou seja, o trabalho é o método amplamente conhecido de ressocialização do preso, devendo, portanto, ser disponibilizado pelo Estado ao indivíduo privado de sua liberdade. Diferentemente dos demais direitos sociais, como a saúde, educação e moradia, o direito ao trabalho não exige, em regra, uma prestação direta por parte do Estado, uma vez que a real oferta de empregos está condicionada a diversos fatores econômicos e sociais em que o Estado possui ingerência meramente reflexa, através de suas políticas macroeconômicas. Sobre o tema, Manuel-Carlos Palomeque López, citado por Rafael Sastre Ibarreche, defende que, em geral, o Estado não pode assegurar postos de trabalho a todos, já que a oferta de trabalho está majoritariamente sob a responsabilidade de sujeitos privados, cuja decisão de criação de emprego é livre e não vem determinada pela ação dos poderes públicos. Diz o autor (IBARRECHE, 1996, p. 125, apud López, 1992, p. 308): El ordenamiento jurídico del Estado no puede asegurar un empleo a cada trabajador, no sólo porque el sistema económico no segrega el número de puestos de trabajo suficiente para todos sus demandantes, sino principalmente, y esto es a su vez la razón de lo anterior, porque la oferta de trabajo reside mayoritariamente en sujetos privados, cuya decisión de creación de empleo es finalmente libre y no viene determinada (sí impulsada o fomentada, en su caso) por la acción de los poderes públicos. No entanto, ao privar a liberdade de um indivíduo, o Estado passa a ter a obrigação de prover as condições necessárias para que esta pessoa tenha a possibilidade de concretizar o seu direito social ao trabalho, previsto no art. 6º da Constituição Cidadã, uma vez que o indivíduo passa a ter uma relação especial de 75 sujeição ao Estado, conforme já ressaltado acima. É nesse sentido a lição de Soler Arrebola (2000, p. 112-114): Las peculiares condiciones en que se desenvuelve la estancia de una persona en la prisión, provocan la necesaria intervención administrativa a efectos de garantizar no sólo la seguridade en el centro, sino también de promover las condiciones necesarias para la reinserción y rehabilitación social de los internos. […] Esas potestades de la Administración, que se sustancian en la creación de una denominada relación de sujeción especial […]. La relación de sujeción especial, en suma, permite hablar de “potestades administrativas ejercidas com una mayor intensidad dentro de un ámbito específico, esto es, respecto de unos colectivos muy concretos y determinados”, entre ellos el de los presos. Diante disso, Aldacy Rachid Coutinho também defende que o trabalho, sendo direito do preso, constitui dever do Estado, uma obrigação a prestação positiva estatal. Leciona Coutinho (1999, p. 15): De uma parte, constitui direito do preso, de prestação positiva pelo Estado, a atribuição de trabalho e sua remuneração, bem como o exercício de atividades profissionais compatíveis com a execução da pena. É neste sentido, aliás, que Manuel-Carlos Palomeque, ao escrever o prólogo do livro El Derecho al trabajo de Rafael Sastre Ibarreche (1996, p. 16), ensina que “la obligación de crear la ‘organización prestacional’ en la medida necesaria para proporcionar a todos los internos un puesto de trabajo es ciertamente ‘un específico deber’ de la Administración Penitenciaria”. Importante destacar, a título de exemplo, que a Corte Constitucional da Colômbia possui reiterada jurisprudência dispondo que o Estado, ao assumir e regular o cumprimento das medidas privativas de liberdade, adquire o dever de implementar nos estabelecimentos penitenciários e carcerários programas de educação e trabalho que preparem os reclusos para contribuir de forma produtiva à comunidade ao recuperar a sua liberdade54. 54 Esta Corporación, en reiterada jurisprudencia, ha estimado que el Estado, al asumir la función de dirigir y regular el cumplimiento de las medidas de aseguramiento, adquiere el deber de implementar en los Establecimientos Penitenciarios y Carcelarios programas de educación y trabajo que preparen a los reclusos para contribuir de forma productiva a la 76 Na doutrina espanhola, Soler Arrebola (2000, p. 253-254) afirma que o direito ao trabalho dos presidiários se constitui como um autêntico direito subjetivo do interno, e não uma mera declaração de princípios, sendo, portanto, exigíveis judicialmente. Também defendendo a exigibilidade do direito ao trabalho perante o Estado espanhol é a lição de José Luis de la Cuesta Arzamendi (1996, p. 210-211): Declarado el derecho al trabajo de los internos, se determine legalmente el sujeto obligado a garantizarlo y el contenido y alcance de la obligación de éste, permiten concluir que la legislación en vigor configura aquel derecho como un anténtico “derecho subjetivo frente a la Administración”, susceptible de ser exigido, en su caso, através de los tribunales ordinarios. No entanto, o Tribunal Constitucional Espanhol entende que este direito, previsto no art. 26 do Código Penitenciário Espanhol55, é de aplicação progressiva, não sendo exigível de forma imediata56. A discussão na Espanha do direito ao trabalho do preso encontra-se mais aprofundada pois lá a própria Constituição garante tal direito em seu artigo 25.2, que diz, em tradução livre, que as penas privativas de liberdade e as medidas de segurança devem estar orientadas à reeducação e reinserção social, não podendo consistir em trabalhos forçados e que o condenado que estiver cumprindo pena de prisão goza dos direitos fundamentais previstos na Constituição, à exceção daqueles que sejam expressamente limitados na sentença e na lei, garantindo, em qualquer caso, o direito a um trabalho remunerado e aos benefícios correspondentes à seguridade social, assim como o acesso à cultura e ao desenvolvimento integral da sua personalidade57. comunidad al recuperar su libertad. Sentencia T-213/11. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/2011/T-213-11.htm>. Acesso em 23 dez. 2016. 55 Artículo veintiséis. El trabajo será considerado como un derecho y como un deber del interno, siendo un elemento fundamental del tratamiento. Em tradução livre: O trabalho será considerado como um direito e como um dever do interno, sendo um elemento fundamental do tratamento. 56 Auto:256/1988. Sección Primera. Núm. registro:1381-1987. Recurso de amparo 1.381/1987. Disponível em <http://hj.tribunalconstitucional.es/es/Resolucion/Show/12831>. Acesso em 23 dez. 2016. 57 Artículo 25. […] 77 Importante destacar, portanto, que a Constituição da Espanha possui dispositivo versando sobre o direito ao trabalho em geral (art. 35), mas traz um artigo próprio para dispor sobre o direito ao trabalho do preso (art. 25.2). A diferença entre o direito ao trabalho do indivíduo em liberdade e o direito ao trabalho do preso reside no fato de que, no sistema capitalista, a oferta de trabalho está, em regra, sob a responsabilidade do setor privado, cabendo ao indivíduo demonstrar a sua capacidade e aptidão ao trabalho para conseguir e se manter empregado. O mesmo não ocorre com a população carcerária, que deve receber do Estado, como prestação, e não como declaração de direito, a possibilidade de trabalho no cárcere. Este tratamento diferenciado no Direito Constitucional Espanhol é evidentemente deliberado, tendo o legislador constituinte esclarecido que o preso tem uma garantia especial perante o Estado, devendo este disponibilizar trabalho para a população carcerária. Ou seja, a Lei Máxima espanhola já prevê diversos dos aspectos defendidos nesta dissertação. De início, reconhece que a prisão deve ser orientada para a reeducação e reinserção social dos presos, pois sabe-se que o egresso do sistema prisional, ao voltar à sociedade como homem livre, deve estar apto ao convívio social, como forma, inclusive, de evitar a reincidência. Após, a Constituição espanhola, assim como o art. 5º, inciso XLVII, inciso “c”, da Constituição Federal de 1988, proíbe que a pena consista em regime de trabalhos forçados. Em seguida, o texto espanhol reconhece que o preso permanece titular de todos os direitos fundamentais, à exceção daqueles expressamente limitados na sentença, no regime de cumprimento da pena e na lei. As mesmas restrições são aplicáveis no Brasil, independentemente de disposição legal neste sentido. Trata-se de decorrência lógica do sistema jurídico. Conforme já exposto em momento anterior 2. Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir en trabajos forzados. El condenado a pena de prisión que estuviere cumpliendo la misma gozará de los derechos fundamentales de este Capítulo, a excepción de los que se vean expresamente limitados por el contenido del fallo condenatorio, el sentido de la pena y la ley penitenciaria. En todo caso, tendrá derecho a un trabajo remunerado y a los beneficios correspondientes de la Seguridad Social, así como al acceso a la cultura y al desarrollo integral de su personalidad. 78 deste trabalho, o único direito que o preso perde é a sua liberdade, mantendo todos os demais. Ademais, a Constituição da Espanha reconhece ao preso o direito ao trabalho, bem como à previdência social, ambos como direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Por fim, reconhece-se ao interno não apenas o direito ao trabalho, mas também o direito ao acesso à cultura, ambos como aspectos necessários à concretização do direito ao desenvolvimento do preso. Ou seja, a Lei Fundamental da Espanha reconhece que o indivíduo privado de sua liberdade é titular do direito ao desenvolvimento, que tem como método de concretização o acesso ao trabalho e à cultura. O acesso à cultura possui os mesmos fundamentos filosóficos já elencados nessa dissertação. Trata-se de direito do preso e dever do Estado, em respeito à dignidade inerente a todos os indivíduos. Igualmente, a educação se revela como direito do cidadão encarcerado, constituindo, todos estes aqui elencados (trabalho, educação e cultura), formas não apenas de o indivíduo se ressocializar, mas também de se desenvolver. Não se trata de mero favor do Estado a disponibilização do acesso a tais direitos. Como partes integrantes do direito ao desenvolvimento, é obrigação estatal garantir que a população carcerária possa realizar o seu direito ao estudo, ao trabalho e ao acesso à cultura. Ademais, levando-se em conta que a LEP condiciona benefícios penais, como a remição da pena, ao exercício do trabalho ou ao estudo, ressalta-se a obrigação estatal de disponibilizar o acesso a tais direitos. Ora, se o preso tem o direito ao trabalho e alguns benesses penais dependem do seu exercício, não pode o Estado impossibilitar o gozo de tais benefícios. Ao contrário, deve ele efetivamente proporcionar a plena realização do trabalho. Respeitando-se o direito à saúde, à educação e ao trabalho, todos eles plenamente aplicáveis à população carcerária, já se poderá medir o IDH deste grupo vulnerável, analisando-se, assim, o desenvolvimento desta parcela da população. Todos esses aspectos do direito ao desenvolvimento devem ser garantidos ao indivíduo encarcerado. Conforme exposto, o Estado é o responsável primário pela concretização do direito ao desenvolvimento, revelando-se como principal 79 sujeito passivo do direito. No entanto, é essencial a cooperação da sociedade no cumprimento do desenvolvimento. Exemplificando, o egresso do sistema prisional, ou mesmo o condenado em regime semiaberto, deve receber igualdade de oportunidades ao tentar ingressar no mercado de trabalho. Eliminar o preconceito contra aquele que passou pelo sistema penitenciário se revela como um dos desafios ao direito ao desenvolvimento do preso, de responsabilidade essencial da sociedade, dentro do espírito de fraternidade inerente aos direitos humanos de terceira dimensão. Nesse sentido, ensina Flávia Piovesan (2012, p. 69): No que se refere ao setor privado, há também a necessidade de acentuar sua responsabilidade social, especialmente das empresas multinacionais, na medida em que se constituem nas grandes beneficiárias do processo de globalização. […] Faz-se, pois, fundamental que o setor privado, particularmente as corporações transnacionais, ampliem sua responsabilidade na promoção dos direitos humanos, com respeito aos direitos trabalhistas (social responsibility); ao meio ambiente (environmental responsibility); e a outros direitos diretamente impactados por suas atividades (ethical responsibility). Assim, a população carcerária titulariza o direito ao desenvolvimento, que se revela exigível perante o Estado, uma vez que este tem o dever, verdadeira obrigação, de possibilitar o desenvolvimento do preso, utilizando-se, para tanto, de todos os meios possíveis e disponíveis aptos à concretização do direito em discussão. O tema é discutido no Direito Espanhol, tendo Rafael Sastre Ibarreche defendido, no contexto do seu país, a exigibilidade, inclusive pela via judicial, do direito ao trabalho. Diz o autor (IBARRECHE, 1996, p. 139): La consecuencia inmediata es una mayor concreción del reconocimiento constitucional del derecho al trabajo en el ámbito penitenciario, con la consiguiente configuración como auténtico derecho subjetivo dotado de tutela jurisdiccional. Como o direito ao desenvolvimento possui estrutura aberta, no sentido de que não é possível uma definição a priori do seu conteúdo específico, a obrigação do Estado pode ser classificada como de meio, e não de resultado, uma vez que este 80 não possui responsabilidade pelo concreto desenvolvimento do indivíduo, mas possui a responsabilidade por disponibilizar todos os meios disponíveis para que se efetive este direito, independentemente do resultado concreto. Especificamente em relação aos presos, em razão da situação de sujeição especial em que se encontram e como forma de concretizar o seu direito ao desenvolvimento, o Estado adquire o dever de efetivamente lhes disponibilizar trabalho útil através de políticas públicas dentro e fora do cárcere. Neste ponto, cumpre destacar que, em que pese a obrigatoriedade de o Estado disponibilizar trabalho aos apenados, segundo dados do INFOPEN (BRASIL, 2014, p. 127), “apenas 16% da população prisional do país trabalha”. Evidente, portanto, o descumprimento do dever estatal, que consistentemente nega aos presos o acesso ao direito ao trabalho por ausência de políticas públicas neste sentido. A respeito da necessidade de se fornecer trabalho através de políticas públicas estatais, a reformulação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 dispõe, em seu artigo XXI 58 , que os auxílios públicos (aqui entendidos como políticas públicas) são uma dívida sagrada, devendo a sociedade ou garantir a subsistência dos cidadãos ou procurar-lhes trabalho suficiente para que seja assegurada a sua existência. Sobre o tema de auxílios públicos voltados ao direito ao trabalho, Rafael Sastre Ibarreche advoga que os liberais rechaçam a ideia de auxílios públicos (digase, materializados como políticas públicas) na forma de trabalhos públicos. Ibarreche defende que, para o pensamento liberal, ditos auxílios são um dever para os ricos sem o correlato direito para os pobres. Assim, a “juridificação” dos socorros públicos produziria efeitos negativos sobre o trabalho. Por outro lado, para os partidários do direito ao trabalho, os auxílios públicos configuram muito mais do que mero dever moral. Diz o autor (1996, p. 32): A propósito de los mismos, es preciso recordar que, a priori, los liberales rechazan la organización de auxilios estatales bajo la forma de trabajos públicos. La cuestión es diferente: se trata de saber si 58 Artigo XXI Os auxílios públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, quer seja procurando-lhes trabalho, quer seja assegurando os meios de existência àqueles que são impossibilitados de trabalhar. 81 constituyen o no un derecho para los obreros, lo cual generará una polémica interminable de socialistas y liberales sobre las relaciones entre derecho y moral. Para el pensamiento liberal, dichos auxilios son un deber para los ricos, pero no existe un correlativo derecho para los pobres. La juridificación de los socorros públicos produce efectos negativos sobre el trabajo - se suprime el gusto por el mismo y la competência - y la previsión individual y, además, al transformarse el benefactor en deudor, se origina una subversión de las relaciones morales, ya que los liberales no quieren reconocer derechos a los pobres porque pretenden salvaguardar la moral: si la caridad es un deber moral, resulta contradictorio hacerla obligatoria. En cambio, para los partidarios del derecho al trabajo, los socorros públicos son mucho más que un simple deber moral. Ainda dentro da concretização do direito ao desenvolvimento do apenado, também consiste em dever do Estado promover o treinamento profissional do preso para que este se prepare para o seu retorno à sociedade como membro ativo do mercado de trabalho. Anabela Miranda Rodrigues defende que a execução da pena deve ser dirigida primordialmente à socialização, afastando o trabalho como forma de punição e trazendo-o para uma autêntica forma de intervenção social em favor da ressocialização do apenado. Com isso, o trabalho exercido em cárcere serve como treinamento para o trabalho que o preso poderá exercer ao retornar à sociedade. Assim, leciona Rodrigues (2001, p. 96): Uma ideia que é preciso corrigir, no entanto, quando se progride na via da consideração do trabalho como factor de socialização, é a do papel que desempenha na execução da pena. O centro de gravidade de uma concepção socializadora da execução da prisão deve deixar de se localizar no trabalho como aplicação do esforço braçal ou intelectual e situar-se na formação e em programas de intervenção social (programas de socialização). Sem que, com isto, se exclua o valor do trabalho em si. Mas, em todo o caso, um valor subordinado. O trabalho deve ser concebido como um terreno de exercício onde se aplica o que é adquirido durante a formação e a «intervenção» e onde o treino profissional, necessário no momento da libertação, pode ser adquirido ou potenciado. 82 Interessante destacar que o art. 41, n. 159, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade de Portugal (Lei n.º 115/2009) dispõe que o trabalho deve desenvolver no preso as competências necessárias para o exercício de trabalho após o cumprimento da pena. A lei brasileira não se aprofunda no tema, mas o já mencionado art. 28 da LEP dispõe que o trabalho do condenado deve ter finalidade tanto produtiva como educativa. Esta finalidade educativa consiste precisamente na preparação do apenado para o mercado de trabalho. A exposição de motivos da LEP, no entanto, expressa a sua preocupação com o futuro do preso, ao dispor, no item 58, que “serão levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado”. Aldacy Rachid Coutinho defende a preparação do preso para o trabalho em liberdade como forma de garantir o futuro do indivíduo quando do seu retorno à sociedade (1995, p. 15): Constitui o trabalho um direito e um dever social dos apegados, reeducativo e produtivo, de forma a possibilitar o alcance dos escopos secundários a que se destina a pena e não uma obrigação imputada por sentença. Outrossim, diz-se, poderá preparar-se o preso com formação profissional para o mercado de trabalho que deverá enfrentar no futuro, quando recuperar a sua liberdade, pelo cumprimento da pena, embora não se constitua tal em finalidade própria da imposição de sanções penais. Neste ponto, cumpre destacar que a LEP possui uma limitação ao trabalho exercido em cárcere que, inevitavelmente, dificulta a preparação do preso para o retorno à sociedade. Com efeito, o §1º do art. 32 do mencionado diploma restringe o trabalho interno, quando possível, ao artesanato sem expressão econômica60. No entanto, o próprio dispositivo aparenta se contradizer ao se analisar a realidade social com a estrutura normativa. O caput do art. 32 destaca que se devem observar, na atribuição do trabalho, “as necessidades futuras do preso, bem como 59 Art. 41, n. 1 - O trabalho visa criar, manter e desenvolver no recluso capacidades e competências para exercer uma actividade laboral após a libertação. 60 Art. 32. Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado. § 1º Deverá ser limitado, tanto quanto possível, o artesanato sem expressão econômica, salvo nas regiões de turismo. […] 83 as oportunidades oferecidas pelo mercado” (sem destaque no original). Ora, de difícil compatibilização é a preparação do preso para o mercado através da atribuição de trabalho artesanal, uma vez que o mercado produtivo, desde a Revolução Industrial, requer trabalhadores especializados nos diversos setores produtivos, dificilmente constituindo o trabalho artesanal em setor econômico com estímulo suficiente para que se garanta ao egresso do sistema penitenciário vida digna através do seu exercício. Logo, sempre que possível, o trabalho atribuído ao preso deve prepará-lo para o mercado de trabalho, em qualquer que seja a área, não subsistindo motivo, fático ou jurídico, para que seja disponibilizado ao apenado apenas trabalho artesanal. Em verdade, mais importante do que o trabalho ser artesanal ou não é a pouca importância que se deve dar à expressão econômica do resultado produzido. Ou seja, na atribuição do trabalho ao apenado apresenta-se como fator de maior relevância o aprendizado do preso do que a produção de lucros através da exploração da força de trabalho do recluso. Assim, sempre que possível, deve-se conferir natureza profissionalizante e preparadora ao trabalho encarcerado, independentemente da produção de lucros. Neste ponto, parcerias das administrações carcerárias com entidades do terceiro setor, como os serviços sociais autônomos (SESI, SENAI, SESC e SENAC), entidades de apoio, Organizações Não Governamentais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público são importantes instrumentos de promoção do treinamento necessário à ressocialização do preso. Outra limitação da LEP que possivelmente dificulta a inserção do preso no mercado de trabalho produtivo é a previsão de que, em caso de trabalho externo, apenas 10% da mão de obra total do empreendimento pode ser de presos61. O objetivo da limitação legal aparenta ser o de evitar que haja exploração indevida da mão de obra do preso com o objetivo de aferir lucros para o tomador do serviço. De fato, esta preocupação é legítima. Deve-se, sempre impedir que o 61 Art. 36. O trabalho externo será admissível para os presos em regime fechado somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da Administração Direta ou Indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina. § 1º O limite máximo do número de presos será de 10% (dez por cento) do total de empregados na obra. […] 84 trabalho encarcerado seja convertido em forma de exploração de mão de obra barata para o mercado. No entanto, ao se limitar o número de presos a 10% dos trabalhadores na obra de forma absoluta, deixa-se de conferir oportunidade de emprego útil, profissional e produtivo a diversos apenados. Por exemplo, em uma relevante obra de construção civil, faz-se necessário um grande número de trabalhadores para prestarem os mesmos tipos de serviços, todos eles essenciais à obra como um todo. Logo, nesses casos, não há motivo para que não se contratem mais do que 10% dos trabalhadores dentre os apenados nas instituições estatais. O que deve-se evitar, repita-se, é a exploração da mão de obra dos presos como forma de se maximizar os lucros (ou minimizar o déficit, no caso de o tomador do serviço ser a administração pública). Assim, deve-se vedar o pagamento de salários em patamares distintos para os trabalhadores presos em comparação com aqueles em liberdade, pois tal fato se revela como evidente violação ao princípio da igualdade que provoca injustificável exploração dos encarcerados. Ademais, ainda sobre o trabalho extra cárcere, o art. 114 da LEP determina que somente poderia progredir ao regime aberto o condenado que estiver trabalhando ou que conseguir comprovar, através de proposta formal de emprego, a possibilidade de fazê-lo imediatamente. No entanto, fundamentando-se explicitamente no “resgate do princípio da fraternidade”, Reynaldo Soares da Fonseca, Ministro do Superior Tribunal de Justiça - STJ, em Habeas Corpus de sua relatoria (HC nº 375005/RS62), proferiu voto vencedor no sentido de permitir ao preso o trabalho externo ainda que sem proposta formal de emprego, devendo o condenado exercer o seu labor de forma autônoma. O mencionado voto também se utilizou das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos da ONU, entendendo que o tratamento digno do preso é essencial para a sua ressocialização. Diz Reynaldo Soares da Fonseca: 62 Habeas Corpus n. 375005/RS (2016/0272585-4) autuado em 07/10/2016, julgado em 01/12/2016 e publicado em 14/12/16. Relatório e voto disponíveis em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial =67412948&num_registro=201602725854&data=20161214&tipo=51&formato=PDF>. Acesso em 23 jan. 2017. 85 Não posso permanecer insensível à situação daquele que, depois de segregado da vida em sociedade, convivendo, por conta dos seus erros, com as mazelas do confinamento, ao deixar - pela conquista do regime aberto - os limites impostos pelas grades, e enfrentar as barreiras impostas para a superação dos deslizes do passado, efetivamente reencontra sua dignidade no seio de sua família e no emprego lícito, buscando, agora, a retidão em sua conduta. Como o objetivo da sanção penal é ressocializar o indivíduo, afigura-se essencial a preparação para sua reinserção (ou, em alguns casos, inserção) no mercado de trabalho, pois, conforme antes mencionado, no sistema de produção atual, é do trabalho que se garante a subsistência e o acesso aos bens da vida. Ou seja, é através do labor que o indivíduo conseguirá se desenvolver de forma plena, transformando as suas potencialidades em ações úteis ao próprio sujeito e à sociedade como um todo. Portanto, conclui-se que o direito ao desenvolvimento, por envolver diversos outros direitos, deve ser garantido pelo Estado como forma de estimular os indivíduos, em especial a população presa, a concretizarem suas liberdades através da igualdade, dentro de autêntico espírito fraternal. 86 4 A NECESSIDADE DE UM REGIME JURÍDICO DO TRABALHO ENCARCERADO O regime jurídico do trabalho encarcerado é fundamentalmente distinto daquele exercido em liberdade. De início, observa-se que, enquanto o trabalho em geral é regulamentado pela CLT, o §2º do art. 28 da LEP expressamente veda a sua aplicação ao trabalho encarcerado63. O presente capítulo pretende discutir a validade de tal vedação dentro de uma perspectiva da constitucionalização do direito, uma vez que o regime jurídico distinto cria hipótese de desigualdade formal e material para uma situação jurídica virtualmente idêntica. O trabalho em geral é essencialmente fundado na liberdade contratual. No entanto, obviamente, não há liberdade de escolha do trabalho para o indivíduo preso, ele trabalha com aquilo que o Estado disponibiliza, o que desnatura a relação trabalhista contratual. Aldacy Rachid Coutinho defende a não aplicação do direito do trabalho à pena restritiva de direitos, justamente pela falta de elemento volitivo. Leciona Coutinho (1999, p. 14): Por outro lado, ainda que não houvesse menção expressa em lei, nesse sentido, constitui-se tal atividade em um trabalho atípico para o direito do trabalho, vez que, embora não seja um “trabalho forçado”, não decorre de um ato volitivo livre, manifestado na autonomia da vontade do sujeito trabalhador que vai eleger quando trabalhar, para quem trabalhar e que serviços prestar […]. Lélia Guimarães defende que o trabalho prestado em cárcere tem natureza pública, justamente porque não há a liberdade pressuposta e a sinalagma própria dos negócios jurídicos (COUTINHO, 1999, p. 18, apud GUIMARÃES, 1986, p. 1.066). Soler Arrebola esclarece que na Espanha parte da doutrina também problematiza a aplicação das normas protetivas do trabalho ao labor exercido no 63 Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. § 1º Aplicam-se à organização e aos métodos de trabalho as precauções relativas à segurança e à higiene. § 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. 87 cárcere pela ausência do requisito da voluntariedade. Leciona Arrebola (2000, p. 910): No obstante, algunos sectores doctrinales negaban la posibilidad de intrdocucción de esta relación especial en la órbita laboral, puesto que el requisito de la voluntariedad no se manifestaba en este tipo de trabajo y, por lo tanto, carecía de una de las notas típicas que deberían darse en toda relación laboral. Ocorre que, malgrado as diferenças elementares do vínculo jurídico (contratual de um lado e legal de outro) não se pode generalizar a não aplicação dos direitos trabalhistas garantidos ao trabalhador em liberdade ao trabalho no cárcere sem que sejam estabelecidas medidas legais compensatórias. Outro ponto de divergência doutrinária é a obrigatoriedade, ou não, do trabalho para o condenado, uma vez que há aparente contradição entre a proibição de penas de trabalhos forçados (previsto no art. 5º, inciso XLVII, alínea “c” da Constituição Federal de 1988 e art. 1º da Convenção nº 29 da OIT sobre o trabalho forçado ou obrigatório) e a obrigatoriedade do trabalho prevista no art. 39, inciso V da LEP. 4.1 Constitucionalização do Direito O termo “Constitucionalização do Direito” comporta diversos significados. Luís Roberto Barroso leciona que (2013, p. 473) a expressão pode significar um ordenamento jurídico no qual vigore uma Constituição dotada de supremacia; uma Constituição formal que incorpore em seu texto temas tradicionalmente tratados pelos ramos infraconstitucionais; ou, com mais profundidade, “um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”. A partir deste efeito expansivo, a validade e o significado de todas as normas infraconstitucionais ficam condicionadas ao respeito aos valores, princípios e regras revelados na Lei Fundamental. É neste mesmo sentido a lição de Virgílio Afonso da Silva: 88 Com constitucionalização do direito quer-se aqui fazer menção, em linhas gerais, que serão desenvolvidas no decorrer do trabalho, à irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito. Uma das consequências desse efeitos expansivo diz respeito à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, pelo qual tais direitos, apesar de historicamente previstos como forma de proteção do indivíduo em face do Estado, passam a produzir efeitos também nas relações entre particulares. Não é essa a principal preocupação deste trabalho. O efeito expansivo da constitucionalização do direito também significa que, ainda que uma norma infraconstitucional não viole, à primeira vista, a Lei Fundamental, ela não será válida se estiver em desacordo com os princípios constitucionais. Ademais, a Constitucionalização do Direito também repercute na esfera de atuação dos poderes estatais. Com isso, o Poder Legislativo recebe limitações na sua atuação típica de legislar, sendo impostos deveres de legislar a este Poder como forma de concretizar os programas constitucionais. Ricardo Marcondes Martins (2010, p. 31) entende que esta restrição à discricionariedade do legislador é plenamente compatível com a democracia, representando nada mais do que a negativa da “existência de campos da política imunes ao Direito” e da “incompatibilidade entre a vinculação dos direitos fundamentais e a democracia”. O Poder Judiciário também fica condicionado à Constitucionalização do Direito na medida em que recebeu a missão de controlar a constitucionalidade das normas, bem como interpretá-las de acordo com o disposto na Lei Maior. De maior relevância é a condicionante imposta à atuação da Administração Pública, que, além de ter a sua discricionariedade limitada, recebe diversos deveres de atuação, como forma de concretizar o conteúdo da Constituição. No Brasil, pode-se dizer que o marco da Constitucionalização do Direito foi a promulgação da Constituição de Outubro de 1988. A atual Constituição, em um movimento que Luís Roberto Barroso (2013, p. 478) chama de “constitucionalização das fontes do Direito”, incluiu em seus dispositivos formais diversos temas de direito infra constitucional dispondo sobre princípios e regras de Direito Administrativo, Civil, Penal, Processual, Tributário etc. 89 Mas a Constituição Cidadã foi além. Com ela, o constitucionalismo brasileiro transladou a Lei Fundamental para o centro do ordenamento jurídico. Assim, a Constituição deixou de ter apenas supremacia formal para também ser dotada de supremacia material, com evidente força normativa. Sobre o tema, são preciosas as lições de Konrad Hesse (1991, p. 5): A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. A força normativa da Constituição é elemento essencial da Constitucionalização do Direito. O que hoje é visto com naturalidade, representou, em realidade, uma quebra de paradigma. O centro do sistema jurídico (e, consequentemente, a rota de fuga da argumentação jurídica) classicamente se identificava com o Código Civil, que, nos dizeres de Luís Roberto Barroso (2013, p. 478), desempenhava “o papel de um direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferia certa unidade dogmática ao ordenamento”. Passou-se, assim, à defesa da ideia de filtragem constitucional na interpretação e aplicação do Direito. Paulo Ricardo Schier 64 ensina que esse fenômeno implica a “atualização do direito infraconstitucional à luz da axiologia constitucional”, sintetizando da seguinte forma: Por fim, especificamente em relação à adoção de um conceito de sistema constitucional pressuposto à idéia de filtragem constitucional, ainda se defendia a possibilidade de extração de importantes conseqüências no plano da dogmática constitucional. Em primeiro lugar, falando-se de uma unidade formal inerente ao sistema, teriam 64 SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Disponível em: <http://www.ebah.com.br/content/ABAAABfwoAA/filtragem-constitucional-clemerson-cleve>. Acesso em: 21 maio 2016. 90 os operadores do Direito que laborar na dogmática jurídica a partir da noção de unidade hierárquico-normativa da constituição, assumindo as conseqüências daí decorrentes (como a impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais, a não hierarquização dos princípios constitucionais etc.). Em seguida, seria necessário laborar-se a partir da idéia de unidade material, ou seja, unidade axiológica, unidade de sentido, de modo que não se poderia compreender um instituto qualquer do direito infraconstitucional a não ser sob a luz da constituição toda. Assim, a leitura de qualquer norma infraconstitucional deve passar pela filtragem constitucional, ou seja, deve-se verificar a compatibilidade de tal norma com os valores insculpidos na Lei Fundamental. Desta característica decorre o fato de que, ainda que uma norma infraconstitucional não viole diretamente a Lei Fundamental, ela não pode dispor em sentido contrário aos valores empregados na Constituição. Exemplificando e já adentrando na discussão do presente capítulo, o já mencionado §2º do art. 28 da LEP diz que “o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho”. Ora, a Constituição não diz que o trabalho encarcerado deve seguir as regras de uma Lei específica, como, por exemplo, a CLT. No entanto, a exclusão do trabalhador preso do regime de proteção celetista sem qualquer medida de compensação viola os princípios e valores constitucionais, não passando, por conseguinte, da filtragem constitucional. 4.2 A Lei de Execuções Penais frente à Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal de 1988 possui como um dos seus princípios fundamentais o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV), elevando não só o direito ao trabalho, mas também as condições mínimas do exercício de tal direito à categoria de direitos fundamentais. Trata-se de mudança paradigmática. A Constituição de 1967, bem como a de 1969 (formalmente Emenda Constitucional n. 1 de 1969) já versavam sobre alguns direitos dos trabalhadores, mas o faziam no Título da Ordem Econômica e Social. A Constituição Cidadã, ao elencar o direito ao trabalho e os direitos trabalhistas no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais buscou concretizar aquilo que já anunciara como princípio: deve-se respeitar o valor social do trabalho. 91 O título dedicado à Ordem Econômica e Financeira da Constituição Federal de 1988 aprimorou a linguagem antes empregada. Agora, a ordem econômica passa a ser fundada na valorização do trabalho, tendo como princípio a busca do pleno emprego (art. 170). Ou seja, a Constituição considera o trabalho não só um valor fundamental da Constituição, mas também garante que não haverá a exploração desmedida da mão de obra, uma vez que são assegurados, com fundamentalidade, diversos direitos trabalhistas no rol do art. 7º. Importante destacar que o caput deste dispositivo não faz qualquer distinção quanto à privação da liberdade do trabalhador. Diz apenas que os trabalhadores urbanos e rurais são titulares dos direitos que elenca em seus incisos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. O silêncio, no presente caso, é eloquente. Note-se que quando a Lei Fundamental quis distinguir aqueles que titularizam os direitos trabalhistas, o fez de forma expressa, como, por exemplo, na restrição da aplicação de alguns direitos aos trabalhadores domésticos (parágrafo único do art. 7º). Não poderia ser diferente, afinal, conforme já exposto, o único direito que o condenado perde é a sua liberdade, conservando todos os demais. O próprio Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/1940), com todo o seu rigor típico da era do Estado Novo, reconhece este fato em seu art. 38, assim como, de forma semelhante, o faz a LEP em seu art. 3º65. Em que pese a obviedade teórica, o exame da realidade prisional brasileira faz necessário reafirmar: a prisão retira apenas o direito à liberdade, todos os demais, constitucionais ou legais, são mantidos66. Assim ocorre com o direito ao trabalho. O indivíduo privado de sua liberdade mantém o direito de trabalhar. Diante disto, cumpre ao Estado proteger e possibilitar 65 Art. 38. O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. 66 Não se ignora que o indivíduo preso por condenação criminal tem suspensos os seus direitos políticos. No entanto, tais direitos são mantidos nos casos de prisões temporárias e preventivas. Em qualquer caso, não é o regime prisional que provoca tal suspensão, mas sim a existência de condenação criminal. 92 o exercício regular de tal direito. É neste sentido a lição de Anabela Miranda Rodrigues (2001, p. 97): Quanto ao regime jurídico do trabalho prisional, a primeira nota é a de que o direito ao trabalho constitucionalmente consagrado como direito positivo à obtenção de trabalho não sofre restrição em virtude da reclusão. Em contrapartida, o Estado tem o dever de providenciar trabalho aos reclusos. O amparo conferido pelo Estado às relações trabalhistas é conhecido por princípio da proteção. Sobre o tema, leciona Augusto César Leite de Carvalho (2011, p. 56): O direito civil, ou sua versão mais vetusta, tem a igualdade como pressuposto. Imaginam-se pessoas que, por estarem em igual condição, podem instituir contratos entre si e, nestes, ajustar o que manifesta mais claramente a vontade de cada qual. O direito do trabalho, como já se percebeu, parte de pressuposto diverso: a desigualdade entre os contratantes. Por isso, relativiza o princípio da autonomia da vontade individual, que inspira o direito obrigacional comum e, para compensar a inferioridade econômica do empregado, estende-lhe uma rede de proteção, um rol de direitos mínimos e indisponíveis que asseguram a dignidade do trabalhador (dir-se-ia: do trabalho humano). Como afirma Couture, em remissão feita por Plá Rodriguez, “o procedimento lógico de corrigir as desigualdades é o de criar outras desigualdades”. Ora, da mesma forma com que na relação contratual entre o trabalhador e o empregador não há igualdade entre as partes, também na relação de trabalho prisional está presente a desigualdade entre as partes, que, no caso, são o Estado repressor e indivíduo condenado. Assim, havendo a mesma situação fática que justifica a proteção estatal da relação trabalhista, revela-se axiologicamente incompatível com a Constituição o tratamento desigual. Trata-se da aplicação do brocardo ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio, ou seja, onde existe a mesma razão, deve-se aplicar a mesma disposição legal. Não se afirma aqui que as relações trabalhistas ocorridas no cárcere são idênticas àquelas entre uma empresa e um trabalhador livre. No entanto, a situação de desigualdade que invoca a atuação estatal no caso dos contratos de trabalho também está presente na relação de trabalho encarcerada: em ambos os casos o 93 trabalhador não está em situação de igualdade com a outra parte, não podendo, portanto, livremente negociar os direitos e deveres dos envolvidos. Na realidade, a situação do trabalhador preso é ainda pior. Não pode ele escolher livremente o exercício de qualquer profissão, quanto mais discutir cláusulas contratuais. Não há sequer contrato de trabalho, o preso trabalha com aquilo que o Estado o possibilita trabalhar. Portanto, injustificado o tratamento desigual. A LEP, ao excluir a aplicação da CLT ao trabalho encarcerado cria situação de exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade, que, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes (BRANCO; COELHO; MENDES, 2010, p. 1186), consiste no seguinte: Tem-se a exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade se a norma afronta o princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Aldacy Rachid Coutinho defende, inclusive, que não está desnaturada a relação contratual, sendo o trabalho penitenciário um autêntico contrato trabalhista, com a consequente proteção da legislação celetista. Diz a autora (COUTINHO, 1999, p. 18): […] estando presentes os requisitos da relação de emprego, insertos no art. 3º, da Consolidação das Leis do Trabalho, qual seja, subordinação, onerosidade, continuidade e pessoalidade, há de se reconhecer a existência de um contrato de trabalho, garantindo-lhes salários e direitos idênticos aos demais empregados, inclusive com descontos previdenciários. Soa evidente que o usufruir de determinados direitos pode ser minimizado pela própria condição de encarcerado, mas tal não alcança a realização de uma atividade subordinada. Importa destacar que a Lei 6.367 de 1976, que dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do Instituto Nacional de Previdência Social (atualmente a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social), coloca o trabalhador 94 preso como empregado para fins previdenciários67, realçando-se, assim, o vínculo empregatício existente. Logo, se sob diversos aspectos o trabalho exercido em cárcere é igual ao trabalho exercido em liberdade, não há motivo constitucionalmente adequado para a exclusão do preso dos direitos e garantias trabalhistas. Conclui-se, assim, pela desconformidade da norma prevista no art. 28, §2º, da LEP com a Constituição Federal de 1988, uma vez que a ausência de regime de compensação, a exemplo de estatuto jurídico próprio, cria uma omissão legislativa que exclui os presos da proteção dos valores constitucionais. 4.3 O direito de trabalhar e o dever de trabalhar O direito ao trabalho possui fundamentos normativos tanto na ordem internacional como na ordem pátria. Conforme exposto anteriormente, a DUDH, o PIDESC, o Protocolo de São Salvador, entre outros, garantem o direito ao trabalho aos indivíduos em geral. Na ordem constitucional brasileira, o art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal de 1988, garante a liberdade do “exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”. Após, o art. 6º elenca o trabalho entre os direitos sociais, além da previsão da busca do pleno emprego como princípio da ordem econômica (art. 170) e do trabalho como base da ordem social (art. 193). Em síntese, pode-se dizer que o direito ao trabalho é um direito social-econômico fundamental. Por outro lado, na perspectiva da obrigação, no sistema de produção socialista, o trabalho é visto como um dever geral. Todo aquele que é apto ao trabalho deve trabalhar. No entanto, no sistema capitalista atualmente predominante, para o indivíduo livre não há, propriamente, um dever de trabalhar. Maria Hemília 67 Art. 1º O seguro obrigatório contra acidentes do trabalho dos empregados segurados do regime de previdência social da Lei número 3.807, de 26 de agosto de 1960 (Lei Orgânica da Previdência Social), e legislação posterior, é realizado pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). § 1º Consideram-se também empregados, para os fins desta lei, o trabalhador temporário, o trabalhador avulso, assim entendido o que presta serviços a diversas empresas, pertencendo ou não a sindicato, inclusive o estivador, o conferente e assemelhados, bem como o presidiário que exerce trabalho remunerado. 95 Fonseca (2009, p. 109) defende que, neste sistema, “este dever se traduz em um ‘dever moral’, pois a sua imposição fere frontalmente a liberdade e a dignidade humana, fazendo com o que trabalho forçado seja combatido com veemência pelos Estados Democráticos de Direito”. Em uma perspectiva comunitária, o dever de trabalhar, ainda que para o indivíduo em liberdade, se justifica como concretização do princípio da solidariedade social (ou fraternidade), decorrente diretamente do modelo de Estado Fraternal mencionado no capítulo inicial deste trabalho. É também nesse sentido as lições de Maria Hemília Fonseca sobre o dever social ao trabalho (2009, p. 109): Nesta direção, há quem visualize uma vertente social do dever de trabalhar, que se manifesta somo um dever genérico para com a sociedade, ou seja, como uma parcela de contribuição que compete a cada cidadão para a melhoria da coletividade. Alarcon Caracuel, por exemplo, entende que o dever de trabalhar se assenta no terceiro pilar da estrutura “liberdade, igualdade e fraternidade”, ou seja, a solidariedade social. De qualquer forma, em 25 de abril de 1957 o Brasil ratificou a Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, também denominada de Convenção sobre o Trabalho Forçado, de 1930. Este instrumento normativo internacional obrigou os Estados-parte a suprimir o emprego ou trabalho forçado. No entanto, o próprio tratado, no art. 2 - 2, item c68, excepciona do conceito de trabalho forçado qualquer trabalho exigido como consequência de condenação judicial, desde que esse trabalho “seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas”. Art. 2 — 1. Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. 2. Entretanto, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ não compreenderá, para os fins da presente convenção: […] c) qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como conseqüência de condenação pronunciada por decisão judiciária, contanto que esse trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas; […] 68 96 De forma semelhante, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), ao proibir a escravidão e a servidão, expressamente exclui do conceito de trabalho forçado ou obrigatório os serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença, desde que este trabalho não afete a dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso69. No mesmo sentido evoluiu a legislação brasileira. Com efeito, a LEP prevê o trabalho como dever social70 e como direito do preso71. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, proíbe a pena de trabalhos forçados72. A compatibilização entre o dever de trabalhar e a vedação de penas de trabalhos forçados é revelada pela já mencionada Convenção n. 29 da OIT. Este instrumento normativo não considera trabalho forçado o dever de trabalhar imposto como consequência de sentença penal condenatória. Assim, o que a Lei Fundamental brasileira veda é a aplicação de pena consistente em trabalhos forçados, sendo o dever de trabalhar do preso compatível, portanto, com o texto constitucional. 69 Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso. 3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo: a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado; […] 70 Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. Art. 39. Constituem deveres do condenado: […] V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; […] 71 Art. 41 - Constituem direitos do preso: […] II - atribuição de trabalho e sua remuneração; […] V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; 72 Art. 5º, inciso XLVII - não haverá penas: […] c) de trabalhos forçados; 97 Ou seja, não se pode condenar alguém de forma que o conteúdo da sentença penal seja no sentido de que o condenado deve trabalhar, independentemente da sua vontade, como forma de receber a sua sanção penal. Exemplificando-se, não se pode condenar um indivíduo a cinco anos de trabalho forçado. No entanto, em sendo tal indivíduo condenado de forma que fique cinco anos em regime fechado, durante o cumprimento desta parte da pena, é ele obrigado a trabalhar. É neste sentido que o direito ao trabalho e o dever de trabalhar é compatibilizado no sistema jurídico da Espanha. Sobre o tema, leciona Rafael Sastre Ibarreche (1996, p. 94): Naturalmente, distintos caracteres presenta el peculiar supuesto de los condenados a prisión respecto de los cuales la LOGP, después de la genérica consideración de su trabajo como derecho y como deber (art. 26), proclama en el artículo 20 que “tendrán obligación de trabajar conforme a sus aptitudes físicas y mentales”, com las excepciones previstas en el artículo 183.2 RP. De esta forma, “la obligatoriedad o no voluntariedad del trabajo penitenciario es, a fin de cuentas, calificación que se confirma a partir de la legislación penitenciaria constitucional. Também é desta forma que ocorre nos Estados Unidos da América. A 13ª Emenda à Constituição Americana, ao vedar o trabalho escravo, dispõe, em tradução livre, que “não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”73. É neste sentido a lição de Raja Raghunath, que leciona que, naquele país, consolidou-se o entendimento de que se o preso pode trabalhar, ele deve. Diz Raghunath (2009, p. 397): In some states, individuals may still be sentenced to hard labor, but in most systems today, inmates labor under a more general requirement that, if they are able-bodied, they must work74. 73 Amendment XIII Section 1. Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime whereof the party shall have been duly convicted, shall exist within the United States, or any place subject to their jurisdiction. 74 Em alguns estados, indivíduos ainda podem ser sentenciados a penas de trabalhos forçados, mas na maioria dos sistemas atuais, presos trabalham sob o argumento geral de que, se eles podem trabalhar, eles devem trabalhar (tradução livre). 98 No contexto norte-americano, entretanto, diversas críticas são feitas à possibilidade de se forçar alguém a trabalhar pelo fato de que o indivíduo está preso. Tal fato provocou um alto índice de encarceramento no país, que hoje tem a maior população prisional do mundo75, servindo, os presos, segundo a lição de Ryan S. Marion como mão de obra barata e fartamente disponível a pretexto de reabilitar e ressocializá-los, especialmente no contexto das prisões privatizadas, ainda comuns na realidade dos Estados Unidos. Defende Marion que tal situação constituiria, no mínimo, servidão involuntária (2009, p. 214): Prisoners confined by the state to a privately owned facility must perform menial tasks for little to no pay. The point of such work, consequently, is reformation and rehabilitation. By doing such work in the privatecontext, however, prisoners directly contribute to the profit-making function of the corporation. At the very least, therefore, inmate labor in private prisons constitutes "involuntary servitude” 76. De forma semelhante, no Brasil, o trabalho penitenciário é considerado um dever social do preso, sendo obrigatório o seu exercício, sob pena da cometimento de falta disciplinar de natureza grave77. Não aparenta ser esta a opinião de Ivan de Carvalho Junqueira. Para ele, o trabalho é um direito do preso, constituindo dever do Estado disponibilizá-lo ao encarcerado. No entanto, para o autor, o trabalho seria um faculdade do preso, e não, necessariamente, um dever. Diz Junqueira (2005, p. 86): É o trabalho prisional, sem embargo, primordial, tendo o Estado o dever de atribuí-lo à pessoa preso, por consentimento desta. E, 75 Segundo dados do World Prison Brief, em 24 de outubro de 2016 os Estados Unidos encarceram 2.217.947 pessoas, seguido da China, com 1.649.804. O Brasil segue em quarto, com 622.202. Dados disponíveis em: <http://www.prisonstudies.org/highest-tolowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All>. Acesso em 24 out. 2016. 76 Em tradução livre: Os prisioneiros confinados pelo estado em uma prisão privada devem executar tarefas simples por pouco ou nenhum salário. O objetivo de tal trabalho, consequentemente, é a reforma e reabilitação. Fazendo tal trabalho no contexto privado, no entanto, os prisioneiros contribuem diretamente para a função lucrativa da corporação. Pelo menos, portanto, o trabalho dos presos em prisões privadas constitui "servidão involuntária”. 77 Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: […] VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei. 99 embora militem as leis e doutrinas, em geral, contra a faculdade atribuída ao reeducando, tornar-se-ia ineficaz, por certo, toda e qualquer atividade laborativa a ser, peremptoriamente, imposta. Sendo voluntária, contudo, respeitada a jornada normal de trabalho, muitos serão os beneplácitos a amenizarem os deletérios efeitos da prisão, em redução ao ócio, constituindo, ademais, um incentivo, quando da possibilidade do instituto da remição, à razão de um dia de pena por três de labor (LEP, artigo, 126, § 1.º). O escopo da norma constitucional que veda a pena de trabalhos forçados aparenta ser o da proibição do trabalho forçado e não remunerado, característico do período escravagista já superado a nível teórico no ordenamento jurídico brasileiro desde a Lei Nº 3.353, de 13 de Maio de 1888 (Lei Áurea). Logo, havendo a remuneração ao trabalho em cárcere, não há, propriamente, o trabalho forçado vedado constitucionalmente. Ainda que tenha havido condenação à pena privativa de liberdade substituída por pena restritiva de direito de prestação de serviços à comunidade (art. 44 e seguintes do Código Penal), que consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, há a opção (ainda que teórica) de o sentenciado não aceitar a substituição da pena, descumprindo-a e se submetendo à reconversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade78. 78 Tendo em vista que em diversos estados do país não há estabelecimentos para o cumprimento da pena em regime aberto, apresentava-se mais benéfico ao condenado a submissão ao regime de cumprimento de pena privativa de liberdade em detrimento das restritivas de direito, que seriam, teoricamente, mais benéficas. Assim, diversos condenados passaram a peticionar no juízo de execução penal solicitando a reconversão da pena restritiva de direitos em privativa de liberdade, já que estaria, o condenado, submetido apenas à condição de comparecimento mensal à vara de execuções penais e não às penas restritivas de direitos. No entanto, tal prática passou a ser considerada ilegal pelo STJ, que, no julgamento do Recurso Especial 1.524.484-PE, de Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17 de maio de 2016, fixou o entendimento de que “não é possível, em razão de pedido feito por condenado que sequer iniciou o cumprimento da pena, a reconversão de pena de prestação de serviços à comunidade e de prestação pecuniária (restritivas de direitos) em pena privativa de liberdade a ser cumprida em regime aberto”. Disse o Tribunal que a reconversão da pena restritiva de direitos imposta na sentença condenatória em pena privativa de liberdade depende do descumprimento das condições impostas pelo juiz da condenação. Portanto, não caberia ao condenado, que sequer iniciou o cumprimento da pena, optar pela forma como pretende cumprir a condenação imposta. No entanto, a própria Corte não ignora que o condenado, inevitavelmente, poderá simplesmente não cumprir as condições impostas, provocando, assim, a reconversão da pena para a privativa de liberdade a ser cumprida em regime aberto. Disse o STJ que “a única possibilidade para tal ocorrer será pela reconvenção formal, vale dizer, ordena-se o cumprimento da restritiva e ele não segue a determinação. Outra forma é inadmissível”. 100 Aldacy Rachid Coutinho defende que a prestação de serviços à comunidade sequer poderia ser considerada uma forma de trabalho forçado, mas sim alternativa substitutiva ao apenado, concordando, entretanto, que há, de qualquer forma, a possibilidade de reconversão da pena, já que é obrigatória a fixação da pena privativa de liberdade para depois ocorrer a substituição por pena restritiva de direitos. Leciona Coutinho (1999, p. 12): Mister ressaltar que a prestação de serviços à comunidade não é, e nem pode ser, considerada como expressão de um trabalho forçado, ou seja, o trabalho como forma de pena; se assim o fosse, estaria eivada de inconstitucionalidade. Considera-se a pena restritiva de direitos, através de sua forma de prestação de serviços, uma alternativa substitutiva ao apenado, inspirada em princípios de humanização da pena e ressocialização do criminoso, mais condizente com a dignidade do homem. É obrigatória, de qualquer sorte, a fixação da pena privativa de liberdade na sentença condenatória para que, a partir daí, se preenchidos os requisitos legais, possa ser convertida em pena de restrição de direitos. […] Caso o apenado não culpa com a determinação atribuída na conversão, proceder-se-ia uma “reconversão”, pela qual deverá o apenado cumprir, então, a pena privativa de liberdade. Ademais, a autora defende (COUTINHO, 1999, p. 13) que a prestação de serviços à comunidade não deve ter natureza “lucrativa, como elemento da organização empresarial capitalista da iniciativa privada e que se consubstancial a partir de um valor de troca de mercado”, devendo ser mantida, sim, a sua “conotação retributiva própria da pena substitutiva cumprida em proveito da coletividade, mantendo-se na ordem do interesse público, exclusivamente dotado de uma valor de uso”. Uma forma simples de se garantir que o condenado terá o direito de cumprir uma pena restritiva de direitos que não o obrigue a trabalhar de forma gratuita é fazer constar na sentença que o réu poderá escolher entre ao menos duas das modalidade de penas restritivas de direito previstas no art. 43 do Estatuto Repressor, evitando-se, assim, que a única forma de o condenado cumprir uma pena restritiva de direitos seja a prestação de serviços à comunidade. 101 Os demais instrumentos de política criminal para o cumprimento de penas fora do cárcere, como a transação penal do art. 76 da Lei 9.099 de 199579 e a suspensão condicional do processo do art. 89 do mesmo diploma 80 são estritamente voluntárias, dependendo de aceitação expressa do acusado para que haja o gozo de tais benefícios. Em realidade, o trabalho em cárcere tem um claro propósito. Possui ele a função de promover a ressocialização do preso, servindo, também, para que sejam galgados benefícios, como a remição da pena, que consiste na redução da pena em um dia para cada três dias trabalhados ou doze horas de frequência escolar divididas, no mínimo, em três dias (art. 126 da LEP81). Ademais, o trabalho serve para o preso aprender um ofício, se qualificando para o seu reingresso na sociedade, uma vez que, ao voltar à liberdade com o conhecimento do exercício de uma profissão, será ele um indivíduo produtivo, com maiores chances de sobreviver no sistema de produção econômico que se encontra posto na ordem mundial. Com isso, o trabalho do preso se apresenta como benefício tanto para o preso, como para a sociedade, já que o exercício do trabalho depois do cumprimento da pena funciona como forma de evitar a reincidência criminal, pois o desemprego e as desigualdades sociais são, indubitavelmente, fortes fatores criminógenos. 79 Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. 80 Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). 81 Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011). § 1o A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de: (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011) I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias; (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011) II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho. (Incluído pela Lei nº 12.433, de 2011) […] 102 Conforme anteriormente exposto, tendo em vista que o trabalho é um dever do preso, o seu não exercício significa o cometimento de falta disciplinar de natureza grave, que causará a perda de até um terço dos dias já remidos pelo trabalho ou estudo82. A distinção feita para se compatibilizar o dever social de trabalhar e a vedação de trabalhos forçados reside no valor axiológico do instituto. Enquanto esta proibição decorre da dignidade da pessoa humana, o dever social de trabalhar é justificado como forma de se tentar a ressocialização do preso, emprestando sentido à pena de prisão. Obviamente, o condenado não poderá ser forçado, sob coação física, a trabalhar, sob pena da prática de tortura e tratamento degradante. No entanto, o não exercício do trabalho não deixa de ser considerado uma falta disciplinar por tal motivo. Em síntese, o preso é obrigado, por dever social, a trabalhar, mas, havendo recusa, não será cometido ato ilícito penalmente punível, havendo, entretanto, o cometimento de falta disciplinar. Exposto que o trabalho é dever social do preso, cumpre destacar a necessidade de se adotar um Estatuto Jurídico para regulamentar os direitos do preso trabalhador, especialmente tendo em vista os direitos trabalhistas previstos constitucionalmente. 4.4 A Necessidade de Estatuto Jurídico do preso trabalhador O regime jurídico a ser aplicado ao trabalho do preso depende da situação fática concreta. Explica-se. Como a pena pode ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto, cada uma dessas situações gera uma possibilidade de vínculo laboral distinto. Em qualquer caso, há a necessidade de se adotar um regime jurídico ao trabalho exercido no cárcere, que, a depender do regime de cumprimento da pena, pode ser a própria CLT ou um estatuto jurídico específico, com proteção e deferimento de direitos semelhantes, mas superando a incompatibilidade de 82 Art. 127. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar. (Redação dada pela Lei nº 12.433, de 2011) 103 aplicação do sistema celetista e resguardando os direitos trabalhistas garantidos constitucionalmente. Atualmente, o trabalho encarcerado é regido pelas poucas normas previstas na LEP e na Resoluçãon. 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Esta resolução se resume a dispor que o trabalho não pode ter caráter aflitivo; deve ser remunerado; dever ser produtivo, educativo e seguro. Ademais, estabelece a possibilidade de indenizações dos presos por acidentes de trabalho e doenças, em condições semelhantes às que são garantidas ao trabalhador regido pela CLT, bem como que deve-se adotar regime de carga horária de trabalho compatível com as demais necessidades do preso, como o lazer, descanso, educações e outras atividades voltadas à reinserção social do condenado83. 4.4.1 Regime jurídico do trabalhador condenado em regime aberto ou semiaberto Ao indivíduo condenado a uma pena em regime aberto ou semiaberto não há maiores dúvidas, aplica-se a CLT. Isto porque não há diferença real entre o trabalho prestado pelo indivíduo condenado a pena em regime aberto ou semiaberto e aquele exercido pela população em geral, motivo pelo qual, ainda que se considere constitucional o o § 2º do artigo 28 da Lei 7.210/84, deve-se interpretar tal dispositivo 83 As Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil (Resolução n. 14, de 11 de novembro de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária) assim dispõe: Art. 56. Quanto ao trabalho: I - o trabalho não deverá ter caráter aflitivo; II – ao condenado será garantido trabalho remunerado conforme sua aptidão e condição pessoal, respeitada a determinação médica; III – será proporcionado ao condenado trabalho educativo e produtivo; IV – devem ser consideradas as necessidades futuras do condenado, bem como, as oportunidades oferecidas pelo mercado de trabalho; V – nos estabelecimentos prisionais devem ser tomadas as mesmas precauções prescritas para proteger a segurança e a saúde dois trabalhadores livres; VI – serão tomadas medidas para indenizar os presos por acidentes de trabalho e doenças profissionais, em condições semelhantes às que a lei dispõe para os trabalhadores livres; VII – a lei ou regulamento fixará a jornada de trabalho diária e semanal para os condenados, observada a destinação de tempo para lazer, descanso, educação e outras atividades que se exigem como parte do tratamento e com vistas a reinserção social; VIII – a remuneração aos condenados deverá possibilitar a indenização pelos danos causados pelo crime, aquisição de objetos de uso pessoal, ajuda à família, constituição de pecúlio que lhe será entregue quando colocado em liberdade. 104 através do método sistemático, levando-se em conta todo o sistema normativo estabelecido pelo referido diploma. Examinando-se os demais dispositivos do capítulo em que está incluído o art. 28, qual seja, o capítulo “Do Trabalho”, observa-se que a Seção I, tratando das disposições gerais, dispõe, já no caput do mencionado dispositivo, sobre o trabalho do condenado. Não se fala em preso, fazendo-se referência, neste caso, a todos aqueles que sofreram sentença penal condenatória, independentemente do regime de cumprimento da pena. Por outro lado, o mencionado §2º do art. 28 veda a aplicação da CLT ao trabalho do preso. Assim, diferenciou-se o condenado preso do condenado solto. Tanto é assim, que o art. 29, tratando sobre a remuneração do trabalho regido pela LEP, expressamente indica que “o trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo” (sem grifo no original). Essa diferenciação fica explicitada na Seção II (Do Trabalho Interno) do mencionado capítulo. O art. 31 dispõe que “o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade” (sem grifos no original). Com isso, a lei tratou de forma distinta o condenado privado de sua liberdade e o condenado em regime aberto ou semiaberto, aplicando-se o regime penal apenas ao trabalho encarcerado. A Seção III (Do Trabalho Externo) aparenta confirmar que a exclusão do regime celetista se aplica apenas ao trabalho exercido em pena de regime fechado. O art. 36 diz que “o trabalho externo será admissível para os presos em regime fechado somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da Administração Direta ou Indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina” (sem grifos no original). Portanto, o trabalhador condenado a regime aberto ou semiaberto fica sujeito ao regime da CLT, porque categorizado como condenado em sentido amplo, ou seja, trata-se de condenado, mas não efetivamente preso. Ademais, apesar de ainda presente a função ressocializadora, o trabalho exercido pelo preso em regime aberto ou semiaberto tem finalidade evidentemente lucrativa para o empregador e para o empregado. Desta forma, o regime jurídico aplicado deve revestir o trabalhador das mesmas garantias titularizadas pelos demais trabalhadores. 105 Logo, em se considerando válida a restrição do §2º do art. 28 da LEP, observa-se que tal dispositivo se aplica apenas ao trabalho, interno ou externo, exercido pelo preso em regime fechado, mas não ao exercido em regime aberto ou semiaberto, hipóteses em que resta aplicável o regime celetista. A aplicação da CLT ao trabalho do preso que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto pressupõe a existência de um contrato de trabalho que, por sua vez, tem como fundamento a liberdade contratual. Nestes casos, ainda é possível a aplicação da CLT pois tal liberdade não se perdeu. Situação distinta ocorre com o trabalhador que cumpre pena em regime fechado. 4.4.2 Regime jurídico do trabalhador condenado em regime fechado O condenado que cumpre pena em regime fechado perde a sua liberdade de locomoção. Sua vida, durante o cumprimento da pena em tal regime, resume-se à estadia dentro do presídio. Desta forma, tal indivíduo somente pode exercer as atividades laborativas que o Estado efetivamente disponibiliza. Consequentemente, não há oportunidade de escolha (ou seja, liberdade contratual) do trabalho a ser exercido, já que ao preso não é dado trabalhar com atividade diversa daquela proposta pelo Estado. Cumpre observar que o trabalho encarcerado é não apenas um direito do preso84, mas também um dever do indivíduo condenado à pena de prisão85. Como consequência deste direito e dever, surge para o Estado a obrigação de disponibilizar ao condenado trabalho útil e produtivo, diretamente ou através da gerência de fundação ou empresa pública86. Art. 41 - Constituem direitos do preso: […] II - atribuição de trabalho e sua remuneração; […] 85 Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. […] Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade. Parágrafo único. Para o preso provisório, o trabalho não é obrigatório e só poderá ser executado no interior do estabelecimento. […] Art. 39. Constituem deveres do condenado: […] V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; […] 86 Art. 34. O trabalho poderá ser gerenciado por fundação, ou empresa pública, com autonomia administrativa, e terá por objetivo a formação profissional do condenado. […] 84 106 Em qualquer caso, o preso não pode livremente escolher com o que pretende trabalhar. Ele labora com aquilo que lhe é fornecido. É por este motivo que se diz perdida a liberdade contratual. Ocorre que, conforme leciona Aldacy Rachid Coutinho, a liberdade é pressuposto da venda da força de trabalho. Sustenta Coutinho (1999, p.10): Tendo a liberdade como pressuposto, o trabalho adquire uma forma social enquanto essa partilha determina sua divisão social, baseada na especialização. Não somente seria o trabalhador livre para vender sua força, senão que constituiria ainda um dever para com a sociedade na qual se insere, permitindo uma necessária e salutar cooperação. Não havendo a liberdade de contratar, desnatura-se a relação jurídica estabelecida entre empregador e empregado. Logo, não se aplica, ao caso, um direito contratual, mas sim um estatutário, decorrente de regime jurídico imposto em lei. Isso porque não há relação de emprego, mas uma relação especial, com finalidades específicas já estabelecidas na LEP, como a educação e ressocialização do condenado, dignificando-o através do trabalho. As poucas regras existentes sobre o regime do trabalho exercido no cárcere não se revelam suficientes para abranger sequer os direitos constitucionalmente previstos para todos os trabalhadores no art. 7º da Lei Fundamental87. Os direitos garantidos no dispositivo antes mencionado são aplicáveis a todos os tipos de trabalhadores. Isto porque a interpretação constitucional deve levar em conta os princípios específicos da hermenêutica constitucional. Dentre tais princípios, destaca-se o da máxima efetividade, que indica que aos direitos e garantias fundamentais deve ser conferido o sentido que lhe atribua a maior efetividade possível. Ora, não resta dúvidas de que o sentido que atribui maior efetividade ao dispositivo constitucional não é aquele que exclui a aplicação de tais direitos ao trabalho no cárcere. Ao contrário, é se aplicando os direitos elencados no rol do art. 7º da Lei Fundamental que se extrai a maior efetividade (e consequente força 87 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] 107 normativa) do seu texto. Até porque, a Constituição Federal de 1988, ao não diferenciar o trabalho pela qualidade individual do trabalhador (se preso ou solto), torna-se aplicável a qualquer um deles. Ocorre que os textos normativos, nacionais ou internacionais, que versam sobre os direitos dos presos relacionados ao trabalho não densificam de forma suficiente os direitos constitucionais. Com efeito, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, atualizadas em 2015 pela Organização das Nações Unidas e atualmente publicadas como “Regras de Mandela” trazem, entre a regra 96 e a 103, algumas disposições sobre o trabalho encarcerado. Parte de tais regras já se encontram positivadas na LEP. Em síntese, as Regras de Mandela determinam que deve ser fornecido trabalho útil e remunerado para o preso, tal trabalho não pode ser estressante e deve haver período mínimo de descanso. O Regulamento Penitenciário Nacional (Decreto nº 6.049, de 27 de fevereiro de 2007), por sua vez, pouco dispõe acerca dos direitos do trabalho do preso, limitando-se a garantir, de forma genérica, que “todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina” (art. 98). Portanto, nota-se que nenhum dos instrumentos normativos aqui mencionados dispõe sobre direitos básicos do preso trabalhador, consequentemente retirando o manto de proteção de direitos previstos na Lei Fundamental através de uma deliberada omissão legislativa que se revela inconstitucional, pois pretende retirar do trabalhador encarcerado direitos fundamentais previstos no rol do art. 7º da Constituição Federal de 1988. Não há justificativa constitucionalmente autorizada que fundamente a retirada do preso, por exemplo, da garantia de salário não inferior ao mínimo, como faz o já mencionado art. 29 da LEP. Ora, se no Brasil o salário mínimo já não se revela suficiente para suprir sequer as necessidades elencadas na Constituição Federal88, pagar menos do que tal patamar viola não só o art. 7º, inciso IV, da Constituição Art. 7º […] IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; […] 88 108 Cidadã, mas também o direito a um salário justo, provocando um enriquecimento sem causa do tomador do serviço89. Este dispositivo é objeto de questionamento acerca da sua recepção ou não pela Constituição Federal de 1988 através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF - 336/2015 no STF. Nesta ação, a Procuradoria-Geral da República, autora da demanda, argumenta que o direito ao trabalho do preso não é uma sanção, mas forma de ressocialização, motivo pelo qual não pode pagamento inferior ao mínimo constitucional, pois tal fato importa em atribuição de caráter sancionatório ao próprio trabalho. Diz o Ministério Público Federal - MPF90: O direito dos cidadãos presos ao trabalho não constitui sanção, mas instrumento educativo e social destinado a garantir meios de reinserilos na sociedade e de ocupar-lhes a mente e a energia, a fim de reduzir tensões no sistema prisional e permitir-lhes desenvolver-se e refletir sobre seus atos. Definir o piso remuneratório do trabalho de pessoas condenadas criminalmente abaixo do patamar que a Constituição da República considera como mínimo para atendimento das necessidades vitais básicas importa na atribuição de certo caráter sancionatório às atividades laborais realiza- das pelos apenados. A condição de preso de um cidadão não pode ser utilizada como justificativa para afastar a exigência de observância do salário mínimo constitucionalmente preconizado. O fator de discrímen utilizado pela LEP não se coaduna com o princípio da dignidade humana nem com o da isonomia, porquanto a prestação de trabalho é a mesma, estando ou não o trabalhador com sua liberdade de ir e vir restringida. Em outras palavras, não há situação desigual a legitimar tratamento díspar relativo à inobservância do salário mínimo. Assim, o MPF conclui pela não recepção do mencionado dispositivo da LEP, devendo haver, independentemente da aplicação da CLT, a garantia do pagamento de, ao menos, um salário mínimo ao apenado trabalhador. 89 O tema foi tratado por Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva em sua tese de doutorado em Direito e sintetizado no artigo “Direito Social do Trabalhador ao Salário Justo”, publicado em Temas de Direito do Trabalho e Seguridade Social: homenagem ao Prof. Cássio Mesquita Barros, em que a autora afirma que (2013, p. 43) “se o salário for aquém do que deveria ser, haverá enriquecimento sem causa da empresa, já que poderá ter maior margem de lucros sobre o produto acabado”. 90 O Parecer proferido pelo MPF em 01 de outubro de 2015 se encontra disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4735779>. Acesso em: 02 nov. 2016. 109 Por outro lado, existem argumentos em favor da constitucionalidade de tal dispositivo. Se o salário mínimo é fixado para que sejam garantidas ao preso as suas “necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, em cárcere, o Estado estaria custeando a habitação, a alimentação, a educação, a saúde, o vestuário e a higiene do apenado, restando o salário para o custeio das suas demais despesas, bem como aquelas de sua família. Assim, em sendo o Estado o tomador do serviço, a fixação do salário abaixo do mínimo serviria como forma de ressarcir o Estado nos seus custos de manutenção da população carcerária. Neste sentido, o salário mínimo somente deveria ser garantido quando o trabalho for explorado por empresa privada, que apenas recebe os lucros decorrentes da exploração da mão de obra dos apenados. Não parece ser este o melhor entendimento. O trabalho encarcerado, como forma de ressocialização, não deve servir de método de exploração de mão de obra barata. As necessidades que devem ser cobertas pelo salário mínimo, ao menos na realidade brasileira, não são supridas pelo valor fixado nacionalmente. Com efeito, para o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos DIEESE, o salário mínimo necessário para cumprir as suas finalidades constitucionais deveria ser, em setembro de 2016, R$ 4.013,08, em detrimento dos R$ 880,00 previstos em lei91. Outrossim, a norma constitucional que garante aos trabalhadores (sem a exclusão daqueles que se encontram privados de sua liberdade) é, na classificação de José Afonso da Silva, de eficácia plena, não sendo cabível a restrição legal imposta pela LEP. É neste sentido a lição de Aldacy Rachid Coutinho, que também defende que a fixação de salário inferior ao mínimo viola a Lei Fundamental, uma vez que, estando presentes todos os elementos de uma relação de emprego, não há motivo para que se deixe de cumprir a norma do art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. Defende Coutinho (1999, p. 16): Se na prestação de trabalho pelo apenado estiverem presentes todos os elementos de uma relação de emprego, pela realização de um 91 Dados disponíveis em: <http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>. Acesso em: 06 nov. 2016. 110 trabalho subordinado com continuidade e pessoalidade, o pagamento deverá ser igual ou superior a um salário mínimo. A norma constitucional, em seu art. 7º, inciso IV, garante a percepção de um salário mínimo por todo trabalhador. Sendo norma de eficácia plena, implica automaticamente a não recepção da Lei de Execução Penal, que permite a realização de trabalho remunerado pelo apenado em valores inferiores ao mínimo legal, quando está caracterizada a relação de emprego. Portanto, não subsiste argumento social ou legal que justifique o pagamento de salário inferior ao mínimo, motivo pelo qual a norma prevista na LEP não deve ser considerada como recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Tendo em vista que a função do trabalho no cárcere é a reintegração do preso ao convívio social, a fixação de salário em patamar inferior ao mínimo frusta tal objetivo, uma vez que o apenado receberia menos do que os demais trabalhadores exclusivamente por estarem privados de sua liberdade. Ou seja, há, neste ponto, violação ao princípio da igualdade, estimulando a exploração do trabalho do preso em detrimento da função essencial do trabalho encarcerado, qual seja, a sua ressocialização. Ademais, com que fundamento deixa-se de prever remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, o pagamento de décimo terceiro salário, a participação nos lucros de sua atividade ou as férias remuneradas (igualmente sem prejuízo da remição)? Na perspectiva da constitucionalização do Direito, com o Direito Constitucional irradiando a sua força normativa para todo o ordenamento jurídico, não há fundamento teórico que justifique tal situação. A perda do direito à liberdade é inerente à condição de preso, mas de tal fato não se extrai, e nem se poderia extrair, a ideia de que o preso não possui os seus direitos trabalhistas constitucionalmente garantidos. Faz-se necessária, portanto, a adoção de um regime jurídico próprio para o preso trabalhador, seja através de estatuto próprio, seja através de técnicas de interpretação das normas vigentes conforma a Constituição e não recepção de outras normas. A primeira hipótese, qual seja, criação de legislação nova, deve ter como fundamento não a liberdade contratual, como ocorre com a CLT, mas sim na submissão legal do preso-trabalhador à lei e ao Estado, constituindo verdadeiro estatuto jurídico do preso trabalhador. Para que seja constitucionalmente adequado, 111 tal regime deve disciplinar não apenas os direitos constitucionalmente garantidos, mas também todos aqueles equivalentes previstos da CLT e que sejam compatíveis com o regime de trabalho estatutário e encarcerado. A segunda hipótese consiste na adoção das técnicas de interpretação constitucional, com a interpretação da legislação existente conforme a Constituição para que o texto já vigente passe a disciplinar, naquilo que for compatível, o trabalho encarcerado. Com isso, também seria necessária a declaração de que alguns dispositivos da LEP não foram recepcionados pela ordem constitucional inaugurada em 1988. 4.4.2.1 A criação de Estatuto Jurídico do preso trabalhador Conforme apontado, diante da necessidade de regime jurídico apto a dar concretude e regulamentar os direitos trabalhistas do preso trabalhador, uma das possíveis soluções é a criação de regulamentação legislativa própria a ser aplicada aos apenados, um verdadeiro Estatuto Jurídico do preso trabalhador. Com a criação deste estatuto, superar-se-ia a contradição aqui mencionada, qual seja, a ausência de liberdade para se firmar um contrato submetido ao regime celetista. Esta aparente incompatibilidade foi reconhecida, inclusive, no item 57 da exposição de motivos da LEP: 57. Procurando, também nesse passo, reduzir as diferenças entre a vida nas prisões e a vida em liberdade, os textos propostos aplicam ao trabalho, tanto interno como externo, a organização, métodos e precauções relativas à segurança e à higiene, embora não esteja submetida essa forma de atividade à Consolidação das Leis do Trabalho, dada a inexistência de condição fundamental, de que o preso foi despojado pela sentença condenatória: a liberdade para a formação do contrato. Assim, a relação entre o tomador do serviço e o apenado não seria contratual, mas legal. A partir do momento em que o preso recebesse a sua designação para trabalhar, passaria a ser regido pelo novo diploma. Deve-se salientar que esta relação estatutária estabelecida entre o preso e o Estado não transforma o encarcerado em servidor público, já que, na ordem constitucional de 1988, a investidura em cargo ou emprego público depende de 112 aprovação prévia em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão. Entretanto, à semelhança dos servidores públicos, os direitos e deveres do preso trabalhador estariam estabelecidos em lei, que regulamentaria os direitos trabalhistas, garantindo-se, assim, não apenas a efetividade dos direitos constitucionalmente assegurados, como também aqueles previstos na CLT para os trabalhadores em geral. A diferenciação consistente no reconhecimento de uma relação estatutária revelaria apenas, na opinião de Soler Arrebola, uma opção de política legislativa, assimilando-se direitos das relações de trabalho. Leciona Arrebola (2000, p. 135): En suma, se trataría de la aplicación de determinados preceptos de esta disciplina que por razones de política legislativa implican una cierta “asimilación a determinados efectos de la relación de trabajo”, pero sin poseer la misma naturaleza jurídica que la relaciones sometidas al ordenamiento laboral. Este suposto diploma deve disciplinar o gozo dos direitos trabalhistas previstos no art. 7º da Constituição Federal de 1988, adaptando-os nos casos em que a natureza do trabalho encarcerado provoque qualquer forma de incompatibilidade ou mesmo deixando de dispor acerca daqueles direitos que se revelam desnecessários ante a condição de preso do trabalhador. Foi esta a solução encontrada na Espanha. Neste país, o Regulamento Penitenciário de 1996 já previa alguns direitos do interno trabalhador, mas com pouca regulação material (ARREBOLA, 2000, p. 46). No entanto, com o Real Decreto 782/2001 92 , passou-se a regulamentar especificamente os direitos e deveres do preso trabalhador, inclusive disciplinando aspectos relativos ao salário e à seguridade social. Obviamente, a criação de um Estatuto Jurídico do preso trabalhador demandaria complexa atuação do Poder Legislativo, que dificilmente teria disposição política para legislar em tema comumente contrário à opinião pública, que prefere negar ao preso os seus direitos, independentemente das consequências que o abandono dos cárceres gera para a própria sociedade. 92 Disponível em: <http://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-2001-13171>. Acesso em: 15 jan. 2017. 113 4.4.2.2 Interpretação conforme da CLT e não recepção da LEP Diante da dificuldade apontada no subitem anterior, a solução que se apresenta com maior viabilidade é a utilização do regime trabalhista constitucional associado às regras celetistas que disciplinam tais direitos. Para isso, faz-se necessário o uso de técnicas de interpretação constitucionais dos preceitos legais, bem como a declaração de não recepção de alguns dispositivos da LEP. De início, deve-se declarar a não recepção do §2º do art. 28 da Lei de Execuções, uma vez que, conforme já explicitado nesta dissertação, a vedação da aplicação da CLT ao trabalhador encarcerado se revela inconstitucional, pois violadora do princípio da igualdade e da máxima efetividade dos preceitos constitucionais fundamentais. Igualmente, também não recepcionada pela ordem constitucional é a parte do caput do art. 29 da LEP que estabelece como salário mínimo do preso trabalhador 3/4 (três quartos) do salário nacionalmente estabelecido. A incompatibilidade aqui é flagrante, já que o art. 7º, inciso IV, da Constituição Cidadã estabelece que todos os trabalhadores, sem excepcionar os presos, tem direito a receber, ao menos, um salário mínimo, fixado em lei e nacionalmente unificado. Afastados tais dispositivos, deve-se adotar a técnica de interpretação conforme a Constituição para adequar os dispositivos da CLT à condição de trabalhador privado da liberdade, permanecendo, entretanto, regidos pelo diploma celetista. Em que pese a ausência da liberdade contratual, pressuposto do contrato de trabalho e, consequentemente, da aplicação do regime celetista, a disciplina dos direitos trabalhistas previstos constitucionalmente pode ser adotada para reger o trabalho encarcerado, já que, via de regra, o diploma celetista apenas explicita e regulamenta os direitos trabalhistas já previstos no texto constitucional, sendo tal regência compatível com o trabalho exercido no cárcere. Deve-se interpretar o conceito de empregador e de empregado previstos, respectivamente, nos artigos 2º e 3º da CLT para incluir como sujeito de proteção do diploma o preso trabalhador, aplicando-se os seus preceitos a esta categoria de 114 trabalho, por analogia, diante da ausência de previsão normativa e semelhança das situações fáticas. Ou seja, deve-se interpretar os dispositivos acima mencionados conforme a Constituição, alargando o sentido de suas normas para que não haja violação ao princípio da igualdade entre os trabalhadores em liberdade e os que momentaneamente se encontram privados de sua liberdade, bem como adaptando o texto celetista para as particularidades decorrentes da privação da liberdade do trabalhador. Neste sentido, alguns dos direitos trabalhistas, por serem incompatíveis com o trabalho exercido no cárcere, não seriam interpretados como aplicáveis aos presos. Ademais, diante da não configuração de relação de emprego strito sensu, cumpre destacar que eventuais desrespeitos aos direitos trabalhistas devem ser resolvidos perante a Justiça Comum, afastando-se a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar eventuais lides envolvendo o preso trabalhador e o Estado. Com isso, os presos trabalhadores passam a ser protegidos não apenas pelas normas constitucionais referentes ao trabalho, mas também pelo principal diploma legislativo que regulamenta tais direitos constitucionais, emprestando efetividade à Constituição Federal de 1988. 115 5 CONCLUSÃO A presente dissertação buscou analisar a situação jurídica do trabalho desenvolvido no cárcere. Para tanto, dividiu-se o estudo em três etapas. Inicialmente analisou-se o trabalho como um direito fundamental. Após, discutiu-se a efetivação do direito ao desenvolvimento ao indivíduos privados de sua liberdade, tendo como foco o labor. Por fim, defendeu-se a necessidade de se ampliar a regulamentação do trabalho exercido dentro das prisões. De início, analisando o direito fundamental ao trabalho, defendeu-se o trabalho como direito social concretizador da dignidade da pessoa humana, especialmente dentro do sistema capitalista de produção. Neste ponto, foi exposta a evolução do constitucionalismo, que, ao percorrer o lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), culminou na etapa atualmente defendida do constitucionalismo, qual seja, a etapa fraternal. Esta fase do constitucionalismo inclui os direitos de titularidade coletiva no rol dos direitos protegidos pelo ordenamento jurídico, buscando assegurar a igualdade material e jurídica entre todos os seres humanos. Para alcançar tais objetivos, a etapa fraternal do constitucionalismo cria um novo modelo de Estado, diferente do Estado liberal ou social, denominado Estado fraternal. Neste modelo de Estado, adotado pela Constituição Federal de 1988, busca-se assegurar a igualdade de oportunidades para os grupos sociais vulneráveis, incluindo-se neste conceito a população carcerária. Como o Estado Fraternal não exclui as conquistas das etapas anteriores, o trabalho se apresenta como direito social que, no caso específico dos encarcerados, requer uma prestação positiva por parte do Estado como forma de efetivá-lo. Em seguida, discutiu-se a conexão do direito ao desenvolvimento com o objeto de estudo do presente trabalho, explicando os conceitos relacionados àquele e sintetizando-o como o processo de expansão das liberdades dos indivíduos. Fundamentou-se o direito ao desenvolvimento na fraternidade e solidariedade, defendendo-se a igualdade material como forma de se alcançar a liberdade real. Tendo em vista a conexão inerente entre os conceitos, diferenciou-se desenvolvimento humano de crescimento econômico, sustentando que o crescimento econômico é apenas uma parte do desenvolvimento humano, que 116 abrange, também, variáveis sociais como a saúde pública, melhores índices de alfabetização e melhores condições de trabalho. Como forma de fundamentar o direito ao desenvolvimento na perspectiva normativa, foram expostas as normas internacionais que fazem referência, expressa ou implícita a tal direito. Ainda neste ponto, fez-se necessário demonstrar que o direito ao desenvolvimento encontra-se classificado na terceira geração (ou dimensão) dos direitos humanos, tendo em vista a sua conexão intrínseca com a fraternidade. Defendeu-se, também, a responsabilidade coletiva pela implementação do direito ao desenvolvimento, já que tanto a sociedade como o Estado possuem o dever fraternal de efetivar o desenvolvimento humano. Explicitou-se, aqui, a caracterização da população carcerária como sujeito vulnerável, o que os colocam como sujeitos ativos do direito ao desenvolvimento, merecendo tratamento prioritário por parte do Estado como forma de minorar as desigualdades sociais, implementar os direitos humanos de tais indivíduos, bem como cumprir o objetivo primordial da pena privativa de liberdade, qual seja, a ressocialização do indivíduo. Ademais, sustentou-se que o Estado, ao privar o indivíduo de sua liberdade, cria uma relação de sujeição especial com este indivíduo, o que acarreta na responsabilidade estatal de promover a ampliação das liberdades dos indivíduos encarcerados, respeitando-se, em especial, o direito ao trabalho como forma de reintegrar o preso à sociedade. Por fim, defendeu-se que, sem embargo do reconhecimento do trabalho como direito e dever do encarcerado, a ausência de suficiente disciplina normativa acerca do trabalho exercido pelos internos se revela constitucionalmente inadequada, uma vez que o conjunto de normas infraconstitucionais são insuficientes para proteger o preso trabalhador. Advogou-se que a LEP está em desconformidade com a Constituição de 1988 na medida em que, ao excluir o preso do sistema de proteção da CLT sem qualquer medida de compensação, acaba por tratar desigualmente pessoas em situações jurídicas semelhantes, já que, conforme amplamente ressaltado no curso desta dissertação, o único direito que o preso perde é a sua liberdade. Como forma de superar esta anomia, foram propostas duas possíveis soluções. A primeira demanda uma forte atuação do Poder Legislativo e consiste na 117 criação de um Estatuto jurídico do preso trabalhador, regulamentando-se a relação estatutária existente entre o preso e o Estado e disciplinando todos os direitos trabalhistas previstos tanto constitucionalmente, como também na CLT para os trabalhadores em liberdade. Outra hipótese pode ser efetivada pela via interpretativa, consistindo na interpretação da CLT conforme a Constituição, declarando-se a incompatibilidade da LEP em seus dispositivos restritivos dos direitos trabalhistas e aplicando-se, consequentemente, os direitos previstos na CLT ao labor exercido em cárcere. Assim, garante-se que o preso exercerá o seu trabalho protegido pelas normas trabalhistas previstas constitucionalmente, devidamente disciplinadas por um diploma legislativo, para que, com isso, cumpra a função ressocializadora da pena e efetive o seu direito ao desenvolvimento. 118 REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. 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