PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE Michel Foucault e a Historiografia Contemporânea: as apropriações, pelo campo da História, dos textos escritos por Michel Foucault entre 1966 e 1968 Willian Bastos Andrade - UNICENTRO Michel Foucault escreve, em 1966, o livro “As Palavras e as Coisas”. Neste livro, se propõe a estudar a história, ocidental, dos saberes ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e XX. Analisando manuais e enciclopédias do século XVI; textos científicos, empíricos, filosóficos e literários dos séculos XVII e XVIII; apropriando-se de textos de Descartes e Kant, Nietzsche e Mallarmé, Cervantes e Sade, Foucault se permite criar uma teoria da história que a separa em blocos sincrônicos, em três “épocas” diferentes. Em minha pesquisa, pretendo trabalhar com dois expedientes: o primeiro consiste em compreender o livro “As Palavras e as Coisas” em sua estrutura interna, em sua emergência epistemológica, como um texto de história que se configura enquanto prática filosófica; e já o segundo, consiste em analisar algumas das apropriações deste texto pelo campo de saber que compreende a historiografia contemporânea (dos anos 60 até o presente), e até que ponto o caráter filosófico desta obra é mantido por estas apropriações. Nesta pesquisa utilizo os conceitos de representação e apropriação, tais quais concebe o historiador Roger Chartier em seu livro “A Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude”. Neste sentido, o texto de “As Palavras e as Coisas”, juntamente com outros textos da época que lhe dão suporte teórico, é entendido como uma representação da situação epistemológica das discussões que se deram ao longo dos anos 60, envolvendo a historiografia francesa (em uma oposição à história das mentalidades), a filosofia moderna (em uma oposição a fenomenologia), a ciência (opondo-se à psicanálise), a linguística (aproximando-se de Canguilhem) e, destacadamente, a literatura moderna (com suas leituras de Raymond Roussel, Hölderlin e Antoine Artaud). Para compreender representação implícita em “As Palavras e as Coisas”, pretendo utilizar como ponto de partida o livro de José Ternes ANAIS - IX SEMANA ACADÊMICA DE FILOSOFIA UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 2 intitulado “Michel Foucault e a Idade do Homem” (por trazer uma discussão voltada inteiramente ao funcionamento interno de “As Palavras e as Coisas”) junto ao livro “Foucault: a Filosofia e a Literatura”, de Roberto Machado, que explicita um certo projeto filosófico que se funda a partir da leitura que Foucault faz da Literatura Moderna, encontrado nas entrelinhas da “História da Loucura”, de “O Nascimento da Clínica” e de “As Palavras e as Coisas”. Foucault cria um método particular, intitulado “arqueologia dos saberes”, que se propõe a estudar os “campos discursivos”, ou seja, estudar os textos em suas correlações, em suas possibilidades histórico-epistemológicas de emergência. Esse campo de discurso é justamente o que Foucault procura esclarecer na introdução de as Palavras e as Coisas: é o "espaço comum" 1 onde as coisas se encontram, se avizinham (por meio dos textos). Espaço sustentando por uma determinada "ordem, assumida como solo positivo" 2 a partir das quais se constroem "as teorias gerais da ordenação das coisas e as interpretações que esta requer"3 Ordem esta que só existe se supormos a existência de um "ser bruto da ordem",4 de uma "região mediana que libera a ordem no seu ser mesmo".5 Assim temos, por um lado, este "ser bruto da ordem" como elemento transcendental ahistórico e, por outro, a ordem liberada por ele como um elemento arqueológico (portanto fundamental a construção de saberes) historicamente situado. A positividade desse ser bruto da ordem é discutida em “Michel Foucault e a História Arqueológica”, tese de doutoramento escrita por Augusto Bach. Foucault encontra, nos três recortes, nas três estruturas sincrônicas que analisa (Renascimento, Idade Clássica e Modernidade) um "modo de ser da ordem" peculiar. A palavra utilizada para cada um destes modos será o conceito de episteme. 6 A arquitetura dos sistemas de pensamento de uma época são, para Foucault, apenas construção de saber fundada em uma determinada episteme, o objeto de estudo da 7 história arqueológica. Cada episteme define, segundo uma lógica própria a cada uma destas “épocas”, o jogo entre as palavras e as coisas, a forma com a qual a linguagem se manifesta em seu ser especifico, as condições de possibilidade de cada forma de saber. Roberto Machado chama a atenção para uma prática filosófica que parte da leitura dos epistemólogos franceses e que, em certo sentido, a supera. Foucault não privilegia a racionalidade científica, mas discute textos científicos e nãocientíficos, encontrando uma mesma condição de possibilidade para a construção de ambos. Se, por um lado, leu Bachelard, Cavaillès, Koyré e Canguilhem (os epistemólogos), por outro lado seu texto é carregado de apropriações da filosofia de Nietzsche (a morte de Deus e o consequente nascimento do homem, os conceitos utilizados para uma escrita da história, o “espaço filosófico-filológico” doravante aberto) e da linguagem literária de Bataille, Klossowski e Blanchot (que adotam um “estilo nietzschiano”, que apresentam uma “alternativa ao homem considerado como a priori histórico dos saberes da modernidade”).6 É justamente essa IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 3 apropriação de Nietzsche que faz com que Sartre, eitor de Hegel, se posicione contra a história escrita por Michel Foucault em “As Palavras e as Coisas”, tema discutido na tese de doutoramento de André Constantino Yazbek, intitulada “Itinerários Cruzados: os caminhos da contemporaneidade filosófica francesa nas obras de Jean-Paul Sartre e Michel Foucault”. Roberto Machado aponta que, desde “História da Loucura” e “O Nascimento da Clínica”, Foucault privilegia a linguagem em suas análises. No primeiro caso, trata-se de encontrar uma “experiência trágica da loucura”, prédiscursiva, encontradas na literatura moderna (de Nerval, Roussel, Holderlin, Artaud)) e que levam a linguagem aos seus limites, que enunciam o impossível, o não-dito, que libertam o “âmago da linguagem como espaço neutro, vazio, ausência de sentido”.7 No segundo caso, tratou-se de compreender o nascimento da medicina moderna, anátomo-clínica, como “estrutura onde se articulam o espaço [do corpo dos indivíduos], a linguagem e a morte”8 Em “As Palavras e as Coisas”, a linguagem também será privilegiada, já que as rupturas epistemológicas enunciadas não afetam apenas as formas de saber, mas afetam o próprio modo de existência da linguagem: o Renascimento “detinha-se diante do fato bruto de que havia linguagem” 9 uma linguagem escrita por Deus e depositada no mundo, a ser desvendada; a Idade Clássica haverá um apagamento da linguagem, no sentido de que ela passa a funcionar apenas como Discurso, como instrumento encarregado de representar as representações do mundo tecidas pela ciência, pelos empirismos e pela própria literatura (através da figura de Dom Quixote), a linguagem deixa de ser um “efeito exterior do pensamento” para se tornar “o próprio pensamento”,9 que funciona a partir de um sistema de identidades e diferenças; e enfim, na modernidade, a linguagem é elidida ao ser antropologizada e historicizada, tratando-se agora de saber sobre a utilização dos signos verbais pelo homem no tempo (Filologia), sobre as formas universalmente válidas do Discurso (Filosofia), sobre o sentido oculto nos textos (História) e sobre uma linguagem autônoma, levada a seus limites, e que indica uma certa alternativa à episteme moderna através da literatura. Ao lado desta escrita da história, que privilegia os “modos de ser” da linguagem, e que configura-se em uma prática filosófica ao por em questão os limites de sua própria contemporaneidade (a literatura como alternativa aos saberes “do homem”, às “ciências humanas”), está um método de tratamento dos documentos que causou repulsa e interesse a muitos historiadores. Assim como Carlo Ginzburg criticou Foucault, outros historiadores discutem uma possível apropriação do método utilizado, como acontece na chamada “Nova História Cultural”, com Patricia O'Brien e Roger Chartier, ou mesmo nas apropriações feitas no Brasil, como por exemplo a de Durval Muniz de Albuquerque. O principal objetivo da minha pesquisa é justamente o de compreender quais os critérios que os historiadores utilizaram para se apropriar de um texto que, IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 4 apesar de ser escrito por alguém que não tenha a formação em História, ainda assim tece uma escrita da História. Entender quais são os limites desta apropriação, perceber até que ponto o caráter filosófico deste texto é preservado em sua apropriação por leitores que admitem atuar no campo específico da História. Tratase de uma tentativa de compreender, através dos textos, possibilidades de interdisciplinariedade entre os campos da História e da Filosofia. IX SEMANA ACADÊMICA DE 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 5 Notas FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Prefácio. p XI. Ibidem. XVII. Loc Cit. Loc Cit. Loc Cit. MACHADO, Roberto. Foucault, a Filosofia e a Literatura. p 9-11. Ibidem. p 48. Ibidem. p 56. IX SEMANA ACADÊMICA DE FOUCAULT, Michel. Idem. p 108. Ibidem. p 108-109. 16 A 19 DE NOVEMBRO DE 2010 ANAIS - PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA CONTEMPORANEIDADE UNICENTRO 2010 - ISSN 2178-9991 6 Referências BACH, Augusto. Michel Foucault e a História Arqueológica. UFSCar. São Carlos, 2006. CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Editora UFRGS. Porto Alegre, 2002. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. Martins Fontes. São Paulo, 2002. FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes. 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