doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.04002 AS VIRTUDES DO PRÍNCIPE NA CONCEPÇÃO PLINIANA COSTA, Alex Aparecido da (UEM-GTSEAM) VENTURINI, Renata Lopes Biazotto (DHI/UEM-GTSEAM) Introdução O Alto Império, durante os dois primeiros séculos, foi um período de estabilidade e prosperidade resultante do processo de conquista empreendido durante a época Republicana. Porém, as instituições romanas guardavam tensões e ambigüidades decorrentes do novo modelo de governo estabelecido. O Principado, sistema que concentrava o poder nas mãos do princeps, o primeiro cidadão, viera substituir a República, fórmula na qual o Senado detinha a administração por meio das magistraturas. Entretanto, o Principado não deslocou completamente de suas posições a aristocracia senatorial que controlara a antiga República. Essa permanência demandava uma busca de equilíbrio constante onde as tradições da ordem senatorial buscavam se perpetuar diante do poder imperial. Levando em conta tal contexto interessa-nos compreender a figura do príncipe ideal tal qual fora esboçada e desejada pela ordem senatorial. Para tanto nos utilizaremos da análise do Panegírico de Trajano, obra de Caio Plínio Cecílio Segundo, conhecido como Plínio, o Jovem. Senador de origem eqüestre que, no ano 100 d. C., data de sua ascensão ao consulado, pronunciou o dito Panegírico diante do Senado em agradecimento ao então imperador Trajano. Esta proposta dará seguimento a uma investigação anterior que nos permitiu agrupar como virtudes pensadas pelos romanos como inerentes ao príncipe ideal uma postura de divindade, não no sentido literal, mas sim como representação terrena de ordenação e clemência de respeito às leis e a vida, uma postura que atendesse as demandas da vida civil e religiosa do império. Outra virtude clara é o desapego ao poder ao mesmo tempo em que ele é exercido com retidão e temperança sem abuso dos poderes detidos pelo príncipe. Ressaltamos que as principais virtudes louvadas na obra de Plínio pareceram surgir em grande parte daquelas que interessavam diretamente à ordem senatorial, tais como o respeito às tradições e leis da República, o que significava de forma pragmática a promoção dos interesses e o respeito à própria vida dos senadores por parte daquele que antes de tudo era um dentre eles apesar de ser o melhor deles, o princeps. Característica marcante dessa primeira etapa foi o uso de termos generalizantes como tradições e virtudes, utilizados para reunir os dados extraídos da análise relativa à mentalidade romana acerca da figura do governante no contexto do Principado ainda eivado pelas idéias da República. Doravante pretendemos superar essa abordagem um tanto superficial e aprofundar nossa análise aproximando-nos cada vez mais da mentalidade romana guiando nossa pesquisa a partir de duas idéias morais e políticas, a virtus e o mos maiorum. Para tanto interessa abordar a presença dessas noções no Panegírico de Trajano a partir da leitura de uma filosofia que imprimiu seu selo na mentalidade romana atraindo para si elementos de vários estratos sociais tais como o senador Sêneca, o imperador Marco Aurélio e até mesmo o escravo Epicteto. Filosofia e virtudes romanas Presente na mentalidade romana desde os tempos da República o estoicismo se infiltrou na cultura e no pensamento dos romanos. Assim como muitas outras influências helênicas absorvidas por Roma a filosofia estóica também teve origem grega. Tal corrente filosófica Aconselha o homem a viver de acordo com a natureza obedecendo à ordem dos acontecimentos que exprimem a vontade de Deus e, desse modo, o estoicismo desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo ético (BRUN, 1986, p. 32). Colhida de Zenão esta definição importa por ser retirada do fundador da escola estóica, mas tal filosofia ainda viajará no espaço, no tempo e na mentalidade de seus propagadores antes que a encontremos atuando na formulação da figura do príncipe ideal durante o período do Alto Império. Sintetizando o texto de Brun (1986), voltemos um rápido olhar para essa jornada. No século III a. C. Atenas ainda guarda seu brilho intelectual característico, mas está abalada pela perda de sua primazia política ocasionada pela conquista de Alexandre, o Grande cujo império, após sua morte, é disputado por seus generais. O período helenístico não é apenas um tempo de difusão cultural, é também uma época de conturbação política e mental. Nesse cenário surgiu o estoicismo como opção filosófica para ordenar a vida dos homens e reconciliá-los com a natureza. O estoicismo antigo restringiu-se à Grécia da terceira centúria antes de nossa era, teve como fundador Zenão de Cício que chega à Atenas em 314 a. C. vindo do Chipre, ao lado do fundador despontam nesse período os nomes de Cleanto e Crisipo. Com o estoicismo médio do século II a. C. a escola estende-se a Roma por intermédio de Panécio que a adapta ao gosto latino. Nessa época Roma impunha-se por todo o lado graças às suas legiões e aos seus juristas que faziam reinar a Pax Romana; as consciências que tinham necessidade de uma moral pessoal, encontraram no humanismo universalista dos estóicos uma doutrina capaz de responder às suas aspirações. [...] Com ele [Panécio] o estoicismo inflectiu para um humanismo da razão, óptimo para seduzir os romanos, homens de acção; a doutrina estóica perde seu rigor e Panécio faz prova de um ecletismo que o leva a utilizar ao mesmo tempo obras de discípulos de Aristóteles e da Nova Academia (BRUN, 1986, p. 21). Após esse sucesso de adaptação à realidade romana chegamos ao estoicismo da época imperial que se deterá, com os já citados Sêneca, Marco Aurélio e Epicteto, apenas nos seus aspectos relativos à moral que “ensinar-nos-á como se devem praticar nossos actos” (BRUN, 1986, p. 75). Esta última etapa da escola estóica tem lugar a partir do início de segundo século da era cristã, vindo no bojo de um clima favorável ao desenvolvimento filosófico proporcionado pelos Antoninos após as perseguições dos Julio-Claudios e dos Flávios que sucederam o século de ouro de Augusto (ENGEL, 1978). Novas tendências, algumas vezes contraditórias, se desenham no estoicismo imperial em ligação com a evolução da noção de Estado e das estruturas sociais, que coloca em questão a atitude do indivíduo. Para os estóicos o dever se liga à aceitação do destino, à liberdade e à resignação. Neste caso, o acento é colocado no aspecto humanista desta tendência filosófica. A influência do meio estóico nos meios dirigentes desde o último século da República fez considerar os filósofos como defensores da liberdade diante da escalada do poder pessoal. Todavia, a oposição dos filósofos aos imperadores teve um caráter mais moral do que político, e a resignação os conduzia mais à abstenção do que à resistência política. As idéias morais estóicas penetraram em espaços variados: entre as classes populares, intelectuais e aristocráticas, sobretudo no Senado, que era a imagem concreta, o lugar de afirmação para a ordem social que seus membros representavam com suas famílias. Os senadores eram grandes proprietários formando o estrato social privilegiado devido ao nascimento, a formação intelectual e a riqueza fundiária. Em sinergia com o estoicismo na mentalidade romana atuavam as noções de virtus e mos maiorum. A primeira é tratada por Pereira (1987), como um valor fundamentalmente romano, remete-nos ao homem direito que elenca em ordem de importância a res publica, a família, posicionando em último lugar a si mesmo. Nesse sentido a virtus exprime-se no modo de atuação a serviço do Estado. A segunda, ainda de acordo com a mesma autora, refere-se à observância dos costumes dos antepassados como base da grandeza do Estado romano. Na época imperial o apelo ao mos maiorum estará representado em tendências republicanas dos senadores, que diante da impossibilidade da restauração da República reclamarão ao menos os seus valores. Personagens em ação Como homem político Plínio, o Jovem exaltou a virtus encontrando respaldo no mos maiorum, e na moderação estóica. Dirigente de um círculo cultural e político e amigo íntimo de Trajano, ilustrou a ótica do imperador, sobretudo a ideologia de um grupo senatorial de conciliação permanente entre a cúria e o príncipe, buscando legitimar a política do César e orientar os interesses senatoriais. Trajano, primeiro provincial a alcançar o Principado garantiu o apoio do Senado assegurando que perseguições e penas capitais não atingiriam os membros da cúria. Mantendo o poder absoluto envolto no manto das instituições republicanas governou cultivando relações amenas com a elite romana. Fazendo convergir para si o apoio da aristocracia consolidou sua posição de primeiro cidadão diante do grupo dirigente de Roma. O Panegírico de Trajano assinala na história do Alto Império as relações entre a cúria e o principado. Discurso de agradecimento ao imperador pela nomeação ao consulado, coloca Plínio diante de Trajano: o senador que após desempenhar várias funções administrativas é recompensado com a mais alta magistratura romana e o príncipe que reconhece o apoio recebido pela ordem senatorial e eleva um de seus elementos ao mais distinto cargo da extinta República. O texto que temos em mãos, talvez três a quatro vezes mais extenso do que aquele proferido no primeiro dia de setembro de 100 d.C., tratase de uma revisão aumentada pelo autor para a publicação em 101 d. C. O Panegírico oferece-nos o conhecimento dos primeiros anos do governo de Trajano e muitos detalhes das instituições que o cercava (DURRY, 1972). Além disso, nossa pesquisa anterior nos permite dizer que o discurso de Plínio foi além do mero agradecimento, passou também pelo elogio sincero ao príncipe alcançando momentos de aconselhamento ao imperador. Ensaio de análise Considerando que este artigo ficaria deveras incompleto senão apontássemos ao menos algo relativo à análise achamos interessante oferecer os primeiros resultados de uma leitura inicial da fonte. O mos maiorum aparece no louvor à carreira militar de Trajano: Tu não te contentaste com uma rápida olhada para o campo nem com um breve passeio pelo serviço militar; desempenhastes o ofício de tribuno de maneira que após fosses rapidamente general e não necessitasse aprender no momento em que deveria ensinar (p. 109).1 O prévio desempenho das funções guerreiras é apontado por Finley (1997), com tradicional requisito para a carreira política. Além disso, lembramos que a antiga figura do camponês-soldado-cidadão é a mais evocada como ideal de homem romano. O estoicismo aparece na abstenção militarista do imperador: “tua moderação merece ainda mais ser louvada, pois, formado na glória guerreira, amas a paz”2 (p. 110). A virtus por sua vez pode ser inferida na observância dos preceitos que evocam a res publica: “Somos governados por ti e somos a ti submissos, mas como o somos às leis”3 (p. 116). Após esse início de análise acreditamos que um debruçar mais atento e profundo nos permitirá mais do que simplesmente apontar na fonte a presença de nossos objetos de estudo. Mais do que isso procuraremos entender no Panegírico de Trajano, inserindo-o 1 Nossa tradução do texto em francês de Marcel Durry. 2 Ver nota 1. 3 Ver nota 1. dentro do contexto do Alto Império, a presença da virtus, construída dentro do modelo de príncipe ideal, cuja noção é respaldada mos maiorum e traduzida pelo estoicismo. REFERÊNCIAS SECUNDUS, Caius Plinius Caecilius. Panégyrique de Trajan. Tradução e comentários de Marcel Durry. Paris: Les Belles Lettres, 1972. ALFÖLDY, Géza. A história social de Roma. Madrid: Alianza Editorial, 1987. BRUN, Jean. O Estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986. ENGEL, Jean-Marie & PALENQUE, Jean-Remy. O império romano. São Paulo: Atlas, 1978. FINLEY, Moses. Política no mundo antigo. Lisboa: Edições 70, 1997. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica: cultura romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.