O papel de Kant na intertextualidade de Paul Ricoeur: dois exemplos

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O papel de Kant na intertextualidade de Paul Ricoeur: dois exemplos1
Fernanda Henriques
Universidade de Évora
“(...) mais penser, au sens le plus large, c’est l’acte fondamental de
l’existence humaine et cet acte est la rupture d’une harmonie
aveugle, la fin d’un rêve.”
Paul RICOEUR2
Foi Kant que me conduziu a Paul Ricoeur.
A minha relação com Paul Ricoeur e com o seu pensamento deveu-se,
inicialmente, ao facto de encontrar nos seus escritos a ressonância daquilo que me tinha
sempre atraído em Kant3: a configuração clara dos limites do saber e, simultaneamente,
a afirmação da incomensurabilidade do pensar. Nesse contexto, o meu primeiro trabalho
sobre Ricoeur ocupou-se com a análise da presença de Kant na definição do projecto
filosófico daquele autor, apresentado em 1950, na obra Le volontaire et l’involontaire4.
Esse interesse de partida fez com que uma das minhas linhas de investigação dos
textos ricoeurianos tenha sido conduzida pelo interesse de compreender a posição
funcional dos diferentes autores e perspectivas teóricas que eles convocam no seu
entretecer intertextual. Tal investigação leva-me a afirmar que há, na obra de Ricoeur,
dois tipos de presenças: as fundadoras, responsáveis por contornos decisivos da sua
filosofia, e as meramente estratégicas que representam apenas recursos de circunstância,
permanecendo exteriores ao seu modo de pensar próprio. Dentro desta leitura, defendo
que constituem presenças fundadoras na obra de Paul Ricoeur, por um lado, Husserl e
Kant, em termos das configurações gerais do seu pensar – nomeadamente, o primeiro na
1
Enquanto finalizava este texto Paul Ricoeur faleceu. Quero deixar aqui um testemunho de homenagem à
sua memória, pelo valor do seu trabalho filosófico e do seu compromisso de cidadão. Texto publicado nas
Actas do Colóquio Internacional em Homenagem a Kant: U de Lisboa/U de Évora..
2
Le volontaire et l’involontaire, Paris Aubier-Montaigne, 1950, p. 417.
3
Esta profunda ligação ao pensamento kantiano é sempre vivida por mim a par e em conflito com o
desgosto de que ele não tenha sido capaz de encarar o problema da natureza humana em termos de
igualdade ontológica e tenha considerado que o sexo ou a cor da pele eram constituintes diferenciadores
negativos.
4
Esta análise correspondeu à tese de mestrado que defendi no início de 1989, na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa.
1
marca fenomenológica da sua hermenêutica e o segundo na definição dos limites
insuperáveis da racionalidade5 -, por outro, Santo Agostinho, no que respeita à magna
questão do tempo e Aristóteles, na complexa teorização em torno da inovação
semântica, quer no plano da metáfora, quer no da narrativa.
Kant, para além desta dimensão instauradora ou fundadora do pensar
ricoeuriano, enquanto este se define como uma filosofia dos limites do saber, tem,
ainda, muitas ocorrências determinantes na obra de Paul Ricoeur.
Este estudo vai ocupar-se com duas dessas ocorrências que reputo como
exemplos paradigmáticas da presença de Kant em Ricoeur – os casos da inovação
semântica e do mal –, e procurará mostrar o papel central de Kant na urdidura desses
temas.
Nessa perspectiva, o estudo organiza-se em duas partes, dizendo respeito, cada
uma delas, a um dos exemplos temáticos escolhidos.
I
A Inovação semântica e o Esquematismo kantiano
“La Métaphore vive e Temps et récit são duas obras gémeas: surgidas
uma a seguir à outra, elas foram concebidas em conjunto. Se bem que a
metáfora releve tradicionalmente da teoria dos “tropos” (ou figuras do
discurso) e a narrativa da teoria dos “géneros” literários, os efeitos de sentido
produzidos por uma e por outra relevam do mesmo fenómeno central da
inovação semântica. Nos dois casos, esta só se produz ao nível do discurso,
isto é, dos actos de linguagem de dimensão igual ou superior à frase.”6
É com estas palavras que Paul Ricoeur inicia a sua trilogia Temps et récit,
querendo com elas certamente indicar que, a despeito da aparente divergência temática
entre esta obra e La Métaphore vive, elas deverão ser lidas como trabalhos sobre uma
mesma questão e, deste modo, interpretadas em conjunto. Entendo esta intromissão
directa do autor como uma advertência séria em termos de chave de leitura das obras em
referência. Na verdade, sendo qualquer delas um minucioso trabalho de argumentação,
onde avultam o profundo saber científico de Paul Ricoeur, nas mais diversas áreas, bem
5
Dentro desta linha de leitura, quero destacar, ainda, como posições de alguma maneira fundadoras, o
estruturalismo e a psicanálise, quanto à definição do Conflito de Interpretações.
6
Paul RICOEUR, Temps et Récit, I, Paris, Seuil, 1983, p. 11
2
como a sua imensa cultura filosófica, corre-se facilmente o risco de perder de vista que,
enquanto obras, elas gravitam em torno de uma única questão – a da inovação
semântica – que procuram introduzir na ribalta da cena filosófica. Com esta orientação,
é-se, obrigatoriamente, conduzido a procurar, debaixo da profusão temática de ambas as
obras, o nó górdio que sustenta a sua intencionalidade intrínseca.
Por outro lado, o citado início fornece ainda um outro princípio hermenêutico,
ao dizer que a inovação semântica se produz ao nível do discurso, ou seja, indicando
que está em jogo uma determinada concepção de linguagem dentro da qual cobra
sentido a questão da inovação semântica. De facto, a inovação semântica, como
filosofema, está directamente relacionada com uma perspectiva específica da
linguagem, nomeadamente quanto ao poder referencial e às possibilidades ontológicas
da sua criatividade.
Como é natural, a caracterização da inovação semântica aparece, na primeira das
obras acima referidas, La Métaphore vive, exactamente no final do terceiro estudo,
como uma significação emergente, uma “criação momentânea de sentido”, surgindo
essa caracterização no decurso do processo da “definição real” de metáfora, ou seja, no
processo de configuração da forma como ela é engendrada, e no contexto da
explicitação da teoria ricoeuriana de linguagem. Esta relação triádica – concepção da
linguagem, inovação semântica, metáfora – é fundamental para a compreensão da
inovação semântica como filosofema e, nessa compreensão, para dar conta do papel
desempenhado por Kant na tessitura da intertextualidade da sua emergência.
A inovação semântica e a concepção ricoeuriana de linguagem
Retomando, uma vez mais, as palavras iniciais de Temps et récit, a inovação
semântica é o fenómeno central da linguagem, “ao nível do discurso, isto é, dos actos de
linguagem de dimensão igual ou superior à frase”. Quer isto dizer que tal fenómeno se
enquadra naquilo que Ricoeur designa como uma abordagem bidimensional da
linguagem, aquela que a interpreta a partir de duas unidades de sentido irredutíveis: o
signo e a frase7. Tal perspectiva, que marca a cisão entre a concepção ricoeuriana de
linguagem e a do estruturalismo restrito, baseia-se na distinção estabelecida por Émile
Benveniste entre semiótica e semântica e é um dos temas centrais na compreensão da
apropriação teórica da metáfora que é realizada por Paul Ricoeur ao longo de La
7
A posição de Ricoeur sobre a linguagem está dispersa em vários textos. Aquele que reúne a informação
de modo mais sistemático é: Interpretation Theory, Texas, The Texas Christian University Press, 1976.
3
Métaphore vive. Citando Benveniste, Ricoeur explicita ”Com o signo, atinge-se a
realidade intrínseca da língua; com a frase, está-se ligado às coisas fora da língua”8. Por
outras palavras, a semiótica olha a linguagem como um sistema de signos, como um
mundo fechado e encerrado na questão do sentido; é pela dimensão semântica que a
linguagem rompe o seu auto-encarceramento e se abre a um duplo fora de si: ao sujeito
enunciador e ao mundo enunciado, através da função referencial. Tomar em
consideração a linguagem como discurso, nos quadros atrás referidos, significa, então,
assumi-la na sua função de transporte, integrando um querer dizer que faz dela não um
mundo próprio, mas uma mediação. Citando as próprias palavras de Ricoeur:
”Mas, a dialéctica entre sentido e referência é tão original que pode ser
tratada como uma linha de análise independente. Apenas esta dialéctica diz
alguma coisa sobre as relações entre a linguagem e a condição ontológica
de se ser no mundo. A linguagem, por si mesma, não é um mundo próprio.
Nem sequer é um mundo. Mas, é porque estamos no mundo, porque somos
afectados por situações e porque nos orientamos compreensivamente
nessas situações que temos alguma coisa para dizer e temos uma
experiência para trazer à linguagem.”9
O carácter de filosofema da inovação semântica radica nesta dimensão
semântica da linguagem, mais precisamente, na questão da sua referencialidade, ou seja,
na afirmação do seu alcance extra–linguístico. Esta questão corresponde a uma
apropriação directa da tematização de Frege sobre esse tema10 e a uma generalização
dessa tematização.
Frege distingue, num enunciado descritivo, o que nele é dito, ou seja, o seu
sentido (Sinn), e aquilo sobre que ele se pronuncia, isto é, a sua denotação ou referência
(Bedeutung). Esta distinção entre o sentido de uma proposição e sua referência
prende-se com o desejo de verdade que, para Frege, alimenta quer o pensamento quer a
palavra. Paul Ricoeur parte desta posição de Frege e quer alargar a sua legitimidade a
todo o tipo de enunciação. Por isso, para Ricoeur, o postulado da referência deve ter a
mesma latitude da linguagem, dizendo respeito a todos os seus usos e não apenas aos
enunciados descritivos, uma vez que, no seu entender, é esse postulado que marca a
8
Paul RICOEUR, La Métaphore vive, Paris, Seuil, 1975, p. 98.
Paul RICOEUR, Interpretation Theory, op. cit., pp. 20-21.
10
A raiz da abordagem da questão da referência encontra-a Ricoeur em Frege, no seu ensaio Sinn und
Bedeutung, in G. FREGE, Funktion, Begriff, Bedeutung. Fünf logische Studeien, Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, pp. 40-80. texto que retomará reiteradamente sempre que evocar tal
questão.
9
4
transcendência da linguagem em relação a si própria e a revela como uma estrutura que
transporta um querer-dizer. Deste modo, embora o funcionamento da linguagem assente
na convicção do afastamento entre o signo e a coisa, esse afastamento está
constitutivamente articulado com a obrigação da mesma linguagem de obedecer ao que
pede para ser dito na experiência de se ser no mundo. Nesse horizonte, todo o discurso
tem como intencionalidade o desejo de superar o afastamento próprio do signo, para se
poder referir à experiência que o alimenta e anima, representando o trabalho de
elaboração e transformação da experiência vivida em logos expressivo e
comunicacional. O caso dos textos poéticos representa apenas uma diferença de grau
em relação ao que se poderia designar por linguagem ordinária. É desta diferença que a
inovação semântica faz a tematização.
A inovação semântica e a metáfora como impertinência predicativa
Num texto onde evoca o tema da inovação semântica, no quadro do mesmo
paralelismo acima citado entre La Métaphore vive e Temps et récit, Ricoeur faz uma
aproximação interessante entre a inovação semântica e a Dichtung:
“Eu forjo, então, o conceito englobante de inovação semântica para incluir
sob um género único o texto da poesia lírica e o texto da literatura
narrativa.
A partir de agora, é o mythos da tragédia e da epopeia […] que serve de
guia na exploração desse vasto império da linguagem figurativa que a
língua alemã designa com o título emblemático de Dichtung.”11
Estabelecer a equivalência entre o tema da inovação semântica e aquilo que a
língua alemã designa como Dichtung, significa quer inscrever o poético no seu
significado mais originário, como a criação radical de sentido, vendo-o, assim, como a
expressão fundadora da realidade pela mediação da linguagem. Dito de outro modo, a
aproximação entre a inovação semântica e a Dichtung remete para a consideração da
linguagem poética como fonte de expressão privilegiada da realidade12. Compreender
11
Paul RICOEUR, Prefácio do livro de Marcelino AGÍS VILLAVERDE, Del símbolo à la métafora.
Introducción a la filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur, Santiago de Compostela, Universidade de
Santiago de Compostela , 1995, p.14
12
No fundo, a ideia base é a seguinte: se toda a linguagem corresponde um trabalho de elaboração e
transformação da experiência vivida em logos, a linguagem poética corresponde a um trabalho de
segunda ordem sobre esse trabalho de base e tem como objectivo pôr de manifesto zonas da experiência
inacessíveis a uma abordagem mais directa. Esta perspectiva liga-se com a concepção do literário de
Ricoeur, que caracteriza com dois traços - uma liberdade no uso da linguagem ligada à interacção
5
isto, significa integrar a inovação semântica na questão da metáfora como
impertinência predicativa, perspectiva que corresponde à síntese pessoal que Paul
Ricoeur elabora, através da extensa e minuciosa revisão de literatura sobre a questão da
metáfora, produzida ao longo da história do pensamento ocidental, que leva a cabo em
La Métaphore vive.
Retomando a ideia apresentada na introdução deste estudo acerca das
características da intertextualidade ricoeuriana, diria que Aristóteles é a figura tutelar de
La Métaphore vive, aquela que dá a estrutura fundamental para os diálogos que se vão
estabelecendo com as diferentes posições sobre a metáfora, ao longo da obra, sendo
Kant a figura mediadora para a concretização da posição pessoal de Paul Ricoeur. Por
essa razão, o primeiro estudo desta obra é absolutamente determinante para todo o seu
desenrolar. Partindo da definição de Aristóteles na Poética13, onde a metáfora é
caracterizada como transporte – transporte de uma palavra para uma nova relação, quer
esse transporte se dê do género para a espécie e vice-versa, quer seja um transporte
baseado na analogia, da espécie para a espécie –, Ricoeur converte-a em texto fundador
do tema da metáfora, por um lado, pelo que nesta definição há de significativo em
relação a tal tema, e, por outro, pelo papel que ela desempenha na história do seu
desenvolvimento.
A posição pessoal de Paul Ricoeur vai ser constituída com base em dois
núcleos temáticos essenciais assentes na sua leitura de Aristóteles:
1. a ideia de que há uma relação constitutiva entre metáfora e frase14,
2. a articulação entre o processo de metaforização e o discernimento
racional de perceber as semelhanças, ou seja, a inscrição da metáfora no
pensamento verdadeiro15.
razão-imaginação, de ressonância kantiana, e uma ambiguidade semântica de cariz produtivo e fecundo,
resultante do modo como protagoniza a referência.
13
Cf., 1457b 6-9
14
É por esse motivo que há uma quase obsessão em legitimar que, embora explicitamente a definição
aristotélica apresente a estrutura da metáfora como uma “epífora do nome” e, portanto, a associe à
palavra, a totalidade da definição só se torna inteligível se se tomar em consideração o conjunto da frase
onde ela ganha corpo. Ricoeur usa vários argumentos para legitimar esta sua leitura, dos quais considero
mais relevante o tema da transgressão categorial por me parecer o mais radical e também pela
importância que assume na constituição da posição pessoal de Ricoeur, sendo Poética 1457b6-20 o texto
de referência. Ricoeur destaca que, conquanto o desvio semântico decorrente do processo metafórico se
refira às palavras e pareça confinar-se ao campo lexical, de facto, é a classificação categorial que fica
ameaçada por ele.
15
Também a este nível o essencial fica estabelecido a partir de Aristóteles. Partindo de Poética, 1459 a 48, Ricoeur apropria-se da comparação aristotélica de que “bem metaforizar” é “bem perceber as
semelhanças” para relevar que na base do processo de construção e de leitura das metáforas está um
procedimento racional de amplitude ontológica, decorrente da captação do semelhante.
6
Dentro deste quadro, o sexto estudo de La Métaphore vive ganha uma
relevância fundamental para a compreensão da posição ricoeuriana, na medida em que
nele é estabelecida a matéria determinante sobre estes dois núcleos temáticos.
Paul Ricoeur vai trabalhar a sua posição própria pelo desenvolvimento das
implicações teóricas implicadas na expressão impertinência semântica, de Jean
Cohen16. Nessa medida, compreender a sua posição quanto à construção e à leitura das
metáforas implica perceber que estão em jogo nesses processos dois aspectos
inter-relacionados: uma questão de natureza semântica e outra de ordem lógica.
Exemplificando, o enunciado “é uma morta viva” é, em si mesmo, auto-contraditório,
ou seja, é auto-destrutivo por convocar uma significação cujo valor lógico é o absurdo.
Esta situação só é ultrapassada se o absurdo lógico funcionar como desafio, obrigando à
sua dissolução. Todavia, tal dissolução só é conseguida através da suspensão dos
campos semânticos correntes dos dois vocábulos convocados na enunciação e da
configuração de novos campos de significação. Por outras palavras, é necessário que a
impertinência semântica contida no enunciado “é uma morta viva” seja,
simultaneamente, reconhecido como tal e superado. Nas palavras de Ricoeur,
parafraseando Beardsley, “ […] a metáfora é o que faz de um enunciado
auto-contraditório que se destrói a si mesmo, um enunciado auto-contraditório
significativo”17. A metáfora é, por isso, um enunciado de carácter mediato e ela própria
uma mediação. É o carácter mediato das metáforas que permite que elas sejam
parafraseadas – e, sempre que se trata de metáforas vivas, infinitamente parafraseadas –,
sendo esse processo de paráfrase o resultado da necessidade de dissolver ou superar o
absurdo lógico que o enunciado metafórico transporta consigo. Desta maneira, a
impertinência semântica ou o absurdo lógico é o cerne e o motor do processo metafórico
e da articulação entre a metáfora e a inovação semântica como significação emergente.
De facto, enquanto descrição do processo metafórico, ela obriga a que se proceda a uma
espécie de descategorização do nosso modo habitual de organizar a realidade e a uma
nova recategorização do mesmo18, convertendo, assim, a relação com o enunciado
metafórico numa estrutura orgânica pautada por três tempos de significação:
perplexidade,
suspensão,
reestruturação.
A
inovação semântica
ou
“criação
momentânea de sentido” é o resultado da realização desse movimento trifásico da
16
Cf., Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 246.
Ibidem.
18
Neste contexto, Paul Ricoeur aproxima a metáfora do category mistake de Gilbert Ryle. Cf., La
Métaphore vive, op. cit., p. 250.
17
7
significação, no fim do qual, se produz uma maior amplitude no seio do nosso olhar
sobre a realidade. Paul Ricoeur usará a expressão re-descrição, que retoma de Mary
Hesse19, para referir este alargamento do nosso olhar e a possibilidade de pensarmos a
realidade para além de uma relação compreensiva primária ou primeira:
“Sustentei que a suspensão da função referencial directa e descritiva é
apenas o inverso, ou a condição negativa, de uma função referencial mais
dissimulada do discurso, que é, de alguma maneira, libertada pela suspensão
do valor descritivo dos enunciados. É desta forma que o discurso poético traz
à linguagem aspectos, qualidades, valores da realidade, que não têm acesso à
linguagem directamente descritiva e que não podem ser ditos a não ser
através do jogo complexo entre a enunciação metafórica e a transgressão
regulada das significações usuais das nossas palavras.”20
Neste sentido, a teoria da referência da linguagem poética de Ricoeur é
organizada a partir do questionamento do que designa por uma perspectiva
epistemológica positivista que decorre da divisão dicotómica entre linguagem descritiva
e linguagem emocional e da consequente defesa de que só a linguagem descritiva é
portadora de informação. Esta perspectiva relaciona-se directamente com o postular um
conceito de verdade correlativo de verificação e com um conceito de realidade de
natureza meramente empírica. Ao contrário deste positivismo epistemológico, Ricoeur
propõe a exploração da ideia de que à metaforização do sentido, posta em acção pelo
enunciado metafórico, corresponda uma metaforização da referência, no quadro de uma
teoria da denotação generalizada, sugerindo, como hipótese, que a metáfora, ao destruir
o sentido literal, por uma predicação impertinente, suscitaria a abolição da referência
literal do enunciado e abriria a possibilidade de um novo visado referencial.
Deste modo, parece-me ficar legitimada a aproximação feita pelo autor entre a
inovação semântica e a Dichtung, uma vez que, claramente, se atribui à linguagem
poética poderes de revelação que estão como que bloqueados noutros usos da
linguagem. Esta ideia da radicação mais ontológica da linguagem poética é, aliás,
reiterada por Ricoeur em muitas outras passagens da sua obra, nomeadamente no que
diz respeito à articulação entre o poético e a experiência ontológicas de se ser no
mundo. Cito uma que considero particularmente elucidativa:
19
A obra referida é: Mary B. HESSE, “The explanatory function of metaphor”, in BAR-HILLEL(ed)
Logic. Methodologiy and Philosophy of Science, Amsterdam, North-Holland, 1955.
20
Paul RICOEUR, Temps et récit, I, op. cit., p. 13
8
“O que o discurso poético traz à linguagem é um mundo pré-objectivo onde
nos encontramos já desde o nascimento, mas também no qual projectamos os
nossos possíveis mais próprios. É, pois, necessário abalar o reino do objecto
para deixar ser e deixar dizer a nossa pertença primordial a um mundo que
habitamos, isto é, que simultaneamente, nos precede e recebe a marca das
nossas obras.”21
É neste contexto de fundar a referencialidade da linguagem metafórica ou da
sua inscrição no interior do pensamento verdadeiro que avulta a importância do tema da
semelhança na explicação das metáforas, tema para cuja estruturação Paul Ricoeur
desenvolverá um diálogo com Aristóteles e com Kant, como já foi dito.
O cuidado inicial posto no tratamento da semelhança – e para o qual se
convoca Aristóteles quando refere que a virtude das boas metáforas deriva de serem
“apropriadas” ou de terem um “parentesco quanto ao género”22 –, é indicativo da linha
de orientação de fundo: trata-se da distinção entre semelhança e identidade. Falar em
semelhança no decorrer da construção e da leitura das metáforas não significa nem
mistura nem fusão semântica entre o mesmo e o diferente. Pelo contrário, nas metáforas,
eles permanecem opostos, sendo inclusivamente dessa oposição, como se viu, que nasce
o sentido metafórico, como sentido novo. A força das metáforas reside na estranheza, na
distância e no salto semântico que as faz viver; a unidade de significação para a qual a
metáfora apela e que transforma o enunciado metafórico num enunciado
auto-contraditório, mas significativo, não corresponde a um processo de totalização e
antes à abertura de um horizonte de significação sem possibilidade de uma unificação
última. Para usar as próprias palavras do autor ”[…] ver o tempo como um mendigo, é,
precisamente, saber também que o tempo não é um mendigo; as fronteiras do sentido
são transgredidas, mas não abolidas.”23 No quadro deste debate, Paul Ricoeur volta a
convocar a diferença entre semiótica e semântica de Benveniste, explicitando que a
temática da semelhança, dentro de uma teoria da metáfora como impertinência
predicativa, se relaciona com o tipo de unidade sintética produzido pelo enunciado
metafórico:
“Dito de outra maneira, a semelhança, se tem alguma coisa a ver com a
metáfora, é por causa do carácter de atribuição dos predicados e não da
21
Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 387.
Cf., Ibidem, p. 247.
23
Ibidem, p. 271.
22
9
substituição das palavras. O que produz a nova pertinência é uma espécie de
“proximidade” semântica que se estabelece entre os termos, apesar da sua
“distância”. Coisas que até esse momento tinham estado “afastadas”, de
repente, parecem “vizinhas”.”24
Desta forma, poder-se-á falar de um círculo hermenêutico entre o tema da
semelhança e o da metáfora, na medida em que se elucidam mutuamente:
“Ora, é a metáfora que revela a estrutura lógica do “semelhante” porque, no
enunciado metafórico, o “semelhante” é percebido a despeito da diferença,
apesar da contradição.”25
Esta diferenciação entre semelhança e identidade funda o carácter mediato da
metáfora e a sua dimensão de mediação para um sentido prospectivo, para um a vir em
termos de significação, levando Ricoeur a explicar a construção e a leitura das
metáforas através de uma dialéctica circular entre intuição e discursividade. Vai fazê-lo,
retomando parcialmente outras argumentações, como é seu hábito26, e utilizando as
ideias de epífora e diáfora para legitimar a dupla dimensão de insight, ou visão intuitiva
e a de construção discursiva. Não há, diz, epífora sem diáfora. Isto é, não há transporte
das significações ou assimilação entre ideias estranhas e separadas na sua significação
estabelecida, sem que, ao mesmo tempo, se processe uma desconstrução e uma
reorganização do que está semanticamente estatuído. É este processo circular que funda
a possibilidade de uma metáfora viva poder ser infinitamente parafraseada e nunca
traduzível.
Organizado todo o processo de tematização a partir da estrutura matricial
aristotélica e em diálogo com o conjunto da produção teórica a respeito do tema da
metáfora, resta a Paul Ricoeur encontrar o esteio filosófico restrito para dar garantia à
possibilidade de introduzir a metáfora no campo da filosofia. Esse esteio é constituído
pelo esquematismo de Kant e pela sua perspectiva sobre a imaginação trancendental.
A teoria da imaginação, que suporta os trabalhos de Paul Ricoeur, tem em Kant
a sua fonte matricial mais funda. Do meu ponto de vista, o texto mais lapidar sobre esta
questão é L'imagination dans le discours et dans l'action27, onde realiza uma avaliação
daquilo que lhe parece justificar o lugar marginal da imaginação quanto ao seu poder
24
Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 246.
Ibidem, p. 249.
26
Neste caso, WHEELWRIGHT, Metaphor and Reality, Indiana University Press, 1962. cf., Ibidem, pp.
247 e ss.
27
Texto de 1976 e integrado em Paul RICOEUR, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris,
Seuil, 1986, pp. 213-236.
25
10
efectivo na interpretação da realidade. Nesse intuito, identifica como razão essencial
dessa situação a ligação entre imaginação e imagem, ligação essa que decorre do facto
de apenas a percepção ser tomada como modelo cabal da relação com o real. Daí que a
imaginação fique relegada para um plano secundário em relação à matriz logóica
paradigmática.
Assim, vai propor uma análise da imaginação não através da percepção, mas
através da linguagem, centrando na imaginação a capacidade de conceber e interpretar a
metáfora como impertinência semântica:
"De repente, vimos como; vimos a velhice como o entardecer, o tempo
como um mendigo (...). Em suma, o trabalho da imaginação é de
esquematizar a atribuição metafórica. Como o esquema kantiano, ela dá
uma imagem a uma significação emergente. Em vez de ser uma percepção
que se esfuma, a imagem é uma significação emergente."28
Ou seja, é o recurso à concepção kantiana do esquematismo, segundo a qual a
imaginação tem a capacidade de fornecer um esquema para a construção de uma
imagem, que permite a Ricoeur legitimar a possível superação da impertinência
predicativa auto-destrutiva e gerar as condições para uma nova pertinência. Dito de
outro modo, a imaginação, como método para aproximar campos semânticos afastados,
é a condição de possibilidade de que um enunciado inicialmente absurdo possa
ultrapassar o seu impasse lógico e reconvertê-lo numa significação emergente. Isto é, tal
como em Kant, a função mediadora da imaginação consiste em criar uma estrutura – o
esquema transcendental – que permita homogeneizar entidades, à partida não
homogéneas29. No esquematismo de Kant, a imaginação é o método para aproximar o
entendimento da sensibilidade, permitindo que os conceitos puros se possam aplicar às
intuições sensíveis; analogicamente, Ricoeur vai recuperar essa função mediadora da
imaginação para poder pensar o enunciado metafórico como uma atribuição predicativa
impertinente, conferindo ao poder mediador da imaginação, a capacidade de se poder
passar a ver o tempo como um mendigo, ou uma morta viva.
Em síntese, a teoria ricoeuriana da metáfora como predicação transgressora, por
relacionar campos semânticos heterogéneos e logicamente incompatíveis, assenta na
concepção kantiana da imaginação e da sua função transcendental. Da mesma maneira,
é o horizonte do esquematismo kantiano que assegura à inovação semântica a
28
29
Ibidem, p. 219.
Cf. I. KANT, KrV., A 137/B 176-A 140/B 179.
11
legitimidade de ser promessa de sentido novo e um aguilhão para pensar mais
profundamente o sentido do sentido.
Todavia, é possível levar mais longe a análise da importância de Kant nesta
questão, nomeadamente quanto ao papel fundante da imaginação.
Se nos ativermos ao final da afirmação ricoeuriana citada –:”Em vez de ser uma
percepção que se esfuma, a imagem é uma significação emergente” –, poderemos
verificar que nela se dá prioridade à significação sobre a percepção que aparece como
sendo contextualizada por aquela. Nessa medida, poderia ler-se aqui uma recuperação
da imaginação como o elemento sustentador do processo cognoscitivo, à maneira de
Kant, para quem a imaginação pura é vista “como faculdade fundamental da alma
humana, que serve a priori de princípio a todo o conhecimento."30
A mise en intrigue como inovação semântica
Como acabou de ser analisado, a questão da inovação semântica é tecida em
relação directa com a da metáfora31. No entanto, se Ricoeur apresenta Temps et récit et
La Métaphore vive como obras urdidas a partir da mesma temática, há que procurar
também em Temps et récit e no seu núcleo central – a questão da narrativa – a figura da
inovação semântica.
Temps et récit representa, no percurso ricoeuriano, o momento de
re-direccionalização da sua preocupação investigativa para o campo da acção, tema com
que, em 1950, tinha apresentado o seu projecto filosófico sob a designação de Filosofia
da Vontade. No entanto, o retomar do tema do agir vai agora ser realizado no contexto
teórico decorrente da problemática hermenêutica e, dentro desta, no quadro da procura
do sentido da dimensão poética da linguagem para a compreensão da realidade humana.
30
Ibidem, A 124. Todas as citações de Kant, da KrV, são retomadas da tradução portuguesa dessa obra,
publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, sendo da autoria de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre F. Morujão.
31
Os exemplos mais marcantes da relação privilegiada entre metáfora e inovação semântica são os dois
seguintes textos de Ricoeur: “The function of Fiction in shaping reality”, in M.VALDÈS, A Ricoeur
Reader, op.cit., pp. 117-136, onde a ficção não é assimilada a nenhum género literário específico, sendo
antes apresentada como uma actividade peculiar da linguagem, ligada ao trabalho da imaginação, de que a
metáfora é a chave do funcionamento, e “La métaphore et le problème central de l’herméneutique”,
Revue Philosophique de Louvain, 70, 1972, pp. 93-112, no qual a metáfora representa um guia e uma
mediação intrínseca para o aprofundamento compreensivo da interpretação como cerne da questão
hermenêutica. Esta última ideia aparece igualmente em Interpretation Theory, que introduz a questão da
metáfora como um incontornável numa teoria geral da significação.
12
Ora, diz Ricoeur, a narrativa, ao representar o texto por excelência, pode ser a mediação
fundamental para abordar a problemática do agir e, através dela, da temporalidade:
. “La Métaphore vive investigou os recursos da retórica para mostrar como a
linguagem passa por mutações e transformações criativas. O meu trabalho
sobre a narratividade, Temps et récit, desenvolve esta pesquisa do poder
inventivo da linguagem. Aqui, a análise das operações narrativas no texto
literário, por exemplo, pode ensinar-nos a formular uma nova estrutura do
“tempo” pela criação de novas formas de intriga e de caracterização.”32
Nestas palavras de Ricoeur, importa-me salientar duas coisas: 1. a relação
directa estabelecida por elas entre a investigação sobre a narratividade e o poder
inventivo da linguagem; 2. a evocação do tema do tempo para o interior desta pesquisa.
Uma e outra evidenciam o que vai estar em jogo na trilogia Temps et récit e é o seu
entretecer mútuo que volta a apelar para Kant.
A investigação ricoeuriana sobre a narrativa corresponde ao tratamento do tema
de mise en intrigue, ou seja, da compreensão do processo de compor intrigas,
compreensão essa que o autor leva a cabo com base numa definição de poética como “a
arte de “compor intrigas””33, e a partir da afirmação de Aristóteles de que “é a intriga
que é a representação da acção”. Nesse trabalho de análise, funcionarão conjuntamente
duas ideias fulcrais: por um lado, a ideia de que a construção de uma intriga se prende
com uma actividade produtora de sentido, e, por outro, a de que tal actividade é uma
composição, isto é, um modo de produzir uma totalidade de sentido que não é uma
síntese perfeita, mas antes um jogo entre elementos heterogéneos e que, por isso,
representa
um
equilíbrio
instável,
ou,
em
termos
ricoeurianos,
uma
concordância-discordante. Vai estar, portanto, em questão a importância do todo, ou
seja, de que a intriga descreva uma arquitectónica unitária de sentido onde seja possível
discernir um princípio, um meio e um fim. A realização desta totalidade de sentido
faz-se a partir da inter-acção de elementos de natureza heterogénea. Em primeiro lugar,
pela construção de uma história através da composição de incidentes individuais ou de
acontecimentos, originando “uma configuração de uma simples sucessão”34. Em
segundo lugar, compor uma intriga é produzir uma organização de elementos de
32
Entrevista sobre a criatividade da linguagem concedida a Richard Kearney, em Paris, em 1981 e
inserida em : M.VALDÉS (ed), A Ricoeur Reader, New York-London-Toronto-Sidney-Tokio-Singapura,
Harvester Wheatsheaf, 1991, pp. 463- 481, p. 463.
33
P. RICOEUR, Temps et récit, I, op. cit., p. 57.
34
Ibidem p. 102.
13
natureza totalmente diferente: “agentes, finalidades, meios, inter-acções, circunstâncias,
resultados esperados, etc.”35. Por fim, tem de haver uma lógica no processo narrativo
que não decorra da simples cronologia, e antes “combine, em proporções variáveis, duas
dimensões temporais, uma cronológica, outra não cronológica. A primeira constitui a
dimensão episódica da narrativa […]. A segunda é a dimensão configurante
propriamente dita, graças à qual a intriga transforma os acontecimentos em história”36.
Paul Ricoeur designa esta estrutura lógica por lógica poética, através da qual a mise en
intrigue cria processos de inteligibilidade que originam novas figuras de mundos
possíveis ou de universais possíveis, acrescentando que esta lógica poética se inscreve
num conceito prospectivo de verdade em que “inventar é encontrar”37.
Desta maneira, tal como a metáfora, a intriga ou enredo – aquilo pelo qual a
narrativa imita e recria a acção humana – tem uma função de mediação, cujo
funcionamento Paul Ricoeur vai explicitar com recurso a Kant. E fá-lo por duas vias
inter-relacionadas: pela aproximação à teoria kantiana do juízo e pelo recurso ao
esquematismo trancendental.
É a ideia de “prendre ensemble”, ou seja, de configurar uma totalidade, que leva
Ricoeur a fazer a aproximação com a perspectiva kantiana sobre o juízo em geral e
sobre o juízo reflectinte, em particular, na medida em que considera que, para Kant, “o
sentido transcendental do juízo consiste menos em juntar um sujeito e um predicado do
que colocar um diverso intuitivo sob a regra de um conceito”38. É esta subsunção
transcendental da diversidade empírica, através da qual se realiza a universalização do
particular, que Paul Ricoeur compara ao processo da mise en intrigue enquanto
operação “que extrai uma configuração de uma simples sucessão”, tendo a estrutura do
todo – isto é, a história propriamente dita –, em relação aos diferentes elementos que a
constituem, uma função análoga àquela que a regra do conceito tem no que respeita à
intuição, que é a de conferir inteligibilidade e universalidade.
Se se tiver em conta a distinção, feita por Kant na sua Introdução à Critica do
Juízo, entre o juízo “determinante” e o “reflectinte”, pode-se perceber a razão pela qual
Ricoeur considera que o “prendre ensemble” tem um parentesco privilegiado com o
juízo reflectinte. Na verdade, Kant explica que, ao contrário do juízo determinante em
35
Ibidem.
Ibidem, p. 103.
37
Ibidem, p. 70.
38
Ibidem, p. 104.
36
14
que o universal ou o princípio é dado, no juízo reflectinte só o particular é dado, sendo
sobre ele que tem de ser encontrado o universal e, por isso, o juízo reflectinte não é um
juízo prescritivo ou legislador por não ter domínio em termos de objecto. Nessa medida,
a universalização que realiza tem a dimensão de um possível que se enraíza num
princípio ou numa lei que o espírito se dá a si próprio. Gilles Deleuze39 analisa esta
diferença kantiana entre os dois tipos de juízo, salientando a forma como neles se dá o
acordo entre as diferentes faculdades. No juízo determinante, o acordo acontece sob a
jurisdição de uma das faculdades: o entendimento, no plano teórico e a razão, no plano
prático. Quanto ao juízo reflectinte, esse acordo é indeterminado e livre, tomando,
mesmo, a figura de jogo. Diria, pois, que o que permite aproximar o “prendre ensemble”
do perspectiva kantiana sobre os juízos reflectintes é, por um lado, a ideia de universal
possível que cada intriga configura, e, por outro, esta ideia de jogo livre das faculdades
que, no horizonte da função sintética da imaginação, permite a criação desses
universais.
É esta analogia da mise en intrigue com a função sintética da imaginação que
permite a Paul Ricoeur falar de “esquematismo da função narrativa”40, na medida em
que ela realiza o que ele também designa por síntese temporal do heterogéneo, sendo
essa síntese realizada a partir de elementos de natureza diferente, como atrás se
explicitou. Desta maneira, essa designação justifica-se pelo duplo papel que a
temporalidade realiza na construção das intrigas, como antes se referiu: a dimensão
cronológica e a não-cronológica. Como afirmava a citação, o aspecto cronológico do
tempo diz respeito à simples sucessão dos episódios; contudo, o tempo não tem apenas
essa função serial, tem, igualmente, a capacidade de se totalizar, ou seja, de assumir
uma figura, onde é possível discernir um princípio, um meio e um fim.
Metáfora, narrativa e poética da linguagem
Creio ser lícito interpretar que, dar à inovação semântica a dupla figura da
metáfora e da narrativa, decorre do objectivo ricoeuriano de explorar o potencial
ontológico dos usos não meramente descritivos da linguagem, no horizonte da definição
de uma forma de racionalidade aberta e prospectiva que, também no horizonte kantiano,
39
40
Gilles DELEUZE, La philosophie critique de Kant, Paris, PUF, 1963.
Paul RICOEUR, Temps et récit I, op. cit., p. 106.
15
não perca de vista os seus limites, mas, contudo, não desista de explorar as fontes
logóicas da linguagem, quando ela é usada por referência à sua radicação nas
experiências humanas fundadoras.
É esse grande objectivo que dá consistência à geminação temática de La
Métaphore vive e Temps et récit. Assim, o fio subterrâneo de ligação entre estas duas
obras prende-se, directamente com o pensamento de Kant em geral – na medida em que
ele representa a afirmação de um modelo de filosofar pautado pelo reconhecimento dos
limites da razão –, e, especificamente, naquilo que diz respeito ao papel da imaginação
transcendental e do esquematismo. Ao nível da metáfora, é o funcionamento da
imaginação como método de síntese do heterogéneo que permite superar a perplexidade
decorrente da impertinência predicativa do enunciado metafórico, fazendo emergir um
sentido novo, através da aproximação de campos semânticos antes separados. De
maneira equivalente, ao nível da narrativa, esse funcionamento legitima que a mise en
intrigue configure uma nova totalidade de sentido a partir da organização de elementos
heterogéneos entre si e combinados através de uma síntese temporal.
II
A problemática do mal e o formalismo ético de Kant
O tempo e o mal são os dois temas alimentadores da investigação ricoeuriana,
determinando os caminhos que essa investigação percorreu em busca de configurações
de sentido capazes de os tornar inteligíveis para uma racionalidade e para uma
discursividade finitas. Enquanto expressões da dimensão inescrutável da realidade e do
seu excesso de significação, aqueles dois temas vão obrigar a pesquisa de Paul Ricoeur
a enveredar por excursos temáticos e metodológicos, de modo a permitir, a uma razão
limitada e a uma discursividade condenada ao eterno ensaísmo, a maior proximidade
possível do seu núcleo de significação. É no percorrer desses caminhos que o encontro
com Kant se perfila.
Le mal. Un défi pour la philosophie et la théologie41 é o texto ricoeuriano que
melhor sistematiza a sua posição sobre o mal, esclarecendo, a partir do próprio título,
41
Paul RICOEUR, Le mal. Un défi pour la philosophie et la théologie, Genève, Labor et Fides, 1986.
Este texto sairá em breve em português, numa antologia de textos, Paul Ricoeur e a simbólica do mal,
que as edições Afrontamento publicarão.
Sobre a questão do mal, tema muito explorado no pensamento de Ricoeur, gostaria de identificar, como
um bom estudo, o texto de Olivier MONGIN, “La pensée du mal chez Paul Ricoeur, un parcours
aporétique”, Le Supplément, 172, Paris, 1990, pp. 37-64, texto que será incluído na antologia que acabou
16
que a questão do mal é um desafio. O mal é um desafio porque é um escândalo e é
sempre injustificável, resistindo, por essa razão, à pacificação conceptual, mas, ao
mesmo tempo, fazendo dessa resistência um estímulo para se poder pensar mais
profundamente o sentido da realidade.
Dentro do percurso ricoeuriano, em torno da questão do mal, há que destacar três
temas essenciais e que constituem a sua espinha dorsal: 1. a recusa radical da
perspectiva gnóstica sobre o mal; 2. a superação de uma visão moral do mundo, na
análise da problemática do mal; 3. a afirmação de que o tratamento teórico ou
especulativo do mal é insuficiente, obrigando a um confronto com o mal, da ordem da
praxis. Qualquer destes temas atesta que o mal é um irrecusável para a razão e,
simultaneamente, um excesso em relação à possibilidade racional. Kant é o interlocutor
privilegiado, na elaboração dos primeiro e segundo temas indicados.
Embora a posição kantiana não seja totalmente aceite por Ricoeur, todavia, num
primeiro momento, Kant vai constituir o recurso teórico fundamental para afastar a ideia
do mal como substância e, portanto, para superar a perspectiva gnóstica42.
Na verdade, na medida em que “A visão moral do mundo pensa contra o
mal-substância e de acordo com a queda do ser humano primordial”43, pode
constituir-se como uma mediação essencial para abandonar a perspectiva da
ontologização do mal, que faz dele um dado totalmente exterior à existência humana,
uma vez que, relacionando o mal com a queda do ser humano primordial, o coloca na
esfera da liberdade humana, permitindo pensar, em termos de reciprocidade, mal e
liberdade. A possibilidade de convocar para a reflexão do mal o mito adâmico conduz,
directamente, a uma configuração do mal que, por um lado, remete para a sua natureza
incomensurável, protagonizada pela figura da serpente, representando o “desde sempre
já dado” do mal, e, por outro, explicita que a emergência do mal no mundo é o resultado
da liberdade humana. Por outras palavras, o mito de Adão, ao descrever a co-presença
da concepção do mal como dado – a tentação da serpente – e a do mal cometido – a
aceitação da tentação, põe em destaque o carácter de desafio do mal, quer para a
filosofia, quer para a teologia.
de ser referida. No contexto da produção nacional, parece-me importante destacar sobre este tema o
trabalho de J. de Sousa TEIXEIRA, “Paul Ricoeur e a problemática do mal”, Didaskalia, 1(VII), Lisboa,
1977, pp. 43-129.
42
Ricoeur serve-se, para este efeito, igualmente de Santo Agostinho, mas é em Kant que radica o
essencial da sua argumentação, do meu ponto de vista.
43
Paul RICOEUR, Le conflit des interprétations, Paris, Seuil, 1965, p. 297.
17
Com base no formalismo ético de Kant, na sua dupla vertente de formalismo e
de autonomia, que define a ética como um campo teórico próprio e que se constitui com
base em procedimentos transcendentais, Paul Ricoeur pode afirmar que “(...) o mal
reside numa relação, ou seja na subversão de uma relação” e que o mal “é o que
acontece […] quando o ser humano subordina o puro motivo do respeito aos motivos
sensíveis.”44. Ou seja, retomando directamente a argumentação kantiana, Ricoeur
repetirá que o mal resulta de uma falsa organização dos motivos do agir, ou da
“justificação fraudulenta da máxima pela conformidade aparente com a lei […].”45Isto
quer dizer que o mal resulta de uma máxima má que, sendo uma regra do próprio livre
arbítrio, subtrai o mal do plano da sensibilidade e dimensiona-o no interior da
organização das máximas:
“Se o mal reside em algum lugar é, exactamente, nas máximas das nossas
acções, pelas quais hierarquizamos as nossas preferências, colocando o dever
acima do desejo ou o desejo acima do dever. O mal apenas pode consistir numa
reversão de prioridade, numa inversão, numa subversão, ao nível das máximas
da acção.”46
É esta ideia do mal, dentro dos quadros de uma visão moral do mundo, que
sustenta a primeira obra que constitui o conjunto Finitude et culpabilité, editado em
1960, e cujo título é L’Homme faillible47. Na realidade, nessa obra, Ricoeur, em diálogo
directo com Kant, vai tentar uma dedução transcendental do princípio antropológico que
possa aparecer como a condição de possibilidade da emergência do mal no mundo. Tal
princípio é protagonizado pela labilidade ou fragilidade de um ser cuja natureza é a
desproporção ou incoincidência entre uma finitude, como matriz existencial e uma
infinitude, como horizonte de realização.
A passagem por Kant, no âmbito da problemática do mal, vai ter ainda uma
outra dimensão importante nesta questão, uma vez que serve também como recurso
teórico para evidenciar a irredutibilidade do mal a qualquer modelo de saber absoluto ou
de totalização conceptual. Partindo da posição kantiana, Paul Ricoeur vai explicitar a
diferença existente entre o poder-se tornar inteligível a inclinação humana para o mal,
através do estabelecimento de que ele seja a condição de possibilidade das máximas
44
Ibidem, p. 299.
Ibidem.
46
Paul RICOEUR, “Une herméneutique philosophique de la religion: Kant”, in Lectures 3, Paris, Seuil,
1994, pp. 19-40, p. 22.
47
Paul RICOEUR, L’Homme faillible, Paris, Aubier-Montaigne, 1960.
45
18
más, e o poder atingir-se a sua natureza, respondendo à questão o que é o mal?. Deste
modo, pode afirmar com Kant que o mal será sempre da esfera do inescrutável como
“(...) a experiência limite de um não-poder do nosso poder moral”48.
No interior da economia da argumentação ricoeuriana sobre o mal, esta
passagem por Kant é, pois, determinante, por permitir deixar justificado o abandono da
perspectiva do mal como substância e por alicerçar a posição acerca da dimensão
racionalmente inexpugnável do mal; no entanto, a visão moral do mundo de Kant
constitui também um momento a ser superado, por não satisfazer as exigências
ricoeurianas na abordagem da problemática do mal. Ao decorrer de uma lógica de
reciprocidade, a visão moral do mundo corresponde à perspectiva que Ricoeur
caracterizará como o peso do mito no pensamento do mal49, ou seja, como uma vontade
de retrospecção e de explicação, escamoteando a radical dimensão misteriosa do mal, ao
mesmo tempo que inverte a direcção segundo a qual o mal deve ser pensado, que é a do
futuro:
“Aquilo que é próprio do mito (...) é puxar-nos para trás, enquanto que o
nosso problema perante o mal é, se o ouso dizer, pensar para a frente, em
direcção ao futuro.”50
Este “pensar para a frente” tem duas implicações:
1. em primeiro lugar, reconhecer que o mal é irredutível a qualquer
explicação conceptual, excedendo a esfera teórica e qualquer sistema
explicativo totalizador;
2. em segundo lugar, remeter a relação humana com o mal para o plano da
acção, pondo também em relevo o papel do sentimento nessa relação.51
Ricoeur apresenta esta interpretação de modo sistemático na sua obra
fundamental sobre o mal, anteriormente citada, propondo uma análise da problemática
do mal que realize uma dinâmica entre as esferas do pensamento, da acção e do
sentimento:
“Concluindo, quereria sublinhar que o problema do mal não é apenas um
problema especulativo: ele exige a convergência entre pensamento, acção
(...) e uma transformação espiritual dos sentimentos.”52
48
Ibidem, p. 27.
P. RICOEUR, “Le scandale du mal”, Esprit, 140-141, Paris, 1988, pp. 57-63.
50
Ibidem, p. 59.
51
No artigo atrás referido de Olivier Mongin, são apresentadas as quatro direcções da acção propostas
pela perspectiva ricoeuriana: 1. A vivência religiosa; 2. A esfera do político; 3. A sabedoria prática; 4. A
narração (fazer memória das vítimas).
49
19
Esta transformação espiritual dos sentimentos, que Ricoeur aproxima daquilo
que Freud designava como trabalho de luto, é, no fundo, uma exigência do carácter
escandaloso e injustificável do mal, e quer evidenciar que a relação humana com o mal
obriga a uma experiência pessoal que, incorporando o não-saber como constitutivo da
relação humana com ele, saiba integrar a sua dimensão misteriosa e, embora não
abandonando a explicação daquilo que for explicável no mal existente no mundo, se
ocupe menos com o porquê do mal e mais com a sua erradicação.
Mas também aqui, na reiteração do não-saber constitutivo em que assenta o
nosso viver, é a ressonância da perspectiva kantiana sobre os limites do saber que se faz
ouvir.
-----------------------------Fernanda Henriques é Docente na Universidade de Évora, desde 1995 e Doutorada em
Filosofia, na área da Filosofia Contemporânea, pela mesma Universidade, com uma tese
sobre Paul Ricoeur.
É membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e vice-presidente da
Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Faz, igualmente, parte do
Conselho Editorial da Revista ex aequo, desde a sua fundação em 1999.
Várias publicações individuais, bem como participação em obras colectivas, nas áreas
da Filosofia Hermenêutica, da Filosofia da Linguagem e dos Estudos sobre as Mulheres,
quer nacionais quer estrangeiras.
52
Paul RICOEUR, Le Mal ..., op. cit., p. 38.
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