O papel de Kant na intertextualidade de Paul Ricoeur: dois exemplos1 Fernanda Henriques Universidade de Évora “(...) mais penser, au sens le plus large, c’est l’acte fondamental de l’existence humaine et cet acte est la rupture d’une harmonie aveugle, la fin d’un rêve.” Paul RICOEUR2 Foi Kant que me conduziu a Paul Ricoeur. A minha relação com Paul Ricoeur e com o seu pensamento deveu-se, inicialmente, ao facto de encontrar nos seus escritos a ressonância daquilo que me tinha sempre atraído em Kant3: a configuração clara dos limites do saber e, simultaneamente, a afirmação da incomensurabilidade do pensar. Nesse contexto, o meu primeiro trabalho sobre Ricoeur ocupou-se com a análise da presença de Kant na definição do projecto filosófico daquele autor, apresentado em 1950, na obra Le volontaire et l’involontaire4. Esse interesse de partida fez com que uma das minhas linhas de investigação dos textos ricoeurianos tenha sido conduzida pelo interesse de compreender a posição funcional dos diferentes autores e perspectivas teóricas que eles convocam no seu entretecer intertextual. Tal investigação leva-me a afirmar que há, na obra de Ricoeur, dois tipos de presenças: as fundadoras, responsáveis por contornos decisivos da sua filosofia, e as meramente estratégicas que representam apenas recursos de circunstância, permanecendo exteriores ao seu modo de pensar próprio. Dentro desta leitura, defendo que constituem presenças fundadoras na obra de Paul Ricoeur, por um lado, Husserl e Kant, em termos das configurações gerais do seu pensar – nomeadamente, o primeiro na 1 Enquanto finalizava este texto Paul Ricoeur faleceu. Quero deixar aqui um testemunho de homenagem à sua memória, pelo valor do seu trabalho filosófico e do seu compromisso de cidadão. Texto publicado nas Actas do Colóquio Internacional em Homenagem a Kant: U de Lisboa/U de Évora.. 2 Le volontaire et l’involontaire, Paris Aubier-Montaigne, 1950, p. 417. 3 Esta profunda ligação ao pensamento kantiano é sempre vivida por mim a par e em conflito com o desgosto de que ele não tenha sido capaz de encarar o problema da natureza humana em termos de igualdade ontológica e tenha considerado que o sexo ou a cor da pele eram constituintes diferenciadores negativos. 4 Esta análise correspondeu à tese de mestrado que defendi no início de 1989, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 1 marca fenomenológica da sua hermenêutica e o segundo na definição dos limites insuperáveis da racionalidade5 -, por outro, Santo Agostinho, no que respeita à magna questão do tempo e Aristóteles, na complexa teorização em torno da inovação semântica, quer no plano da metáfora, quer no da narrativa. Kant, para além desta dimensão instauradora ou fundadora do pensar ricoeuriano, enquanto este se define como uma filosofia dos limites do saber, tem, ainda, muitas ocorrências determinantes na obra de Paul Ricoeur. Este estudo vai ocupar-se com duas dessas ocorrências que reputo como exemplos paradigmáticas da presença de Kant em Ricoeur – os casos da inovação semântica e do mal –, e procurará mostrar o papel central de Kant na urdidura desses temas. Nessa perspectiva, o estudo organiza-se em duas partes, dizendo respeito, cada uma delas, a um dos exemplos temáticos escolhidos. I A Inovação semântica e o Esquematismo kantiano “La Métaphore vive e Temps et récit são duas obras gémeas: surgidas uma a seguir à outra, elas foram concebidas em conjunto. Se bem que a metáfora releve tradicionalmente da teoria dos “tropos” (ou figuras do discurso) e a narrativa da teoria dos “géneros” literários, os efeitos de sentido produzidos por uma e por outra relevam do mesmo fenómeno central da inovação semântica. Nos dois casos, esta só se produz ao nível do discurso, isto é, dos actos de linguagem de dimensão igual ou superior à frase.”6 É com estas palavras que Paul Ricoeur inicia a sua trilogia Temps et récit, querendo com elas certamente indicar que, a despeito da aparente divergência temática entre esta obra e La Métaphore vive, elas deverão ser lidas como trabalhos sobre uma mesma questão e, deste modo, interpretadas em conjunto. Entendo esta intromissão directa do autor como uma advertência séria em termos de chave de leitura das obras em referência. Na verdade, sendo qualquer delas um minucioso trabalho de argumentação, onde avultam o profundo saber científico de Paul Ricoeur, nas mais diversas áreas, bem 5 Dentro desta linha de leitura, quero destacar, ainda, como posições de alguma maneira fundadoras, o estruturalismo e a psicanálise, quanto à definição do Conflito de Interpretações. 6 Paul RICOEUR, Temps et Récit, I, Paris, Seuil, 1983, p. 11 2 como a sua imensa cultura filosófica, corre-se facilmente o risco de perder de vista que, enquanto obras, elas gravitam em torno de uma única questão – a da inovação semântica – que procuram introduzir na ribalta da cena filosófica. Com esta orientação, é-se, obrigatoriamente, conduzido a procurar, debaixo da profusão temática de ambas as obras, o nó górdio que sustenta a sua intencionalidade intrínseca. Por outro lado, o citado início fornece ainda um outro princípio hermenêutico, ao dizer que a inovação semântica se produz ao nível do discurso, ou seja, indicando que está em jogo uma determinada concepção de linguagem dentro da qual cobra sentido a questão da inovação semântica. De facto, a inovação semântica, como filosofema, está directamente relacionada com uma perspectiva específica da linguagem, nomeadamente quanto ao poder referencial e às possibilidades ontológicas da sua criatividade. Como é natural, a caracterização da inovação semântica aparece, na primeira das obras acima referidas, La Métaphore vive, exactamente no final do terceiro estudo, como uma significação emergente, uma “criação momentânea de sentido”, surgindo essa caracterização no decurso do processo da “definição real” de metáfora, ou seja, no processo de configuração da forma como ela é engendrada, e no contexto da explicitação da teoria ricoeuriana de linguagem. Esta relação triádica – concepção da linguagem, inovação semântica, metáfora – é fundamental para a compreensão da inovação semântica como filosofema e, nessa compreensão, para dar conta do papel desempenhado por Kant na tessitura da intertextualidade da sua emergência. A inovação semântica e a concepção ricoeuriana de linguagem Retomando, uma vez mais, as palavras iniciais de Temps et récit, a inovação semântica é o fenómeno central da linguagem, “ao nível do discurso, isto é, dos actos de linguagem de dimensão igual ou superior à frase”. Quer isto dizer que tal fenómeno se enquadra naquilo que Ricoeur designa como uma abordagem bidimensional da linguagem, aquela que a interpreta a partir de duas unidades de sentido irredutíveis: o signo e a frase7. Tal perspectiva, que marca a cisão entre a concepção ricoeuriana de linguagem e a do estruturalismo restrito, baseia-se na distinção estabelecida por Émile Benveniste entre semiótica e semântica e é um dos temas centrais na compreensão da apropriação teórica da metáfora que é realizada por Paul Ricoeur ao longo de La 7 A posição de Ricoeur sobre a linguagem está dispersa em vários textos. Aquele que reúne a informação de modo mais sistemático é: Interpretation Theory, Texas, The Texas Christian University Press, 1976. 3 Métaphore vive. Citando Benveniste, Ricoeur explicita ”Com o signo, atinge-se a realidade intrínseca da língua; com a frase, está-se ligado às coisas fora da língua”8. Por outras palavras, a semiótica olha a linguagem como um sistema de signos, como um mundo fechado e encerrado na questão do sentido; é pela dimensão semântica que a linguagem rompe o seu auto-encarceramento e se abre a um duplo fora de si: ao sujeito enunciador e ao mundo enunciado, através da função referencial. Tomar em consideração a linguagem como discurso, nos quadros atrás referidos, significa, então, assumi-la na sua função de transporte, integrando um querer dizer que faz dela não um mundo próprio, mas uma mediação. Citando as próprias palavras de Ricoeur: ”Mas, a dialéctica entre sentido e referência é tão original que pode ser tratada como uma linha de análise independente. Apenas esta dialéctica diz alguma coisa sobre as relações entre a linguagem e a condição ontológica de se ser no mundo. A linguagem, por si mesma, não é um mundo próprio. Nem sequer é um mundo. Mas, é porque estamos no mundo, porque somos afectados por situações e porque nos orientamos compreensivamente nessas situações que temos alguma coisa para dizer e temos uma experiência para trazer à linguagem.”9 O carácter de filosofema da inovação semântica radica nesta dimensão semântica da linguagem, mais precisamente, na questão da sua referencialidade, ou seja, na afirmação do seu alcance extra–linguístico. Esta questão corresponde a uma apropriação directa da tematização de Frege sobre esse tema10 e a uma generalização dessa tematização. Frege distingue, num enunciado descritivo, o que nele é dito, ou seja, o seu sentido (Sinn), e aquilo sobre que ele se pronuncia, isto é, a sua denotação ou referência (Bedeutung). Esta distinção entre o sentido de uma proposição e sua referência prende-se com o desejo de verdade que, para Frege, alimenta quer o pensamento quer a palavra. Paul Ricoeur parte desta posição de Frege e quer alargar a sua legitimidade a todo o tipo de enunciação. Por isso, para Ricoeur, o postulado da referência deve ter a mesma latitude da linguagem, dizendo respeito a todos os seus usos e não apenas aos enunciados descritivos, uma vez que, no seu entender, é esse postulado que marca a 8 Paul RICOEUR, La Métaphore vive, Paris, Seuil, 1975, p. 98. Paul RICOEUR, Interpretation Theory, op. cit., pp. 20-21. 10 A raiz da abordagem da questão da referência encontra-a Ricoeur em Frege, no seu ensaio Sinn und Bedeutung, in G. FREGE, Funktion, Begriff, Bedeutung. Fünf logische Studeien, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, pp. 40-80. texto que retomará reiteradamente sempre que evocar tal questão. 9 4 transcendência da linguagem em relação a si própria e a revela como uma estrutura que transporta um querer-dizer. Deste modo, embora o funcionamento da linguagem assente na convicção do afastamento entre o signo e a coisa, esse afastamento está constitutivamente articulado com a obrigação da mesma linguagem de obedecer ao que pede para ser dito na experiência de se ser no mundo. Nesse horizonte, todo o discurso tem como intencionalidade o desejo de superar o afastamento próprio do signo, para se poder referir à experiência que o alimenta e anima, representando o trabalho de elaboração e transformação da experiência vivida em logos expressivo e comunicacional. O caso dos textos poéticos representa apenas uma diferença de grau em relação ao que se poderia designar por linguagem ordinária. É desta diferença que a inovação semântica faz a tematização. A inovação semântica e a metáfora como impertinência predicativa Num texto onde evoca o tema da inovação semântica, no quadro do mesmo paralelismo acima citado entre La Métaphore vive e Temps et récit, Ricoeur faz uma aproximação interessante entre a inovação semântica e a Dichtung: “Eu forjo, então, o conceito englobante de inovação semântica para incluir sob um género único o texto da poesia lírica e o texto da literatura narrativa. A partir de agora, é o mythos da tragédia e da epopeia […] que serve de guia na exploração desse vasto império da linguagem figurativa que a língua alemã designa com o título emblemático de Dichtung.”11 Estabelecer a equivalência entre o tema da inovação semântica e aquilo que a língua alemã designa como Dichtung, significa quer inscrever o poético no seu significado mais originário, como a criação radical de sentido, vendo-o, assim, como a expressão fundadora da realidade pela mediação da linguagem. Dito de outro modo, a aproximação entre a inovação semântica e a Dichtung remete para a consideração da linguagem poética como fonte de expressão privilegiada da realidade12. Compreender 11 Paul RICOEUR, Prefácio do livro de Marcelino AGÍS VILLAVERDE, Del símbolo à la métafora. Introducción a la filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur, Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela , 1995, p.14 12 No fundo, a ideia base é a seguinte: se toda a linguagem corresponde um trabalho de elaboração e transformação da experiência vivida em logos, a linguagem poética corresponde a um trabalho de segunda ordem sobre esse trabalho de base e tem como objectivo pôr de manifesto zonas da experiência inacessíveis a uma abordagem mais directa. Esta perspectiva liga-se com a concepção do literário de Ricoeur, que caracteriza com dois traços - uma liberdade no uso da linguagem ligada à interacção 5 isto, significa integrar a inovação semântica na questão da metáfora como impertinência predicativa, perspectiva que corresponde à síntese pessoal que Paul Ricoeur elabora, através da extensa e minuciosa revisão de literatura sobre a questão da metáfora, produzida ao longo da história do pensamento ocidental, que leva a cabo em La Métaphore vive. Retomando a ideia apresentada na introdução deste estudo acerca das características da intertextualidade ricoeuriana, diria que Aristóteles é a figura tutelar de La Métaphore vive, aquela que dá a estrutura fundamental para os diálogos que se vão estabelecendo com as diferentes posições sobre a metáfora, ao longo da obra, sendo Kant a figura mediadora para a concretização da posição pessoal de Paul Ricoeur. Por essa razão, o primeiro estudo desta obra é absolutamente determinante para todo o seu desenrolar. Partindo da definição de Aristóteles na Poética13, onde a metáfora é caracterizada como transporte – transporte de uma palavra para uma nova relação, quer esse transporte se dê do género para a espécie e vice-versa, quer seja um transporte baseado na analogia, da espécie para a espécie –, Ricoeur converte-a em texto fundador do tema da metáfora, por um lado, pelo que nesta definição há de significativo em relação a tal tema, e, por outro, pelo papel que ela desempenha na história do seu desenvolvimento. A posição pessoal de Paul Ricoeur vai ser constituída com base em dois núcleos temáticos essenciais assentes na sua leitura de Aristóteles: 1. a ideia de que há uma relação constitutiva entre metáfora e frase14, 2. a articulação entre o processo de metaforização e o discernimento racional de perceber as semelhanças, ou seja, a inscrição da metáfora no pensamento verdadeiro15. razão-imaginação, de ressonância kantiana, e uma ambiguidade semântica de cariz produtivo e fecundo, resultante do modo como protagoniza a referência. 13 Cf., 1457b 6-9 14 É por esse motivo que há uma quase obsessão em legitimar que, embora explicitamente a definição aristotélica apresente a estrutura da metáfora como uma “epífora do nome” e, portanto, a associe à palavra, a totalidade da definição só se torna inteligível se se tomar em consideração o conjunto da frase onde ela ganha corpo. Ricoeur usa vários argumentos para legitimar esta sua leitura, dos quais considero mais relevante o tema da transgressão categorial por me parecer o mais radical e também pela importância que assume na constituição da posição pessoal de Ricoeur, sendo Poética 1457b6-20 o texto de referência. Ricoeur destaca que, conquanto o desvio semântico decorrente do processo metafórico se refira às palavras e pareça confinar-se ao campo lexical, de facto, é a classificação categorial que fica ameaçada por ele. 15 Também a este nível o essencial fica estabelecido a partir de Aristóteles. Partindo de Poética, 1459 a 48, Ricoeur apropria-se da comparação aristotélica de que “bem metaforizar” é “bem perceber as semelhanças” para relevar que na base do processo de construção e de leitura das metáforas está um procedimento racional de amplitude ontológica, decorrente da captação do semelhante. 6 Dentro deste quadro, o sexto estudo de La Métaphore vive ganha uma relevância fundamental para a compreensão da posição ricoeuriana, na medida em que nele é estabelecida a matéria determinante sobre estes dois núcleos temáticos. Paul Ricoeur vai trabalhar a sua posição própria pelo desenvolvimento das implicações teóricas implicadas na expressão impertinência semântica, de Jean Cohen16. Nessa medida, compreender a sua posição quanto à construção e à leitura das metáforas implica perceber que estão em jogo nesses processos dois aspectos inter-relacionados: uma questão de natureza semântica e outra de ordem lógica. Exemplificando, o enunciado “é uma morta viva” é, em si mesmo, auto-contraditório, ou seja, é auto-destrutivo por convocar uma significação cujo valor lógico é o absurdo. Esta situação só é ultrapassada se o absurdo lógico funcionar como desafio, obrigando à sua dissolução. Todavia, tal dissolução só é conseguida através da suspensão dos campos semânticos correntes dos dois vocábulos convocados na enunciação e da configuração de novos campos de significação. Por outras palavras, é necessário que a impertinência semântica contida no enunciado “é uma morta viva” seja, simultaneamente, reconhecido como tal e superado. Nas palavras de Ricoeur, parafraseando Beardsley, “ […] a metáfora é o que faz de um enunciado auto-contraditório que se destrói a si mesmo, um enunciado auto-contraditório significativo”17. A metáfora é, por isso, um enunciado de carácter mediato e ela própria uma mediação. É o carácter mediato das metáforas que permite que elas sejam parafraseadas – e, sempre que se trata de metáforas vivas, infinitamente parafraseadas –, sendo esse processo de paráfrase o resultado da necessidade de dissolver ou superar o absurdo lógico que o enunciado metafórico transporta consigo. Desta maneira, a impertinência semântica ou o absurdo lógico é o cerne e o motor do processo metafórico e da articulação entre a metáfora e a inovação semântica como significação emergente. De facto, enquanto descrição do processo metafórico, ela obriga a que se proceda a uma espécie de descategorização do nosso modo habitual de organizar a realidade e a uma nova recategorização do mesmo18, convertendo, assim, a relação com o enunciado metafórico numa estrutura orgânica pautada por três tempos de significação: perplexidade, suspensão, reestruturação. A inovação semântica ou “criação momentânea de sentido” é o resultado da realização desse movimento trifásico da 16 Cf., Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 246. Ibidem. 18 Neste contexto, Paul Ricoeur aproxima a metáfora do category mistake de Gilbert Ryle. Cf., La Métaphore vive, op. cit., p. 250. 17 7 significação, no fim do qual, se produz uma maior amplitude no seio do nosso olhar sobre a realidade. Paul Ricoeur usará a expressão re-descrição, que retoma de Mary Hesse19, para referir este alargamento do nosso olhar e a possibilidade de pensarmos a realidade para além de uma relação compreensiva primária ou primeira: “Sustentei que a suspensão da função referencial directa e descritiva é apenas o inverso, ou a condição negativa, de uma função referencial mais dissimulada do discurso, que é, de alguma maneira, libertada pela suspensão do valor descritivo dos enunciados. É desta forma que o discurso poético traz à linguagem aspectos, qualidades, valores da realidade, que não têm acesso à linguagem directamente descritiva e que não podem ser ditos a não ser através do jogo complexo entre a enunciação metafórica e a transgressão regulada das significações usuais das nossas palavras.”20 Neste sentido, a teoria da referência da linguagem poética de Ricoeur é organizada a partir do questionamento do que designa por uma perspectiva epistemológica positivista que decorre da divisão dicotómica entre linguagem descritiva e linguagem emocional e da consequente defesa de que só a linguagem descritiva é portadora de informação. Esta perspectiva relaciona-se directamente com o postular um conceito de verdade correlativo de verificação e com um conceito de realidade de natureza meramente empírica. Ao contrário deste positivismo epistemológico, Ricoeur propõe a exploração da ideia de que à metaforização do sentido, posta em acção pelo enunciado metafórico, corresponda uma metaforização da referência, no quadro de uma teoria da denotação generalizada, sugerindo, como hipótese, que a metáfora, ao destruir o sentido literal, por uma predicação impertinente, suscitaria a abolição da referência literal do enunciado e abriria a possibilidade de um novo visado referencial. Deste modo, parece-me ficar legitimada a aproximação feita pelo autor entre a inovação semântica e a Dichtung, uma vez que, claramente, se atribui à linguagem poética poderes de revelação que estão como que bloqueados noutros usos da linguagem. Esta ideia da radicação mais ontológica da linguagem poética é, aliás, reiterada por Ricoeur em muitas outras passagens da sua obra, nomeadamente no que diz respeito à articulação entre o poético e a experiência ontológicas de se ser no mundo. Cito uma que considero particularmente elucidativa: 19 A obra referida é: Mary B. HESSE, “The explanatory function of metaphor”, in BAR-HILLEL(ed) Logic. Methodologiy and Philosophy of Science, Amsterdam, North-Holland, 1955. 20 Paul RICOEUR, Temps et récit, I, op. cit., p. 13 8 “O que o discurso poético traz à linguagem é um mundo pré-objectivo onde nos encontramos já desde o nascimento, mas também no qual projectamos os nossos possíveis mais próprios. É, pois, necessário abalar o reino do objecto para deixar ser e deixar dizer a nossa pertença primordial a um mundo que habitamos, isto é, que simultaneamente, nos precede e recebe a marca das nossas obras.”21 É neste contexto de fundar a referencialidade da linguagem metafórica ou da sua inscrição no interior do pensamento verdadeiro que avulta a importância do tema da semelhança na explicação das metáforas, tema para cuja estruturação Paul Ricoeur desenvolverá um diálogo com Aristóteles e com Kant, como já foi dito. O cuidado inicial posto no tratamento da semelhança – e para o qual se convoca Aristóteles quando refere que a virtude das boas metáforas deriva de serem “apropriadas” ou de terem um “parentesco quanto ao género”22 –, é indicativo da linha de orientação de fundo: trata-se da distinção entre semelhança e identidade. Falar em semelhança no decorrer da construção e da leitura das metáforas não significa nem mistura nem fusão semântica entre o mesmo e o diferente. Pelo contrário, nas metáforas, eles permanecem opostos, sendo inclusivamente dessa oposição, como se viu, que nasce o sentido metafórico, como sentido novo. A força das metáforas reside na estranheza, na distância e no salto semântico que as faz viver; a unidade de significação para a qual a metáfora apela e que transforma o enunciado metafórico num enunciado auto-contraditório, mas significativo, não corresponde a um processo de totalização e antes à abertura de um horizonte de significação sem possibilidade de uma unificação última. Para usar as próprias palavras do autor ”[…] ver o tempo como um mendigo, é, precisamente, saber também que o tempo não é um mendigo; as fronteiras do sentido são transgredidas, mas não abolidas.”23 No quadro deste debate, Paul Ricoeur volta a convocar a diferença entre semiótica e semântica de Benveniste, explicitando que a temática da semelhança, dentro de uma teoria da metáfora como impertinência predicativa, se relaciona com o tipo de unidade sintética produzido pelo enunciado metafórico: “Dito de outra maneira, a semelhança, se tem alguma coisa a ver com a metáfora, é por causa do carácter de atribuição dos predicados e não da 21 Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 387. Cf., Ibidem, p. 247. 23 Ibidem, p. 271. 22 9 substituição das palavras. O que produz a nova pertinência é uma espécie de “proximidade” semântica que se estabelece entre os termos, apesar da sua “distância”. Coisas que até esse momento tinham estado “afastadas”, de repente, parecem “vizinhas”.”24 Desta forma, poder-se-á falar de um círculo hermenêutico entre o tema da semelhança e o da metáfora, na medida em que se elucidam mutuamente: “Ora, é a metáfora que revela a estrutura lógica do “semelhante” porque, no enunciado metafórico, o “semelhante” é percebido a despeito da diferença, apesar da contradição.”25 Esta diferenciação entre semelhança e identidade funda o carácter mediato da metáfora e a sua dimensão de mediação para um sentido prospectivo, para um a vir em termos de significação, levando Ricoeur a explicar a construção e a leitura das metáforas através de uma dialéctica circular entre intuição e discursividade. Vai fazê-lo, retomando parcialmente outras argumentações, como é seu hábito26, e utilizando as ideias de epífora e diáfora para legitimar a dupla dimensão de insight, ou visão intuitiva e a de construção discursiva. Não há, diz, epífora sem diáfora. Isto é, não há transporte das significações ou assimilação entre ideias estranhas e separadas na sua significação estabelecida, sem que, ao mesmo tempo, se processe uma desconstrução e uma reorganização do que está semanticamente estatuído. É este processo circular que funda a possibilidade de uma metáfora viva poder ser infinitamente parafraseada e nunca traduzível. Organizado todo o processo de tematização a partir da estrutura matricial aristotélica e em diálogo com o conjunto da produção teórica a respeito do tema da metáfora, resta a Paul Ricoeur encontrar o esteio filosófico restrito para dar garantia à possibilidade de introduzir a metáfora no campo da filosofia. Esse esteio é constituído pelo esquematismo de Kant e pela sua perspectiva sobre a imaginação trancendental. A teoria da imaginação, que suporta os trabalhos de Paul Ricoeur, tem em Kant a sua fonte matricial mais funda. Do meu ponto de vista, o texto mais lapidar sobre esta questão é L'imagination dans le discours et dans l'action27, onde realiza uma avaliação daquilo que lhe parece justificar o lugar marginal da imaginação quanto ao seu poder 24 Paul RICOEUR, La Métaphore vive, op. cit., p. 246. Ibidem, p. 249. 26 Neste caso, WHEELWRIGHT, Metaphor and Reality, Indiana University Press, 1962. cf., Ibidem, pp. 247 e ss. 27 Texto de 1976 e integrado em Paul RICOEUR, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Paris, Seuil, 1986, pp. 213-236. 25 10 efectivo na interpretação da realidade. Nesse intuito, identifica como razão essencial dessa situação a ligação entre imaginação e imagem, ligação essa que decorre do facto de apenas a percepção ser tomada como modelo cabal da relação com o real. Daí que a imaginação fique relegada para um plano secundário em relação à matriz logóica paradigmática. Assim, vai propor uma análise da imaginação não através da percepção, mas através da linguagem, centrando na imaginação a capacidade de conceber e interpretar a metáfora como impertinência semântica: "De repente, vimos como; vimos a velhice como o entardecer, o tempo como um mendigo (...). Em suma, o trabalho da imaginação é de esquematizar a atribuição metafórica. Como o esquema kantiano, ela dá uma imagem a uma significação emergente. Em vez de ser uma percepção que se esfuma, a imagem é uma significação emergente."28 Ou seja, é o recurso à concepção kantiana do esquematismo, segundo a qual a imaginação tem a capacidade de fornecer um esquema para a construção de uma imagem, que permite a Ricoeur legitimar a possível superação da impertinência predicativa auto-destrutiva e gerar as condições para uma nova pertinência. Dito de outro modo, a imaginação, como método para aproximar campos semânticos afastados, é a condição de possibilidade de que um enunciado inicialmente absurdo possa ultrapassar o seu impasse lógico e reconvertê-lo numa significação emergente. Isto é, tal como em Kant, a função mediadora da imaginação consiste em criar uma estrutura – o esquema transcendental – que permita homogeneizar entidades, à partida não homogéneas29. No esquematismo de Kant, a imaginação é o método para aproximar o entendimento da sensibilidade, permitindo que os conceitos puros se possam aplicar às intuições sensíveis; analogicamente, Ricoeur vai recuperar essa função mediadora da imaginação para poder pensar o enunciado metafórico como uma atribuição predicativa impertinente, conferindo ao poder mediador da imaginação, a capacidade de se poder passar a ver o tempo como um mendigo, ou uma morta viva. Em síntese, a teoria ricoeuriana da metáfora como predicação transgressora, por relacionar campos semânticos heterogéneos e logicamente incompatíveis, assenta na concepção kantiana da imaginação e da sua função transcendental. Da mesma maneira, é o horizonte do esquematismo kantiano que assegura à inovação semântica a 28 29 Ibidem, p. 219. Cf. I. KANT, KrV., A 137/B 176-A 140/B 179. 11 legitimidade de ser promessa de sentido novo e um aguilhão para pensar mais profundamente o sentido do sentido. Todavia, é possível levar mais longe a análise da importância de Kant nesta questão, nomeadamente quanto ao papel fundante da imaginação. Se nos ativermos ao final da afirmação ricoeuriana citada –:”Em vez de ser uma percepção que se esfuma, a imagem é uma significação emergente” –, poderemos verificar que nela se dá prioridade à significação sobre a percepção que aparece como sendo contextualizada por aquela. Nessa medida, poderia ler-se aqui uma recuperação da imaginação como o elemento sustentador do processo cognoscitivo, à maneira de Kant, para quem a imaginação pura é vista “como faculdade fundamental da alma humana, que serve a priori de princípio a todo o conhecimento."30 A mise en intrigue como inovação semântica Como acabou de ser analisado, a questão da inovação semântica é tecida em relação directa com a da metáfora31. No entanto, se Ricoeur apresenta Temps et récit et La Métaphore vive como obras urdidas a partir da mesma temática, há que procurar também em Temps et récit e no seu núcleo central – a questão da narrativa – a figura da inovação semântica. Temps et récit representa, no percurso ricoeuriano, o momento de re-direccionalização da sua preocupação investigativa para o campo da acção, tema com que, em 1950, tinha apresentado o seu projecto filosófico sob a designação de Filosofia da Vontade. No entanto, o retomar do tema do agir vai agora ser realizado no contexto teórico decorrente da problemática hermenêutica e, dentro desta, no quadro da procura do sentido da dimensão poética da linguagem para a compreensão da realidade humana. 30 Ibidem, A 124. Todas as citações de Kant, da KrV, são retomadas da tradução portuguesa dessa obra, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, sendo da autoria de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre F. Morujão. 31 Os exemplos mais marcantes da relação privilegiada entre metáfora e inovação semântica são os dois seguintes textos de Ricoeur: “The function of Fiction in shaping reality”, in M.VALDÈS, A Ricoeur Reader, op.cit., pp. 117-136, onde a ficção não é assimilada a nenhum género literário específico, sendo antes apresentada como uma actividade peculiar da linguagem, ligada ao trabalho da imaginação, de que a metáfora é a chave do funcionamento, e “La métaphore et le problème central de l’herméneutique”, Revue Philosophique de Louvain, 70, 1972, pp. 93-112, no qual a metáfora representa um guia e uma mediação intrínseca para o aprofundamento compreensivo da interpretação como cerne da questão hermenêutica. Esta última ideia aparece igualmente em Interpretation Theory, que introduz a questão da metáfora como um incontornável numa teoria geral da significação. 12 Ora, diz Ricoeur, a narrativa, ao representar o texto por excelência, pode ser a mediação fundamental para abordar a problemática do agir e, através dela, da temporalidade: . “La Métaphore vive investigou os recursos da retórica para mostrar como a linguagem passa por mutações e transformações criativas. O meu trabalho sobre a narratividade, Temps et récit, desenvolve esta pesquisa do poder inventivo da linguagem. Aqui, a análise das operações narrativas no texto literário, por exemplo, pode ensinar-nos a formular uma nova estrutura do “tempo” pela criação de novas formas de intriga e de caracterização.”32 Nestas palavras de Ricoeur, importa-me salientar duas coisas: 1. a relação directa estabelecida por elas entre a investigação sobre a narratividade e o poder inventivo da linguagem; 2. a evocação do tema do tempo para o interior desta pesquisa. Uma e outra evidenciam o que vai estar em jogo na trilogia Temps et récit e é o seu entretecer mútuo que volta a apelar para Kant. A investigação ricoeuriana sobre a narrativa corresponde ao tratamento do tema de mise en intrigue, ou seja, da compreensão do processo de compor intrigas, compreensão essa que o autor leva a cabo com base numa definição de poética como “a arte de “compor intrigas””33, e a partir da afirmação de Aristóteles de que “é a intriga que é a representação da acção”. Nesse trabalho de análise, funcionarão conjuntamente duas ideias fulcrais: por um lado, a ideia de que a construção de uma intriga se prende com uma actividade produtora de sentido, e, por outro, a de que tal actividade é uma composição, isto é, um modo de produzir uma totalidade de sentido que não é uma síntese perfeita, mas antes um jogo entre elementos heterogéneos e que, por isso, representa um equilíbrio instável, ou, em termos ricoeurianos, uma concordância-discordante. Vai estar, portanto, em questão a importância do todo, ou seja, de que a intriga descreva uma arquitectónica unitária de sentido onde seja possível discernir um princípio, um meio e um fim. A realização desta totalidade de sentido faz-se a partir da inter-acção de elementos de natureza heterogénea. Em primeiro lugar, pela construção de uma história através da composição de incidentes individuais ou de acontecimentos, originando “uma configuração de uma simples sucessão”34. Em segundo lugar, compor uma intriga é produzir uma organização de elementos de 32 Entrevista sobre a criatividade da linguagem concedida a Richard Kearney, em Paris, em 1981 e inserida em : M.VALDÉS (ed), A Ricoeur Reader, New York-London-Toronto-Sidney-Tokio-Singapura, Harvester Wheatsheaf, 1991, pp. 463- 481, p. 463. 33 P. RICOEUR, Temps et récit, I, op. cit., p. 57. 34 Ibidem p. 102. 13 natureza totalmente diferente: “agentes, finalidades, meios, inter-acções, circunstâncias, resultados esperados, etc.”35. Por fim, tem de haver uma lógica no processo narrativo que não decorra da simples cronologia, e antes “combine, em proporções variáveis, duas dimensões temporais, uma cronológica, outra não cronológica. A primeira constitui a dimensão episódica da narrativa […]. A segunda é a dimensão configurante propriamente dita, graças à qual a intriga transforma os acontecimentos em história”36. Paul Ricoeur designa esta estrutura lógica por lógica poética, através da qual a mise en intrigue cria processos de inteligibilidade que originam novas figuras de mundos possíveis ou de universais possíveis, acrescentando que esta lógica poética se inscreve num conceito prospectivo de verdade em que “inventar é encontrar”37. Desta maneira, tal como a metáfora, a intriga ou enredo – aquilo pelo qual a narrativa imita e recria a acção humana – tem uma função de mediação, cujo funcionamento Paul Ricoeur vai explicitar com recurso a Kant. E fá-lo por duas vias inter-relacionadas: pela aproximação à teoria kantiana do juízo e pelo recurso ao esquematismo trancendental. É a ideia de “prendre ensemble”, ou seja, de configurar uma totalidade, que leva Ricoeur a fazer a aproximação com a perspectiva kantiana sobre o juízo em geral e sobre o juízo reflectinte, em particular, na medida em que considera que, para Kant, “o sentido transcendental do juízo consiste menos em juntar um sujeito e um predicado do que colocar um diverso intuitivo sob a regra de um conceito”38. É esta subsunção transcendental da diversidade empírica, através da qual se realiza a universalização do particular, que Paul Ricoeur compara ao processo da mise en intrigue enquanto operação “que extrai uma configuração de uma simples sucessão”, tendo a estrutura do todo – isto é, a história propriamente dita –, em relação aos diferentes elementos que a constituem, uma função análoga àquela que a regra do conceito tem no que respeita à intuição, que é a de conferir inteligibilidade e universalidade. Se se tiver em conta a distinção, feita por Kant na sua Introdução à Critica do Juízo, entre o juízo “determinante” e o “reflectinte”, pode-se perceber a razão pela qual Ricoeur considera que o “prendre ensemble” tem um parentesco privilegiado com o juízo reflectinte. Na verdade, Kant explica que, ao contrário do juízo determinante em 35 Ibidem. Ibidem, p. 103. 37 Ibidem, p. 70. 38 Ibidem, p. 104. 36 14 que o universal ou o princípio é dado, no juízo reflectinte só o particular é dado, sendo sobre ele que tem de ser encontrado o universal e, por isso, o juízo reflectinte não é um juízo prescritivo ou legislador por não ter domínio em termos de objecto. Nessa medida, a universalização que realiza tem a dimensão de um possível que se enraíza num princípio ou numa lei que o espírito se dá a si próprio. Gilles Deleuze39 analisa esta diferença kantiana entre os dois tipos de juízo, salientando a forma como neles se dá o acordo entre as diferentes faculdades. No juízo determinante, o acordo acontece sob a jurisdição de uma das faculdades: o entendimento, no plano teórico e a razão, no plano prático. Quanto ao juízo reflectinte, esse acordo é indeterminado e livre, tomando, mesmo, a figura de jogo. Diria, pois, que o que permite aproximar o “prendre ensemble” do perspectiva kantiana sobre os juízos reflectintes é, por um lado, a ideia de universal possível que cada intriga configura, e, por outro, esta ideia de jogo livre das faculdades que, no horizonte da função sintética da imaginação, permite a criação desses universais. É esta analogia da mise en intrigue com a função sintética da imaginação que permite a Paul Ricoeur falar de “esquematismo da função narrativa”40, na medida em que ela realiza o que ele também designa por síntese temporal do heterogéneo, sendo essa síntese realizada a partir de elementos de natureza diferente, como atrás se explicitou. Desta maneira, essa designação justifica-se pelo duplo papel que a temporalidade realiza na construção das intrigas, como antes se referiu: a dimensão cronológica e a não-cronológica. Como afirmava a citação, o aspecto cronológico do tempo diz respeito à simples sucessão dos episódios; contudo, o tempo não tem apenas essa função serial, tem, igualmente, a capacidade de se totalizar, ou seja, de assumir uma figura, onde é possível discernir um princípio, um meio e um fim. Metáfora, narrativa e poética da linguagem Creio ser lícito interpretar que, dar à inovação semântica a dupla figura da metáfora e da narrativa, decorre do objectivo ricoeuriano de explorar o potencial ontológico dos usos não meramente descritivos da linguagem, no horizonte da definição de uma forma de racionalidade aberta e prospectiva que, também no horizonte kantiano, 39 40 Gilles DELEUZE, La philosophie critique de Kant, Paris, PUF, 1963. Paul RICOEUR, Temps et récit I, op. cit., p. 106. 15 não perca de vista os seus limites, mas, contudo, não desista de explorar as fontes logóicas da linguagem, quando ela é usada por referência à sua radicação nas experiências humanas fundadoras. É esse grande objectivo que dá consistência à geminação temática de La Métaphore vive e Temps et récit. Assim, o fio subterrâneo de ligação entre estas duas obras prende-se, directamente com o pensamento de Kant em geral – na medida em que ele representa a afirmação de um modelo de filosofar pautado pelo reconhecimento dos limites da razão –, e, especificamente, naquilo que diz respeito ao papel da imaginação transcendental e do esquematismo. Ao nível da metáfora, é o funcionamento da imaginação como método de síntese do heterogéneo que permite superar a perplexidade decorrente da impertinência predicativa do enunciado metafórico, fazendo emergir um sentido novo, através da aproximação de campos semânticos antes separados. De maneira equivalente, ao nível da narrativa, esse funcionamento legitima que a mise en intrigue configure uma nova totalidade de sentido a partir da organização de elementos heterogéneos entre si e combinados através de uma síntese temporal. II A problemática do mal e o formalismo ético de Kant O tempo e o mal são os dois temas alimentadores da investigação ricoeuriana, determinando os caminhos que essa investigação percorreu em busca de configurações de sentido capazes de os tornar inteligíveis para uma racionalidade e para uma discursividade finitas. Enquanto expressões da dimensão inescrutável da realidade e do seu excesso de significação, aqueles dois temas vão obrigar a pesquisa de Paul Ricoeur a enveredar por excursos temáticos e metodológicos, de modo a permitir, a uma razão limitada e a uma discursividade condenada ao eterno ensaísmo, a maior proximidade possível do seu núcleo de significação. É no percorrer desses caminhos que o encontro com Kant se perfila. Le mal. Un défi pour la philosophie et la théologie41 é o texto ricoeuriano que melhor sistematiza a sua posição sobre o mal, esclarecendo, a partir do próprio título, 41 Paul RICOEUR, Le mal. Un défi pour la philosophie et la théologie, Genève, Labor et Fides, 1986. Este texto sairá em breve em português, numa antologia de textos, Paul Ricoeur e a simbólica do mal, que as edições Afrontamento publicarão. Sobre a questão do mal, tema muito explorado no pensamento de Ricoeur, gostaria de identificar, como um bom estudo, o texto de Olivier MONGIN, “La pensée du mal chez Paul Ricoeur, un parcours aporétique”, Le Supplément, 172, Paris, 1990, pp. 37-64, texto que será incluído na antologia que acabou 16 que a questão do mal é um desafio. O mal é um desafio porque é um escândalo e é sempre injustificável, resistindo, por essa razão, à pacificação conceptual, mas, ao mesmo tempo, fazendo dessa resistência um estímulo para se poder pensar mais profundamente o sentido da realidade. Dentro do percurso ricoeuriano, em torno da questão do mal, há que destacar três temas essenciais e que constituem a sua espinha dorsal: 1. a recusa radical da perspectiva gnóstica sobre o mal; 2. a superação de uma visão moral do mundo, na análise da problemática do mal; 3. a afirmação de que o tratamento teórico ou especulativo do mal é insuficiente, obrigando a um confronto com o mal, da ordem da praxis. Qualquer destes temas atesta que o mal é um irrecusável para a razão e, simultaneamente, um excesso em relação à possibilidade racional. Kant é o interlocutor privilegiado, na elaboração dos primeiro e segundo temas indicados. Embora a posição kantiana não seja totalmente aceite por Ricoeur, todavia, num primeiro momento, Kant vai constituir o recurso teórico fundamental para afastar a ideia do mal como substância e, portanto, para superar a perspectiva gnóstica42. Na verdade, na medida em que “A visão moral do mundo pensa contra o mal-substância e de acordo com a queda do ser humano primordial”43, pode constituir-se como uma mediação essencial para abandonar a perspectiva da ontologização do mal, que faz dele um dado totalmente exterior à existência humana, uma vez que, relacionando o mal com a queda do ser humano primordial, o coloca na esfera da liberdade humana, permitindo pensar, em termos de reciprocidade, mal e liberdade. A possibilidade de convocar para a reflexão do mal o mito adâmico conduz, directamente, a uma configuração do mal que, por um lado, remete para a sua natureza incomensurável, protagonizada pela figura da serpente, representando o “desde sempre já dado” do mal, e, por outro, explicita que a emergência do mal no mundo é o resultado da liberdade humana. Por outras palavras, o mito de Adão, ao descrever a co-presença da concepção do mal como dado – a tentação da serpente – e a do mal cometido – a aceitação da tentação, põe em destaque o carácter de desafio do mal, quer para a filosofia, quer para a teologia. de ser referida. No contexto da produção nacional, parece-me importante destacar sobre este tema o trabalho de J. de Sousa TEIXEIRA, “Paul Ricoeur e a problemática do mal”, Didaskalia, 1(VII), Lisboa, 1977, pp. 43-129. 42 Ricoeur serve-se, para este efeito, igualmente de Santo Agostinho, mas é em Kant que radica o essencial da sua argumentação, do meu ponto de vista. 43 Paul RICOEUR, Le conflit des interprétations, Paris, Seuil, 1965, p. 297. 17 Com base no formalismo ético de Kant, na sua dupla vertente de formalismo e de autonomia, que define a ética como um campo teórico próprio e que se constitui com base em procedimentos transcendentais, Paul Ricoeur pode afirmar que “(...) o mal reside numa relação, ou seja na subversão de uma relação” e que o mal “é o que acontece […] quando o ser humano subordina o puro motivo do respeito aos motivos sensíveis.”44. Ou seja, retomando directamente a argumentação kantiana, Ricoeur repetirá que o mal resulta de uma falsa organização dos motivos do agir, ou da “justificação fraudulenta da máxima pela conformidade aparente com a lei […].”45Isto quer dizer que o mal resulta de uma máxima má que, sendo uma regra do próprio livre arbítrio, subtrai o mal do plano da sensibilidade e dimensiona-o no interior da organização das máximas: “Se o mal reside em algum lugar é, exactamente, nas máximas das nossas acções, pelas quais hierarquizamos as nossas preferências, colocando o dever acima do desejo ou o desejo acima do dever. O mal apenas pode consistir numa reversão de prioridade, numa inversão, numa subversão, ao nível das máximas da acção.”46 É esta ideia do mal, dentro dos quadros de uma visão moral do mundo, que sustenta a primeira obra que constitui o conjunto Finitude et culpabilité, editado em 1960, e cujo título é L’Homme faillible47. Na realidade, nessa obra, Ricoeur, em diálogo directo com Kant, vai tentar uma dedução transcendental do princípio antropológico que possa aparecer como a condição de possibilidade da emergência do mal no mundo. Tal princípio é protagonizado pela labilidade ou fragilidade de um ser cuja natureza é a desproporção ou incoincidência entre uma finitude, como matriz existencial e uma infinitude, como horizonte de realização. A passagem por Kant, no âmbito da problemática do mal, vai ter ainda uma outra dimensão importante nesta questão, uma vez que serve também como recurso teórico para evidenciar a irredutibilidade do mal a qualquer modelo de saber absoluto ou de totalização conceptual. Partindo da posição kantiana, Paul Ricoeur vai explicitar a diferença existente entre o poder-se tornar inteligível a inclinação humana para o mal, através do estabelecimento de que ele seja a condição de possibilidade das máximas 44 Ibidem, p. 299. Ibidem. 46 Paul RICOEUR, “Une herméneutique philosophique de la religion: Kant”, in Lectures 3, Paris, Seuil, 1994, pp. 19-40, p. 22. 47 Paul RICOEUR, L’Homme faillible, Paris, Aubier-Montaigne, 1960. 45 18 más, e o poder atingir-se a sua natureza, respondendo à questão o que é o mal?. Deste modo, pode afirmar com Kant que o mal será sempre da esfera do inescrutável como “(...) a experiência limite de um não-poder do nosso poder moral”48. No interior da economia da argumentação ricoeuriana sobre o mal, esta passagem por Kant é, pois, determinante, por permitir deixar justificado o abandono da perspectiva do mal como substância e por alicerçar a posição acerca da dimensão racionalmente inexpugnável do mal; no entanto, a visão moral do mundo de Kant constitui também um momento a ser superado, por não satisfazer as exigências ricoeurianas na abordagem da problemática do mal. Ao decorrer de uma lógica de reciprocidade, a visão moral do mundo corresponde à perspectiva que Ricoeur caracterizará como o peso do mito no pensamento do mal49, ou seja, como uma vontade de retrospecção e de explicação, escamoteando a radical dimensão misteriosa do mal, ao mesmo tempo que inverte a direcção segundo a qual o mal deve ser pensado, que é a do futuro: “Aquilo que é próprio do mito (...) é puxar-nos para trás, enquanto que o nosso problema perante o mal é, se o ouso dizer, pensar para a frente, em direcção ao futuro.”50 Este “pensar para a frente” tem duas implicações: 1. em primeiro lugar, reconhecer que o mal é irredutível a qualquer explicação conceptual, excedendo a esfera teórica e qualquer sistema explicativo totalizador; 2. em segundo lugar, remeter a relação humana com o mal para o plano da acção, pondo também em relevo o papel do sentimento nessa relação.51 Ricoeur apresenta esta interpretação de modo sistemático na sua obra fundamental sobre o mal, anteriormente citada, propondo uma análise da problemática do mal que realize uma dinâmica entre as esferas do pensamento, da acção e do sentimento: “Concluindo, quereria sublinhar que o problema do mal não é apenas um problema especulativo: ele exige a convergência entre pensamento, acção (...) e uma transformação espiritual dos sentimentos.”52 48 Ibidem, p. 27. P. RICOEUR, “Le scandale du mal”, Esprit, 140-141, Paris, 1988, pp. 57-63. 50 Ibidem, p. 59. 51 No artigo atrás referido de Olivier Mongin, são apresentadas as quatro direcções da acção propostas pela perspectiva ricoeuriana: 1. A vivência religiosa; 2. A esfera do político; 3. A sabedoria prática; 4. A narração (fazer memória das vítimas). 49 19 Esta transformação espiritual dos sentimentos, que Ricoeur aproxima daquilo que Freud designava como trabalho de luto, é, no fundo, uma exigência do carácter escandaloso e injustificável do mal, e quer evidenciar que a relação humana com o mal obriga a uma experiência pessoal que, incorporando o não-saber como constitutivo da relação humana com ele, saiba integrar a sua dimensão misteriosa e, embora não abandonando a explicação daquilo que for explicável no mal existente no mundo, se ocupe menos com o porquê do mal e mais com a sua erradicação. Mas também aqui, na reiteração do não-saber constitutivo em que assenta o nosso viver, é a ressonância da perspectiva kantiana sobre os limites do saber que se faz ouvir. -----------------------------Fernanda Henriques é Docente na Universidade de Évora, desde 1995 e Doutorada em Filosofia, na área da Filosofia Contemporânea, pela mesma Universidade, com uma tese sobre Paul Ricoeur. É membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e vice-presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres. Faz, igualmente, parte do Conselho Editorial da Revista ex aequo, desde a sua fundação em 1999. Várias publicações individuais, bem como participação em obras colectivas, nas áreas da Filosofia Hermenêutica, da Filosofia da Linguagem e dos Estudos sobre as Mulheres, quer nacionais quer estrangeiras. 52 Paul RICOEUR, Le Mal ..., op. cit., p. 38. 20