Artigo SBPJor – anais – teste

SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Notícias e mito: contribuições para uma aproximação entre
narrativas mitológicas e narrativas midiáticas
Gabriella Nunes de Gouvêa 1
Resumo: A dimensão simbólica do discurso midiático induz as notícias a transcenderem a função de mediadoras do real, dando a elas o status de estruturadoras da realidade: por meio da
fixação de modelos, valores, ideologias e crenças, a mídia estabelece, reproduz e recria normas
de comportamento, modos de ordenamento social, sintetiza representações e atua, então, como
um sistema simbólico duradouro garantidor da coesão social. Nesse sentido, o presente artigo
analisa construções teóricas de diversos autores relativas ao conceito de mito e o aproxima das
narrativas midiáticas.
Palavras-chave: narrativas midiáticas; mito; imaginário social; notícias; discurso.
1. As notícias e seus sentidos culturais
Na sociedade mediatizada, as instituições, as práticas sociais e culturais articulam-se diretamente com os meios de comunicação, de tal maneira que a
mídia se torna progressivamente o lugar por excelência da produção social do
sentido (SODRÉ, 2010, p. 29)
Para além de mediar a relação entre os sujeitos e a realidade, a mídia atua como
instância de estruturação do real: na medida em que necessita apresentar um determinado fato ao seu público, a mídia seleciona, contextualiza, recontextualiza, estrutura e define as ocorrências sociais segundo códigos intra e extra organizacionais. Em Discurso
1
Jornalista (UFG), especialista em Assessoria em Comunicação Pública (Iesb) e mestranda em Comunicação (UnB). Orientador: prof. Dr. Luiz Gonzaga Motta - linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade.
1
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
das Mídias, Charaudeau (2009) lembra que os meios de comunicação funcionam sob
uma dupla lógica: econômica – na medida em que atuam como empresas, fabricantes de
um determinado produto – e simbólica, considerando a importância que exercem na
construção da opinião pública. Nesse sentido, o autor afirma que um estudo da “máquina midiática” não pode prescindir de uma análise que leve em conta seus três lugares de
construção de sentido: produção, produto e recepção.
Especificamente em relação ao primeiro deles, Charaudeau destaca que além
das condições socioeconômicas da empresa jornalística (modos de funcionamento e
hierarquização do trabalho, por exemplo), há que se pensar ainda nas condições semiológicas de produção da notícia, ou seja, para apresentar um determinado fato ao seu leitor, o jornalista lança mão não só dos valores-notícia, como também do conjunto de
significações, da rede simbólica de interpretações das quais dispõe - inconscientemente
ou não - a fim de tornar aquele fato inteligível (MOTTA, 2000). Como destaca Sodré
(2010), não há como reduzir as mudanças culturais contemporâneas a questões meramente econômicas, políticas ou mercadológicas. As dimensões ideológicas não podem
ser dispensadas quando se trata de pensar o papel dos meios de comunicação na sociedade industrial. Até mesmo porque as questões econômicas, políticas e mercadológicas
estão diretamente imbricadas com relações ideológicas, de poder. Nesse cenário, a notícia – para além de informar – situa o indivíduo na sociedade: “como uma prática discursiva de construção de significados sobre os acontecimentos, cabe ao Jornalismo ampliar
o conhecimento sobre a realidade” (MOTA, 2012, p. 207).
Pensar em estruturação do real por meio das notícias implica, por sua vez, pensar o papel da linguagem na construção das representações simbólicas. Comunicação
refere-se “à ação de pôr em comum tudo aquilo que, social, política ou existencialmente, não deve permanecer isolado” (SODRÉ, 2010) e, nesse sentido, ganha destaque o
papel da linguagem como forma de assegurar a ação comunicativa.
O discurso, por sua vez, sendo uma “estratégia interlocutória do sujeito social”
(SODRÉ, 2010, p. 12), se constitui como fundamento da linguagem permitindo organizá-la com vistas a estabelecer a interação e a compreensão entre os indivíduos. De acordo com Eni Orlandi (1994), o discurso é um espaço específico de produção de sentidos,
pois é nele que se evidenciam as relações entre linguagem e ideologia na medida em
2
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
que o sujeito articula o conjunto de crenças, valores, normas que compartilha com outros sujeitos e que vão sendo adquiridas ao longo da vida, por meio das interações sociais.
Em Ideología: uma aproximación multidisciplinaria (1999, p. 19), Van Dijk
ressalta que o enfoque sobre ideologia não pode prescindir do componente discursivo:
segundo ele, ainda que não sejam as únicas práticas sociais baseadas na ideologia, os
discursos são efetivamente fundamentais na sua formulação e reprodução social. Assim,
“o discurso contém [...] um sistema de valores, isto é, estereótipos dos comportamentos
humanos que são valorizados positivo ou negativamente. Ele veicula os tabus comportamentais”, afirmou José Luiz Fiorin (2007).
Em se tratando de notícias, a estruturação do discurso se apresenta como um
ponto central: o uso e disposição das estratégias narrativas determinarão o poder persuasivo do discurso em questão. Afinal, a persuasão se coloca como importante fundamento das concepções teóricas apresentadas inicialmente, acerca do papel estruturador da
realidade operado pela mídia.
Para Adilson Citelli (2004, p. 6), “é possível afirmar que o elemento persuasivo
está colado ao discurso como a pele ao corpo”. Persuadir significa buscar a adesão de
outros indivíduos a uma determinada ideia, perspectiva e, para isso, nem sempre o interlocutor necessita trabalhar com a verdade: muitas vezes a verossimilhança 2 é suficiente.
No caso das notícias, é a “validade interna” de que fala Gaye Tuchman (1999, p. 262).
Para se ter ideia da importância exercida pela estruturação do discurso no âmbito midiático, Citelli (2004) destaca uma fala do dramaturgo alemão Bertolt Brecht
segundo o qual “uma das funções de quem trabalhava com comunicação de massa seria
nomear corretamente as coisas”. Acerca disso, Citelli complementa: “como se vê, a linguagem não é ingênua, e os recentes modos de dizer podem estar escondendo novas
formas de organizar a sociedade” (2004, p. 35). Como disse certa vez Carlos Drummond de Andrade (2001, p. 113), a tarefa de “desencantar” as palavras é a senha da vida, a senha do mundo.
2
Verossímil é “aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria lógica” (CITELLI, 2004).
3
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Importante destacar aqui que ao elaborar um discurso o sujeito - mesmo que
nem sempre de forma consciente - está se posicionando, destacando valores e assumindo uma postura enunciativa (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 393) que
reflete quais são suas construções simbólicas. Como destaca Fiorin (2007, p.35), o discurso não é a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto de
discursos que vão sendo interiorizados pelo indivíduo ao longo da vida. Logo, não há
individualidade discursiva absoluta.
Assim, avançamos aqui um pouco mais a partir das noções iniciais – sobre as
notícias e a estruturação do real – acrescentando-lhes uma nova perspectiva, adicional:
as narrativas midiáticas como sistemas simbólicos, pois na medida em que informam e
explicam, também fornecem referências à vida social, difundem valores, crenças, normas de comportamento, pontos de vista (BIRD; DARDENNE, 1999). E é justamente
essa concepção que justifica o uso da expressão narrativas midiáticas: o discurso construído pelos meios de comunicação, na medida em que dissemina valores culturais, são
sim estórias, e sem que isso signifique abandonar a noção de realidade social sob a qual
se apoia o jornalismo e adotar uma posição puramente ficcional. “É claro que o conteúdo explícito das notícias importa. Mas importa menos pela absorção de seus significados imediatos e muito mais pelos sentidos culturais que disseminam”, destaca Motta
(2002, p. 14).
Na medida em que se apresentam como sistemas simbólicos de uma dada sociedade, as notícias se constituem, então, como mitos: ambos atuam como modelo de e
para uma cultura (BIRD; DARDENNE, 1999, p. 266). Nelas estão contidas expressões
do imaginário social compartilhado pelos sujeitos e, aqui, imaginário é entendido como
um sistema de conteúdos representativo de uma dada sociedade e por meio do qual se
formam as representações humanas.
O imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que
atuam como memória afetiva de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade. Trata-se de uma produção coletiva, já que é o depositário da memória que a família e os grupos recolhem de seus contatos com o
cotidiano. Nessa dimensão, identificamos as diferentes percepções dos atores
sobre si mesmos e de uns sobre os outros, ou seja, como eles se visualizam
enquanto partes de uma coletividade (MORAES, 1994, p.28).
4
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
O imaginário se expressa, portanto, por meio dos mitos – assim como das ideologias, por exemplo -, os quais “plasmam visões de mundo e modelam condutas e estilos de vida” (MORAES, 1994, p. 38). Para Juremir Machado da Silva (p.2), o imaginário é mais do que um conjunto de imagens: é uma “rede etérea e movediça de valores e
de sensações partilhadas concreta ou virtualmente”.
Mas qual é, exatamente, o entendimento que se tem no presente estudo sobre o
conceito de mito e que nos permite considerar as notícias como uma espécie de narrativas mitológicas?
2) Mito: discurso, persuasão e valores simbólicos
Mircea Eliade, Roland Barthes, Gilbert Durand, Ernst Cassirer, Luis Felipe
Miguel e Michel Maffesoli destacam-se entre os autores que, neste artigo, apresentam
contribuições significativas para a compreensão do conceito de mito aplicado às notícias. Vale lembrar que os estudos desenvolvidos por esses autores partem de âmbitos
distintos: seja das religiões, da política, do Estado, e até mesmo dos próprios meios de
comunicação como é o caso de Durand (1998), que realiza um estudo acerca do imaginário a partir do que ele intitula “explosão do vídeo”, ou seja, o crescente progresso das
técnicas de reprodução por imagens e dos meios de comunicação especialmente a partir
do século XX quando, segundo ele, surge a civilização da imagem.
Assim, a partir das contribuições obtidas junto às construções teóricas de cada
um dos autores acima mencionados, apresentamos a seguir as características estruturantes do conceito de mito utilizado na presente análise:
1) O mito é mediado pela linguagem: como discutimos anteriormente, a linguagem exerce papel fundamental nas construções simbólicas, uma vez que é por meio
dela – e aqui nos referimos não só à linguagem escrita como também à linguagem visual, como as imagens por exemplo – que é possível objetivar conteúdos essencialmente
subjetivos. É, aliás, a subjetividade que caracteriza o imaginário, no sentido de que ele
consiste em construções mentais ou, como afirma Moraes (1994, p. 47), uma vivência
subjetiva de um pensamento não verificável. Assim, é por meio da análise dos modelos,
5
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
princípios e comportamentos expressos pela linguagem que é possível acessar os conteúdos mitológicos.
Em Linguagem e mito, Cassirer (1972) traz estudos desenvolvidos por um outro autor, Max Muller, segundo o qual “a mitologia é a obscura sombra que a linguagem
projeta sobre o pensamento”. Roland Barthes (1993), por sua vez, desenvolve seus estudos a partir da semiologia: a síntese significativa, segundo ele, é o ponto elementar do
mito. Assim, “já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja
suscetível de ser julgado por um discurso” (1993, p.131). Em As estruturas antropológicas do imaginário, Durand (1997) apresenta as razões de sua discordância com relação ao pensamento de Barthes: pensar o mito como um sistema semiológico segundo
representa uma desvalorização do mito em relação à linguagem.
Ora, é esta secundaridade que a antropologia contesta: nem a psicologia da
criança, nem a psicologia do primitivo, nem a análise do processo formador
de imagem no adulto civilizado permitem afirmar que o símbolo seja segundo em relação à linguagem conceitual. Nada, absolutamente nada, permite
dizer que o sentido próprio prima cronologicamente, e com mais razão ontologicamente, o sentido figurado (DURAND, 1997, p. 394).
Julgamos pertinente apresentar aqui as visões distintas no que concerne a esta
primeira característica do mito, embora não seja nosso intuito aprofundar-nos nelas.
Ressaltamos, de toda forma, que não pretendemos reduzir o mito à linguagem, afinal, de
fato Cassirer (1997) tem razão quando afirma que o simbolismo é anterior à significância: mesmo antes de conhecer as estruturas semiológicas, as crianças, por exemplo, já
conseguem se comunicar e se fazer entender. De todo modo, tratamos aqui de discursos
midiáticos e, por isso, a linguagem se apresenta como elemento de mediação;
2) O mito se constitui a partir de e como uma realidade: ao discutir a função do
mito na vida social do homem, Cassirer (1976, p. 63) - em O mito do Estado – afirma
que o mito é uma objetivação da experiência do homem, não da sua experiência individual, e completa: “o mito genuíno não possui essa liberdade filosófica; porque as imagens sobre as quais ele vive não são conhecidas como imagens. Não são consideradas
como símbolos, mas como realidades”. Acerca disto, Maffesoli (2001, p.76) acrescenta:
6
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
“o imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual”. Aqui pretendemos mostrar que os mitos
tanto se constroem a partir de uma estruturação simbólica social pré-existente ao mesmo
tempo em que se apresentam como uma realidade. Vamos às explicações.
O imaginário social está repleto de valores, modelos e percepções sociais. Os
mitos são, assim, formas de expressão deste imaginário, ao mesmo tempo em que também fixam padrões, reatualizam, recriam e ressignificam o imaginário que os precede
em um processo contínuo.
As notícias devem ser compreendidas como um exercício de produção de sentido e de entendimento do mundo que responde não só a demandas pragmáticas – apreender a realidade objetiva e rotineira –, mas também a demandas subjetivas – nos elevar
para além do imediato diário e nos situar dentro de imensos edifícios de representação
simbólica (SILVA, 2010, p. 251).
Maffesoli (2001, p. 81), inclusive, ao comentar sobre as tecnologias do imaginário – como o cinema e a televisão -, sintetiza dizendo que “as tecnologias do imaginário bebem em fontes imaginárias para alimentar imaginários”. Segundo ele, a técnica é
um fator de estimulação imaginal. Para o pesquisador espanhol Albert Chillón (2000, p.
121), os meios de comunicação refletem os enunciados e modos de enunciação compartilhados socialmente.
É nesse sentido que desenvolvemos a segunda característica do mito: considerando tanto o sistema simbólico anterior à estruturação das notícias, quanto aquele que
se instaura por meio delas, sem deixar de lado a validade e a realidade que deles emerge.
A citação a seguir é um interessante exemplo de como se dá a de formação dos
mitos, a interferência social a que estão sujeitos e sua transformação em modelos sociais
legítimos:
Portanto, os conteúdos imaginários (os sonhos, desejos, mitos etc.) de uma
sociedade nascem durante um percurso temporal e um fluxo confuso, porém
importante, para finalmente se racionalizarem numa ‘teatralização’ de usos
‘legalizados’, positivos ou negativos, os quais recebem suas estruturas e seus
valores das várias ‘confluências’ sociais (apoios políticos, econômicos, militares etc.), perdendo assim sua espontaneidade mitogênica em construções filosóficas, ideologias e codificações (DURAND, 1998, p. 96).
7
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
3) O mito como um discurso persuasivo: segundo Mircea Eliade (19--, p. 10),
“a função mestra do mito é a de fixar os modelos exemplares”. Ao comentar sobre os
modernos mitos políticos, Cassirer (1976, p. 301) afirma que a palavra possui tanto uma
função semântica, descritiva, quanto uma função mágica, onde a persuasão é o ponto
central. Segundo ele, o mito é exemplo do predomínio da palavra mágica sobre a semântica. Retornamos, portanto, às questões que apontamos inicialmente acerca do discurso persuasivo acrescentando-lhe a noção de que, aqui, o discursivo midiático é um
discurso mitológico.
Segundo Durand (1998, p. 60), “o mito não é nem um discurso para demonstrar
nem uma narrativa para mostrar”: ele se serve das instâncias de persuasão. E é aí que o
autor discute o que chama de qualidade essencial do mito: a redundância. Para Durand,
a construção de um mito necessita contar com a repetição, ou sincronicidade, das ligações simbólicas que o compõem. “O mito não raciocina nem descreve: ele tenta convencer pela repetição de uma relação ao longo de todas as nuanças possíveis”, afirma o
autor (1998, p. 86).
Podemos relacionar essa terceira característica com a sensação que temos, ao
ler uma revista ou assistir o telejornal, de que aquela notícia não é nova para nós. A essa
sensação Motta (2000) chama ressonância: acontecimentos diferentes são codificados
da mesma forma, a partir das mesmas estruturas, dando-nos a ideia de que já lemos a
mesma notícia várias vezes.
4) O mito possui uma carga simbólica e valorativa: inicialmente, discutimos
sobre o esforço de interpretação feito pelos profissionais da mídia durante o trabalho de
estruturação dos fatos, tendo em vista obter a compreensibilidade de seu público. Nesse
processo o jornalista lança mão de recursos mentais conscientes, racionais, e de “impulsos inconscientes, as suas imagens mentais mais profundas” (MOTTA, 2000, p. 2). E é
justamente aí que as noticias adquirem sua carga valorativa: elas dizem o que é bom ou
mal, ético ou não. “O mito delineia as fronteiras do comportamento aceitável ao contar
estórias”, afirmam Bird e Dardenne (1999, p. 266). Assim, as percepções culturais contidas nas notícias vão sendo reforçadas no inconsciente coletivo sempre e a cada vez que
o público tem acesso a elas (aqui lembremo-nos da redundância de que fala Durand).
8
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Por isso que, para os antropólogos, o estudo das narrativas é tido como um
ponto de acesso à determinada cultura: por meio dos textos a sociedade codifica valores
e guias de comportamento. São as notícias um modelo simbólico que vai regular a atuação dos indivíduos.
5) O mito como meio de acesso ao imaginário social: uma vez que os mitos
comportam tamanha carga valorativa e simbólica das quais acabamos de falar, eles estão contidos justamente dentro de uma atmosfera (para utilizar um termo de Maffesoli)
maior, que é o imaginário. Segundo Juremir Machado da Silva, o imaginário é, ao
mesmo tempo, reservatório – das imagens e leituras de mundo que permeiam o social –
e motor, que impulsiona os indivíduos à ação: “o homem age (concretiza) porque está
mergulhado em correntes imaginárias que o empurram contra ou a favor dos ventos”
(SILVA, p. 3).
6) O mito como elemento de coesão social: ao tratar do mito no âmbito da política, Luis Felipe Miguel (2000, p. 38) afirma que esse é um recurso capaz de “garantir a
submissão das massas” e, assim, garantir também o funcionamento da sociedade. Nesse
sentido, o discurso mitológico funcionaria enquanto elemento de coesão social. No caso
em questão, tendo as notícias como mitos, não é diferente. Ao mesmo tempo em que
fixa normas, padrões e modelos de comportamento, a mídia estabelece formas de condutas que, quando transgredidas, são condenadas. Ou seja: a sociedade como um todo
passa a agir segundo regras pré-estabelecidas, formando um todo social homogêneo e
coeso.
A análise pormenorizada de cada uma das características que compõem o conceito de mito tal qual entendido no presente estudo fez-se necessária antes mesmo de
apresentarmos o conceito em si, uma vez que ela contribui para a compreensão do todo,
bem como das raízes teóricas de cada uma das noções. Assim, pensar a narrativa midiática como narrativa mitológica implica em considerar que o mito é um discurso que,
como uma realidade instaurativa, visa persuadir e convencer por meio da fixação de
modelos, valores, ideologias e crenças. Na medida em que sintetiza, cria e recria conte9
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
údos sociais de significativa carga simbólica e valorativa, o mito funciona como elemento de coesão social dentro de um determinado grupo.
Vale destacarmos, portanto, que - como explicitado no conceito acima - a concepção de mito da qual partimos na presente pesquisa não diz respeito à noção de mito
tal qual desenvolvida por Mircea Eliade, por exemplo, e que é a noção recorrente de
muitos de nós, ou seja, mito como forma de pensamento oposta ao lógico, racional e
científico, ou mesmo narrativas explicativas, de origem, os mitos cosmogônicos como
afirma Eliade - embora seja esse autor um dos que fornecem contribuições importantes
para pensarmos o conceito de mito no âmbito das notícias, da produção jornalística.
Essencialmente as concepções de Bird e Dardenne (1999) são muito valiosas para nós,
pois eles consideram as notícias como mito justamente pelos valores, crenças e normas
de comportamento que disseminam. Como afirma Dênis de Moraes (1994, p.35), os
meios de comunicação “exibem-se como arautos dos ideais de progresso e dos valores
comunitários, mas de fato prefiguram as representações do imaginário social”.
Pensar a notícia como uma narrativa mitológica implica em encarar que os fatos noticiados incluem sim recursos mentais conscientes do repórter, como também
aqueles que são projetados nas narrativas inconscientemente. Como sujeito social que
vive imerso em uma realidade, nem o jornalista, nem ninguém, está imune às construções do imaginário que permeiam os mais diversos campos da vida social. Onde quer
que estejamos somos bombardeados por pensamentos, ideias, concepções de mundo,
valores, crenças e, aos poucos, vamos formando nossas próprias construções simbólicas.
E é diante dessa desordem total, de informações e interpretações, que surgem
as notícias: como destaca Motta (2000, p.3), “as notícias põem ordem no caos de sentidos da sociedade moderna”. Isso implica em pensar que tanto as notícias quanto os mitos não contam as coisas como de fato elas são: eles as contam com seus próprios códigos simbólicos, os quais são reconhecidos pelos seus públicos. Para contar um fato, é
preciso que ele faça sentido cultural e simbolicamente ou, caso contrário, o público ao
qual me dirijo não irá se reconhecer ali e, logo, aquela narrativa não produzirá efeitos.
10
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Referências
BARROS, Ana Taís Martins Portanova. Comunicação e imaginário: uma proposta mitodológica. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, vol. 33, nº 2, jul/dez.
2010.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.
BERGER, Peter; LUCHMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes,
2003.
BIRD, Elizabeth; DARDENNE, Robert. Mito, registro e estórias: explorando as qualidades
narrativas das notícias. In: TRAQUINA, Nelson (org.); Jornalismo: questões, teorias e estórias.
Lisboa: Vega, 1999.
BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe (orgs.). Mídia, representação e democracia. São Paulo:
Hucitec, 2010.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix Pensamento, 1999.
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill; FLOWERS, Betty. O poder do mito. São Paulo: Palas
Athena, 1999.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 1972.
_______________. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.
CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2004.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso.
São Paulo: Contexto, 2012.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2009.
CHILLÓN, Albert. La urdimbre mitopoética de la cultura mediática. Análisi nº 24, 2000.
DRUMMOND, Carlos. A palavra mágica. Rio de Janeiro: Record, 2001.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: Difel, 1998.
_______________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
_______________. Sobre a exploração do imaginário, seu vocabulário, métodos e aplicações
transdisciplinares: mito, mitanálise e mitocrítica. Revista da Faculdade de Educação
(Eda/Feusp), 1985.
11
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
_______________. O retorno do mito: introdução à mitodologia – mitos e sociedades. Revista
Famecos, Porto Alegre, nº 23, 2004.
_______________. A renovação do encantamento. Revista Faculdade de Educação, São Paulo,
1989.
ELIADE, Mircea. Função dos mitos. In: O poder do mito. ELIADE, Mircea et.al. São Paulo:
Martin Claret, 19--.
LECHNER, Norbert. “Por que la politica ya no es lo que fue?”, Leviatán (Revista de Hechos e
Ideas). Madrid, Fundación Pablo Iglesias, n.63, 1996.
MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. Revista Famecos, nº 15, Porto Alegre,
Agosto 2001.
MIGUEL, Luis Felipe. Mito e discurso político: uma análise a partir da campanha eleitoral de
1994. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no
Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais – investigações em psicologia social. Tradução de
Pedrinho Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
MOTA, Célia Maria Ladeira. Jornalismo: discurso, narrativa e cultura. In: Jornalismo e sociedade: teorias e metodologias. ADGHIRNI, Zélia Leal; MOURA, Dione Oliveira;
PEREIRA, Fábio Henrique (orgs.). Florianópolis: Insular, 2012.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Para uma antropologia da notícia. Revista Brasileira de Ciências da
Comunicação, vol. XXV, nº 2, julho/dezembro, 2002.
___________________ Análise pragmática da narrativa jornalística. In: Metodologia de pesquisa em jornalismo. BENETTI, Márcia; LAGO, Cláudia (orgs.). São Paulo: Vozes, 2007.
___________________. A psicanálise do texto: a mídia e a reprodução do mito na sociedade
contemporânea. IX Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós). Porto Alegre (RS), 2000.
___________________. O imaginário: em busca de uma síntese entre o ideológico e o simbólico na análise da dinâmica sócio-cultural latino-americana. Revista de Economía Política de las
Tecnologías de la Información y Comunicación, vol. IV, nº 3, 2002.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília,
ano 14, nº 61, jan/mar. 1994.
SILVA, Juremir Machado da. Tecnologias do imaginário: esboços para um conceito. Disponível
em: <www.leandromarshall.files.wordpress.com>. Acesso em: 12 de novembro de 2012.
12
SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Brasília – Universidade de Brasília – Novembro de 2013
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
SILVA, Gislene. Imaginário coletivo: estudos do sensível na teoria do jornalismo. Revista
Famecos, vol. 17, nº 3, Porto Alegre, setembro/dezembro, 2010.
SODRÉ, Muniz Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes,
2010.
TUCHMAN, Gaye. Contando estórias. In: TRAQUINA, Nelson (org.); Jornalismo: questões,
teorias e estórias. Lisboa: Vega, 1999.
VAN DIJK, Teun A. Ideología - uma aproximación multidisciplinaria. Barcelona: Gedisa Editorial. 1999.
VIERNE, Simone. Mitocrítica e mitanálise. Íris, nº 13, França.
13