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32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT Nº39: TEORIA POLÍTICA: PARA ALÉM DA DEMOCRACIA LIBERAL?
O LIBERALISMO POLÍTICO CLÁSSICO E A PERFECTIBILIDADE DA ESPÉCIE
HUMANA: THOMAS HOBBES E A PERFECTIBILIDADE PROTO LIBERAL DO
INDIVÍDUO
CELSO ANTÔNIO COELHO VAZ
O LIBERALISMO POLÍTICO CLÁSSICO E A PERFECTIBILIDADE DA ESPÉCIE
HUMANA:THOMAS HOBBES E A PERFECTIBILIDADE PROTO LIBERAL DO
INDIVÍDUO
Celso Antônio Coelho Vaz1
RESUMO: Neste trabalho buscamos refletir sobre o pensamento político liberal clássico
destacando a sua perspectiva teleológica da perfectibilidade da espécie humana. Argumentamosi
que o liberalismo político clássico foi um movimento intelectual que assumiu a tarefa política de
por em prática o projeto civilizador moderno tendo em vista o progresso da perfectibilidade da
humanidade. Ao assumir tal tarefa, este liberalismo teve que construir um corpo teórico e
doutrinário sustentado por princípios da igualdade e da liberdade, os quais deram conteúdo e
forma à democracia representativa. Mediante este projeto, questionamos quais são os limites da
missão do liberalismo em realizar este fim último haja vista se tratar de uma teoria e de uma
prática política centrada na liberdade, igualdade e na felicidade do indivíduo. Neste artigo o
nosso estudo se concentrará no pensamento de Hobbes.
Palavras-chave: Hobbes, Liberalismo clássico, Indivíduo, Perfectibilidade
INTRODUÇÃO
No seu ensaio Histoire Intelectuelle du Liberalisme (1987), Pierre Manent destaca que a
característica marcante da época moderna é o forte vínculo entre o pensamento político e a vida
política. Platão e Aristóteles elaboraram suas filosofias políticas após o ciclo da política grega ter
sido experimentado. A filosofia política moderna foi pensada e desejada a priori. Por xemplo,
antes de ter sido experimentada, a política liberal foi uma iniciativa deliberada do pensamento
com o fim de construir um projeto para nós. Este empreendimento do pensamento liberal nos faz
acreditar ser verdadeiro o princípio de que são as idéias que ordenam o mundo. Mas quais idéias
ordenaram o mundo moderno? Para Manent, não foram idéias em geral, mas a idéia liberal de
indivíduo titular de direito. Foi a partir da elaboração deste ser imaginário, associal e apolítico
que o pensamento liberal clássico construiu progressivamente o seu corpo político, tornando-o
realidade e experiência. Para Manent, esta é a originalidade do pensamento liberal moderno.
A concepção de Manent de que o liberalismo clássico ordenou as instituições políticas e
sociais do mundo moderno a partir da idéia abstrata de indivíduo titular de direito contribui para
o nosso propósito de compreender a perfectibilidade da espécie humana na perspectiva liberal.
Neste estudo pretendemos sustentar o argumento de que o liberalismo político clássico
não se trata exclusivamente de, sem deixar de sê-la, uma doutrina destinada a garantir os
interesses egoístas da burguesia mercantil e industrial emergente. Ele é também um projeto de
homens das luzes e também de românticos, de intelectuais, que assumiram a tarefa de dar abrigo
1
Professor Adjunto IV. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
UFPA. Mestre e Doutor em Estudos Políticos. Centro de Pesquisas Políticas Raymond Aron. Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais - EHESS/Paris.
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e orientar o destino da perfectibilidade da espécie humana mediante o processo crescente de
desabamento do edifício espiritual e institucional do absolutismo cristão, na sua variante católica
e protestante.
Thomas Hobbes é um dos mais destacados precursores desta missão; estando ele a meio
caminho do pensamento absolutista e do pensamento liberal é imperativo ao nosso tirocínio
refletir sobre a maneira que ele contribuiu com a sua ambição de criar uma filosofia política que
tinha por finalidade propiciar a segurança da vida humana e do progresso intelectual e espiritual
dos indivíduos. John Locke é também um precursor que assumiu a tarefa de por meio da política
salvaguardar a conservação da liberdade e da propriedade, nesta última estando incluída a vida,
sem a qual o projeto civilizador liberal não teria razão de ser. Montesquieu se pôs na tarefa de
elucidar a natureza do poder político conforme as condições naturais e culturais do espírito das
leis dos povos, as quais lhes inclinavam a sustentar governos democráticos, aristocráticos,
monárquicos, e infelizmente despóticos. Para ele, era o comércio que exercia a missão de
aperfeiçoar os povos pela troca de idéias entre povos de culturas.
Rousseau se pôs na tarefa de demolir o edifício doutrinário e institucional do projeto
liberal contemporâneo a ele. Ao denunciar os grilhões convencionais sociais e políticos,
legitimadores da desigualdade social e da falsa liberdade e da falsa democracia, ele inverteu os
argumentos liberais que viam no contrato social da democracia representativa o meio por
excelência de contribuir para a perfectibilidade da espécie humana. Na tentativa de superar a
democracia representativa, Rousseau concebia que esta perfectibilidade seria realizada pela
vontade e soberania popular. Kant também abraçou a causa, mas de uma ótica cosmopolita
concebendo que somente um pacto universal entre nações federadas perpetuaria a paz entre os
humanos, mas num processo incerto e sem fim, haja vista a perfectibilidade humana ser um
princípio teleológico, não realizável neste mundo. Alexis de Tocqueville constatou que a
perfectibilidade da espécie humana encontrava razão de ser no estado social que ele encontrou na
terceira década do século XIX nos Estados Unidos. O auto-interesse, a liberdade de associação,
de pensamento, de empreendimento, a democracia representativa que punha equilíbrio ao poder
da maioria sobre a minoria, a divisão dos poderes, que primava por um judiciário independente,
entre outros fatores presentes na cultura política estadunidense daquele tempo, lhe confortava a
esperança de que esta finalidade era realizável.
Este breve resumo que fizemos das concepções políticas destes pensadores, sem dúvida é
simplificador e quiçá equivocado. Nosso intuito não será de apresentar uma história intelectual
do liberalismo clássico, porém reexaminá-lo à luz do seu propósito de ser o baluarte da
democracia, cujo fim último é conduzir a espécie humana a realizar sua perfectibilidade ou
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buscá-la infinitamente (Kant). São eles os princípios morais do liberalismo e os seus dispositivos
institucionais da democracia representativa compatíveis com esta finalidade última? Não seria
uma contradição em termos, e mesmo de princípio, o liberalismo político clássico se propor a
esta tarefa haja vista a sua centralidade na felicidade, na igualdade e na liberdade do indivíduo?
Quais promessas o liberalismo clássico nos fez para nos propiciar esta perfectibilidade? Elas
foram cumpridas, deturpadas, ou nunca realizadas? São estas as questões que nortearão o nosso
estudo destes pensadores liberais clássicos em torno da teleologia da perfectibilidade da espécie
humana.
Na tentativa de apresentarmos as possíveis respostas a estas questões, organizamos este
artigo do seguinte modo. Na primeira seção apresentamos o conceito de perfectibilidade humana.
Na segunda apresentamos o modo como Hobbes se dedicou a pensar a perfectibilidade do
homem. Não apresentaremos neste artigo todas as idéias dos liberais clássicos sobre este tema. O
pensamento de Locke, Rousseau, Montesquieu, Kant e Tocqueville, dentre outros, é muito
complexo a respeito da perfectibilidade humana para ser convenientemente abordado em um só
artigo, os quais serão objeto de nossos estudos ulteriores. Por prudência, achamos melhor
abordar somente o pensamento de Hobbes, dando-lhe a atenção devida.
O CONCEITO DE PERFECTIBILIDADE DO HOMEM
John Passmore, na sua obra A Perfectibilidade do Homem (2004) apresenta um panorama
amplo e refinado sobre as diversas interpretações dadas ao conceito de perfeição e
perfectibilidade ao longo da história do ocidente. Ele examina as variações destes conceitos à luz
da filosofia grega, cristã e moderna, esta última na suas vertentes renascentista, iluminista,
anarquista, utópica, comunista e evolucionista. No seu estudo, Passmore não se limita a
sistematizar a pluralidade dos conceitos e práticas de perfeição e perfectibilidade, mas também
apresenta reflexões sobre as conseqüências que eles trouxeram para o indivíduo e o ordenamento
da vida em sociedade.
Segundo ele, os conceitos de perfeição e o de perfectibilidade não são unívocos. Eles
variam no tempo. O primeiro significado que Passmore destaca concerne à perfeição técnica.
Trata-se de conceber e formar um indivíduo perfectível para desempenhar, com perfeição, uma
atividade ou função especializada. Para Passmore, o limite desta perspectiva de perfeição está em
que “Ser perfectível no desempenho de uma atividade [...] não é o mesmo que ser perfectível
como homem.” (p.19); o qual implica um propósito social e moral coletivo, tanto que um
criminoso pode ser competente na realização de um crime. “Em outras palavras, a perfeição
técnica não implica automaticamente perfeição humana” (p. 22). A perfeição técnica é uma
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expressão externa da perfeição moral.
A capacidade de o indivíduo subordinar-se completamente à vontade de um legislador
supremo, Deus ou a um membro de uma elite, caracteriza a perfeição obedecente. A perfeição
teleológica promete ao homem alcançar a sua finalidade natural. Foi Aristóteles quem a
imaginou, concebendo que o homem é perfectível na busca do seu bem estar, de sua felicidade:
eudaimonia. Passmore acrescenta que a finalidade natural do homem só pode ser realizada se for
convencionada por parâmetros de uma função potencial, por atividades atribuídas que o homem
deve exercer. A perfectibilidade teleológica diz respeito à atualização das potencialidades
humanas naturais destinadas a alcançar um fim, “ela consiste em alcançar a finalidade na qual se
encontra a natureza de cada um para encontrar a satisfação última.” (p. 35). Trata-se de uma
combinação da “palavra grega teleios, comumente traduzida como ‘perfeito’ [que é]
etimologicamente relacionada com telos (fim, finalidade)” (p. 35). Teleios e telos têm afinidades
com a “palavra inglesa ‘perfect’ (perfeito) [...] o perfeito, portanto, é etimologicamente definível
como aquilo que é ‘feito por completo, ‘completado’.” (idem).
Passmore conceitua a perfectibilidade imaculada que consiste em levar o homem “estar
livre de um defeito moral” (p. 38). A perfectibilidade metafísica ou teórica se baseia na idéia da
imperfeição. Tudo que existe e depende de outra coisa, for complexo, infinito ou mortal é
imperfeito, portanto passível de perfectibilidade. Para Passmore, este ideal metafísico está na
origem de os homens quererem ser a causa inicial, de serem menos finitos, temporais, libertos de
“preocupações com a mutabilidade das coisas e por unirem-se a Deus [...] por meio de rejeitar,
como sem valor tudo aquilo que este mundo contém [...] erguendo-se acima [da vida] em união
com um Ser, ou um Universo” (p. 40). Desta perfeição metafísica absoluta decorre um ideal de
perfeição relativa. Trata-se da dedicação a um “ideal moral humanamente alcançável” (idem). A
perfectibilidade exemplar consiste na “imitação do exemplo estabelecido por essa ou aquela
pessoa” (idem), ou da conformidade a “um ideal de perfeição moral ou Deus (perfeição
deiforme).” (p. 49). Por fim, Passmore define a perfectibilidade estética “o harmonioso trabalho
em conjunto das partes componentes” (idem). Quando aplicada ao sistema político, esta
perfeição tem caráter funcional; cada indivíduo exerce uma função para manter a harmonia
social. “A harmonia e ordem são identificadas com a perfeição, o conflito e a desordem com a
imperfeição.” (Idem).
Para Passmore, a filosofia grega nos legou as seguintes idéias de perfeição: 1- A idéia de
perfeição metafísica outorgada a um Ser Supremo. 2- A visão de que alguns seres humanos
poderiam compartilhar dessa perfeição. 3- O princípio de que a perfeição é conhecimento
racional do universo. 4- Tal conhecimento exige o afastar-se do mundo. 5- A idéia de perfeição
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como meta prática para o cidadão comum, que imbuído de uma moralidade inferior se dedica a
alcançar a perfeição superior.
Em seguida ao primeiro capítulo de A perfectibilidade do Homem, no qual ele examina o
legado que a filosofia grega nos deixou sobre a perfectibilidade, Passmore passa a considerar
“por quais diversos caminhos essas idéias foram, pelas múltiplas variedades do pensamento
cristão, incorporadas ou rejeitadas.” (p.134). Ele também examina “os meios seculares de atingir
a perfeição, como uma maneira de ajudar o curso da história, vista como progressiva por
natureza.” (p.12). Em relação aos meios seculares ele aborda: o aperfeiçoamento humano pela
ação social; pelo governamentalistas, anarquistas e geneticistas, pelo progresso como
desenvolvimento natural, pela renúncia à perfeição, e por fim pelo misticismo.
Para Passmore, a via secular da perfectibilidade provocou uma profunda transformação
da via cristã. Nesta via, os homens podem somente em vida progredir rumo à perfeição, a
perfectibilidade consiste em um progresso propiciado pela graça de Deus. Diferente do
platonismo, que concebia a perfectibilidade para poucos, o cristianismo central a estendia para
todos. Dependentes da graça de Deus, nenhum homem atingiria “a perfeição por seus próprios
esforços.” (p. 299) e mesmo que agraciados eles jamais se tornariam homens perfeitos.
No século XVII com a abertura da via secular da perfectibilidade humana assistiu-se ao
aparecimento da idéia da perfectibilidade do homem por meio “da intervenção deliberada dos
seus semelhantes.” (p. 301). Esta via modificou profundamente os pressupostos platônicos e
agostinianos da perfeição, para os quais nenhum humano comum atingiria a perfeição com seus
próprios esforços, ou levaria os seus semelhantes a tal. Para Platão, isto somente seria possível
por meio da educação de poucos selecionados, que orientados pelo filósofo estariam aptos a
contemplar a forma do supremo bem. Para o homem comum, que não estava apto à perfeição,
Platão concebia uma educação que lhe propiciaria apenas a bondade cívica, destituída de teor
metafísico.
Mas, no final do século XIV, os humanistas cívicos colocaram em primeiro plano a
educação cívica de teor não metafísico. Tratava-se da educação cívica amalgamada à filosofia de
Aristóteles. “Recusando-se a admitir a superioridade do contemplativo sobre a vida ativa, eles
redefiniram ao mesmo tempo ambos os tipos de vida.” (p.303). No plano da vida ativa, eles
consideravam as virtudes do cidadão, da sua bondade cívica dedicada a viver um modo de vida
civicamente correto. No plano da vida contemplativa, eles recusavam o isolamento do filósofo
do mundo e exaltavam a participação ativa de sua ciência nos negócios públicos, ofuscando a
divisão clássica entre vida ativa e contemplativa. Com a derrota do renascimento, volta à cena a
filosofia platônica, mas o ideal de perfeição dos humanistas cívicos perdurou tênue no
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luteranismo, no calvinismo, para ser soerguido com vigor no iluminismo. Assim, estava
preparado o terreno para no século XVIII ser celebrada a aliança entre o comércio e a filosofia
“responsável por encorajar as esperanças dos homens de que eles não apenas poderiam ser, mas
seriam, perfeitos.” (p. 304).
Para Passmore, a influência da ruptura do ideal cívico renascentista com a filosofia antiga
e cristã repercutiu, no século, XVI na filosofia de Pietro Pomponazzi, porque “ele toma como
ponto de partida o aperfeiçoamento do ‘todo’ – da humanidade – e não o aperfeiçoamento do
indivíduo. Assim ao fazer, ele antecipa a abordagem característica dos perfectibilistas modernos,
pelo menos desde o século XVIII.” (p. 306). Com Pamponazzi, o ideal de perfeição é moral e
prático, e só pode ser alcançado no terreno secular. Doravante, a perfeição de toda a humanidade
torna-se mundana e limitada. Por não serem semelhantes a Deus, os humanos não devem aspirar
a paz e a felicidade perfeitas, o conhecimento perfeito. Sendo mortais não é necessário que eles
aspirem ser o que não é apropriado a eles, lhes cabendo apenas o aperfeiçoamento moral secular
da humanidade, contentando-se com a perfeição que lhes é própria.
Prosseguindo com este empreendimento, segundo Passmore, no século XVII Pierre
Charron propõe, na sua obra Da Sabedoria um método para educar o aperfeiçoamento secular
moral da humanidade. Este método se baseia na imitação de heróis, não de santos, nem mártires,
mas de homens de negócios que são artesanalmente construídos como uma obra de arte; “para o
qual ser perfeito é possuir um caráter moral harmoniosamente desenvolvido, um caráter em que
os homens podem [...] ser educados [...]. O homem perfeito é uma obra de arte, a realização
harmônica do ideal de um educador.” (p. 309) Assiste-se então o aparecimento do conceito
estético de perfeição humana propiciada pela educação. Mesmo Calvino não recusou de todo a
humanização estética da perfeição. Para ele, a harmonia da vida humana, como obra de arte, só
tinha razão de ser se fosse inspirada pelo amor de Deus.
No século XVIII, seguindo a tendência do século XVII, o projeto humanista de perfeição
passa a por em questão as virtudes que o cristianismo de Agostinho propunha aos homens. No
lugar da caridade a ênfase recai sobre o amor-próprio, no orgulho, não mais no amor a Deus.
Pierre Nicole concebia que a perfeição humana prescindiria de todo e qualquer ajuda espiritual, o
que importava eram os “motivos naturais do homem [...], que os homens possuíssem um
egoísmo iluminista” (p. 311). Ocorreu uma reavaliação da virtude da caridade e do vício em prol
do amor-próprio e não do amor a Deus. A virtude da caridade passa a ser fazer o bem, o defeito
do vício a fazer o mal, de forma estritamente secular. A caridade passou “a ser identificada, tanto
pelos clérigos, quanto pelos laicos, como desinteressada benevolência, de boa índole e utilidade
ao próximo.” (p. 313). Ela passou a ser relação social, destituída de fim teológico, ensinada
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como benevolência nos manuais de moral, como virtude secular.
Segundo Passmore, esta secularização da perfeição humana tem sua origem no próprio
cristianismo, na sua negação de que o homem pudesse ser perfeito enquanto criatura, “na ênfase
agostiniana na impotência e falta de significância humana” (p. 315). Doravante, as diferenças
metafísicas da perfeição deveriam ser esquecidas, e toma lugar a preocupação com o homem
genuinamente moral em suas relações sociais com seus semelhantes, perfectível de modo
crescente pela benevolência universal e pela caridade secular, perfectibilidade gradualmente
aprimorada pela prática cotidiana da moralidade. Mesmo a perfectibilidade secular e gradual não
estava fora do horizonte teológico do calvinismo e do luteranismo. Calvino enfatizava que “o
crescimento espiritual de um homem precisa ser demonstrado em seu trabalho diário, que os
homens não crescerão rumo à perfeição virando as costas para o mundo.” (p. 318).
Com o advento do “perfectibilismo gradualista” não houve mais lugar para a experiência
da perfeição espiritual peculiar e abrupta experimentada nos mosteiros e conventos por monges e
freiras. Até as revoluções políticas sociais estavam previstas como eventos preparadores dos
homens para a perfeição. “O que realmente aconteceu foi que a idéia de perfectibilidade veio a
ser inteiramente divorciada da idéia de perfeição absoluta.” (p. 320), enquanto um contínuo
aprimoramento o “perfectibilismo gradualista” nega a perfeição humana, ele não admite um final
para o aprimoramento da capacidade humana. O homem está fadado a não ter descanso no seu
aprimoramento.
Não existe coisa tal como ‘homem perfeito’ [...]. Mas existe coisa tal como o homem
aperfeiçoando-se, realizando o aprimoramento moral, e também existe coisa tal coisa
como perfectibilidade, a capacidade de ser moralmente aprimorado. A doutrina da
perfectibilidade do homem pode ser agora reformulada da seguinte maneira: todos os
homens são capazes de serem aperfeiçoados e por estágios ilimitados. (p. 320-321).
Para Passmore, esta idéia de perfectibilidade supõe, nos termos de Robert Owen, o
progresso infixo e infinito do físico, intelectual e moral, a qual contraria a idéia clássica da
perfeição absoluta inspirada que ela era no senso de limite e do alcançável, sem expectativa de
aperfeiçoamento ulterior. A educação passa a ser a protagonista do processo incessante da
perfectibilidade do homem. Desde Platão, a ela era destinada a tarefa de aperfeiçoar os homens
com virtudes morais. Em resumo, para Passmore, dos primórdios da Renanscença até o século
XX assistiu-se uma radical mudança na idéia de perfeição, de aperfeiçoamento e de
perfectibilidade humana. Esta mudança, sobretudo, incidiu sobre as formas de relacionamento
dos humanos entre si, dando margem ao que Passmore denomina “aperfeiçoamento pela ação
social”, por meio de mecanismos sociais apropriados, dentre eles a educação. Doravante a
perfectibilidade humana passou a significar “a capacidade de ser aprimorado a um grau sem
precedentes, e não mais a capacidade de atingir – e ali permanecer – alguma finalidade última
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como uma ‘visão de Deus’ ou uma ‘união com o Uno’.” (p. 344). Ela foi secularizada.
Até aqui seguimos, parcialmente, passo a passo o estudo de Passmore sobre a trajetória
dos diversos caminhos do conceito de perfectibilidade do homem. Restringimos apresentar a
abordagem dele até o século XVIII, pelo fato óbvio de que ela tem muito a contribuir para o
nosso propósito de estudo do pensamento liberal perfectibilista. Apesar de o denso estudo de
Passmore abordar diversas correntes filosóficas, religiosas e psicológicas, salta aos olhos a sua
completa omissão sobre o liberalismo clássico, tanto na sua vertente política e moral quanto
social e econômica. Certo, Passmore dedica uma considerável análise do projeto de educação
que Locke vislumbrava para a perfectibilidade humana. Todavia, nela não há qualquer
consideração sobre o liberalismo político de Locke. Hobbes está mais ausente ainda. Na sua
versão em português, o livro A Perfectibilidadedo Homem contém 689 páginas; e nele Hobbes
aparece apenas em duas páginas, 414 e 421, no capítulo em que Passmore aborda o tema do
aperfeiçoamento do homem pelo progresso científico. Lá, Hobbes é brevemente lembrado por ter
aplicado o método geométrico e físico ao estudo da natureza humana.
Considerava Passmore que o liberalismo clássico em nada contribuiu para a trajetória da
idéia e das práticas sociais da perfectibilidade do homem? A pergunta ficará sem resposta, pois
não nos propomos analisar a idéia de perfectibilidade dele, mas com base nas suas análises
extrair o que há de teor perfectibilista no proto pensamento liberal de Hobbes, em termos de
aperfeiçoamento, de perfectível e de perfectibilidade do homem.
THOMAS HOBBES E A PERFECTIBILIDADE PROTO LIBERAL DO HOMEM
No De Cive (1993), na Epístola Dedicatória ao Conde Guilherme de Devonshire Hobbes
faz referência a dois ditados “o homem é um deus para o homem; outro: o homem é um lobo
para o homem.” (HOBBES, 1993, p. 275). Para ele, o primeiro ditado é correto em relação aos
cidadãos, porque “aproxima-nos com Deus pela justiça e a caridade, que são virtudes da paz”
(idem). De modo negativo o segundo também é correto em relação às cidades, porque exprime as
virtudes da guerra, pelas quais até mesmo os bons cidadãos em busca de sua segurança
sucumbem, à violência, à intriga, à animalidade feroz. Neste estado natural, diante da
necessidade de conservação, o vício tornar-se virtude, o injusto torna-se justo, a paixão torna-se
razão.
Diante deste cenário de inversão de valores e atitudes proporcionada pela guerra entre
cidades e entre homens, Hobbes declara ao Conde que o motivo que o levou as escrever De Cive
foi a sua constatação de que faltava uma reta razão sobre a natureza das ações humanas, que
contribuísse para “os esforços dos homens para o próprio bem-estar nesta vida.” (p. 277). Para
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Hobbes, se a filosofia moral tivesse conhecido a natureza das ações humanas “com uma certeza
igual àquela com que conhecemos a natureza das grandezas das figuras, a ambição e a avareza
[...] ficariam desarmadas, e os seres humanos gozariam de uma paz tão constante que não mais
seria necessário lutar” (idem). A sua obra buscou compreender os postulados da natureza
humana e os da razão natural, os da primeira afeitos à “natural cupidez com que cada homem
exige para si uso próprio das coisas comuns” (idem, p. 278) e o da segunda “que faz o homem
tentar evitar a morte violenta como mal supremo da natureza” (idem). De posse desses dois
postulados, Hobbes tirou a conseqüência da “necessidade de guardar os pactos e de conservar a
fé prometida, como também ter apresentado os elementos da virtude moral e dos deveres
cívicos.” (Idem). Para Hobbes, a natureza humana não predispõe o homem a ser naturalmente
social, mas somente de forma ocasional: quando crianças necessitam dos cuidados dos adultos
para sobreviverem, e estes “de quem os ajude a bem-viver” (idem, p. 281). Sendo as sociedades
civis estabelecidas por alianças que exigem fidelidade a um pacto, é impossível a uma criança e a
um adulto ignorante, rude, com falta de instrução, ou dos “que não sofreram as aflições de uma
sociedade deficiente”, (idem) constituírem uma sociedade civil.
Na dedicatória que Hobbes faz do Leviatã (1983) ao Sr. Francis Godolphin, ele diz que a
sua obra tratava-se de um discurso sobre o Estado e que ele acreditava que “o esforço para
aprimorar o poder civil não deverá ser pelo poder civil condenado, nem pode supor-se que os
particulares, ao repreendê-lo, declarem demasiado grande esse poder.” (p. 03). Antecipando que
a sua obra seria criticada por seus inimigos, Hobbes afirma o amor que tinha por suas próprias
opiniões, assumindo “o título [...] de ser como sou.” (p. 03). Hobbes inicia a introdução do
Leviatã afirmando que assim como “a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o
mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal
artificial.” (p. 05). Trata-se da arte de criação de um autômato, “de uma máquina que se move
por si mesma” (idem) e da arte de imitação daquela “criatura racional, a mais excelente obra da
natureza, o Homem.” (idem).
A arte de criar um autômato provido com movimento e razão culmina na grande arte de
“criar aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é
senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja
proteção e defesa foi projetado.” (idem). Sendo arte da criação do governo dos homens, o Estado
é todo de natureza artificial em alma (soberania), juntas (governo), nervos (recompensa e
castigo), força (riqueza e prosperidade individual), objetivo (segurança), memória (conselheiros),
justiça (razão), leis (vontade), saúde (concórdia), doença (sedição), morte (guerra civil), pactos e
convenções (criação). Sendo artificiais, os pactos e convenções são a arte da imitação do “Fiat,
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ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação.” (Idem)
Recorremos às considerações finais que Hobbes apresenta no De Cive, e às que ele
manifestou no início do Leviatã, a fim de buscarmos indícios de que nestas obras ele manifesta
um projeto de perfectibilidade do homem. O que iremos apresentar a seguir são as nossas
considerações de que, no Leviatã, Hobbes impôs a si a tarefa, iniciada no De Cive, de elaborar
uma filosofia política com fundamento científico, que teria como fim prático estabelecer a paz
civil. Este fim somente seria alcançado se os homens se dispusessem a cumprir seus deveres
civis, respeitando os pactos e convenções. O teor científico de sua filosofia tem um fim político
prático civilizador: perfectibilizar os homens para a vida em sociedade, para que em um estado
de paz imposto pelo poder soberano eles pudessem desenvolver suas potencialidades de
perfectibilidade.
Tanto no De Cive, quanto no Leviatã Hobbes faz uma crítica à filosofia política e moral
clássica de não ter conhecido a natureza das ações humanas com igual certeza com que a
geometria, a matemática e a física conhecem a natureza dos seus objetos de conhecimento. É
bem verdade que os fins teóricos e práticos da filosofia política de Hobbes não lhe afastam da
tradição da filosofia política ocidental. Todavia, Hobbes considerava que esta tradição foi
incapaz de conduzir o homem para um processo de perfectibilidade civilizadora, porque o
imaginou perfectível para viver em sociedade a partir das suas virtudes e não de seus vícios. A
clássica crítica de Hobbes ao modo como a filosofia política grega concebia o homem como um
ZÔon politikon, (vide o 2º artigo do cap. 1 e a nota deste artigo no De Cive, 1993, p. 50 e 281),
corrobora a crítica de Hobbes. Para Hobbes as filosofias políticas clássicas do projeto civilizador
haviam falhado em instaurar a paz por ter concebido o aperfeiçoamento político do homem com
base nas aspirações dos filósofos e não na natureza humana. (cf. o último capítulo do Leviatã).
Estas doutrinas políticas foram ineficazes porque inspiradas na virtude moral humana
inata para promover o bem comum da sociedade. Competia então ao filosofo político moderno, a
Hobbes, a arte de criar uma filosofia política estabelecendo um código de regras, fundado em
princípios e dispositivos de obediência, que determinaria os objetivos da sociedade civil. Para
Hobbes este código, fundado sobre a obrigação de respeito aos pactos e convenções seria capaz
de criar, reunir e unificar todas as vontades em um corpo político à semelhança do Fiat.
Por conceber que a lei natural encerra a imperfeição humana, movida pela paixão,
Hobbes não se arroga em propor que sua filosofia política conduza o homem à perfeição, “pois a
felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito. Para ele, “não existe o
finis ultimus (fim último) nem o summum bonum (bem supremo) de que se fala nos livros dos
antigos filósofos morais.” (Idem, p. 60). A diversidade das paixões humanas interdita que o
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homem seja perfeito, pois estas só terminam com a sua morte. Todavia as paixões não impedem
o homem de tentar garantir uma vida satisfeita, de se perfectibilizar em busca da felicidade,
felicidade esta consistindo em
um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do
primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo. Sendo a causa disto
que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento,
mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro. Portanto, as ações
voluntárias e as inclinações dos homens não tendem apenas para conseguir, mas
também para garantir uma vida satisfeita. (p. 60).
Haja vista que a felicidade é incompleta, porque ter e ser não se conciliam por serem
movidos pelo perpétuo e irrequieto desejo das paixões humanas por poder, riqueza e glória,
Hobbes prescreve um sedativo a isto: o conhecimento sobre a obediência a um poder comum que
acalmaria a diversidade de opiniões e ações sobre a felicidade, de modo que o homem usufrua o
“desejo de conforto e deleite sensual” e “do conhecimento e das artes da paz” (p. 61). Assim,
Hobbes propõe uma terapia racional para as paixões. Não se trata de exterminá-las, mas curá-las
da diversidade das opiniões por meio de um conhecimento científico que se torne comum, para
dar curso ao aperfeiçoamento do homem para viver em sociedade, desde que ele seja obediente a
um poder comum.
O sentido de comum que Hobbes empresta a este conhecimento diz respeito ao
incontestável, porque fundamentado na geometria e na matemática. Implicava, portanto, aplicar
os métodos de conhecimento destas ciências: o método sintético e o analítico. Por meio do
primeiro conhecemos, através do raciocínio, as causas primeiras e produtoras de todas as coisas e
de todos os seus efeitos aparentes. Pelo segundo, conhecemos, pelo raciocínio, os efeitos dos
fatos aparentes até chegar às coisas possíveis produzidas por eles. Portanto, o conhecimento
sintético das causas e efeitos incontestáveis deveria propagar um conhecimento comum
incontestável sobre a natureza das paixões individuais – as causas do comportamento individual
dos homens –, deduzindo das paixões as regras da vida social e política. Por meio do
conhecimento analítico, Hobbes aspirava estabelecer os fins práticos racionais que conduziriam
os homens a se governarem e a obedecerem ao poder comum. Trata-se também de um
conhecimento incontestável porque baseado na experiência comum dos homens.
Muito embora Hobbes busque dar um teor científico à sua filosofia política, em tanto que
conhecimento comum, ele busca apoio também no conhecimento pré-científico para reforçar
ainda mais o seu traço incontestável, de maneira a orientar os homens para a perfectibilidade
pelas vias do conhecimento e da experiência. Quando ele se propõe a descrever a natureza do
homem artificial, do corpo político artificial, Hobbes examina “primeiro a sua matéria, e seu
artífice; ambos os quais são o homem”. (1983, p. 05). Ele diz que este exame não se baseava na
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ciência, mas no conhecimento popular, o qual encontra guarida em um ditado popular que diz
que “a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas do homem.” (p. 06). Para Hobbes,
este conhecimento será ainda mais incontestável se levarmos em conta outro ditado popular, para
o qual “os homens poderiam realmente aprender a lerem-se uns aos outros, se se dessem ao
trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo” (1983, p. 06). Se assim fizessem,
os homens descobririam a verdade incontestável sobre o que Hobbes escreve sobre as paixões
humanas, porque conhecida pela experiência de todos, e sustentada por um conhecimento
científico sobre elas.
Uma vez que o orgulho impede o homem de ler-se a si mesmo, e se não o impedisse a
vanglória deturparia o conhecimento que ele faria de si, Hobbes concebe que as experiências
fundamentais do homem precisam ser corroboradas pela sua ciência da política. Vejamos o modo
como ele propõe a perfectibilidade humana do ponto de vista desta ciência. Ele a deriva de sua
concepção mecânica e física do homem. Como já vimos, para Hobbes as forças da paixão movem
o homem para uma perpétua não concialiação entre o ter e o ser, que empurra o homem para traz,
(cf. 1983, cap. VI). Como para Hobbes os objetos da paixão variam conforme a constituição e a
educação de cada homem, ele pensa que é possível transformá-las; impulsionando-as para frente
por meio de sua complexa filosofia política. Não sendo o bem e o mal inerentes aos objetos, mas
relativos aos homens, não há nenhuma regra que determine objetivamente o que é o bem e o mal.
São os homens que guiados pelas suas imaginações e opiniões que designam a natureza boa ou
má de um objeto. Do mesmo modo que as paixões desencadeiam ações, as imaginações e
opiniões desencadeiam o pensamento. No conflito entre a paixão e o pensamento sobre um objeto,
o homem tende a escolher a paixão para obter a satisfação da coisa desejada.
Portanto, deste ponto de vista, Hobbes concebe que os objetivos e o caráter da vida
política devem ser determinados com referência à natureza das paixões, não a partir da natureza
da razão humana como pensava a filosofia clássica, porque em última instância são as paixões
que fazem variar a noção do bem e do mal, do justo e do injusto. Competia à filosofia conhecer
também como vivem os homens neste mundo regido pelas paixões, o estado de natureza, do qual
é possível estabelecer racionalmente os objetivos e o caráter da vida na sociedade política, a
partir das paixões. Para Hobbes as paixões, que dão existência ao estado de natureza, são as
provas cabais de que o homem não é naturalmente social ou político, prova disto é que as
sociedades civis foram fundadas a partir de uma condição pré-social e política. O estado de
natureza, no qual reinam as paixões, pré-existe em relação à sociedade civil e ao governo civil.
Ele é a matéria prima que possibilita à filosofia política revelar e conhecer as inclinações antisociais naturais dos homens, de modo que a partir delas é possível aperfeiçoá-los forçando-os à
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sociabilidade.
Assim, para Hobbes, o estado de natureza é deduzido das paixões, e é a partir de como os
homens vivem nele, em um movimento para traz, obstáculo para o progresso, que é possível à
filosofia política estabelecer os objetivos, os fins e a forma pelas quais os homens podem ser
tornar perfectíveis para formarem e viverem em sociedades políticas. O empreendimento de
Hobbes foi triplo: 1- conhecer o modo pelo qual os homens vivem no que ele definia por estado
de natureza para, a partir dele: 2- criar, dar forma, a um estado político deduzido deste
conhecimento, o qual, por seu turno tem por objetivo 3- dar forma a uma sociedade em que os
indivíduos se relacionem entre si como cidadãos, porque perfectibilizados politicamente em suas
paixões, pelo medo e a obediência ao poder de um soberano comum.
Ao assumir esta missão, Hobbes teve que enfrentar, e inventar, o problema político de
como perfectibilizar o homem do estado de natureza para viver em sociedade, a fim de que este
satisfaça suas paixões sem ter que mover-se para traz, tornado-se apto à perfectibilidade de si e
da sociedade civil. Porém, em Hobbes, o que tem de perfectível o homem e o estado de
natureza? Qual perfectibilidade é possível percebermos no homem em sociedade civil? Os
pressupostos de Hobbes são liberais?
Em primeiro lugar, Hobbes procura dar sentido à perfectibilidade do homem na
sociedade civil e no Estado, colocando-lhe em estado de desigualdade, sobretudo eliminando a
igualdade que os homens têm de se matarem no estado de natureza. Somente postos como
desiguais na sociedade civil, pela imposição do direito civil e pelo uso da força do soberano
absoluto comum, os homens poderiam mitigar o medo que têm de si mesmos, pois seria
garantida a conservação de suas vidas, acalmando-os do medo apavorante da morte violenta; a
paixão mais poderosa que move o homem à igualdade de matar. Por outro lado, esta igualdade
do amor do corpo está na origem da paixão da esperança e da competição entre os homens de
usufruírem igualmente as mesmas coisas, pondo-lhes em uma inimizade natural que por seu
turno gera a desconfiança entre os homens de que seus iguais querem lhes privar dos seus bens,
sobretudo a vida.
Neste clima de medo, insegurança e desconfiança a paixão reina absoluta no estado de
natureza. Por ela também prolifera o amor pela glória, pelo orgulho e pela vaidade: os amores do
espírito. A paixão por estes amores fecunda a paixão de aniquilar aqueles que competem ou que
desprezam as considerações boas que cada indivíduo faz de suas virtudes. O riso é também
paixão pela glória repentina de se distinguir dos outros até mesmo pela caçoada. Para Hobbes, a
rivalidade, a desconfiança e a glória são as paixões que interditam qualquer sentimento de honra
ou nobreza no estado de natureza, pois elas não reconhecem o poder de alguém superior,
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sobretudo de fazer o bem ou o mal. Ele concebe que esta falta de medo é desrespeito ao poder de
uma autoridade de nos fazer o bem ou o mal. Para Hobbes, é o medo e não a admiração que dá
sentido à honra.
As paixões instigadas pela rivalidade, ou concorrência, pela desconfiança e a glória estão
na origem da discórdia. É partir delas que Hobbes deduz a sua famosa concepção de que o
estado de natureza é o campo de guerra de todos os homens contra todos os homens. Para
Hobbes, a guerra no estado de natureza não consiste apenas em guerra em tempo real, ela está no
ar, é potencial, virtual, há um clima de guerra, uma disposição para a guerra real que se propaga
no tempo. Neste clima de guerra, a insegurança e a incerteza obstaculizam o progresso da
agricultura, comércio, indústria, tecnologia, conhecimento, da arte e por fim da sociedade. (cf.
Leviatã, cap. XIII). A discórdia encontra campo livre para se manifestar no estado de natureza
porque nele “os homens vivem sem um poder comum capaz de manter a todos em respeito”
(idem, p. 75). Sem poder comum não há a quem apelar pela justiça e nada pode ser injusto, pois
a justiça e a injustiça são inerentes às leis da sociedade civil e não ao estado de natureza, no qual
os homens vivem num estado de imperfeição que precisa ser perfectibilizado .
Portanto, o homem não é social por natureza, pois a natureza os separa. A sua
sociabilidade é um artifício convencional instituído na sociedade civil. Este artifício origina-se
de o homem ser dotado de certos instintos naturais de proteção que o movem a abandonar, fugir,
de medo, do estado de natureza para proteger-se na sociedade civil, iniciativa que expressa ser o
homem capaz de conquistar a sua natureza, convencionando-a, porque dotado de razão. O modo
como Hobbes entende esta capacidade humana é importante para o nosso projeto de entender a
perfectibilidade do homem na sua perspectiva.
Para Hobbes, o homem procura guarida na sociedade civil porque é dotado naturalmente
com paixão de medo, bem estar material e esperança de conseguir este último pelo trabalho, as
quais o inclinam a buscar a paz. Esta iniciativa é tomada porque ele é também naturalmente
dotado da faculdade da razão. A paixão do medo, do bem estar e da esperança pedem auxílio
para a razão lhes confortar com a paz, que ela lhes proponha regras para uma vida tranqüila. Mas
a glória, o orgulho, é refratária à celebração deste pacto obrigando a razão a fustigar o medo da
morte e o desejo do bem estar a superarem a paixão da glória, de modo que a concórdia seja
instaurada pela intensificação do medo da morte e do desejo do bem estar.
Compete ao soberano comum a proteção do direito natural à vida e ao bem estar do
indivíduo. Hobbes é o precursor do principio liberal moderno segundo o qual as obrigações
sociais e políticas dos indivíduos para com o Estado têm por fim a proteção do direito natural
individual. Portanto, a proteção e a conservação da vida e a promoção do bem estar não visa o
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bem comum, mas estritamente o bem individual, o direito a conservação de si. Trata-se de o
indivíduo conceder ao Estado o poder de controlar as paixões individuais, as quais no estado de
natureza estavam entregues aos cuidados individuais incertos, à mercê de ter o seu direito
natural usurpado de forma violenta por outrem.
Podemos conceber que Hobbes propõe perfectibilizar o homem porque ele o concebe
naturalmente imperfeito. O projeto de perfectibildade do homem de Hobbes é individualista,
trata-se de uma iniciativa para proteger o auto-interesse, na medida em que ele propõe a
instituição da proteção convencionada dos direitos naturais individuais para apaziguar o furor
das paixões. Este apaziguamento se faz por meio de relações formais estabelecidas por um
contrato social, garantidor do direito natural de ter acesso a um meio para alcançar um fim. Os
pactos e convenções que os indivíduos celebram entre si visam aperfeiçoá-los para se
autolegislarem. Contrariá-los é testemunho de autocontradição. Para garantir que esta
perfectibilidade não seja arruinada pela disseminação generalizada do não cumprimento das
promessas de obrigações – o que seria um movimento para traz, um retorno à vida imperfeita do
estado de natureza –, Hobbes recorre à justificativa da necessidade de um poder coercitivo,
concentrado na figura de um soberano que possa coagir todos os contratantes a respeitarem as
convenções. O poder coercitivo do soberano comum visa garantir que os indivíduos tenham
medo do castigo que lhe será aplicado por terem rompido com as convenções, de modo que não
ousem contrariá-las.
Em última instância, o poder do coercitivo do soberano não contraria o interesse do
indivíduo, pois aquele está a serviço de asseverar a confiança mútua de que no futuro as partes
respeitarão as promessas convencionais, cujos fins são proteger os interesses individuais. Por
medo de verem seus interesses desprotegidos, os indivíduos depositam toda confiança no poder
soberano de aplicar os castigos aos contraventores. Portanto, em Hobbes a confiança é destituída
de valor moral, o medo é a paixão que garante o cumprimento das promessas, é ele quem inspira
a confiança do indivíduo de que é bom para ele será garantido, sobretudo a segurança e a
conservação da sua vida.
Como vimos, para Hobbes, no estado de natureza não há justiça ou injustiça. Estas
passam a existir na sociedade convencionada, na qual a fidelidade aos contratos é o fundamento
de toda justiça, a infidelidade a eles o fundamento da injustiça. A injustiça caracteriza o fato de o
indivíduo procurar usufruir na sociedade civil um direito que havia abandonado anteriormente.
Uma sociedade justa é aquela em que o indivíduo não obstaculiza o direito daqueles com quem
ele celebrou contrato, o justo é a conformação às convenções. A dissolução da sociedade civil é
propiciada pela injustiça, em termos de rompimento com o principio da conformação às
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convenções.
Haja vista que o critério de justiça é a proteção do auto-interesse, então o respeito às
convenções torna-se uma legislação sobre si mesmo, legislação que precisa ser nutrida pela
confiança de que o soberano comum punirá os que se contradisseram por terem violado as
convenções. Para além desta perspectiva do perfectibilismo individualista, podemos encontrar
nos termos Hobbes uma perspectiva perfectibilista social, que ele busca esvaziar de conteúdo
moral. Ao examinar as leis da natureza, ele manifesta a sua intenção de tornar os homens
pacíficos, purgando-os dos ressentimentos, das hostilidades provenientes do orgulho, da
parcialidade e do excessivo amor de si. Ele concebe que as leis da natureza devem conter regras
imparciais para arbitrar as disputas por bens em litígio. Os juízes não devem manifestar ódio,
desprezo e má estima para com os contraventores. As leis da natureza devem ser compreendidas
com base no preceito individualista: “Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti.” (1983,
p. 93).
Para ele, a lei moral não se destina ao aperfeiçoamento da natureza do homem para um
bem comum, ela apenas leva-o a tender a viver em sociedade, de modo convencional, em prol do
auto-interesse. A virtude do indivíduo não é moral, mas racional centrada na conservação do
indivíduo. As leis da natureza não têm autoridade sobre os indivíduos para aperfeiçoá-los a se
tornarem seres morais. Eles se reúnem em sociedade porque a experiência lhes faz conscientes
de que são estéreis em face da força das paixões. Só o medo do castigo e a esperança de
recompensa têm o poder de forçar os indivíduos a se perfectibilizarem convencionalmente para
viver em sociedade. Mesmo o poder de Deus ou dos deuses que se manifestam no estado de
natureza, os poderes invisíveis, são impotentes para perfectibilizar o homem social e
moralmente. Se eles tivessem este poder, o estado de natureza não seria do modo como Hobbes o
descreve. Para ele é perigoso ao indivíduo obedecer fielmente as virtudes previstas pela lei da
natureza, pois objetivamente nada obriga que o seu semelhante obedeçam-na, devido estas
virtudes estarem na consciência. As condições de obediência às leis da natureza não devem ser
muito rigorosas, senão os que as obedecem correm o risco de serem subordinados aos que as
desobedecem.
Portanto, em Hobbes, é a política e não a moral que pode forçar o homem a se
perfectibilizar para o modo de vida em sociedade. São os poderes visíveis encarnados na figura
do governo civil ou político que podem forçar o homem a se aperfeiçoar e abandonar o modo a
vida que leva no estado de natureza. Este aperfeiçoamento se faz pela coerção das condutas antisociais individuais cujo fim é garantir a segurança dos indivíduos na sociedade; e isto exige em
um primeiro momento, no ato de fundação do poder visível, a cooperação de muitos indivíduos,
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uma multidão de homens, para instituírem um poder forte que torne perigosa a usurpação de seus
direitos e lhes proteja dos inimigos estrangeiros. O poder a ser instituído tem que ser bastante
forte para desestimular os inimigos internos e externos a lhes declarar guerra. A necessidade, “a
mãe de todas as invenções” (1983, p. 20) de instituir este poder decorre da incerteza de que esta
multidão de indivíduos posa garantir por si mesma o controle das condutas anti-sociais
individuais e a dos inimigos externos. A desconfiança de que o acordo mútuo entre indivíduos
não lhes dará segurança move-os a consentir na criação de uma sociedade política hipotética,
mas com aspirações ao real, que torne seguro o objeto desta associação.
Hobbes concebia esta associação em termos jurídicos. O soberano comum seria uma
pessoa jurídica que encarna a associação da multidão de indivíduos. Doravante, o poder político
se concretiza em uma pessoa jurídica artificial. “do mesmo modo que tantas outras coisas, a
natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens
também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial.” (1983, p. 05). Este animal artificial
tem por missão representar, exercer, a vontade de todos que com ele pactuaram, bem como estes
entram em acordo entre si considerando a vontade desta pessoa jurídica: o soberano comum
encarnado por uma só pessoa ou por um conselho. Para Hobbes, esta delegação jurídica da
vontade individual para a pessoa do soberano era necessária para garantir a liberdade do
indivíduo no estado de natureza. Entretanto, esta liberdade é exercida enquanto auto-obrigação
jurídica submissa ao soberano, porque este legisla por sua vontade por todos como representante
da vontade de todos: a legislação do soberano é a autolegislação do indivíduo.
A finalidade desta arte de Hobbes é tornar os indivíduos perfectiveis para a paz e a
concórdia, e os que não aceitaram se perfectibilizar para este fim, porque não celebraram o
contrato social, são inimigos dos que pactuaram. Perfectibildade que se faz pelo medo dos
indivíduos dos seus semelhantes, os quais encontram segurança no contrato social que fizeram
com o soberano que obriga de fato todo mundo a não resistir à vontade do seu poder. Hobbes
concebia ter elaborado uma teoria do contrato social semelhante a precisão da matemática. As
controvérsias políticas seriam, para ele, solucionadas tal como a matemática as resolve: as
discórdias políticas que perturbam a paz seriam solucionadas por meio de uma dedução precisa
dos direitos e deveres do soberano e dos indivíduos, celebrados em um contrato social de
natureza jurídica cujo objeto é não tornar controversa a obediência em troca da segurança. A
segurança consiste em que os poderes visíveis do soberano castigam e punem os que causam
danos aos cidadãos, bem como ela repousa sobre uma precaução virtual que consiste no temor
do castigo, pelo qual um potencial delito pode ser evitado.
Eis porque o primeiro direito do soberano é o direito de punir o homem. Outro é o direito
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sobre todas as coisas que os homens dispunham no estado de natureza, porque o contrato social
foi celebrado entre os indivíduos e não com o soberano, ao qual foi delegado o poder de
representar a vontade da multidão de indivíduos contratantes entre si. Na medida em que o
soberano não fez aliança com ninguém, ele conserva somente o direito sobre todas as coisas que
os homens dispunham no estado de natureza. Em conseqüência, ele não comete nem dano nem
injustiça a ninguém, porque a injustiça e o dano, no senso estrito e jurídico do termo, não é outra
coisa que o desrespeito do contrato, o fato de arrogar-se um direito que antes a gente concordou
renunciar. Ademais, na medida em que o soberano representa a vontade de cada um dos sujeitos,
alguém que acuse o soberano de cometer dano se acusa a si mesmo, e cometer uma injustiça
contra si mesmo é autocontradição. Por conseguinte, o soberano não pode ser punido de alguma
maneira pelos seus súditos.
Dentre várias atribuições, o poder absoluto do soberano comum se estende ao direito de
fazer a paz e de declarar guerra com os estados; de obrigar os cidadãos de irem à guerra contra
os inimigos estrangeiros; de concentrar em suas mãos o poder executivo, legislativo e judiciário;
de fazer as leis civis e de aplicá-las como “mandamentos do soberano”. Estes mandamentos, que
o soberano não está obrigado a obedecer, determinam a distribuição da propriedade privada,
prescrevem o que é o bem e o mal, justo e injusto, honesto e desonesto nas ações dos indivíduos.
O soberano deve ser o juiz de todas as doutrinas e opiniões que poderão ser transmitidas aos
cidadãos. O critério da censura é a distinção entre as doutrinas que conduzem à paz e aquelas que
se opõem a elas. Este poder de censura absoluta se aplica também às opiniões religiosas. Quanto
à religião e a superstição, Hobbes as denominava de “medos de poderes invisíveis”; dentre estes
medos os mais perigosos eram aqueles que perturbavam o mundo cristão, devido eles difundirem
idéias de que os indivíduos deviam obediência a outros e não àquele que fora investido de
autoridade civil suprema.
Em suma, o soberano é o legislador, o juiz e o executor de todas as ações e doutrinas e de
todas as instituições políticas concernentes à vida em sociedade. Este absolutismo hobbsiano se
nutria sobre o princípio da arte de fazer e de manter Estados consiste em seguir certas regras
definidas como regras aritméticas e geométricas. Hobbes acreditava ser o primeiro a ter
descoberto estas regras. Tais regras demonstram a objetividade do poder visível e irresistível do
soberano, pelas quais ele tem o poder de proteger todo mundo e igualmente o poder de oprimir
todo mundo. Todavia, devido Hobbes conceber que o medo dos “poderes invisíveis” persistia
ainda sobre os indivíduos, ele teve de lançar mão da religião como artifício para solidificar o
poder absoluto do soberano. Recorrendo à Sagrada Escritura, ao livro de Jó, ele ressignifica a
figura do Leviatã, o qual Deus denomina “Rei dos Orgulhosos”, assimilando-o ao poder
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temporal do soberano para governar o orgulho dos homens. O Leviatã de Hobbes é igualmente tal
Leviatã, porque ele governa os espíritos dos homens esterilizando as sementes do orgulho
humano.
Para justificar a arte do poder Leviatã Hobbes precisou separar a moral da política. Como
já vimos Hobbes considerava que o bem e o mal são relativos. Disto ele deduz que eram
irrelevantes as clássicas controvérsias políticas sobre qual seria a melhor forma de governo para
resolver o problema do bem individual e do bem comum e da conciliação entre eles em uma
forma de governo. Para ele, o problema do melhor governo não consiste em sua forma ou em sua
finalidade moral, mas na eficiência dos seus fins; pela qual as questões políticas, ou práticas,
decisivas são de ordem técnica ou administrativa; como a de saber sobre qual gênero de
administração dos poderes soberanos seria mais eficiente para garantir paz e a segurança do
indivíduo de maneira mais cômoda.
Hobbes também separou a lei da razão. A última tem por objeto o bem, a primeira a
vontade política em termos de mandamento do soberano. A razão como objeto do bem pode se
manifestar em termos de conselho, o qual se funda sobre as razões das vantagens a serem obtidas
por quem é aconselhado. Quem aconselha visa o bem do aconselhado, que pode aceitar o recusar
o conselho dado. Segundo Hobbes, as leis da natureza são somente conselhos porque elas não
são ditadas por um soberano civil. Por seu turno, a lei civil é mandamento e como tal deve ser
obedecida, porque expressa a vontade do soberano na forma de regras que devem orientar os
indivíduos para distinguirem o justo do injusto. Já o costume é incapaz de engendrar a lei por si
mesmo. Somente o soberano poderá consentir que ele se transforme em lei costumeira. O direito
comum, o direito de equidade, o cânon da igreja, ou o direito eclesiástico para se transformarem
em lei também dependem da vontade do soberano.
Para Hobbes “muito embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal, contudo, se
os homens se servissem da razão de maneira como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que
seus Estados perecessem devido a males internos.” (1983, p. 192). Como poderiam os homens
evitar a morte do Estado? Segundo Hobbes, pelo controle das suas forças de natureza anti-social,
as quais tendem para a dissolução da paz e da ordem civil. Este controle não se daria por meio de
uma reforma moral dos homens, mas recorrendo aos seus interesses esclarecidos, bem como pelo
conhecimento e manipulação de suas paixões. Deste procedimento decorreria a invenção do bom
gênero das instituições políticas, e não o dos indivíduos, que perdurariam por serem boas para
todos os tempos, todos os povos e por todo lugar. Esta iniciativa destinada a dar duração às
instituições políticas não poderia ser somente um atributo dos homens
Pois os homens quando, finalmente se cansam de conflitos irregulares e de ataques
mútuos, e desejam de todo o coração transformar-se em um edifício sólido e
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duradouro, por falta quer da arte de fazer leis adequadas para nortear suas ações, quer
também da humildade e paciência para aceitarem ver suprimidos os aspectos grosseiros
e rudes da sua presente grandeza, não conseguem sem a ajuda de um arquiteto muito
hábil, ser reunidos em outra coisa que não seja um edifício desordenado , o qual,
mesmo que consiga agüentar-se durante sua própria época, necessariamente cairá sobre
a cabeça da posteridade. (1983, p. 192).
A tarefa de aperfeiçoamento dos indivíduos para imortalizarem o edifício político
competia ao “arquiteto”; porque logo que o Estado venha a ser dissolvido, não por causas
exteriores, mas por desordens internas, a falta não é dos homens enquanto matéria do edifício
político, mas do soberano. Doravante, Hobbes passa a diagnosticar os possíveis males que
podem destruir o edifício político, os quais o arquiteto deve estar prevenido para evitar ou curar.
“Entre as enfermidades de um Estado incluirei em primeiro lugar aquelas que têm origem numa
instituição imperfeita, e se assemelham às doenças de um corpo natural que provêm de uma
procriação defeituosa.” (Idem). A primeira doença grave que o soberano deve evitar é a que pode
ser contraída quando na fundação de um Estado os homens se contentam de menos poder que é
necessário para manter a paz e a defesa do Estado. Então, logo que “o exercício do poder é
assumido para a salvação pública, tem a aparência de um ato injusto, que predispõe um grande
número de homens [...] para a rebelião” (Idem). Isto, por sua vez, leva-os à cumplicidade com as
potências estrangeiras que sempre acolhem favoravelmente a ocasião para enfraquecer os seus
vizinhos.
Outra doença consiste em o soberano permitir que o povo seja mal informado ou
ignorante das causas dos seus direitos. Para evitar isto a primeira tarefa do soberano é purificar o
Estado do “veneno das doutrinas sediciosas, uma das quais é a seguinte: Todo indivíduo
particular é juiz das boas e más ações.” (Idem). O veneno desta doutrina é instilado nos
indivíduos pelos adivinhadores poucos instruídos que compreendendo mal a Escritura levam os
homens a pensar que a santidade e a razão não podem caminhar juntas. Eles ensinam que cada
homem é o juiz das ações boas e más. Isto é verdadeiro no estado de natureza, mas em uma
sociedade civil, a lei civil e o soberano são a medida e o juiz do bem e do mal.
Uma segunda doutrina que pode adoecer o edifício político afirma “que é pecado o que
alguém fizer contra a sua consciência” (idem, p. 193), sobretudo os atos que seu soberano lhe
manda fazer. Se o ato comandado é um pecado, é o soberano que peca e somente ele deverá
prestar contas a Deus por isto e não o indivíduo, porque o pecado não é dele. Ao contrário, a
desobediência ao soberano é que é um pecado, porque ao desobedecer-lhe o individuo se arroga
conhecedor do bem e do mal e de ser o juiz deles. Em terceiro lugar vem a doutrina segundo a
qual a lei e a santidade não podem ser obtidas pelo estudo e pela razão, mas por uma inspiração
sobrenatural. Se aceitássemos esta doutrina, diz Hobbes, cada cristão seria um profeta, obrigado a
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seguir a sua própria inspiração do que seja a lei de seu país, assim como a regra de sua ação. Esta
doutrina também leva os homens a se tomarem por juizes do bem e do mal.
E depois vem a doutrina sediciosa para a qual “o detentor do poder soberano está sujeito
às leis civis.” (1983, p. 194) e outras que propagam que a autoridade suprema pode ser dividida;
que os homens privados têm direitos absolutos sobre suas propriedades, não admitindo a
intervenção do soberano sobre elas; e enfim, a doutrina, igualmente sustentada por numerosos
adivinhos, segundo a qual o “tiranicídio” é legal e digno de ser elogiado. Finalmente, existe a
enfermidade da doutrina “contrária à essência do Estado que é esta: o poder soberano pode ser
dividido.” (Idem). Hobbes tenta provar através do seu exame teológico da Santa Escritura que
esta divisão foi perniciosa para o povo judeu.
Destruir as doutrinas sediciosas e erradas não é suficiente, pois são doenças do espírito do
Estado que precisam ser curadas juntamente com as doenças que afligem o seu corpo. A primeira
Hobbes diagnostica como sendo uma febre intermitente que leva o Estado ao colapso devido à
“teimosia do povo a passagem do dinheiro para o tesouro público” (1983, p. 197). Outra é a
“pleurisia” decorrente da concentração do tesouro público nas mãos de um ou de poucos
indivíduos particulares, “por meio do monopólio ou contrato das rendas públicas” (idem, p. 198).
Ademais, quando um povo desvia o seu movimento da autoridade do soberano para adular e
reputar um homem ambicioso, desviando-se da obediência às leis, tal doença Hobbes denomina
de feitiçaria de homens populares sobre o povo. Outra enfermidade consiste em que o tamanho
imoderado de uma cidade não corresponde ao quantum de recurso suficiente para manter um
grande exército, bem como quando um grande número de corporações se comporta como
pequenos Estados dentro do Estado, estas Hobbes as compara “como vermes nas entranhas do
homem natural” (p. 198). Aos que propagam as doutrinas sediciosas, “os quais educados na maior
parte entre as fezes do povo” (idem), Hobbes os compara a “pequenos vermes que os físicos
denominam ascárides.” (idem). O Estado pode também ser acometido de bulimia: o seu apetite
insaciável de alargar os seus domínios lhe faz contrair feridas, bem como tumores nascidos “de
conquistas caóticas” (idem). O ócio, a “consumpção dos distúrbios e vãs despesas também são
enfermidades que o Estado pode contrair.
Todavia, a enfermidade que é a causa mortis do Estado é a guerra externa ou a intestina.
As forças do Estado não podendo mais enfrentar o inimigo no campo de batalha, e não podendo
mais proteger os súditos leais “então está o Estado dissolvido, e todo homem tem a liberdade de
proteger-se a si próprio por aqueles meios que sua prudência lhe sugerir.” (1983, p.198-199).
Com a morte do Estado a alma pública do corpo político, o soberano, “que da vida e movimento
ao Estado” (1983, p. 199) se extinguiu pela extinção da obrigação dos membros do corpo político
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para com ele. É com certo amargor que Hobbes concebe a dissolução do edifício político.
Doravante o homem está novamente sujeito ao estado de natureza,
Pois aquele que quer proteção pode procurá-la em qualquer lugar, e quando a obtém,
fica obrigado [...] a proteger sua proteção enquanto for capaz. Mas quando o poder de
uma assembléia é suprimido, o direito da mesma desaparece completamente, porque a
própria assembléia fica extinta e consequentemente não há qualquer possibilidade de a
soberania reaparecer. (Idem).
Após termos apresentado a nossa leitura sobre alguns temas presentes no pensamento
político de Hobbes, cujo fito foi ressaltar que ele se impôs a tarefa de perfectibilazar o homem
para a vida em sociedade; então com base no estudo de Passmore sobre a perfectibilidade do
homem em qual definição poderíamos identificar o pensamento político de Hobbes?
De certo que se trata, nos termos de Passmore, de uma tentativa de perfectibilidade
obedecente ao poder político temporal de uma autoridade suprema, o soberano, e não ao poder
espiritual de Deus. Mesmo que a obediência do indivíduo à autoridade de Deus não esteja de
todo descartada, para Hobbes a perfectibilização do homem para viver em sociedade é atribuição
do Estado representado na figura do soberano. Em Hobbes, não encontramos uma perspectiva
teleológica à maneira que Aristóteles concebia; pelo contrário ele a recusa em razão da sua
crítica da filosofia antiga. Ao conceber que o homem é naturalmente anti-social, ou de outro
modo que ele só pode viver em sociedade se for forçado, por medo e obediência, a transformar, a
artificializar a sua natureza; Hobbes nega que a perfectibilidade do homem seja a realização de
uma finalidade natural do homem em busca de sua felicidade e da felicidade pública, em termos
da eudaimonia aristotélica.
Forçado a viver em sociedade pelo auto-interesse, o indivíduo hobbsiano é obrigado a se
submeter ao jugo das convenções de paz, os únicos dispositivos que lhe confortam de ter
abandonado a liberdade que ele usufruía no estado de natureza, mas que se dava em um campo
minado de paixões arbitrárias, das quais resultava uma guerra perpétua. Hobbes tinha uma idéia
negativa sobre a existência do indivíduo do seu tempo, e isto lhe moveu a conceber outro homem
e outras instituições sociais e políticas nos moldes que apresentamos. O fim que ele vislumbrava
para a perfectibilidade do homem para a artificialidade da vida em sociedade não era tornar a
espécie humana moralmente melhor, mas para perfectíbilizá-la para o novo tempo que se
manifestava, no qual as antigas idéias, modos de vida e instituições não correspondiam mais.
Tratava-se de o homem abandonar a sua perfectibilidade tradicional para caminhar na via do
projeto da vida em sociedade, da via da delegação e da representação política, mesmo que
absolutista, instituídas em prol da proteção do direito individual. Hobbes denominava o soberano
que ele criou de arquiteto do edifício político. Ao elaborar a sua teoria política ele encarnou a
figura do arquiteto do edifício político moderno, inaugurando as fundações do liberalismo
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político clássico que se dedicaram a aperfeiçoar a espécie humana nesta via.
REFERÊNCIAS
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.
São Paulo: Abril Cultural, 1983
________. De Cive: Elementos Filosóficos a Respeito do Cidadão. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 1993.
MANENT, Pierre. Histoire Intelectuelle du Liberalisme. Paris: Hachette,1997.
PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
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