A arte na construção do pensamento: agir e variar como

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A arte na construção do pensamento:
agir e variar como formas de provocar o pensar
Suianni Cordeiro Macedo
Doutoranda em Educação pela
Unicamp
Bolsista FAPESP
(processo n˚ 2013/19556-9)
[email protected]
Palavras-chave
Arte/pensamento; arte/devir;
educação estética;
geografias-menores.
Resumo
Propomos, nesta apresentação, um percurso que nos leve do mundo
que cria imagens para os mundos que as imagens criam. A partir
do pensamento de Deleuze e Guattari, procuraremos desenvolver
uma reflexão acerca das formas como a arte, não apenas reage aos
elementos do mundo, mas sim provoca variação e cria devir. Como
destacaram os dois filósofos na obra O que é filosofia? (2013), a
filosofia cria conceitos e a arte perceptos e afetos. Esta distinção,
entretanto, não exclui as artes de um papel ativo na construção do
mundo. Assim, propomos pensar como pode a arte agir no pensar,
criar pensamentos. Para procurarmos aprofundar estas questões
escolhemos um conjunto de obras artísticas, fotografias e vídeos
que tem como tema a cidade de São Paulo. Tais imagens atuam no
mundo, mas por se tratarem de imagens não habituais da cidade, nos
afetam e provocam variações daquilo que comumente denotamos
como cidade, e mais especificamente como espaço. Em A invenção
da paisagem (2007), Anne Cauquelin apontou precisamente que a
paisagem transforma a realidade em imagem e em seguida a imagem
transforma a realidade. Se tais obras nos permitem pensar outras
possibilidades de espacialidade, elas atuam diretamente no conceito
de espaço, provocando transformação, variação, ou seja, geografias-menores. Nossa reflexão procura, portanto, percorrer os meios como
a arte é agente no mundo, e consequentemente interage no pensar
e na construção dos modos de compreensão do mundo envolvente.
Como destacou Jacques Rancière, em A partilha do sensível: estética
e política (2012), as artes são práticas que intervêm em outras práticas, criam os modos da visibilidade e as formas pelas quais as partilhamos. Logo, estas práticas interferem nos modos de compreensão
do mundo, naquilo que pensamos ser o mundo. Assim os perceptos
e afetos oriundos das práticas artísticas conformam modos de nos
relacionarmos com o mundo e formas de pensar sobre ele.
“o mundo não é o que existe, mas o que acontece”1.
Toda cidade possui inúmeros adjetivos que habitualmente a caracterizam. Para muitos dos seus adjetivos existem imagens correspondentes, as quais igualmente a adjetivam. Se tomamos o
exemplo da cidade de São Paulo, diremos acerca da metrópole
sul-americana: movimentada, cosmopolita, engarrafada, poluída,
tumultuada, construída, verticalizada… Para cada um dos adjetivos
enumerados poderíamos encontrar imagens ilustrativas equivalentes, pois acreditamos figurar a cidade construindo imagens corres-
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1 Dito de Tizangara registrado por Mia Couto. Cf: COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 13.
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pondentes à sua realidade, entretanto, simultaneamente elas mesmas constroem a sua verdade. Estranha miragem são, no entanto,
tais imagens: nos fazem crer que aquilo que mostram é aquilo que
é, pois “as paisagens em sua diversidade pareciam uma justa e poética representação do mundo” (CAUQUELIN, 2007, 7). A paisagem,
contudo, é um elemento transformador: transforma a realidade em
imagem para em seguida a imagem transformar a realidade (CAUQUELIN, 2007, 110). Ou seja, o momento no qual a realidade define
aquilo que é a cidade a imagem atua fixando para a mesma uma
verdade. Salgada verdade, diria Nietzsche, pois com ela não há
meios da cidade ser outras, fadada àquilo que é, apenas consegue
ser um cliché de si mesma2 (NIETZSCHE, 2003, 89).
Ao contrário do que habitualmente supomos as imagens pensam
e, portanto, atuam na configuração do real, constroem clichés
capazes de conformar a verdade. Cada uma é sempre singular: as
imagens se naturalizam enquanto apresentação, logo, como correspondentes à realidade e, deste modo, excluem todas as outras
imagens possíveis. A realidade/verdade no singular se constitui no
interior da imagem, conforme salientou Milton Almeida: “[…] hoje
a maior parte das populações vê o real naturalizado, reproduzido
pela fotografia, pela cinematografia, pela videografia, como a verdadeira representação visual do real” (ALMEIDA, 1999, 141, grifo
do autor). As imagens constroem a verdadeira apresentação visual
do mundo: fazem com que esqueçamos “[…] ser a paisagem mero
artifício” (CAUQUELIN, 2007, 31). Em certa medida, o fazem porque
é isso que esperamos delas; é apenas isso que permitimos que sejam: formas de apresentação, fabricantes de clichés.
O que fazer, contudo, quando o artifício resulta em algo estranho
ao esperado? Como adjetivar a cidade quando ela não é mais que
uma bolha translúcida e frágil de sabão? Ou um amontoado difuso
de construções que não mais respeitam as paralelas e perpendiculares de ruas e avenidas? Os trabalhos fotográficos de Feco Hamburguer e Claudia Jaguaribe criam variações que nos impedem de
confrontar suas obras a real e a verdadeira da cidade, pois agem
justamente criando impossibilidade de que haja apenas uma verdade e uma realidade para a cidade3. Ao esperarmos que as imagens
ilustrem as coisas as quais cremos que elas correspondem criamos
duas determinações: por um lado, as imagens se fecham a qualquer
abertura de sentido, sendo apenas a representação de algo, por outro lado, as coisas encerram-se nestas imagens, abdicando de serem
também outras possibilidades, são meros clichés ou decalques.
Podemos parafrasear Deleuze e Guattari e afirmar que a arte não é
contemplação, nem reflexão, nem comunicação (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 12). Em diversas páginas, em O que é a filosofia?, os
dois filósofos franceses reiteram que a filosofia pensa, mas também
a ciência e arte pensam. “A arte não pensa menos que a filosofia
2 “É uma coisa terrível morrer de sede em meio ao mar. É realmente necessário que se
ponha tanto sal na vossa verdade a ponto de torná-la incapaz de satisfazer a sede?”
3 O trabalho de Feco Hamburger que me refiro aqui é a Série Neutrino, disponível no
site do artista: http://fecohamburger.com.br/pesquisa.php?id=5
E o trabalho de Cláudia Jaguaribe chama-se Sobre São Paulo, publicado pelo Estúdio
Madalena, mas que pode parcialmente ser visto no site da artista: http://www.claudiajaguaribe.com.br/br/obra/sobre-sao-paulo-2011/
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[…]”, mas são os modos do pensar que as distinguem enquanto
ações humanas diante do caos (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 81).
Assim como à filosofia, não cabe a arte a tarefa de reflexão e de
comunicação, pois ambas pressupõem referências preexistentes
sobre as quais exercemos ações: refletimos sobre e comunicamos
sobre algo. Em ambos casos está pressuposto elementos prévios
disponíveis à ação, portanto, anteriores ao pensar. O que dizer da
contemplação? Não é a arte aquilo que se destina a fruição? A
contemplação “são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 12),
ou seja, existiria uma ordenação do caos por si mesmo, e que se dá
a ver: contemplamos o mundo ordenando a si mesmo. Mas se todo
o pensar é criação, como repetem sem cessar Deleuze e Guattari,
logo o pensar não corresponde a contemplar, tampouco a arte terá
algo a ver com a contemplação; Não há o que contemplar; somente
existe pensar a medida que somos capazes de criar: “as ciências,
as artes, as filosofias são igualmente criadoras”, traçam planos sobre o caos. Contemplar, refletir e comunicar são uma tripla ilusão,
oriunda da crença de que existem universais imanentes capazes de
explicar o caos; a imanência não está em algo, ela é um plano que
povoamos por conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 62).
A filosofia pensa por conceitos, cria conceitos. A arte, por sua
vez, pensa por perceptos e afectos. A distinção assegura funções e
formas ao pensamento, mas não indica “nenhuma proeminência,
nenhum privilégio” da filosofia em detrimento as demais formas
de pensar (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 15). Em comum o pensar
possui apenas a relação com o caos, mas os modos como a arte e a
filosofia interagem com o caos não se equivalem (o mesmo é valido em relação à ciência). Cada pensar traça um plano distinto sobre
o caos. O plano é sempre um corte, uma secção, crivo no caos, ou
seja o plano é “um corte do caos e age como um crivo” (DELEUZE;
GUATTARI, 2013, 53). Podemos dizer, brevemente, que os conceitos
povoam o plano de imanência, se organizam no plano criando relações de vizinhança entre si, mas são fragmentários, ressoam uns
nos outros sem serem complementares. O plano e os conceitos são
correlativos, porém não são coincidentes: “os conceitos são como
vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de
imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola” (DELEUZE;
GUATTARI, 2013, 45). A relação intrínseca entre o plano e os conceitos resulta num pensar sempre criativo, que não cessa de inventar conceitos e recortar planos. Por isso a filosofia, assim como a
entendem Deleuze e Guattari, é superposição e não sucessão: cada
filósofo cria conceitos, os arranjos, as relações de vizinhança e as
zonas de indeterminação que existem entre eles são partes do plano por ele recortado. Um plano não substituí o outro, conformando
uma sucessão, se existe uma história da filosofia ela é sem dúvida
uma geomorfologia e não uma linha temporal.
A arte por sua vez, cria blocos de sensações, ou seja, um ser de sensações. A arte almeja cria perceptos e afectos, que existem independentes de seu criador, o artista, e que mesmo enquanto objeto efêmero permanece no tempo. Os perceptos e os afectos dão “à sensação o
poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste
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com esta curta duração” (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 197 grifo dos
autores). Os perceptos e afectos nada têm do vivido e das experiências idiossincráticas, não pertencem aos indivíduos que os criam,
os artistas, tampouco àqueles que as vivenciam, o público. “Só se
atinge o percepto e o afecto como seres autônomos e suficientes, que
não devem mais nada àqueles que os experimentam ou os experimentaram […]”. Assim, a obra de arte é um monumento que torna
sempre presente o ser de sensação e sua ação é a fabulação e não
a memória, pois não lhe cabe rememorar um passado, mas fabular,
pois o artista traz variedades ao mundo. A arte pensa criando outros
mundos possíveis, devires, que compõem, recompõe e decompõe
a realidade, pois são estes mesmos mundos a própria realidade, na
medida em que a realidade e a verdade são meras ficções e o mundo
uma fábula. Conforme escreveu Deleuze: “a arte inventa precisamente as mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. É
nos preciso a arte para retomar e consolidar a potência do falso que
pertence antes de tudo à essência da vida” (DELEUZE, 2001, 154-5).
A arte é variedade, ou “Diferença” como escreveu Deleuze em outra obra (DELEUZE, 2006, 278). As figuras estéticas, que povoam o
plano de composição, tal como a descrevem Deleuze e Guattari, são
sensações, ou um devir sensível que não cessa de ser outro; o devir
sensível “é o ato pelo qual algo o alguém não para de devir-outro
(continuando a ser o que é)” (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 209). O
artista cria variedade, ou ainda cria uma fenda no guarda-sol que
nos protege do caos, trazendo “um pouco de caos livre e tempestuoso” (DELEUZE; GUATTARI, 2013, 240).
A ausência de hierarquia entre as formas do pensar resulta em
elementos díspares e desemparelhados, a filosofia, a ciência e arte
“recortam o caos e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá-lo” (DELEUZE; GUATTARI,
2013, 80-81 grifo nosso). São formas autônomas, que procedem por
meios distintos , ainda assim: “os três pensamentos se cruzam, se
entrelaçam, mas sem síntese nem identificação. […] Um rico tecido
de correspondências pode estabelecer-se entre os planos” (DELEUZE;
GUATTARI, 2013, 234). Isto porque pensar é também criar diferença, heterogênese, logo os elementos criados sobre um plano podem
reverberar em outro plano não enquanto reflexo, mas enquanto
vibração. Os elementos criados, sejam eles conceitos ou afectos não
formam uma síntese, mas se entrelaçam criando outras formas para
o próprio pensar. Deleuze e Guattari afirmam que: cada elemento
criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos, que
restam por criar sobre outros planos” (DELEUZE; GUATTARI, 2013,
234-235), mas não determinam as formas como os planos se relacionam nem a natureza das relações que estabelecem, pois isso seria
romper com a abertura do próprio pensar. Os planos se modificam
de acordo com os elementos que os povoam, da mesma forma as
possíveis relações entre os planos. São tais entrelaçamentos entre o
plano de imanência e de composição que nos levam novamente ao
nosso ponto de partida: as figurações da cidade de São Paulo. Quais
vibrações podemos criar entre o conceito de espaço e os afectos que
experimentamos em uma paisagem? As fotografias de Feco Hambuger e Claudia Jaguaribe ao criarem perceptos e afectos que nos re-
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metem a cidade de São Paulo, criam também afectos de espaço que
se entrelaçam aos conceitos de espaço?
Para tentarmos pensar estas questões voltemos primeiro ao conceito
de espaço. Segundo o conceito que habitualmente possuímos o espaço é superfície, um espaço extensivo, no qual as coisas existem e
as ações se desenrolam. Logo, temos, então, o espaço como um conjunto de coisas imóveis, sobre as quais os seres se deslocam através
do tempo. Deste ponto de vista, o espaço é apenas uma coordenada
xy, possível de ser conhecido, e sublinho aqui o termo conhecido.
Possui existência, na medida em que as coisas acontecem sobre a sua
superfície: “e se o espaço for a esfera não de uma multiplicidade discreta de coisas inertes, ainda que completamente inter-relacionadas?
[pergunta Dorey Massey] E se, ao contrário, ele nos apresentar uma
heterogeneidade de práticas e processos?” (MASSEY, 2008, 160)
Seguiremos então com estas duas questões propostas pela geógrafa
para podemos pensar outras possibilidades de espaço. E simultaneamente pensar quais outros sentidos podem daí emergir da arte.
Então prosseguimos um pouco mais na direção proposta por Massey. Segundo ela “se o espaço é mais do que coordenadas (ou mesmo não é), mas um produto de relações, então “visitar” é uma prática de envolvimento, um encontro. É nesse processo de estabelecer
uma relação que […] o espaço é construído, bem como atravessado,
nesse encontro.” (MASSEY, 2008, 139; grifo nosso) E sublinho
construído e atravessado. Temos, então, um espaço que é processo,
construção de práticas. “Então [prossegue Massey] ele [o espaço]
não será um todo já-interconectado, mas um produto contínuo de
interconexões e não conexões. Assim, ele será sempre inacabado
e aberto” (MASSEY, 2008, 160). Como demonstra o argumento de
Massey, o espaço é encontros e processos, e não um lugar no qual
estes encontros e processos acontecem, pois deste modo seria ele
apenas uma superfície lisa e imutável; tais encontros e processos
são o próprio espaço, e deste modo não é possível que o espaço
seja algo concluído. Deste modo o conceito espaço alcança uma
forma segundo a qual que ele mesmo possa ser interminável e inacabado. Cabe ressaltar aqui, que não se trata de um subjetivação
psicológica do espaço, pois isso resultaria apenas na relativização
do espaço enquanto impressão subjetiva.
Ao confrontar a arte ao espaço processo, podemos perceber que o
espaço já-interconectado (e destaco aqui que Massey opta pela grafia em forma de uma só palavra, pois, justamente, isso evidencia
a imobilidade e a forma fechada do espaço) é estreito demais para
comportar estes corpos sensíveis que os atravessam. E neste atravessar o transformam em novas relações e processos muitas vezes
efêmeros, mas nem por isso menos reais e construtivos.
Mais do outras miradas da cidade as fotografias de Feco Hamburger e Claudia Jaguaribe são parte do encontro que cria o próprio
espaço da cidade. As artes criam outras geografias, pois não apenas
se conformam a apresentar uma outra imagem possível de uma
cidade, de um lugar. Cada imagem é a própria criação de um outro
espaço em devir, pois é no momento em que a imagem coloca em
desvio aquilo que era habitual que o espaço devêm o inesperado:
todas as possíveis especialidades.
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