Limites constitucionais do Direito à Saúde: reserva do possível X mínimo existencial Tese apresentada pela Procuradora do Estado de São Paulo, Ana Carolina Izidório Davies ([email protected]), à Comissão Temária de Direito Constitucional do XXXIX Congresso Nacional de Procuradores do Estado em Porto de Galinhas – 15 a 18 de outubro de 2013. 1 SUMÁRIO 1 2 3 4 5 O direito à saude ................................................................................. Limites à efetivação do direito à saúde ............................................. Reserva do possível e Mínimo Existencial ....................................... Direito comparado ............................................................................. Conclusão ................................................................................................ 2 1. O DIREITO DA SAÚDE A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 imprimiu à saúde um caráter fundamental, social, transindividual e individual, ao mesmo tempo. A saúde na Constituição de 1988 recebeu um tratamento diferenciado, com uma amplitude generosa, digna de países desenvolvidos e com uma saúde exemplar. São cinco artigos em que o tema é especificamente delineado: o artigo 196 do diploma constitucional garante a amplitude do direito mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como a equidade e universalidade do acesso. Neste sentido também é a Lei nº 8.080/901 que em seu art. 2º, § 1º, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, sua organização e o funcionamento dos serviços a ela correlatos. Diante desta enorme amplitude impressa ao conceito do direito à saúde acaba gerando consequências práticas sérias e polêmicas como, por exemplo, o parecer emitido pelo Sr. Procurador Geral da República na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3087-6/600-RJ. Trata-se de ação proposta pelo PSDB em face da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em razão da edição da Lei Estadual nº 4.179/03, que instituiu o Programa Estadual de Acesso à Alimentação, incluindo no percentual orçamentário exigido para o gasto com a saúde. Nesta ação o Procurador Geral da República opinou pela constitucionalidade da lei estadual por entender que gastos com alimentação devem ser realizados com os recursos da saúde já que a alimentação é uma das causas que interfere na saúde humana. Esta ação ainda não teve julgamento definitivo. 1 Art. 2º: A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º – O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. 3 Esta espécie de conflito não mais existirá com a edição recente da Lei Complementar 141/2012 de 13/01/2012 que regulamentou os gastos com a saúde, em especial o parágrafo 3º do artigo 198 da Constituição Federal. Nos artigos terceiro e quarto da LC 141/2012, em específico menciona-se expressamente o que deve e o que não deve ser considerado como despesa da saúde pública. Conclui-se que a análise do conceito de direito à saúde pelo direito não recebe uma definição estrita, está sujeito a várias interpretações (HERNÁNDEZ, 2005, p. 85). Deve-se diferenciar o conceito biológico de saúde e o conceito jurídico de direito da saúde, ou seja, aquilo que o Estado deve garantir efetivamente a todo o cidadão, do ponto de vista coletivo e, ser incluído em seu orçamento. De acordo com Lenir Santos,2 para compreender adequadamente a real competência do Sistema Único de Saúde e também o real conceito de direito à saúde, é preciso desdobrá-lo em duas partes: a) a de natureza difusa que executa programas sociais e econômicos para a redução coletiva de doenças e seus agravos atingindo uma melhoria na qualidade de vida; é a saúde em seu amplo espectro; b) a de natureza mais objetiva que impõe ao Estado o dever de manter serviços públicos de saúde mediante uma rede regionalizada e hierarquizada com atendimento universal e igualitário, de caráter preventivo direto e curativo (SANTOS, 2005, p. 04). Vale ressaltar também a natureza difusa que o constituinte quis imprimir a este direito ao dispor expressamente que se trata de um direito de todos, ou seja, são seus titulares sujeitos indetermináveis, independentemente de qualquer relação jurídica subjacente e que tem como objeto um bem jurídico indivisível. O princípio do acesso universal e igualitário mencionado no art. 196 da Constituição garante o alcance deste direito a todo e qualquer cidadão de forma idêntica e independentemente de contraprestação à previdência social, como outrora (ARAUJO, 2006, p. 484). 2 Advogada especialista em Direito Sanitário e membro do Instituto de Direito Sanitário aplicado. 4 O art. 198 institui o Sistema Único de Saúde – SUS e expõe suas diretrizes básicas e critérios (descentralização, prioridade preventiva, e participação da comunidade). É importante notar que o constituinte preocupou-se em instituir um Sistema que, como o próprio nome diz é único para o atendimento da saúde pública. Como sistema tem regramentos, especificações, hierarquia que devem ser observados. A instituição deste Sistema Único tornase imprescindível ante a universalidade e a integralidade propostas na Constituição de 1988, nunca antes idealizadas em qualquer outra Constituição brasileira. Na década de 70 existia o INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social que era vinculado à Previdência Social e prestava, diretamente ou através de serviços privados, o atendimento à população. Não havia universalidade. A instituição deste sistema para que atenda a todos e de forma integral é um dos grandes orgulhos de nossa Constituição Federal, no entanto, tem exigido um trabalho árduo dos setores da saúde do Poder Executivo, do Poder Judiciário e da sociedade civil para imprimir uma implementação equitativa. Este é o grande desafio para o Estado: fazer funcionar o Sistema Único de Saúde de maneira igualitária e equânime com a devida credibilidade dos seus protocolos clínicos e terapêuticos. “Diante deste contexto, não é temeroso afirmar a saúde é um sistema e que sua proteção jurídica somente será satisfatória se feita com base na matriz pragmático-sistêmica” (SCHWARTZ, 2001, p. 202). Porém, sem dúvida, a instauração deste perfil de saúde pública merece aplausos dos cidadãos, pois está à frente de muitos sistemas de saúde de países mais desenvolvidos que o Brasil. De logo, o primeiro inciso do artigo 198 dispõe sobre a descentralização (I) do serviço com a finalidade de aproximação do serviço da saúde ao cidadão, em especial com o atendimento básico oferecido pelo Município, afinal “[...] a vida nacional acontece no Município” – (WEICHERT, 2004, p. 167). O atendimento de maior complexidade fica sob a responsabilidade do Estado e a União, sendo que em todas as unidades da Federação existe uma direção única e geral que deve observância às normas gerais. 5 A direção única e geral foi adicionada ao Sistema, pois até então a responsabilidade da saúde era dispersa entre vários entes públicos o que gerava políticas conflitantes com desperdício de esforços e recursos (WEICHERT, 2001, p. 168). Cabe à União a direção nacional do Sistema em virtude de sua posição e visão global da nação, em especial para direcionar especial atenção e recursos às áreas mais desfavorecidas e ainda porque é indispensável uma coordenação geral do Sistema em todo o país. Em síntese, de acordo com a norma da NOB/SUS-01/96, cabe: a) ao Município a prestação direta de serviços básicos de saúde aos seus munícipes; b) ao Estado cabe a gestão geral estadual do SUS com a finalidade de criar condições favoráveis para que o Município assuma diretamente o serviço de saúde pública ou assumi-lo naqueles municípios sem estrutura suficiente e, ainda promover a integração e a modernização dos sistemas municipais no Estado; c) à União cabe o papel de gestora federal do SUS, promover a integração e harmonização, os fomentos dos gestores estaduais e, por via reflexa, os gestores municipais e exercer função de normatização e coordenação no tocante à regulamentação nacional do SUS. Esta gestão tripartite é importante para a atuação geral, estratificada e, ao mesmo tempo, unificada para fazer jus à Federação em que o Brasil faz parte, isto é, o sistema é único, mas ao mesmo tempo descentralizado. Também é indispensável para a efetividade desta gestão o repasse dos recursos pela União, pois é ela quem os arrecada. A integralidade (II), deve ter prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. A Lei nº 8.080/90 em seu art. 7º, inc. II também dispõe que a “[...] integralidade de assistência entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”. O cidadão não pode ficar desamparado, mormente quando se trata de um direito fundamental que é a saúde, ainda que se trate de enfermidade de alta complexidade e/ou de alto custo. No entanto, deve-se entender também que a medicina, aliada à tecnologia, possui medidas/tratamentos/medicamentos infindáveis e que é necessário uma lógica razoável na efetivação desta integralidade sob pena ser autofágica. Em outras palavras: quando se garante a integralidade infinita, sem qualquer razoabilidade a um indivíduo, inevitavelmente estará 6 sendo violada a integralidade de outro indivíduo. E isto ocorre não só porque os recursos são escassos, mas também porque as medidas são inúmeras. O Ministério da Saúde deve regular esta integralidade, por exemplo, com a publicação de lista de medicamentos3 a serem fornecidos gratuitamente ao cidadão atendido pelo Sistema Único de Saúde e então, somente assim, pode-se garantir eficazmente a integralidade aliada à universalidade, o que gerará a equidade. Não se trata de afastar o direito à saúde de uma judicialização. Eventualmente, medicamentos não inscritos neste rol e que possuam eficácia comprovada e superior àqueles constantes da lista, podem ser objeto de uma ação coletiva para sua inclusão, isto é, uma ação civil pública, de forma que seus efeitos atinjam a todos indistintamente, fazendo valer o direito à saúde pela essência de sua natureza social. O art. 198 ainda em seus parágrafos versa sobre o financiamento da área da saúde. Ela é basicamente financiada com os recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, além de outras fontes. Há determinação expressa de um percentual mínimo de recursos do orçamento de cada ente da Federação, recentemente, regulamentado pela Lei Complementar nº 141/2012. Todavia, em que pese a publicação da referida lei complementar, tais percentuais mínimos continuaram os mesmos daqueles definidos pelo Poder Constituinte Reformador, nos Atos das Disposições Transitórias, art. 77, impondo que Estados e Distrito Federal apliquem no mínimo doze por cento do produto da arrecadação com seus impostos de natureza estadual e da repartição de receitas, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; que os Municípios e o Distrito Federal apliquem quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos de natureza municipal e da repartição de receita. Infelizmente a União deixou de fixar seu percentual mínimo. Versa apenas em seu artigo quinto que aplicará o mesmo percentual do exercício financeiro anterior acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB. 3 RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – é a lista oficial elaborada pelo Ministério da Saúde. 7 Somente com a leitura desta seção da saúde é possível perceber que, de fato, o tratamento oferecido ao tema é inigualável às demais Constituições federais. Apesar de ser de conhecimento notório que toda a estrutura mencionada ainda não seja perfeitamente aplicada na prática, deve-se louvar que, historicamente, ao menos na Carta Constitucional foi dada a devida atenção a este direito fundamental. Em contraponto a esta amplitude, não se pode deixar de mencionar a escassez dos recursos estatais e o caráter universal e igualitário já mencionado. As circunstâncias sociais presentes no momento devem eleger as prioridades, até mesmo no campo da saúde. Em outras palavras, não há como garantir todas as espécies de remédios, exames, próteses ou tratamentos, como por exemplo, contra a calvice ou cirurgias para a mudança de sexo a todos, sem qualquer custo direto para o cidadão. É preciso eleger as prioridades (HERNÁNDEZ, 2005, p. 85). 2. LIMITES À EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Dentre os princípios integradores do direito à saúde estão a universalidade e a integralidade. A universalidade deve ser entendida como o acesso amplo, universal, que atinja todo e qualquer cidadão sem a necessidade de qualquer pré-requisito. Já a integralidade deve ser entendida como o acesso ao Sistema por inteiro, ou seja, com tudo aquilo que é possível oferecer a todos. Para a realização desta integralidade e universalidade há obstáculos. São limites que podem ser considerados como entraves para a realização ideal da integralidade no sistema de saúde pública brasileira e alguns dados do direito comparado. Os limites citados são a escassez de recursos com algumas considerações sobre a denominada reserva do possível conjugada com a concessão judicial excessiva e a própria universalidade do Sistema Único de Saúde que acaba resultando como um limitador por si só. Não há como admitir, embora exista cultura arraigada neste sentido, que a saúde é um direito individual e ilimitado. Se partirmos desta premissa, inevitavelmente a efetivação deste direito se dará à custa da universalidade e da equidade, pois como não se poderá nunca dar tudo a todos, se dará menos ou nada a outros. 8 A rigor, trata-se de limites que quando somados dificultam a realização gradual da efetivação do direito social da saúde. Em verdade, tratando-se de direito à saúde sempre haverá um descompasso entre os serviços prestados e àqueles por alguns esperados, afinal, diante da infinidade do progresso científico é inviável conceder tudo a todos. Na previsão a seguir descrita fica clara esta impossibilidade de dar tudo a todos e a indispensabilidade de limites e parâmetros para a efetivação do direito à saúde pública. A magnitude do problema pode ser ilustrada com o seguinte exemplo. Tome-se apenas as seguintes doenças: hepatite viral crônica C e artrite reumatoide. Imaginemos que o SUS, ao invés de oferecer, como hoje se faz, uma lista de medicamentos escolhidos pelo seu perfil de segurança, eficácia (faz o que propõe a fazer em condições controladas), custoefetividade (faz o que se propõe a fazer em condições reais ao menor custo) e mediante protocolo, resolvesse oferecer a todos os cidadãos portadores dessas duas doenças, conforme prevalência estimada, os medicamentos mais recentes disponíveis no mercado: “interferon peguilado” para a hepatite viral crônica C e “infliximabe, etanercepte e adalimumabe” para a artrite reumatoide [...] a estimativa total de recursos financeiros em reais, necessários para o atendimento a todos os pacientes portadores dessas duas doenças, estimados em 1,9 milhão de pessoas com base nos dados epidemiológicos disponíveis. O total é de 99,5 bilhões de reais! Para se ter a dimensão exata de tais gastos, é preciso analisá-los no contexto dos gastos totais do governo em saúde e da economia do Brasil. O Produto Interno Bruto (PIB) do país apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2006 foi de 2,3 trilhões de reais. Os gastos necessários para tratar apenas estas duas doenças com as tecnologias (medicamentos) citadas consumiriam, portanto, nada menos do que 4,32% do PIB brasileiro. Para se ter uma dimensão mais clara de quanto isto representa, observe-se que em 2004, as despesas totais com ações e serviços públicos de saúde financiada com recursos próprios dos municípios, Estados e União totalizaram 3,69% do PIB. Se aplicarmos esse percentual ao PIB de 2006, teremos um valor aproximado de gasto público com ações e serviços de saúde de 85,7 bilhões de reais neste ano. Concluise, assim, que os recursos financeiros necessários para implementar essa política de assistência terapêutica a apenas 1% da população e em relação a apenas duas doenças (99,5 bilhões de reais) seriam superiores ao gasto total de todas as esferas de governo com o conjunto de ações e serviços de saúde (85,7 bilhões de reais). Ou seja, para fornecer apenas 04 medicamentos para tratar 02 doenças, cobrindo 1% da população, gastarse-ia mais que o que é atualmente gasto com todo o atendimento feito pelo 9 SUS com internação, diagnósticos, tratamento, cirurgias, ações de educação em saúde, vigilância sanitária e epidemiológica, entre outras.4 Percebe-se claramente e com dados objetivos que é absolutamente impraticável conceder tudo a todos nos moldes individualmente pleiteados. De imediato, é importante reforçar que não se quer justificar a ineficiência da saúde pública, limitá-la na sua atuação e também não se quer amarrar as mãos do Judiciário em atuações que se relacionam diretamente com políticas públicas. Pretende-se apenas demonstrar racionalmente como funciona o sistema, como foi idealizado e a forma como as autoridades, das mais variadas esferas de poder, devem agir, levando-se em conta sempre a natureza social do direito à saúde e não somente a situação individualizada. Além da população brasileira, algo está doente. É o art. 196 da Constituição Federal. As alternativas propostas são cientes da impossibilidade de solução sacrossanta – até por negar a verdadeira democracia (inventiva) –, mas são baseadas em um conhecimento aproximado e na crença de que as decisões sanitárias contêm riscos, porém sabedora de que o risco maior seria não tomar solução alguma (LUHMANN, 1997). Dentro do caráter sistêmico da saúde, a procura pela efetivação/solução não é problema apenas do Judiciário ou de um único estamento social, mas de todos os componentes do Poder e da sociedade, de ver que o problema sanitário abrange a todos os integrantes de uma nação, possuindo característica interdisciplinar e holística. A saúde é, portanto, muito mais do que direito de todos. É principalmente, solução de todos. (SCHWARTZ, 2001, p. 156). É importante ressaltar que esta é uma problemática mundial e que a elevação do custo com o fornecimento de medicamentos atinge Estados de toda a grandeza, desenvolvidos ou em desenvolvimento. O aumento dos gastos com saúde e, especificamente medicamentos, não ocorre apenas no SUS. Em muitos países desenvolvidos, por exemplo, o gasto com medicamentos está aumentando de 10% a 18% ao ano, muito acima da inflação e do crescimento do Produto Interno Bruto – PIB (OMS-2002). Estima-se que nos Estados Unidos aumentaram em 200% entre 1990 e 2000, representando o segmento 4 Texto apresentado por Otávio Luiz Motta Ferraz e Fabiola Sulpino Vieira, Direito à Saúde, Recursos Escassos e Equidade: os riscos da interpretação judicial dominante, para instrução da audiência pública sobre saúde pública realizada no Supremo Tribunal Federal nos dias 27,28 e 29 de abril e 04, 06 e 07 de maio de 2009. 10 de maior inflação do setor. No Reino Unido, país que tem modelo de atenção à saúde focado na atenção primária, o gasto com medicamentos neste nível de complexidade cresceu 10% entre 2001 e 2002, provocando uma crise de financiamento. Mesmo problema enfrentado pelo Canadá que, em 2005, teve 11% de elevação do gasto com medicamentos, constituindo este a segunda maior despesa do sistema de saúde, atrás apenas do gasto com a atenção hospitalar [...]. Muitas variáveis contribuem para a elevação dos gastos com a saúde, como o aumento da esperança de vida e o consequente envelhecimento da população; o avanço técnico e científico que possibilitou melhora dos meios diagnósticos e terapêuticos, porém com a elevação dos custos do cuidado; a medicalização da sociedade; a diminuição do nível de tolerância das pessoas em relação à doença; o aumento do número de médicos; o aumento dos preços dos bens e serviços oferecidos; o aumento do número de procedimentos consumidos; fatores de mercado e surgimento de novos bens; fatores psicossociais; fatores ligados à seguridade social e à gratuidade de assistência à saúde; fatores epidemiológicos; fatores de regulamentação e culturais.5 Deve-se também levar em consideração que a saúde, mormente por se tratar de um direito social, deve ser implantada de forma coletiva, gradativa, progressiva e contínua, jamais imediata e instantânea. Na efetivação de inúmeras políticas públicas, é inconteste a incidência da chamada “reserva do possível” como instrumento de ponderação, afinal a realidade é que todo direito possui um custo. Saliente-se ainda que reiteradamente sopesa-se o direito à saúde com a capacidade financeira do Estado, ressaltando que não há o que se ponderar, afinal a saúde sempre estará em primeiro lugar. “Trata-se, na visão da maioria dos Tribunais de interesse financeiro do Estado menor, que não pode se sobrepor aos bens maiores da saúde e da vida”.6 Este raciocínio olvida que a saúde engloba um sistema surpreendentemente maior que a saúde de um demandante e que possui limites, alguns descritos a seguir. 3. RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL 5 6 Idem. Idem. 11 É inevitável afirmar que todo direito possui um custo e que os recursos não são ilimitados. Portanto, de plano, pode-se afirmar que o primeiro limite do direito da saúde é o limite financeiro, afinal é preciso primeiro lembrar que todo direito possui um gasto, logo o valor dos recursos deve ser levado em consideração. Sem dúvida é difícil apreender a ideia de que o direito à saúde, intimamente relacionado ao direito fundamental à vida sofra limitações, porém não há outra saída. Toda discussão jurídica que envolva interesses relacionados com a saúde deverá necessariamente considerar os ditames do direito sanitário, notadamente com seus grandes princípios orientadores. Se houver superposição de interesses (como por exemplo quando uma questão envolve ao mesmo tempo interesses econômicos e sanitários), a solução jurídica a ser encontrada não poderá fazer com que um interesse prepondere automaticamente sobre o outro. A solução jurídica de uma questão deve considerar os bens jurídicos que estão em discussão. Se o bem jurídico saúde estiver em discussão, a solução jurídica não poderá ignorar a existência de um regime jurídico próprio para o tratamento jurídico do tema, impondo-se a aplicação de princípios Constitucionais que regem o direito sanitário; se houver um conflito entre o bem jurídico saúde e outro bem jurídico igualmente relevante, a solução a ser adotada deverá considerar o equilíbrio possível, preservando ao máximo os princípios jurídicos envolvidos e afastando, quando for o caso, a incidência de um dos bens jurídicos postos em choque (AITH, 2007, p. 398). Por outro lado, ainda a saúde não é o único bem/direito que o Estado deve garantir. Existem vários outros como a segurança pública e a educação que são tão relevantes quanto. Essa constatação, que pode parecer óbvia a economistas e administradores de saúde acostumados a lidar com escassez de recursos, não é facilmente compreendida pelo público em geral e pelos profissionais do direito em particular. Para estes, prevalece a ideia culturalmente arraigada de que saúde não tem preço, sendo mesmo uma espécie de ofensa abordar aspectos financeiros quando o que está em jogo é a saúde e a própria vida. Esta postura – compreensível, mas fundamentalmente insustentável – é combinada no Brasil com a opinião consolidada de que os recursos públicos são sempre mal aplicados e frequentemente desviados por corrupção. Nesse clima, fica a sensação de que o problema da saúde e de outros programas sociais não é a escassez de recursos, mas sim sua utilização inadequada.7 7 Idem. 12 A construção teórica da “reserva do possível” tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do possível” (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional da Alemanha) a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta qu e estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Tais noções foram acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade.8 Como todo Direito Comparado, faz-se necessário refletir sobre este princípio, não exatamente nos mesmos termos em que foi proposto na nação alemã, pois é indiscutível que 8 Caso Numerus Clausus I: BVERFGE 33, 303, decisão do Primeiro Senado em 18/07/72 – tratase de reclamação de estudante contra o sistema de ingresso nas Universidades da Bavária e de Hamburg, sob o fundamento de que, visto que a graduação é necessária para o exercício da profissão, tolhia o direito à livre escolha do ofício. Um dos seus principais destaques é a instituição da reserva do possível, reconhecendo que, na realidade, o sujeito não tem o direito de demandar do Estado uma vaga na Universidade. O TCF avaliou o caso sob a perspectiva da liberdade de ensino e aprendizado e de acordo com a “liberdade fática”, considerando que “a livre escolha dos locais de formação segundo sua natureza tem como escopo o livre acesso às instituições; o direito de liberdade não teria nenhum valor sem o pressuposto fático da possibilidade de exercê-lo”. Declarou inconstitucional a discriminação bávara em favor dos “filhos da terra”. Quanto à lei universitária de Hamburg, entendeu inconstitucional a não fixação, no caso de limitações de admissão de “regras sobre o modo e a relação hierárquica dos critérios de escolha”. Na parte expositiva, é importante a lição de que os direitos não são apenas direitos de resistência (Abwehrrechte), mas também de participação. Além disso, impõe a utilização da reserva do possível para os direitos de participação que a análise do bem a dividir-se não se restrinja ao que há ab initio, mas que seja realizada segundo o decorrer do tempo. “Fazer com que os recursos públicos só lentamente direcionem benefício apenas a uma da população, afrontaria justamente o mandamento de justiça social, que é concretizado no princípio da igualdade”. 13 se trata de um Estado em estágio avançado em relação à República Federativa do Brasil, no que concerne à efetivação dos direitos sociais. Esta diretriz floresceu a partir de um pleito de candidatos ao curso de medicina que tinham que adiar o ingresso do curso porque o número de vagas era desproporcional à demanda e, portanto pleiteavam o acesso universal ao curso. A Corte negou o pedido fundamentado que, para acima do mínimo existencial, a efetivação dos direitos sociais fica condicionado à reserva do possível, ou seja, ao remanescente de acordo com as possibilidades. Fazendo as adaptações necessárias, por ser o Brasil uma nação em desenvolvimento, é possível a aplicação do limitador da reserva do possível de acordo com as necessidades e efetivação de políticas públicas já efetivadas. É inegável que a repetição de ações judiciais geram reflexamente o aprimoramento do Estado na prestação da saúde pública. Por óbvio não se quer aplicar a reserva do possível quando se trata da inobservância do mínimo vital na questão dos direitos sociais. De plano, deve-se excluir esta possibilidade. Em especial o direito à saúde, em que a grande maioria das questões é de caráter essencial. Assim como o julgado da Alemanha que deu origem a esta diretriz, de logo, deve-se excluir da aplicação da reserva do possível quando se trata de demandas que objetivem direitos que são objeto do mínimo vital. No entanto ainda assim, em demandas que possuem como pedido a assistência farmacêutica do Estado, é possível a aplicação da reserva do possível quando o Estado já oferece administrativamente o mínimo vital. Por exemplo, quando o Estado concede pela via administrativa e de forma voluntária determinado medicamento A para a moléstia e o demandante pleiteia o medicamento B para a mesma moléstia. Não são raras as vezes em que o Estado se vê obrigado a conceder judicialmente medicamentos similares aos concedidos na via administrativa porque é obrigado judicialmente. Esta é uma hipótese bastante recorrente em que é adequada a aplicação da reserva do possível. De acordo com os recursos públicos, oferece-se o mínimo vital para determinada moléstia que é o medicamento A à toda a população que dele necessitar, observando-se rigorosamente os 14 critérios de igualdade e universalidade. Ao conceder judicialmente o medicamento B, o Judiciário inverte toda a sistemática constitucional do Sistema Único de Saúde à custa da equidade. Inicialmente porque, está privilegiando este indivíduo que terá acesso ao medicamento B, criando condições de desigualdade com todo o restante da população, que tem acesso ao medicamento A. Se for para a saúde de todos e atendimento geral, que seja ajuizada ação coletiva para que o Estado substitua o medicamento A por B de forma que todos, indistintamente, tenham acesso. Em segundo lugar porque decisões desta natureza, que não são poucas, quando proferidas em larga escala, desequilibram, por completo, o orçamento do direito social à saúde. Tem-se notícia de que em alguns Estados da Federação deixam de aplicar verbas na saúde e contingenciam valores, já prevendo o gasto em decisões judiciais deste jaez. Veja que, em casos como este, o mínimo existencial está sendo satisfeito visto que o Estado concede o medicamento similar para a moléstia mencionada. O Estado também realiza políticas públicas que atendem esta necessidade, visto que há programas de fornecimento de medicamento e desta forma o direito social da saúde está sendo efetivado. Em caso concreto específico e semelhante houve a aplicação da reserva do possível e ainda a menção do eventual efeito multiplicador: 1. O Estado do Rio Grande do Norte [...] requer a suspensão da execução liminar concedida [...] determinou àquele ente federado o fornecimento dos medicamentos Mabithera (Rituximabe) + Chop ao impetrante, paciente portador de câncer, nos moldes da prescrição médica [...]. O requerente sustenta, em síntese: a) inadequação do mandado de segurança, pois, ‘em caso de pedido de medicamentos, é necessária perícia que verifique a plausibilidade da indicação médica feita pelo médico particular’ (fls. 05); b) ocorrência de grave lesão à ordem e à economia públicas, porquanto a liminar impugnada viola o princípio da legalidade orçamentária (Constituição da República, art. 167) certo que o Estado não tem previsão orçamentária para suprir a população com todos os medicamentos que esta demande, não podendo arcar com o provisionamento integral de fármacos que necessite cada cidadão residente no território estadual (fls. 10). Nesse contexto, ressalta a necessidade de observância da cláusula da reserva do financeiramente possível e o fato de que os medicamentos requeridos não estão inseridos 15 no âmbito do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, estabelecido, por intermédio do Poder Executivo, conjuntamente pela União, Estados e Municípios; c) impossibilidade de o Poder Judiciário desenvolver ou efetivar direitos sem que existam meios materiais disponíveis para tanto (fls.12). Além disso, aduz que não se nega a fornecer todo e qualquer medicamento ao impetrante, apenas propõe a indicação de outros similares, uma vez que o medicamento solicitado não se encontra relacionado na lista do Ministério da Saúde; d) caráter experimental do medicamento pleiteado (Rituximabe), o qual se encontra em estudo ‘em razão de pesquisas haverem concluído que ele proporciona o aparecimento de hepatite nos pacientes que o utilizam’ (fls.15). 2. A Presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte determinou a remessa dos autos a esta Corte (fls. 36-38). 3. A Procuradoria-Geral da República opinou pelo indeferimento do pedido (fls.45 e 46). 4. Inicialmente, reconheço que a controvérsia instaurada no mandado de segurança em apreço evidencia a existência de matéria constitucional; alegação de ofensa aos arts. 6º e 196 da Constituição da República e aos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Dessa forma, cumpre ter presente que a Presidência do Supremo Tribunal Federal dispõe de competência para examinar questão cujo fundamento jurídico é de natureza constitucional (art. 297 do RISTFM c/c art. 25 da Lei nº 8.038/90), conforme firme jurisprudência desta Corte destacandose os seguintes julgados: Rcl 475/DF, Rel. Ministro Octavio Gallotti, Plenário, DJ 22/04/1994; Rcl497-AgR/RS, Rel. Ministro Carlos Velloso, Plenário, DJ 06/04/2001; SS 2.187-AgR/SC, Rel. Ministro Maurício Corrêa, DJ 21/10/2003; e SS 2.465/SC, Rel. Ministro Nelson Jobim, DJ 20/10/2004. 5. A Lei nº 4.348/64, em seu art. 4º autoriza o deferimento do pedido de suspensão de segurança para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economias públicas [...]. Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre custo e o benefício de tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir um maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se deferir o custeio do medicamento em questão em prol do impetrante, esta-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, o medicamento solicitado pelo impetrante, além de ser de custo elevado, não consta da lista do Programa 16 de Dispensação de Medicamentos de Caráter Excepcional do Ministério da Saúde, certo, ainda, que o mesmo se encontra em fase de estudos e pesquisas. Constato, também que o Estado do Rio Grande do Norte não está se recusando a fornecer tratamento ao impetrante. É que, conforme asseverou suas razões, ‘o medicamento requerido é um plus ao tratamento que a parte impetrante já está recebendo’ (fls. 14). Finalmente, no presente caso, poderá haver o denominado efeito multiplicador (SS 1.836-AgR/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, unânime, DJ 11/10/2001), diante da existência de milhares de pessoas em situação potencialmente idêntica àquela do Impetrante.9 O que, contudo, corresponde ao razoável, também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador. A partir do exposto, há como sustentar que a ação designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, 2008, p. 29), que abrange: a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. No exemplo acima citado, não é razoável conceder o medicamento B a apenas um indivíduo, sendo que o Estado concede o medicamento A para a mesma moléstia. Aplicando-se a reserva do possível, o Estado oferece apenas o medicamento A. Atendendo-se a universalidade, igualdade e equidade, de acordo com as diretrizes da reserva do possível, está dentro das possibilidades do Estado a concessão do medicamento A e não o B. Todos os aspectos referidos guardam vínculos estreitos entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e 9 SS 3073/RN, Suspensão de Segurança. Presidente Ministra Ellen Gracie, j. 09/02/2007; DJ 14/02/2007, p. 21. No mesmo sentido: STF, SS 3145/RN, Suspensão de Segurança. Presidente Ministra Ellen Gracie, j. 18/04/2007, DJ 18/04/2007, p. 17. 17 constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais possam servir não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramenta para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional. As técnicas de ponderação de valores e harmonização de preceitos constitucionais devem estar sempre à disposição do julgador quando da apreciação de lides envolvendo a individualização da saúde pública. Cabe a este, diante do caso concreto, sopesando os princípios da dignidade da pessoa humana e da reserva do possível, avaliar se o bem da vida perseguido pelo autor apresenta-se de fato como integrante do núcleo mínimo existencial, sobretudo diante da infinitude das necessidades da população em contraposição à finitude de recursos públicos para lhe fazer face. Não pode o magistrado, outrossim, fechar os olhos para a realidade e desprezar as dificuldades orçamentárias do ente demandado, notadamente se se pretende tratamentos não incluídos nas políticas públicas do SUS e que não se inserem no plexo de atribuições que lhe compete dentro do sistema.10 Assim, a reserva do possível abrange muito mais do que a simples disponibilidade de recursos financeiros para o custeio de um direito, como no caso a saúde pública. Incute-se nesta ideia também o planejamento de toda uma política pública voltada para o atendimento amplo do direito e ainda, ao considerar um caso específico deve-se ponderar o limite do razoável. E é todo este conjunto de fatores que se quer demonstrar que deve ser sopesado, analisado na viabilização do direito à saúde, mormente nos seus aspectos de integralidade e universalidade. Deve-se considerar que a “reserva do possível” ingressa em uma seara não exclusivamente jurídica, mas primordialmente política, tema inevitável ao se abordar as questões enfrentadas. Ora, as políticas públicas de efetivação dos direitos fundamentais sociais, a priori, tendem a manifestar-se na área administrativa, ingressando eventualmente na seara da discricionariedade dos atos administrativos. A concessão judicial excessiva de casos específicos que deveriam ser melhor analisados somado à inobservância da reserva do possível adaptada à realidade brasileira, 10 Texto apresentado por Otávio Luiz Motta Ferraz e Fabiola Sulpino Vieira, Direito à Saúde, Recursos Escassos e Equidade: os riscos da interpretação judicial dominante, para instrução da audiência pública sobre saúde pública realizada no Supremo Tribunal Federal nos dias 27,28 e 29 de abril e 04, 06 e 07 de maio de 2009. 18 conforme demonstrado, gera um efeito multiplicador que desequilibra todo do Sistema Público de Saúde e que se transforma de viabilizador a limitador à realização da integralidade da saúde. Nestes casos, concede-se um direito subjetivo individual em prejuízo à distribuição equânime dos benefícios. Em outras palavras, concede-se um direito individual que deveria ser precipuamente implementado de forma coletiva. A Constituição Federal de 1988, de índole dirigente, apresentou caráter programático em diversas normas, inclusive naquelas pertinentes aos direitos sociais. Entretanto, ainda que a eficácia de alguns destes direitos seja plena, indiscutível a necessidade de elaboração de políticas públicas abrangentes e previsão de normas paulatinas de maior ampliação e concretização destes direitos fundamentais positivos, o que não se mostra contraditório, mas somente dois aspectos diversos do mesmo objeto. Justamente este caráter programático, mesclado de eficácia plena, em especial atribuído ao direito social à saúde mostra-se relevante, na medida em que implica na necessidade do administrador elaborar políticas públicas de atendimento e adotar medidas concretizadoras, para que a saúde seja universalmente justa e não apenas de alguns. Esta obrigação não retira a natureza discricionária neste ponto, pois a doutrina já questiona esta definição, posto que mesmo nesta classificação dos atos administrativos, de se notar o sempre presente dever do Poder Público em observar estritamente os limites legislativos e orientações normativas, tanto constitucionais como legais. Nestes moldes, verifica-se uma possibilidade de interferência do Poder Judiciário no âmbito administrativo, a qual se deve, todavia, restringir justamente na fiscalização da observância das diretrizes normativas gerais das políticas públicas quando existentes. Entretanto, a função primordial da característica política das normas programáticas refere-se justamente na necessidade da análise de conveniência-oportunidade por parte do administrador em quando, como, e de que forma proceder a sua concretização, atividades que somente este pode bem desempenhar por ter a visão do quadro completo das necessidades públicas e do orçamento governamental disponível. 19 Desta forma, a “reserva do possível” mostra-se justamente como um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das políticas públicas e a discricionariedade administrativa. Seria como uma balança fiel do princípio da proporcionalidade aplicado em uma verdadeira inter-relação entre os Poderes Judiciário e Executivo. Ao aplicar a reserva do possível, o julgador analisará se os objetivos traçados para que a ofensa aos direitos fundamentais seja sobrestada são razoáveis e possíveis de serem atingidos pelo órgão público. É possível concluir que tão importante quanto reconhecer a escassez dos recursos destinados à saúde é aplicá-los da maneira mais adequada, ou seja, eficiente e justa, observando a universalidade e a igualdade sempre à luz da equidade. 4. DIREITO COMPARADO Esta limitação financeira que é a disponibilidade de recursos, mormente em um país em vagar desenvolvimento como o Brasil, é uma realidade mais patente ainda. No entanto, verifica-se que esta limitação não se restringe apenas a nações em desenvolvimento. A saúde pública dos Estados Unidos, a exemplo, jamais foi integral e universal como a brasileira. Sabe-se que a comparação de contextos sócio-econômico, político e jurídico no estudo comparado deve sempre ser feito com muita cautela eis que os países sempre possuem peculiaridades diversas. Todavia, seguem algumas considerações. Nos Estados Unidos, nação considerada de alto desenvolvimento, o sistema de saúde também tem as suas limitações. Inicialmente, por volta dos anos sessenta, foram instituídos dois programas federais: a) o Medicare, um seguro social destinado apenas para idosos e pessoas portadores de deficiência física e; b) o Medicaid que constitui um subsídio estatal destinado para pessoas de baixa renda que já estão incluídas em alguma espécie de programa de assistência social. Este último, por ser federal, possui algumas exigências para que o Estado-membro participe. 20 Nos anos oitenta este atendimento foi ampliado abrangendo também grávidas e crianças cuja renda ultrapassasse o limite para o ingresso em programas assistenciais, porém inferior ao padrão federal de pobreza. Nos anos oitenta também passa a ser obrigatória, para os Estados, a adesão ao Medicaid, não sendo mais facultativa como antes. Posteriormente o atendimento foi ampliado para as crianças até seis anos de idade e depois para cidadãos até 21 (vinte e um) anos de idade. Atualmente o Medicare e o Medicaid constituem os planos de atendimento à saúde pública americana e consistem em aquisição pelo Estado de seguro -saúde para seus cidadãos hipossuficientes ou ainda que não possuem este benefício decorrente de sua relação de emprego. Dessume-se que não se trata de um sistema universal, porque não está acessível a todos indistintamente e também não é integral, porque estes programas possuem limitações com dias de consulta, de internação e com restrições a doenças de alta complexidade. Há relatos, inclusive de uma criança que faleceu, no Oregon, por falta de cobertura ao transplante de medula (WEICHERT, 2004, p. 263 – Jean I. Thorne). Esta é a linha da saúde pública americana proclamada desde 1966 que defendia uma “[...] boa saúde para todo o cidadão no limite da capacidade do nosso país provê-la” (WEICHERT, 2004, p. 234). O sistema público de saúde do Reino Unido que abrange os países da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte também apresenta alguns limitadores. Apesar de ser considerado um modelo em matéria de socialização em serviços de saúde, constantemente passa por reformas e aprimoramentos por se demonstrar um sistema muito caro em razão da real universalidade. O alcance da equidade é objetivo contínuo do sistema. Em alguns serviços de saúde como o fornecimento de remédios, odontologia, oftalmologia e tratamento de longo prazo de pessoas debilitadas são cobradas tarifas. O sistema é financiado por impostos gerais, porém recebe críticas constantes, pois possui mais de 1,3 milhões de empregados e apresenta um custo enorme da ordem de £87,6 bilhões. Acredita-se que o serviço público completamente gratuito é uma miragem insustentável e sem efetividade. (WERNER, 2008, p. 122), principalmente em razão da 21 infinidade e do alto custo introduzido pelas novas tecnologias, medicamentos e tratamentos em geral. Em estudo de casos que seguem, Patrícia Ulson Pizarro Werner11 demonstra os limites que o sistema sofre. Uma senhora de 34 (trinta e quatro) anos com problemas de excesso de suor nas axilas, ao buscar tratamento médico na saúde pública inglesa teve acesso somente a tratamentos tópicos e também foi prescrita a aplicação de injeções locais de toxina botulium (botox). O sistema público não pagou o medicamento e ela teve que desembolsar quatrocentas libras para o tratamento. Uma senhora de 83 (oitenta e três) anos de idade com fortes dores nas costas após consulta no médico clínico geral, precisou aguardar 4 (quatro) meses para ter acesso à fisioterapia, posteriormente precisou aguardar mais 6 (seis) meses para ter acesso a um especialista, no caso, um médico ortopedista. Este último solicitou um exame de ressonância magnética. Para a realização do exame, a paciente optou pelo pagamento particular no valor de £480 (quatrocentos e oitenta libras), pois havia uma fila de espera imensa no atendimento público. O exame foi realizado no mesmo hospital que faria o exame pelo sistema público de saúde, porém de imediato porque era de natureza privada e não pública. O Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica é o órgão que aprova a lista de medicamentos que os pacientes terão acesso obedecendo a uma lógica de custo-efetividade. No tocante a fornecimento de medicamentos de alto custo, a saúde pública inglesa não concede todos ou então limita o fornecimento à determinada quantidade por ano. Portanto, vários ficam sem a assistência farmacêutica. Há o caso de uma paciente de 29 (vinte e nove) anos de idade, mãe de um bebê e portadora de câncer de pâncreas em que foi prescrito um medicamento de aprovação recente nos Estados Unidos, denominado TACERVA. Cada comprimido custava em torno de £100 (cem libras). O sistema de saúde inglesa não indicava o medicamento para o caso específico 11 Tese de doutorado defendida na PUC. Concretização dos Direitos Fundamentais Socais e a Interpretação da Constituição: o direito à saúde (extensão e limites). 22 da paciente, disponibilizava apenas o tratamento quimioterápico. A paciente teve que arcar com o custo. Outro paciente de 47 (quarenta e sete) anos, também portador de câncer, também recebeu como prescrição médica um medicamento de alto custo denominado AVASTIN. E, justamente por ser de alto custo, não foi fornecido gratuitamente pelo sistema público de saúde. O gasto estimado seria de £20.000 (vinte mil libras) por um período de seis meses. Neste caso, por insuficiência de recursos o paciente não tomou o remédio. Há ainda hipóteses de substituição de medicamentos por outros, de natureza genérica, exatamente como nos exemplos citados no subitem acima, aplicando o limitador da reserva do possível. Em outras palavras, o Estado inglês, acredita-se que após estudos clínicos, substitui determinado medicamento para certa moléstia em virtude de redução de custos e ampliação de atendimento, objetivando o alcance da universalidade. Um paciente inglês, com pressão arterial alta, utilizava um medicamento regularmente concedido pelo sistema público na forma de cápsulas. Houve substituição geral do medicamento para todos aqueles que dele se utilizavam, por outro de natureza genérica e em forma de tabletes. Como não se adaptou à nova forma do remédio (tabletes) e ao novo medicamento, teve que arcar com o valor da diferença, pois entendeu-se que se tratava de natureza pessoal. É a intenção de se atingir a integralidade interpretando-a à luz da equidade para a sua efetivação na realidade. E também é a própria universalidade funcionando como um fator limite. No sistema público de saúde alemão, da mesma forma, há casos em que o paciente deverá arcar com parte dos custos do medicamento a ser prescrito. O governo é quem define os tratamentos e medicamentos reembolsáveis. Portanto a saúde não é absolutamente integral como o Sistema Único de Saúde no Brasil. O valor do pagamento a ser efetuado pelo paciente varia de acordo com o preço e a quantidade do medicamento. Por outro lado, há escalonamentos previstos, em que os grupos de menor renda são dispensados do pagamento. 23 Da mesma forma, há a tendência de utilização de medicamentos genéricos, pois já se concluiu que a economia seria em torno de dois bilhões de marcos. Constatou-se que o custo na área de assistência farmacêutica foi da ordem de 13% no ano de 1995; então foi publicada uma lei (Lei de Estrutura da Saúde) que fixou um teto orçamentário para as prescrições médicas e ainda mais, impôs sanções aos médicos em caso de inobservância do limite estabelecido e o dever de informar ao paciente caso o preço do medicamento estivesse acima deste limite. Esta Lei de Estrutura da Saúde também introduziu uma lista positiva de medicamentos, eliminando medicamentos de efeitos restritos e duvidosos que, ao final, sequer foi implantada diante da alta pressão da indústria farmacêutica. Acredita-se que para uma redução no grande custo da saúde pública alemã o enfoque seria a fiscalização de associações espúrias e controle em prestadores de serviços, produtores de insumos e mercado farmacêutico em geral, principais responsáveis pelo alto custo. No ano de 2000 o sistema público de saúde francês foi eleito o melhor do mundo. Os tratamentos médicos podem ser totalmente gratuitos ou não, pois há consultas médicas com profissionais que não há reembolso de 100% do valor pago. Existe uma liberdade de escolha do profissional pelo paciente, porém para ser reembolsado ou coberto o serviço, o profissional deverá ser cadastrado e o medicamento/tratamento prescrito deve constar de uma lista aprovada por um comitê oficial do Ministério da Saúde. Nota-se, pois, que em cada Estado, ainda que considerado mais desenvolvido que o Estado brasileiro, também apresenta limitações. Em verdade, dessume-se que é preciso regras e diretrizes gerais, de caráter vinculante que atinjam todas as esferas de poder, pois o atendimento torna-se cada dia mais complexo e custoso para o Estado já que deverá atender a todos, em caráter universal, de forma integral, à luz da equidade e, logicamente, tendo em conta a disponibilidade de seus recursos. Podemos citar como exemplo, no Reino Unido, o ‘National Institute for Health and Clinical Excellence’ (NICE), ligada ao ‘National Health Service’ (NHS), que desenvolve os protocolos dos procedimentos intervencionaistas e avaliações tecnológicas dos 24 fármacos, na Espanha, a COHTA, Agência pública ligada ao Serviço de Saúde Catalã, no Canadá, a ‘Canadian Coordinating Office for Health Tecnology Assessment’ (CCOHTA), financiada por governo nos três níveis e focada na utilização de evidências e efetividade clínica e econômica. Apesar destes países possuírem recursos muito mais elevados que o Brasil para a área de saúde, permanece a preocupação com a avaliação tecnológica e a incorporação de novas técnicas e medicamentos no sistema, pois em todos os países existe a clara noção que não existe ‘bondade gratuita’ no setor público e a garantia de determinado benefício, irá impedir o acesso da população a outros (BARATA; MENDES, s.d., p. 02). Constata-se, pois que esta celeuma atinge grandes sociedades modernas. 5. CONCLUSÃO 1. O direito à saúde tem natureza de direito fundamental e social e recebeu tratamento detalhado e especial na Constituição Federal de 1988. Institui um Sistema Único de Saúde com caráter universal e igualitário. É financiado pela seguridade social, porém com gestão tripartite (União, Estado e Município). 2. O grande desafio para o Estado é fazer funcionar o Sistema Único de Saúde de maneira igualitária e equânime, pois a universalidade traz o acesso geral e a igualdade que deve consistir no mesmo atendimento a todos, sem diferenciação ou preferências. Quando se garante a integralidade infinita, sem qualquer razoabilidade a um indivíduo, inevitavelmente estará sendo violada a integralidade de outro indivíduo. E isto ocorre não só porque os recursos são escassos, mas também porque as medidas são inúmeras. A integralidade deve ser regulada, por exemplo, com a publicação de lista de medicamentos e com medidas judiciais difusas que atendam todo e qualquer indivíduo da sociedade. Deve-se garantir eficazmente a integralidade aliada à universalidade, o que gerará a equidade. 3. Há limites à universalização e à integralidade, dentre eles, a escassez de recursos (reserva do possível) conjugada com a concessão judicial excessiva e a própria universalidade do Sistema Único de Saúde que acaba resultando como um limitador por si só. São limites que quando somados dificultam a realização gradual da efetivação do direito social da saúde. 25 4. Na efetivação de inúmeras políticas públicas, é inconteste a incidência da chamada “reserva do possível” como instrumento de ponderação, afinal a realidade é que todo direito possui um custo. É possível a aplicação do limitador da reserva do possível de acordo com as necessidades e efetivação de políticas públicas já efetivadas, em especial quando o Estado já oferece o mínimo existencial. 5. A reserva do possível abrange muito mais do que a simples disponibilidade de recursos financeiros para o custeio de um direito, como no caso a saúde pública. Incute-se nesta ideia também o planejamento de toda uma política pública voltada para o atendimento amplo do direito e ainda, ao considerar um caso específico deve-se ponderar o limite do razoável. 6. Deve-se excluir da aplicação da reserva do possível quando se trata de demandas que objetivem direitos que são objeto do mínimo vital. No entanto, a partir do momento em que o Estado garante o mínimo existencial ao cidadão por meio de políticas públicas abrangentes, pode- se perfeitamente invocar o princípio da reserva do possível até mesmo para que a integralidade e a universalidade dos demais não seja violada. 7. A “reserva do possível” mostra-se justamente como um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das políticas públicas e a discricionariedade administrativa. Seria como uma balança fiel do princípio da proporcionalidade aplicado em uma verdadeira inter-relação entre os Poderes Judiciário e Executivo. 8. O Estado brasileiro não é o único a perceber que a saúde pública, embora tratar-se de um direito fundamental social intrínseco à vida, sofre limitações. Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e França. A celeuma atinge grandes sociedades modernas. 26 REFERÊNCIAS BIBLIOFRÁFICA AITH, Fernando. Curso de Direito Sanitário: a proteção do direito da saúde no Brasil. São Paulo: Quartier Latim, 2007. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolhas: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. 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