Ação e duração: a visão bergsoniana da liberdade

Propaganda
409
Ação e duração: a visão bergsoniana da liberdade
Solange Bitterbier*
RESUMO
Na obra Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Bergson enfatiza, após expor sua
concepção de tempo homogêneo, os fundamentos de sua crítica à concepção associacionista
que tem por base justamente o tempo espacializado. O filósofo inicia sua análise do problema
da liberdade procurando mostrar que tanto os deterministas quanto os adeptos do livrearbítrio se utilizaram do associacionismo e, logo, não conseguiram explicá-la satisfatoriamente
porque, ao abordarem as ações livres, se apropriaram de uma concepção equivocada da
duração, extraindo as características principais de uma consciência que dura em prol de uma
representação dos estados psicológicos no espaço. Todavia, se analisarmos as ações tendo
como base a noção de duração, sabe-se que a liberdade não pode ser considerada diante de
um tempo homogêneo. Em outras palavras, a liberdade e os problemas relacionados a ela
estão ligados a uma consideração errônea da concepção de tempo, o que nos leva a considerar
os estados de consciência como homogêneos e separados. Diante disso, nosso trabalho tem
por objetivo enfatizar a noção bergsoniana de duração e como tal noção está na base da
resolução dos problemas relacionados à liberdade. Para tanto, faremos uma introdução aos
dois primeiros capítulos do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência e buscaremos nos
centrar naquilo que, já no terceiro capítulo da obra em questão, Bergson caracteriza como
ações livres.
PALAVRAS-CHAVE: ação, espaço, duração, consciência, liberdade.
Tendo como meta a resolução dos supostos problemas em relação à concepção de
liberdade, Bergson mostra que os equívocos relativos a esta advêm de uma imprecisão
existente em sua abordagem, visto que em sua base realidades diferentes são tratadas como
iguais. Tais realidades dizem respeito ao espaço e a nossa consciência: é preciso mostrar que
*
Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bolsista CNPQ. E-mail:
[email protected].
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
410
não se pode atribuir propriedades de uma a outra já que se tratam de instâncias diferentes.
Sendo assim, as noções de multiplicidades qualitativa e quantitativa são a base para a
compreensão de que a nossa realidade psicológica não é comparável à realidade extensa que
vivenciamos por meio do espaço. Ora, diante da distinção entre as multiplicidades é que nossa
vida psicológica poderá ser compreendida em termos de duração. Tal compreensão é que
permitirá mostrar a liberdade sem pressupostos filosóficos equivocados como aqueles aos
quais se apegaram tanto os deterministas quanto os defensores do livre arbítrio ao
desenvolverem seus argumentos baseados numa concepção incoerente de vida interior.
Quando a consciência for compreendida como duração é que a liberdade torna-se um
fato e não mais um problema filosófico. A questão da liberdade se elucida quando a
enunciamos em outros termos que aqueles do associacionismo, ou seja, é preciso colocar a
liberdade tendo como base o modo como a consciência se apresenta imediatamente: trata-se
de se fazer um ensaio, como já fica previamente indicada pelo título da obra em questão, sobre
os dados imediatos da consciência. Trata-se então de uma tentativa de recolocar os problemas
mais em função do tempo que do espaço, onde a duração enquanto dado imediato seria a
base.
Mas o que isso significa? Significa mostrar que nossa realidade é feita de uma mistura
de multiplicidades: uma quantitativa, própria ao exterior, ao espaço, à simultaneidade e à
homogeneidade, e outra qualitativa, que é característica de nossa vida psicológica, onde os
estados conscientes se sucedem sem que haja uma separação entre eles e onde a cada instante
modificam toda a interioridade.
É pela análise minuciosa do número que Bergson mostra as características da
multiplicidade cabível ao espaço e é diante dessas características que chegará a afirmação da
existência de uma outra multiplicidade, por sua vez qualitativa. Isso porquê chama a atenção
para o fato de que os objetos justapostos e alinhados no espaço só se tornam passíveis de
numeração, de contagem, só se tornam propriamente quantidade numérica, graças à coesão, à
união, ou antes, a uma organização propiciada pela duração. Sem a duração permaneceríamos
sempre no estático, sempre no número 1, ou seja, se não houvesse a duração não haveria a
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
411
idéia de número. Nas palavras de Bergson: “É graças à qualidade da quantidade que nós
formamos a idéia de uma quantidade sem qualidade.” (DI, 82/92)1.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que Bergson mostra as características da
multiplicidade numérica ele caracteriza também outra espécie de multiplicidade a
diferenciando da realidade própria à exterioridade, uma vez que o objetivo da obra é tratar da
questão da liberdade, trata-se de abordá-la na dimensão em que se propõe investigar, ou seja,
na interioridade. Não cabe espacializá-la, exteriorizá-la, mas sim mostrar que a liberdade é
“restituída” à consciência quando extraímos desta conceitos exteriorizantes, quando não
confundimos as multiplicidades. Assim, o que a filosofia bergsoniana traz de novo é essa
abordagem que “desvia o espírito do domínio da exterioridade e volta para o interno: a
instância suprema e única jurisdição do filósofo é a experiência interna” (JANKÉLÉVITCH, p. 3637).
Sendo assim, a justaposição da matéria que o espaço nos faculta não é a única
condição da formação do número. Somente ela não bastaria, é preciso um ato de síntese do
espírito. O espírito nos permite sintetizar várias unidades em um único número e é também por
um ato do espírito, mas por sua vez intuitivo, que a própria concepção de espaço surge: a
simples coexistência dos objetos não seria suficiente para a gênese do espaço. O ato do espírito
“consiste essencialmente na intuição, ou antes, na concepção de um meio vazio homogêneo”
(DI, 64/70). A definição do espaço enquanto meio vazio homogêneo fruto de um ato do espírito
é, para Bergson, a única possível. Isso ocorre porque, sugerindo uma volta à experiência, o
filósofo, por meio da análise do número, extrai de nossa relação com as coisas exatamente tal
concepção: ao tornarmos os objetos passíveis de numeração é necessário inserirmos nesse
âmbito uma homogeneidade que não lhes é própria, mas que nosso espírito pode conceber.
Sendo assim, a análise do número nos permite chegar a uma série de conclusões que
embasam a filosofia bergsoniana e é a partir dessa análise que Bergson pretende mostrar que
nossa vida consciente se passa num tempo o qual, por vezes, é corrompido pela nossa
1
Todas as citações das obras de Bergson são de nossa própria autoria. Usaremos a seguinte configuração: após a
citação estará a abreviatura, a numeração da página referente às Oeuvres (1959) e em seguida aquela referente às
edições críticas feitas sob direção de Frédéric Worms.
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
412
tendência à vida prática. Se o objetivo é mostrar aquilo que a consciência é, chegando aos seus
dados imediatos os quais não passaram pelo crivo da inteligência, nada mais coerente que,
após fazer a análise do número e mostrar que a multiplicidade numérica está intrinsecamente
ligada ao espaço, Bergson busque esclarecer aquilo que comumente tratamos como
multiplicidade numérica e que, por sua vez, não comporta noções advindas de nossa concepção
do espaço: o tempo, aquilo que caracteriza a multiplicidade qualitativa dos nossos estados de
consciência.
O tempo ao qual Bergson afirma ser o da realidade interior é aquele que ainda não
possui uma forma espacial, ainda não está nos moldes da inteligência: passa sem que existam
separações, divisões ou distinções como supomos quando observamos um relógio, é a própria
duração, nas palavras de Bergson, “é a forma que toma a sucessão dos nossos estados de
consciência quando nosso eu se deixa viver, quando se abstém de estabelecer uma separação
entre o estado presente e os estados anteriores” (DI, 67/74-75).
O que ocorre nos estados de consciência não é uma soma, ou seja, uma mudança
quantitativa, mas uma sucessão que necessariamente implica mudança qualitativa, ou seja, na
consciência tem-se um processo de organização das posições anteriores com uma
interpenetração das mesmas e assim tenho a experiência da duração: “suprimamos por um
instante o eu que pensa as oscilações do pêndulo ditas sucessivas, haveria somente uma única
oscilação do pêndulo, uma só posição deste pêndulo: não há duração por conseqüência.
Suprimamos por outro lado, o pêndulo e suas oscilações; haverá somente a duração
heterogênea do eu, sem momentos exteriores uns aos outros, sem relação com o número” (DI,
72/80-81).
Assim sendo, compreendemos aquilo que a análise do número já esclarecia, a saber,
que a duração dos objetos exteriores só nos aparece porque temos a experiência da nossa
própria duração: “(...) em nosso eu, há sucessão sem exterioridade recíproca; fora do eu,
exterioridade recíproca sem sucessão (...)” (DI, 72-73/81). 2 Deste modo, há uma “sucessão sem
distinção, e como uma penetração mútua, uma solidariedade, uma organização íntima de
2
Grifo nosso.
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
413
elementos, em que cada um, representativo do todo, dele não se distingue nem isola a não ser
por um pensamento capaz de abstração” (DI, 68/75).
Dessa forma, espaço e duração interagem constantemente e a simultaneidade com
que isso acontece nos faz transmitir à duração a exterioridade daquilo que se passa no espaço.
Uma vez que “projetamos o tempo no espaço, exprimimos a duração pela extensão” (DI,
68/75), pode-se compreender que não há, em última instância, dois tipos de tempo, mas sim
um misto de duração e espaço, quando atribuímos a característica de justaposição e
simultaneidade à moda da contagem aos nossos estados conscientes. Isso é algo natural e
necessário à vida, precisamos dessa espécie de endosmose entre duração e espaço,
necessitamos dessa troca, desse “compromisso”, no qual o espaço introduz a homogeneidade e
suas distinções extrínsecas, e a duração interna, por sua vez, a sucessão e a organicidade de
seus elementos” (MARQUES, 29)
A nossa inteligência cria esquemas para facilitar a nossa vida exterior, entre os quais, a
associação entre espaço e duração. Entretanto, o resultado dessa associação nada mais é que
um tempo homogêneo diferente do tempo real. Dado que nossa vida é voltada ao agir,
acabamos desenvolvendo nossas ações através de um âmbito “manchado” pelo exterior. Tal
âmbito seria, segundo Bergson, uma espécie de “eu superficial”, aquele que encobre, como se
fosse uma “camada”, o nosso eu profundo que, por sua vez, seria onde encontraríamos o
tempo em sua forma pura, como um dado imediato para nossa consciência.
O “eu parasita”, segundo a metáfora bergsoniana, se mantém no âmbito social, na
nossa relação com o mundo, relação esta marcada pela linguagem. Dado que a nossa principal
forma de comunicação é a linguagem, exprimimos nossas idéias, sentimentos, sensações por
palavras, que por sua vez não permitem que um estado psicológico se coloque em sua forma
pessoal. Para darmos nome a algo, é preciso que dele removamos o que há de impressão
pessoal e mantenhamos aquilo que para todos aparece igualmente, “perceberemos então
termos exteriores uns aos outros, e estes termos já não serão os próprios fatos de consciência,
mas os seus símbolos ou, para falar com mais precisão, as palavras que os exprimem.” (DI,
108/122).
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
414
Após apontar desde o início de sua análise que os nossos estados de consciência não
comportam divisão nem aumento quantitativo, Bergson parece fundamentar tudo aquilo que
anteriormente havia exposto dando ênfase no desenvolvimento de nossa vida prática. É esse
modo em que nossa vivência se dá que acaba sendo fonte da confusão entre quantitativo e
qualitativo. É nessa confusão que tanto os deterministas quanto os defensores do livre-arbítrio
se apoiaram e, logo, se enganam ao tratar do ato livre. Quando se diz que se optou por um
caminho, é como se já desenhássemos uma deliberação do início ao fim, à semelhança de uma
linha no espaço. Os deterministas afirmam que o fim dessa linha já era determinado, já os
defensores do livre-arbítrio, que havia ao menos duas ou mais possibilidades e optar por uma
ou outra era igualmente possível. Porém essa linha mostra o tempo decorrido e não o tempo
que transcorre. Após a deliberação feita, posso, por um esforço de imaginação, representá-la
no espaço através de um traço, mas nunca a deliberação em progresso. Em nossos estados não
há uma linha demarcada, não há um ponto de escolha, não há duas direções. Pensar o
contrário “é admitir a possibilidade de representar adequadamente o tempo pelo espaço, e
uma sucessão por uma simultaneidade” (DI, 119/135).
O problema tanto do determinismo quanto do livre-arbítrio é, então, a representação
da “deliberação sob a forma de oscilação no espaço, quando ela consiste num progresso
dinâmico onde o eu e seus motivos estão em um continuo devir, como verdadeiros seres
vivos.” (DI, 120/137). Quando deliberamos acerca de algo, não há dois momentos estáticos a
espera de que nos decidamos por um ou por outro. O eu modifica-se na medida em que os
sentimentos se apresentam, “assim se forma uma série dinâmica de estados que se penetram,
se reforçam uns aos outros, e chegarão ao ato livre por uma evolução natural.” (DI, 113/129).
Todavia é preciso enfatizar que embora o filósofo faça uma crítica ao se tratar as ações
livres baseando-se num “eu superficial”, não se trata de uma aversão ou repúdio pela
inteligência ou pela experiência do âmbito social, pelo contrário, a consciência inserida nesse
âmbito é que propicia nosso conhecimento do exterior, que nos insere na sociedade enquanto
tal. O problema é manter-se nessa experiência “inautêntica” para tratar das ações livres, sob
pena de se negar a liberdade: “é preciso um “esforço vigoroso de análise”, para retornar ao
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
415
dinamismo interno da consciência profunda, no qual se constituem os atos livres”. Isso que
faltou aos associacionistas ao desenvolverem suas análises sobre a liberdade.
É preciso enfatizar também que a liberdade, como pode ser percebido pelas noções de
“eu superficial” e de “eu profundo”, comporta graus. Somos mais ou menos livres na medida
em que nossas ações se baseiam ora em nossa tendência à prática ora em nossa
individualidade, em nossa história pessoal, em nosso eu como um todo.
Sendo assim, a ação livre se mostra com um retorno à consciência através de um
esforço para alcançar-lhe ora superficialmente, ora mais profundamente nos atos realmente
livres em que o agir estará impregnado de interioridade. Em poucas palavras, a liberdade se
realiza na ação, ou seja, nossa duração se concretiza na ação na medida em que esta última é a
expressão maior ou menor da interioridade na realidade exterior.
Referências bibliográficas
BERGSON, H. ŒUVRES. Edition du centenaire. Paris: PUF, 1959.
____________. Essai sur les données imediates de la conscience. Paris: PUF, 2007. (Édition
critique).
JANKÉLÉVITCH, V. Henri Bergson. Paris: PUF, coll. Quadrige,1989.
MARQUES, S. T. Ser, tempo e liberdade: as dimensões da ação livre na filosofia de Henri
Bergson. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: 2006.
Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
Download