ANÁLISE HISTÓRICA DA INSERÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA NO BRASIL Ângela Maria Souza Martins - UNIRIO Introdução Este trabalho é o resultado de uma pesquisa que analisa historicamente como o ensino de Filosofia foi inserido no contexto educacional brasileiro e as influências desse ensino para formação do professor. No Brasil, a história do ensino de Filosofia vinculase ao desenvolvimento do projeto político-pedagógico do catolicismo da ContraReforma. Desde o século XVI, a filosofia é ensinada nas instituições escolares católicas brasileiras. No século XVI, o catolicismo da Contra-Reforma precisava revitalizar a usa doutrina, moralizar o seu clero e confirmar suas tradições. De acordo com a interpretação da Igreja, os movimentos reformistas mergulharam o mundo na anarquia e na desordem. Por isso, fazia-se necessário restaurar a harmonia, a unidade e a universalidade do cristianismo. As descobertas científicas e a ascensão do racionalismo cartesiano abalaram a hegemonia política e espiritual da Igreja Católica. A verdade fundamentava-se no “cogito”, na razão humana, rompendo com a autoridade escolástica. O teocentrismo não é mais o fundamento primordial para explicar a realidade humana; o centro do universo passa a ser o homem, que descobre o poder de dominar e controlar a natureza utilizando os argumentos racionais. Nessa conjuntura, os católicos buscam revitalizar a sua doutrina, fundam novas ordens, entre elas a Companhia de Jesus, em 1539, que representava o ideal antireformista. Esta ordem religiosa chegou ao Brasil, com um projeto político-pedagógico que atuou por meio da catequese, da evangelização e da instrução. De acordo com Azevedo, logo que chegaram ao Brasil os “jesuítas assentam, logo ao desembarcarem, os seus arraiais, fundam as suas residências ou conventos, a que chamam colégios, instalam os seus centros de ação e abastecimento ou, se o quiserem, os seus quartéis, para a conquista e o domínio das almas” (Azevedo, 1964, p. 502). A institucionalização da educação era uma estratégia importante para os jesuítas. Os jesuítas criaram escolas elementares, onde os filhos dos índios e dos colonos aprendiam a ler, escrever, contar e falar português. Por meio da instrução elementar eles 2 propagavam a doutrina católica. Porém, os jesuítas não atuavam apenas no plano de instrução elementar, uma de suas principais metas era a criação de escolas superiores para formar uma elite culta e religiosa, “que realizaria os objetivos místicos e sociais de Santo Inácio” (Azevedo, 1964, p.508). Constatamos nas “Constituições” de 1559, primeira legislação escolar da Companhia de Jesus, a proposta de dois cursos: a) Letras, com duração de cinco anos; b) Filosofia e Teologia, com duração de sete anos (Moraes Filho, 1959). Entre os séculos XVI e XVII, os jesuítas implantaram o ensino de Filosofia nos seguintes colégios: em 1554, o Colégio de Santo Inácio, em São Paulo; em 1567, o Colégio do Rio de Janeiro, onde a Filosofia começou a ser ensinada a partir de 1638. Este colégio foi “incorporado a seu correspondente em Coimbra, com o título de Real Colégio das Artes” (Campos, 1978:43); em 1652, o de Nossa Senhora da Luz, em São Luis do Maranhão, neste mesmo ano o de Santo Alexandre, em Belém do Pará; em 1654, o de São Tiago em Vitória, no Espírito Santo. Na verdade, a vida intelectual da colônia girava em torno dos seminários e colégios católicos. Esta afirmação é corroborada por Fernando de Azevedo: “todos, pois, que se destinavam, na casa patriarcal, à carreira das letras ou à vida eclesiástica e monacal - e todas as famílias abastadas se desvaneciam de ter um filho letrado ou um filho padre - caíam naturalmente sob a influência da educação jesuíta, em poder desses religiosos desde 1555, constituindo-se os instrumentos mais úteis de penetração de suas idéias e de seus métodos”(Azevedo, 1964, p.514). Os jesuítas seguiam a perspectiva humanista e tinham como meta desenvolver atividades literárias e acadêmicas. Eles cultivavam a tradição escolástica e não demonstravam desinteresse pela ciência e pelas atividades técnicas e artísticas. Entre os séculos XVI e XIX, a perspectiva humanista e escolástica orientou a formação dos letrados e eruditos no Brasil, com relação a Filosofia diria que essa perspectiva formou nossos intelectuais até os primórdios do século XX. Dentro desse espírito, foram formados os professores de Filosofia no Brasil. Lembramos que a filosofia que embasava o projeto político-pedagógico dos jesuítas era a interpretação tomista segundo a escolástica portuguesa. Diante do exposto, questionamos: como se efetivou, entre os séculos XVI e primórdios do século XX, o ensino de Filosofia no Brasil? A Filosofia Perene - o ensino de Filosofia no Brasil entre os séculos XVI e primórdios do século XX 3 As principais diretrizes pedagógicas dos jesuítas foram sintetizadas na Ratio Studiorum. Este documento tinha como principal meta fazer com que os estudantes internalizassem um determinado tipo de conhecimento para alcançar a “glória de Deus”. Sua proposta pedagógica comportava três cursos fundamentais: Letras Humanas, Artes ou Filosofia e Teologia. Estes três cursos formavam uma hierarquia rígida cujo ponto mais alto era a Teologia. Tanto Letras quanto Filosofia preparavam o estudante para o curso considerado mais elevado, o de Teologia. De acordo com as diretrizes pedagógicas da Ratio Studiorum, o ensino de Filosofia, nos colégios e seminários católicos, deveria ser orientado pelas filosofias de Aristóteles e Tomás de Aquino. O professor não poderia se afastar de Aristóteles e Tomás de Aquino, salvo raras exceções. A filosofia ensinada no período colonial tem uma profunda influência do pensamento escolástico, de acordo com a ótica portuguesa. Por isso, a obra de Pedro Fonseca, Comentários à Metafísica, foi a base do Cursus Conimbricensis, livro adotado no ensino de Filosofia no Brasil colonial. Além dessa obra, outros eram adotados no curso de Filosofia tais como: Cursus Philosophicus de Arriaga, que chegou a Bahia em 1639; o Curso de Filosofia de Antonio Vieira, que parece ter sido o primeiro livro escrito no Brasil (entre 1629 e 1632); o Cursus Philosophicus de Domingos Ramos; o Cursus Philosophicus de Antonio Andrade e a Quaestione Selectiores de Philosophia Problematice expositae de Luís de Carvalho (Campos, 1978). O professor deveria utilizar esses manuais e os estudantes eram obrigados a reproduzir com exatidão os conhecimentos adquiridos por meio desses manuais, e não poderiam criticar o conhecimento apresentado pelos comentadores de Aristóteles e São Tomás. Os jesuítas preocupavam-se em resguardar a interpretação escolástica de São Tomás e Aristóteles, porque, desse modo, preservavam os princípios tradicionais da doutrina católica, pautadas na autoridade, no espírito conservador e na disciplina, assim como preparavam os estudantes de Filosofia para o curso de Teologia. Havia uma intenção epistemológica para a manutenção da interpretação escolástica da Filosofia, pois além de preservar a doutrina tradicional católica, também possibilitaria a hierarquização das idéias, a disciplina da razão e sua submissão à fé. Assim, os educadores católicos encontraram uma maneira de resguardar a concepção de mundo católico das correntes racionalistas e empiristas que proliferavam nos séculos XVI, XVII e XVIII. 4 As aulas de Filosofia eram ministradas por meio de repetições diárias e semanais, feitas em casa ou na escola, quando os estudantes discutiam uns com os outros os pontos mais difíceis. A Ratio Studiorum também determinava desafios entre os alunos do mesmo nível, e ordenava que se enviassem composições ou dissertações ao padre provincial para comprovar os estudos feitos. De acordo com a Ratio Studiorum, o ensino de Filosofia seguia as interpretações aristotélico-tomistas da escolástica portuguesa e, assim, permanece até o século XVIII. Porém, em 1759, devido à dissidência com Pombal, os jesuítas foram expulsos da colônia, fato que provocou a desestruturação do sistema colonial de ensino. Nesse período, foram fechados cerca de 17 colégios e seminários “sem contar os seminários menores e as escolas de ler e escrever, instaladas em quase todas as aldeias e povoações onde existiam casas da Companhia” (Azevedo, 1964: 539). A expulsão dos jesuítas afetou o ensino elementar, como também o ensino de Filosofia e Teologia. As reformas realizadas por Pombal em Portugal não supriram de imediato o vazio deixado pelos jesuítas na estrutura educacional do Brasil. No final do século XVIII, o ensino de Filosofia ficou praticamente acéfalo. Não houve, em nosso contexto educacional, uma reestruturação do ensino de Filosofia, a partir de novas correntes filosóficas. Em Portugal, no meado do século XVIII, surgiu o ensino antiescolástico, uma reação à corrente escolástica implantada por meio do ensino na Companhia de Jesus. Este movimento teve como elemento fundamental as Cartas de Verney, que foram a base da reforma universitária de Portugal. Mas esta reforma não atingiu o Brasil, o sistema educacional brasileiro ficou totalmente desestruturado. No curso de Filosofia, a única modificação observada foi a mudança de manual. Adota-se, a partir de então, o livro de Antonio Genovesi, as Instituições de Lógica, o Genuense, que passa a ser o livro oficial do ensino de filosofia. Neste livro percebe-se a orientação aristotélicotomista mesclada ao empirismo lockeano. A partir da segunda metade do século XVIII, agravam-se as lutas políticas no Brasil e eclodiram os movimentos libertários, profundamente influenciados pelas idéias iluministas. Nesse momento surge, entre os conjurados mineiros, a intenção de criar uma universidade em Vila Rica (Moraes Filho, 1959). Porém esses movimentos fracassaram e o Brasil entra no século XIX sem universidade e o ensino de filosofia continuou apoiado pela doutrina aristotélico-tomista. Devemos lembrar também que 5 expulsos os jesuítas, outras ordens religiosas continuaram atuando no campo educacional. Com a instalação do Vice-reinado de D. João VI no Brasil, no início do século XIX, reaparece a esperança de alteração do contexto educacional brasileiro. Essa nova situação política promoveu algumas mudanças no campo da cultura. Foram criados: a Imprensa Régia, a Biblioteca Nacional, um museu e algumas escolas de nível superior, como o curso de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, a Escola Naval etc. Porém, apesar da criação de algumas escolas superiores, a situação do ensino, como um todo, permaneceu inalterada. No caso da Filosofia, continuou-se adotando o manual Genuense. Contrário a adoção deste manual, o professor de filosofia Silvestre Pinheiro Ferreira, membro da comitiva de D.João VI, fez-lhe sérias críticas e tentou, com a publicação de seu livro, afastar o compêndio oficial do ensino de Filosofia, usado nas escolas brasileiras. No período do Império acirram-se os debates em torno da criação da universidade e do ensino superior de Filosofia no Brasil. Surgiram vários projetos que propunham a criação de cursos superiores e, principalmente de uma universidade, onde existisse um curso de Filosofia.Mas até meados do século XIX, não se consolidou a criação de uma universidade no Brasil e, principalmente de um curso superior de Filosofia. Questionando essa situação, dizia Tobias Barreto: “na verdade o que é a Filosofia entre nós? Simplesmente o nome de um preparatório que a lei diz ser preciso para fazer-se o curso de certos estudos superiores” (Barreto, 1926, p. 343). A Filosofia era obrigatória nos liceus e nos ginásios do Império, onde se ministrava um ensino sem grandes novidades, no qual os velhos manuais ainda eram seguidos, principalmente aqueles fundamentados no tomismo. No século XIX, os parcos estudos de Filosofia a nível superior eram dados exclusivamente nas faculdades de Direito e nos Seminários católicos. Estes eram os dois espaços onde se cultivavam os estudos de cunho especulativo. A filosofia cultivada nos ginásios, liceus e faculdades de Direito, ao longo do século XIX, continuava predominantemente tomista. Isto porque se recrutavam os intelectuais formados em filosofia nos Seminários e muitos iam estudar em faculdades católicas européias, como em Louvain, na Bélgica. Alguns fatos ocorridos no século XIX corroboram essa afirmação. Em 1867, num concurso para a cadeira de Filosofia, no Ginásio Público de Pernambuco, o professor José Soriano de Souza, tomista, autor da obra “Compêndio de Filosofia, ordenado segundo os princípios e métodos de Santo Tomás de Aquino”, 6 venceu o concurso, que eliminou Tobias Barreto. O professor José Soriano de Souza cursara Filosofia em Louvain e era professor de Direito Público e Constitucional, na Escola de Direito, em Recife (Campos, 1968). Em 1875, Sílvio Romero, seguidor do evolucionismo, foi derrotado no concurso para a cadeira de Filosofia do Colégio das Artes de Recife, pelo professor Antônio Luís de Mello Vieira, tomista, autor da tese “Da interpretação filosófica na evolução dos fatos históricos”, onde usa a técnica da argumentação silogística, apoiando-se nos escolásticos, principalmente em Santo Agostinho e Tomás de Aquino, para provar que “a providência divina e a liberdade humana são causas de todos os fatos históricos” (Campos, 1968, p.66). A doutrina aristotélico-tomista embasava o ensino de Filosofia não só nas escolas católicas, como também nas escolas públicas. Mas é preciso ressaltar que, em alguns momentos históricos, a hegemonia filosófica do tomismo é quebrada, devido a influência de outras correntes filosóficas. No meado do século XIX, foram introduzidas no Brasil idéias positivistas e evolucionistas, que tiveram ampla penetração na educação. As idéias positivistas fomentaram a discussão sobre a possibilidade de um Estado laico, o que acarretaria a criação de escolas públicas baseadas no ensino laico. Como se sabe, não só a Filosofia, mas a educação em geral era até então ministrada, quase que exclusivamente dentro de uma orientação confessional e, o ensino era obrigatório nas escolas públicas. Assim, as idéias positivistas tornaram-se uma ameaça para a educação católica. Essa difusão de idéias que preconizavam o laicismo tornou-se uma ameaça para a Igreja em termos político, econômico e cultural. Com o advento da República, a vitória das idéias liberais e positivistas e a conseqüente proclamação do Estado laico, os católicos passaram a buscar, desesperadamente, a hegemonia cultural. A partir de então, a Igreja passou a preocupar-se mais agudamente com a ocupação de espaços culturais e, em 1908, criou a primeira Faculdade de Filosofia, iniciativa de D. Miguel Kruse, abade do Mosteiro de São Bento, em São Paulo, assim surge a Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento. Segundo Dom Odilão Moura, a intenção do abade era ver “a juventude católica universitária formada nos princípios da fé, para que ela fosse mais esclarecida e mais preparada na refutação dos erros filosóficos que a ameaçavam” (Moura, 1978, p. 143). Essa Faculdade veio a ser mais um foco de irradiação da doutrina tradicional da Igreja, o tomismo. 7 Com esse breve esboço histórico, constata-se que, entre os séculos XVI e XIX, o ensino de Filosofia no Brasil foi moldado segundo os princípios da proposta políticopedagógica da Igreja católica. Entre as características dessa proposta educacional, destacam-se o privilégio atribuído aos estudos de cunho especulativo e a escolha do embasamento teórico aristotélico-tomista. Tais preocupações remontam raízes antropológicas e, mesmo ontológicas, da doutrina cristã. Mas porque os estudos especulativos e a doutrina aristotélico-tomista eram importantes enquanto fundamento para o estudo da Filosofia? Segundo a doutrina católica, “o homem é um ser espiritual, criado por Deus(...) composto de corpo e alma e distingue-se dos demais animais pela sua racionalidade. A dupla composição do ser humano lhe possibilita o desenvolvimento de atividades corporais e espirituais, sendo que as primeiras devem se submeter às segundas. Tanto a vida quanto as faculdades humanas são concebidas a partir de uma visão hierárquica de princípios. Assim, “a vida vegetativa subordina-se à sensitiva, esta à vida racional, a racional à vida espiritual (...) a vida intelectual transcende a vida física e sobre ambas plaina a vida moral e religiosa” (Cury, 1978, p. 46 e 55). A educação deve se orientar segundo essa ordem que rege a vida e as faculdades humanas. Acatando esses princípios, compete à educação ordenar as faculdades humanas dentro de uma hierarquia que conduza os homens à obtenção de um fim supremo (Cury, 1978), e sua finalidade deveria ser o desenvolvimento intelectual e moral. A educação deve explicitar ao homem que o seu fim último é espiritual, por isso deve criar uma hierarquia em suas faculdades para dominar seu intelecto com o objetivo de preparar o espírito para o mundo da graça, tornando o homem apto a viver em sociedade. No desenvolvimento do processo educacional, a formação intelectual pautada em estudos especulativos torna-se fundamental porque possibilita a ordenação de idéias, tanto no plano do conhecimento científico quanto no do conhecimento humanístico e, assim, podem-se atingir verdades fundamentais. Estas verdades são “os primeiros princípios que ensinam o que é o homem, de onde vem e para onde vai” (Cury, 1978, p. 56). De acordo com a Igreja, “a natureza espiritual do homem, iluminada pela graça, faz com que a racionalidade descubra a ordem de tudo, que é Deus, fonte do ser e da vida” (Cury, 1978, p. 56). Atribui-se aos estudos de cunho especulativo a função de ordenar as idéias e aproximar o homem de seu fim último, que é a vida espiritual. Nesse sentido, a Filosofia 8 considerada como um saber eminentemente especulativo que cultiva princípios imutáveis, perenes e universais, torna-se fundamental à educação e à doutrina católica. Ela possibilita, assim, a ordenação e a hierarquização das idéias. Segundo a concepção tradicional católica, a compreensão dos problemas fundamentais tanto a nível teórico quanto a nível prático, colocados ao longo da história, somente seria possível a luz de uma filosofia única e certa (Franca, 1978). Deve-se partir de um núcleo de verdades inabaláveis que possa ser a base e o ponto de partida das investigações filosóficas, porque a razão deve “orientar-se seguramente para a verdade. Cumpre-lhe, pois, saber distinguir os desvios multiformes do caminho único e certo. Cumpre-lhe discernir o sistema verdadeiro dos errôneos. Cumpre-lhe reconhecer, entre as filosofias, a Filosofia” (Franca, 1978, p.328). Essa distinção baseiase em três critérios fundamentais: o especulativo, o prático e o histórico. De acordo com Franca, “o primeiro critério, teórico e racional, é a evidência. A luz ressalta nas trevas pela sua própria claridade. A verdade distingue-se do erro pelo brilho do seu esplendor. Todo sistema radicalmente falso ou se funda imediatamente na contradição ou se envolve mais tarde nas malhas de suas teias inextrincáveis. As inteligências afeitas à reflexão e disciplinadas por uma lógica severa e sã poderão sem grande dificuldade, desfiando as conclusões das premissas ou remontando dos conseqüentes aos antecedentes, desvendar o sofisma e por a descoberto o erro atraiçoado pelo absurdo de suas próprias afirmações” (Franca, 1978, p. 328-329). O segundo critério seria prático, fundamentado nas conseqüências morais dos sistemas filosóficos. Se um sistema filosófico baseia-se numa lógica dos fatos mostrando o valor das idéias que derivam esse sistema, este será necessariamente válido. Por isso, “qualquer Filosofia que logicamente importe a destruição do direito e da moral, a extinção da virtude e do heroísmo, a dissolução da família e da sociedade não é verdadeira” (Franca, 1978, p. 329). O terceiro critério, o histórico distingue a Filosofia das filosofias. Esses critérios seriam cumpridos, segundo a visão tradicional católica, por uma única doutrina: a aristotélico-tomista. Esta seria a Filosofia genuína, pois não sofreria as mudanças no espaço e no tempo como as outras correntes filosóficas. Na doutrina aristotélico-tomista estariam, ainda, os caminhos melhores para a destruição dos erros e a solução dos problemas sociais e morais, porque ela é “mais que as outras, concorde com as verdades conhecidas pela Revelação de Deus, com os escritos dos Santos Padres e como os princípios da reta razão” ( João XXIII, 1950). 9 Segundo Padre Werner (Werner apud Moura, 1978, p. 148), a escolástica expressa a paixão pela verdade, ou melhor, ela é a própria verdade, porque ela não permite qualquer coisa que possa adulterar a verdade. Como a hierarquia da Igreja católica acreditava que a doutrina aristotélico-tomista, em suas diferentes interpretações, cultivava uma verdade inabalável, pautada em princípios perenes, imutáveis e universais, essa teoria tornou-se a base ideológica não só da proposta pedagógica para o ensino da Filosofia, como também da proposta político-pedagógica da Igreja no Brasil. Afirmamos que os princípios aristotélico-tomistas foram fundamentais para a consolidação da hegemonia espiritual da Igreja no contexto social e histórico brasileiro. Transformada em a Filosofia, a doutrina aristotélico-tomista tornou-se um instrumento para combater outras correntes filosóficas e políticas. Sendo a expressão da verdade absoluta, os seus princípios deveriam ser, necessariamente, o ponto de partida da investigação filosófica tanto da realidade social e histórica quanto das demais correntes filosóficas. Esse dogmatismo influenciará decisivamente na orientação do ensino universitário de Filosofia no Brasil e formará a mentalidade dos professores de Filosofia até os primórdios do século XX. Considerações Finais Mostramos neste trabalho, o tradicionalismo, o dogmatismo e a a-historicidade que fundamentaram o ensino de Filosofia, entre os séculos XVI e primórdios do século XX. Esses princípios formaram a mentalidade de grande parte dos professores de Filosofia. No interior desse projeto pedagógico, a filosofia se desenvolveu tal como uma religião, cultivando princípios perenes e imutáveis, mostrando-se ao mundo como verdade eterna. Essa postura influenciou decisivamente a orientação do ensino universitário na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil. As interpretações aristotélico-tomistas assumiram, no contexto cultural brasileiro, o papel de “Filosofia da ordem estabelecida”. Lembramos que na década de 1920, se estabelece no contexto educacional brasileiro uma luta político-ideológica e, a Igreja queria reconquistar a participação política no Estado que tinha à época do Império. Por meio do Centro Dom Vital e da Revista A Ordem, os intelectuais católicos veiculavam a sua doutrina social, política e pedagógica e lutavam contra os princípios racionalistas desvinculados da religião, da moralidade, da lei e da ordem. Por isso, as transformações e mudanças da realidade em geral, eram consideradas, pelos defensores 10 da doutrina aristotélico-tomista, como sinal de desagregação e crise, ameaças ao cultivo de princípios e valores adequados a uma ordem social e moral estável. Com essa base doutrinária, o ensino de Filosofia, até os primórdios do século XX, sofreu um processo de fossilização no contexto cultural brasileiro. Acreditamos que o ensino de Filosofia não deveria ser a imposição de um discurso abstrato, hermético, exterior e alheio à vida social e histórica e à experiência dos alunos, ele deveria promover um crescimento crítico daqueles que estão envolvidos no processo de aprendizagem. A construção teórico-crítica deve se realizar na relação prática/teoria, que nada mais é do que uma nova forma de expressão da relação ser/pensar. 11 BIBLIOGRAFIA: AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1964. BARRETO, Tobias. Estudos Alemães. Sergipe: Ed. do governo de Sergipe, 1926. CALÓGERAS, João Pandiá. Os Jesuítas e o Ensino. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1911. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo e Neotomismo no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968. _______________________ Reflexão introdutória ao estudo da filosofia na época colonial. In: CRIPPA, Adolfo. As idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1978. COSTA, João Cruz. Contribuição à História das idéias no Brasil. 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