Da hermenêutica filosófica à pragmática universal

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DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
À PRAGMÁTICA UNIVERSAL:
o desvelar da tensão entre facticidade
e validade na Teoria Discursiva do Direito
FROM PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS
TO UNIVERSAL PRAGMATICS:
the disclosure of the tension between facticity
and validity in the Law Discursive Theory
Ana Paula Repolês Torres*
RESUMO
O objetivo deste texto é trabalhar a virada lingüístico-pragmática do pensar,
procurando refutar a idéia de uma consciência que se relaciona consigo
mesma, inserindo então a linguagem como uma mediação necessária para
a constituição de sentido. Enfatizamos o debate realizado entre Gadamer e
Habermas, com a finalidade de demonstrar de que forma este último entende
ser possível a ultrapassagem do horizonte de sentidos compartilhados, ou seja,
como podemos visualizar a tensão entre a facticidade do mundo da vida e as
pretensões de validade levantadas pelos participantes do discurso.
Palavras-chave: consciência – linguagem – facticidade – validade.
ABSTRACT
The goal of this essay is to deal with the linguistic-turn, aiming to refute
the notion of a self-related consciousness, putting thus the language as a
necessary mediation for the construction of meaning. Emphasizing the
debate between Gadamer and Habermas, our purpose is to demonstrate
the way the last author understands the possibility to go beyond the shared
senses edge, that is, how we can picture the tension between the facticity of
lifeworld and the validity claims raised by the discussion partakers.
Keywords: consciousness – language – facticity – validity.
*
Bacharel e Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da UFMG, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
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Ana Paula Repolês Torres
1.
INTRODUÇÃO
Partindo de uma crítica à metafísica, muitos filósofos atuais, denominados de
pós-modernos1, anunciam o “fim da filosofia”. Esta foi, em inúmeros momentos,
entendida como o alcance da unidade na multiplicidade, da necessidade tendo em
vista a contingência do mundo quotidiano, ou seja, em grande parte foi caracterizada como a busca de um conhecimento do todo, de um saber último correlato
a um velamento da finitude humana.
Platão pode ser lembrado como um típico representante do pensamento metafísico, na medida em que entendia ser possível encontrar a unidade do mundo,
que seria a “essência” deste, no reino das “Idéias”. Os mitos, que sempre foram
utilizados para a explicação da origem das coisas, são substituídos por “conceitos”,
os quais se encontram na base do pensamento e da experiência possíveis.
Aristóteles, mesmo não acreditando na existência de dois mundos, ainda permaneceu atrelado ao pensamento conceitual e à distinção entre forma e conteúdo,
entre potência e ato. Pode-se dizer que desde a filosofia grega até a modernidade
encontramos diversos pensadores que seguiram essa busca do Uno, da identidade
das diversas particularidades, passando por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho até os modernos Descartes, Kant e Hegel.
56
Em face das críticas nominalistas de que os universais não existem, de que os
conceitos não passariam de signos que o sujeito que conhece atribui às coisas, o
pensamento metafísico sofre uma reviravolta copernicana e a pergunta pelo “ser”
é substituída pelo questionamento sobre o sujeito cognoscente. Dentro, então, do
paradigma da filosofia da consciência inaugurado por Descartes, Kant, com sua
filosofia transcendental, abandona a pergunta pelos objetos e passa a se indagar
sobre as condições que tornam possível a objetificação da realidade, ou seja, sobre
as condições de possibilidade do conhecimento sobre as coisas.
O que ocorre aqui para J. Habermas é uma transformação imanente à
postura metafísica: as essencialidades ideais, o objeto da metafísica, se
transformam em determinações de uma razão produtora numa dupla
versão: a “transcendental”, em que a razão é a subjetividade constituidora
1
Mesmo sabendo que a classificação oculta muitas vezes a riqueza e complexidade das diversas
teorias, ousamos definir, apenas a título exemplificativo, os filósofos Lyotard, Nietzsche, Deleuze,
Rorty, Heidegger, Foucault, como “pós-modernos”, na medida em que eles colocariam em questão conceitos centrais do pensamento moderno, como razão, verdade, progresso, legitimidade,
sujeito, etc. Gianni Vattimo, falando especificamente de Nietzsche e Heidegger, assim se pronunciou: “Eles se acham, assim, por um lado, na condição de terem de distanciar-se criticamente
do pensamento ocidental enquanto pensamento do fundamento; de outro, porém, não podem
criticar esse pensamento em nome de uma outra fundação, mais verdadeira. É nisso que, a justo
título, podem ser considerados os filósofos da pós-modernidade” (VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. VII).
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do sentido do mundo; e a “dialética”, em que a razão se compreende
enquanto o espírito processual, que se efetiva na natureza e na história e
retorna a si. Em ambas as versões, a razão se afirma como uma reflexão
ao mesmo tempo totalizante e auto-referida2.
Essa idéia de uma “razão auto-referida”, isto é, de uma razão que estaria
como que acima das contingências e que daria sentido ao mundo, seja uma razão
“transcendental” ou “dialética”, foi refutada tendo em vista que não se pode pensar
em um processo de conhecimento no qual o sujeito isolado, por si só, utilizando-se
somente de seu poder de reflexão, conseguisse alcançar a “verdade” das coisas.
Esse foi justamente o erro de Husserl quando, apesar de ter mostrado que toda
constituição de sentido se dá no mundo, isto é, em um “mundo da vida”, ainda
atribuiu ao sujeito a capacidade de transcender a vida comum, “colocando-a entre
parênteses”, e de conferir a partir daí o sentido do mundo; ou seja, apesar de tal
filósofo ter explicitado a dimensão da intersubjetividade, não conseguiu trabalhá-la
adequadamente, na medida em que permaneceu atrelado à idéia de uma subjetividade criadora do mundo, seguindo assim a linha do pensamento kantiano3.
El problema salta a la vista: tampoco el sujeto trascendental puede asumir
ambas cosas a la vez, a saber, la posición extramundana de un soberano
que constituye al mundo y la perspectiva interna abridora de horizonte de
un ser que abre los ojos en el mundo y que, por eso mismo, se encuentra
ya constituido4.
57
Em outros termos, diríamos que a partir de Husserl temos uma crise no
paradigma da representação, pois o mundo não é apenas constituído pelo sujeito
cognoscente, mas é também constituidor de sentido.
Dessa forma, a ênfase que a partir das críticas ao solipsismo metodológico da
filosofia da consciência foi dada à questão da intersubjetividade ocasionou uma
mudança do pensamento filosófico, pois, como muito bem demonstrou Apel5,
2
3
4
5
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para além da fragmentação: pressupostos e objeções da racionalidade dialética contemporânea. São Paulo: Loyola, 2002. p. 62.
Tradução: “O problema salta aos olhos: tampouco o sujeito transcendental pode assumir ambas
as coisas de uma só vez, a saber, a posição extramundana de um soberano que constitui o mundo
e a perspectiva interna amplificadora do horizonte de um ser que abre os olhos para mundo e
que, por isso mesmo, se encontra já constituído”.
HABERMAS, Jürgen. Textos y contextos. Tradução de Manuel Jimenéz Redondo. Barcelona: Ariel,
1996. p. 63.
“Em face da transformação, efetuada faticamente, da problemática pertencente à Teoria do Conhecimento em uma problemática da Analítica da Linguagem, parece-me estar muito mais próxima uma radicalização cartesiana do questionamento transcendental, que certamente não pode,
como ainda E. Husserl, reduzir a questão sobre a validez-de-sentido à questão cartesiana sobre
minha própria evidência-de-consciência” (APEL, K.-O. Estudos de moral moderna. Tradução de
Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 16-17).
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“a reflexão sobre a linguagem não constitui a descoberta de um objeto a mais na
reflexão filosófica; o que, em última análise, está em jogo é a transformação da
própria filosofia”6. Tendo então se tornado transparente que todo conhecimento
é mediado lingüisticamente, pode-se dizer que ocorreu uma alteração do próprio conceito de linguagem, haja vista que esta perde a posição secundária que o
pensamento metafísico lhe conferiu, quando se entendia que o sujeito alcançava
o conhecimento por si só, sendo a linguagem somente um instrumento para transmissão do resultado do conhecimento humano. A linguagem é colocada, assim,
como condição de possibilidade de qualquer conhecimento, sendo que a procura
pela verdade das coisas se volta para o questionamento da verdade das proposições7, o que Wittgenstein e Frege muito bem demonstraram, chegando estes a
reconstruir as regras que servem como requisitos para a análise da falsidade ou
não das proposições.
Veremos que a hermenêutica filosófica gadameriana, seguindo o pensamento de Heidegger, também confere essa posição privilegiada à linguagem, mas se
pergunta, ao contrário das teorias lógicas e semânticas, por algo que vem antes
do predicativo, por algo que é condição de possibilidade de qualquer afirmação.
De acordo com Oliveira8, “a hermenêutica herda de Heidegger a idéia de situar a
tarefa da filosofia num espaço que é anterior à proposição, porque sua condição
de possibilidade”.
58
O fato é que a posição mais modesta que a razão adquire na medida em que se
constata ser a mesma “situada”, isto é, inserida social e historicamente, fez com que
vários pensadores, como Heidegger e Gadamer, acabassem restringindo o poder
reflexivo da racionalidade ao afirmar a impossibilidade de qualquer metanarrativa
que fuja da faticidade dos jogos de linguagem e que seja capaz de apresentar as
condições com as quais se poderia avaliar o que seria “verdadeiro” e o que seria
“falso”, para distinguir um “consenso legítimo” de um “consenso ilegítimo”.
Na verdade, a ausência de metanarrativas é apresentada por filósofos como
Lyotard como característica da pós-modernidade, já que não existiria mais nenhuma “teoria” capaz de dar o direcionamento social, assim, não há porque defender
a universalidade de certos ideais burgueses revolucionários que serviriam como
padrões de julgamento da racionalidade contemporânea, como padrões aptos
para a distinção entre um discurso e práticas alienantes e um discurso e práticas
6
7
8
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea.
2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. p. 249.
“A proposição é uma figura da realidade. A proposição é um modelo da realidade tal como pensamos que seja” (WITTGENSTEIN apud CALVET DE MAGALHÃES, T. Filosofia analítica: de
Wittgenstein à redescoberta da mente. Belo Horizonte: Movimento Editorial da FDUFMG, 1997.
p. XXXII).
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para além da fragmentação, p. 51.
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emancipatórias. Nesse sentido, qualquer crítica estaria condicionada histórica e
socialmente, não havendo padrões últimos que unificassem o julgamento de todos
nós em detrimento das particularidades éticas regionais.
Para Habermas, o problema colocado pela “incredulidade em relação às
metanarrativas” é que desmascarar apenas faz sentido se “preservarmos
pelo menos um padrão para [a] explicação da corrupção de todos os padrões razoáveis”. Se não possuirmos um tal padrão, um que escapa a uma
“crítica totalizante auto-referencial”, então distinções entre os nus e os
mascarados, ou entre teoria e ideologia, perdem a força. Se não tivermos
estas distinções, então temos de desistir da noção iluminista de “crítica
racional de instituições existentes”, pois o “racional” desaparece9.
A questão é que a não-aceitação desses padrões pelos pós-modernos faz
com que estes “renunciem” à busca “da verdade”, uma vez que, para tais pensadores, a filosofia como busca da incondicionalidade não teria mais papel algum
a realizar na sociedade. O próprio Rorty, chega a afirmar que o filósofo deve ser
“edificante”, isto é,
A filosofia edificante aponta mais para a continuação de uma conversação do que para a descoberta da verdade... o papel cultural do filósofo
edificante é ajudar-nos a evitar a auto-ilusão que resulta de se acreditar
que nos conhecemos a nós próprios ao conhecermos um conjunto de
fatos objetivos10.
59
O que tal posição pode acabar produzindo, quando radicalizada, é a contradição performativa na qual incidiria ao tentar mostrar racionalmente a ausência
de qualquer fundamento racional. Cabe lembrar que o princípio da contradição
performativa, que seria a incoerência entre o ato de falar e o conteúdo deste, é
justamente o argumento levantado por Apel11 para resgatar o papel da filosofia
em uma dimensão transcendental.
Antes do desenvolvimento da proposta aqui apresentada, resta explicitar as
perguntas que nortearão este artigo: Será que a filosofia realmente não tem um
papel a cumprir nas sociedades atuais? Será que não se necessita de determinados
padrões explicitados teoricamente para que se possam julgar os acontecimentos
do nosso dia-a-dia, atentando para algo além das formas de vida locais? Será necessário o retorno à metafísica, tal como faz a hermenêutica transcendental, para
que ainda seja possível ter critérios para julgamento dos fatos, ou seja, para ter
9
10
11
RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e outros. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 258.
RORTY apud OLIVEIRA, M. A. de. Para além da fragmentação, p. 258.
APEL, K.-O. Estudos de moral moderna, 1994.
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parâmetros universalizáveis aptos à distinção entre a facticidade e a validade das
experiências vivenciadas?
2.
A FACTICIDADE DO ENFOQUE HERMENÊUTICO
A descoberta de um horizonte de sentidos que é anterior a qualquer conhecimento, na verdade, anterior a qualquer experiência que significa algo para os que
vivem em sociedade, foi explicitada pela hermenêutica ontológica de Heidegger12,
na medida em que tal pensador pôs em evidência o aspecto positivo de todas
as formas de preconceitos, pois, ao invés de estes serem um obstáculo ao saber
como pensavam os iluministas, possibilitam qualquer compreensão do mundo ao
redor e de nós mesmos. Todo saber, portanto, está condicionado pelas vivências
dos sujeitos cognoscentes, uma vez que toda afirmação sobre objetos somente é
possível devido às antecipações de sentido realizadas quando há disposição para
compreender alguma coisa.
Quando Heidegger substitui as categorias pelos existenciais, mostra como
essa atividade de predicar, de pronunciar algo sobre algo, exige um retorno
a uma dimensão mais radical, anterior, que é justamente aquilo que é a
condição de possibilidade de se poder pronunciar algo sobre algo13.
60
Nesses termos, com a precedência da dimensão hermenêutica sobre a predicativa, qualquer proposição passa a depender do plexo de sentidos não problematizados, isto é, toda qualificação dos objetos e todo questionamento sobre a
verdade ou falsidade das afirmações estão condicionados a esse pano de fundo
compartilhado. O que ocorre, na verdade, é que a validade das proposições sobre o
mundo passa a depender dos sentidos já constituídos deste, o que acaba retirando
do questionamento sobre a verdade das proposições sua dimensão universalista.
Assim, apesar de as idéias de Heidegger serem um avanço com relação à concepção
lógica e semântica da linguagem, representadas aqui por Frege e pelo primeiro
Wittgenstein, na medida em que se demonstraram as condições de possibilidade
da própria linguagem, ou seja, na medida em que se evidenciou algo que é anterior
aos enunciados, às proposições verdadeiras ou falsas das quais tratam essas duas
teorias da linguagem, podemos dizer que Heidegger acabou nos aprisionando na
facticidade das formas de vida locais que configuram os sentidos por meio dos
quais podemos conhecer o mundo, sentidos estes que não se submetem à prova da
verificabilidade e são aceitos como dados, como algo que simplesmente existe.
12
13
Cabe dizer que adotamos uma leitura gadameriana de Heidegger, tal como esta foi desenvolvida
em Verdade e Método. Cf. GADAMER, H. G. Verdade e método: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para além da fragmentação, p. 51.
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
En la primacía del “algo como algo hermenéutico” sobre el “algo como
algo predicativo” se fundamenta la decisiva diferencia con la concepción
semántica de la verdad. También para la concepción semántica de la verdad el sentido de una expresión lingüística determina las posibilidades de
verdad de una oración formada con su ayuda. Pero con esto no se afirma
que en el plano semántico se decida previamente de forma irrevocable a
qué categoria de objetos corresponden determinadas cualidades. Mientras
separemos la predicación de cualidades de la referencia a objeto y podamos reconocer los mismos objetos bajo distintas descripciones, existe la
posibilidad de ampliar nuestro saber sobre el mundo y en consecuencia
revisar nuestro saber lingüístico14.
O que se questiona nessa subordinação da verdade ou não das afirmações às
pré-compreensões de mundo é que a ausência de problematização deste, a priori,
faz com que o uso da linguagem não seja capaz de alterar essa semântica que a
possibilita, ou seja, há um impedimento de qualquer processo de aprendizagem.
Cabe lembrar aqui o segundo Wittgenstein, o das Investigações Filosóficas, já que
ao proceder tal filósofo a uma autocrítica, ou seja, uma crítica à concepção de
linguagem do Tratactus Logico-Philosophicus, que se caracterizava pela abstração
com relação ao uso da linguagem. Neste texto, o autor dedicava-se à análise das
regras da linguagem sem se atentar para sua vinculação com os hábitos lingüísticos
das diversas formas de vida, chegando até mesmo a adotar uma perspectiva transcendental, na medida em que entendia possível a construção de uma linguagem
artificial que serviria como parâmetro para julgamento da verdade das proposições.
Esse pensador, em sua segunda fase, acabou apresentando conclusões semelhantes às de Heidegger, com relação à precedência do aspecto hermenêutico sobre o
predicativo, condicionando assim todo questionamento sobre as afirmações aos
fechados jogos de linguagem, isto é, às formas de vida existentes15.
14
15
61
HABERMAS, Jürgen. Verdad y justificación: ensayos filosóficos. Madrid: Trotta, 2002a. p. 82-83.
Tradução: “Na primazia do ‘algo como algo hermenêutico’ sobre o ‘algo como algo predicativo’,
fundamenta-se a diferença decisiva da concepção semântica de verdade. Também para a concepção semântica de verdade o sentido de uma expressão lingüística determina as possibilidades
de verdade de uma oração formada com sua ajuda. Porém, com isto não se afirma que no plano
semântico se decida previamente de forma irrevogável a que categoria de objetos corresponde
determinadas qualidades. Enquanto separamos a predicação da referência ao objeto e podemos
reconhecer os mesmos objetos a partir de descrições diferentes, existe a possibilidade de ampliar
nosso saber sobre o mundo e, conseqüentemente, rever nosso saber lingüístico”.
“Esse sistema de sentenças, que constituem um pré-saber e uma pré-praxis, constituem uma espécie de visão do mundo, que também se poderia chamar de “forma de vida”, que não é nem verdadeira, nem falsa (§§ 162, 205), mas só no seu seio se pode ter uma confrontação sobre a verdade,
pois só a partir daqui podem ter sentido as palavras daqueles que se confrontam com a verdade
das sentenças. Esse pré-saber pressuposto constitui uma práxis, que não se pode fundamentar: ele
é o pressuposto dos jogos de linguagem, que a filosofia apenas olha, não toca” (OLIVEIRA, M. A.
de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 142), (grifos nossos).
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Não obstante a concepção de linguagem do segundo Wittgenstein ter gerado
uma confusão entre aceitação e aceitabilidade, entre facticidade e validade, já que
este não visualizou a possibilidade de se ultrapassar os fechados jogos de linguagem,
grande foi seu mérito por ter trabalhado com a dimensão pragmática desta. Assim,
os significados das expressões passam a estar relacionados com os contextos nos
quais elas são utilizadas, ou seja, não se pode mais pensar em uma linguagem acima
das contingências cotidianas, pois as regras de uso desta, que conferem o sentido
das proposições, são derivadas das formas de vida nas quais surgem.
Essa dimensão pragmática da linguagem também aparece em Gadamer.
Ao contrário de Heidegger, que entendia os sentidos compartilhados como uma
abertura de mundo, já que os preconceitos anteriores à linguagem são vistos como
condição de possibilidade de qualquer experiência, tendo então lidado somente
com a dimensão semântica da linguagem, Gadamer partiu de uma perspectiva
diferente ao trabalhar com esse a priori da compreensão, uma vez entendia esta
como o entendimento entre autor e intérprete, ou seja, como entendimento entre
um eu e um tu, e essa dimensão de sentidos compartilhados propiciaria a imediata
compreensão mútua ou seria problematizada quando do surgimento do estranhamento, quando do surgimento de mal-entendidos16.
62
A relevância do uso da linguagem no pensamento de Gadamer faz-se notar
quando ele compara o saber hermenêutico com o saber ético, tal como Aristóteles
o entende, com o intuito de refutar a tradicional posição secundária que se atribui
ao momento da aplicação nos estudos hermenêuticos. Assim como o saber ético
não é um saber à disposição do homem, um saber que ele aprende e que só resta
aplicá-lo posteriormente a uma situação concreta, devendo o indivíduo sempre
refletir em determinado caso para saber dentre os esquemas teóricos gerais, dados
anteriormente, qual o comportamento adequado naquele caso específico, a definição de sentido de um texto também não é dada de antemão, sendo a aplicação
um momento importante para a doação de significados ao que se pretende interpretar, por isso se diz que a interpretação e a aplicação de um texto são atividades
construtivas, já que o significado deste sempre supera seu autor.
Segundo Gadamer, não se pode deduzir dessa produtividade do processo de
compreensão que o intérprete compreenderá melhor o texto na medida em que
16
“O que estou descrevendo é o modo da experiência humana no mundo em geral. Chamo-a de
experiência hermenêutica, uma vez que o processo assim descrito repete-se constantemente no
que nos é familiar. É sempre um mundo já interpretado, um mundo já ordenado em suas relações, no qual a experiência entra como um elemento novo, que destrona o que guiava nossas
expectativas, colocando uma nova ordem ao que é destronado. O primeiro elemento não é o
mal-entendido e nem a estranheza, de modo que a tarefa primordial e inequívoca seria evitar o
mal-entendido. Ao contrário, o assentamento no que é familiar e no acordo possibilita o trânsito
para o estranho, a assunção do que vem deste, e com isso a ampliação e enriquecimento de nossa
própria experiência de mundo” (GADAMER, H. G. Verdade e método II: complementos e índice.
Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 268).
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conseguirá ver algo que restou estranho ao autor, como se ao intérprete fosse
atribuída uma superioridade de compreensão ao conseguir ver o que o próprio
autor não viu, ou seja, ver a perspectiva inconsciente, refletida na obra, daquele
que a produziu. Tal era o entendimento sobre o processo de compreensão de
Schleiermacher, que ao lado da genialidade do autor pressupunha a co-genialidade
do intérprete17. Para Gadamer, o gênio não seria tão genial assim, pois sua obra
reflete todo um contexto de sentidos no qual está inserido, e a compreensão seria
nada mais do que a mediação entre tradições diferentes. O que conferiria ao texto
um significado diverso do intencionado pelo autor seria o fato de que aquele que
compreende está inserido em uma situação hermenêutica da qual, por mais que
tente, nunca conseguirá escapar.
Compreender não é compreender melhor, nem de saber mais, no sentido
objetivo, em virtude de conceitos mais claros, nem no da superioridade
básica que o consciente possui com respeito ao inconsciente da produção.
Bastaria dizer que, quando se logra compreender, compreende-se de um
modo diferente18.
Compreende-se de um modo diferente porque se parte do pressuposto de
que todo conhecimento é mediado lingüisticamente, ou seja, de que todo saber
pressupõe um saber prévio que as pessoas adquirem por viver em determinada
comunidade e que se modifica com o passar dos tempos. A consciência histórica
da qual fala Gadamer significa justamente a constatação de que não somente
os fatos históricos, mas o próprio conhecimento destes é datado e, portanto,
contingente.
63
É necessário ressaltar que Gadamer realiza uma radicalização da virada lingüística na medida em que descobre a dimensão pragmática, ou seja, na medida
em que não somente descobre que o entendimento se dá a partir de um horizonte
de sentidos compartilhados, mas também a partir de uma tomada de posição do
intérprete com relação a seu passado, isto é, com relação à tradição que um texto
antigo traz implicitamente consigo. A fusão de horizontes seria precisamente esse
encontro entre tradições diferentes, podendo um intérprete atual ampliar seu
horizonte de sentidos na medida em que leva a sério o outro com o qual se depara, seja este outro o seu próprio passado ou até mesmo uma cultura separada
geograficamente da sua.
17
18
“O que essa fórmula quer dizer em Schleiermacher, é claro. Para ele, o ato da compreensão é a
realização re-construtiva de uma produção. Tem que nos tornar conscientes de algumas coisas
que ao produtor original podem ter ficado inconscientes. O que Schleiermacher introduz, aqui,
em sua hermenêutica geral, é evidentemente a estética do gênio. O modo de criar do artista genial
é o modelo, a que se reporta a teoria da produção inconsciente e da consciência necessária na
reprodução” (GADAMER, H. G. Verdade e método, p. 299).
GADAMER, H. G. Verdade e método, p. 444.
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Habermas critica a concepção gadameriana de compreensão por entender que
ela realiza uma “reabilitação da tradição”. Ao conferir uma certa preponderância
à tradição sobre o presente, como se esta sempre apresentasse um saber superior
ao do intérprete, sem se atentar para o fato de que o consenso pressuposto pode
ser um acordo fruto de violência e, portanto, um acordo não legítimo, Gadamer
teria adotado uma posição unilateral no diálogo do passado com o presente, desestimulando assim qualquer reflexão crítica sobre as práticas consolidadas.
(...) Gadamer dá ao conceito exegético da compreensão um rumo (Wendung) estranhamente unilateral. Se na atitude performativa de virtuais
participantes do diálogo nós partimos de que o proferimento (Äusserung)
de um autor tem a seu favor a presunção da racionalidade, nós não apenas
concedemos a possibilidade de que o interpretandum seja um modelo para
nós, e que nós possamos aprender dele; antes nós contamos também com
a possibilidade de que o autor poderia aprender de nós19.
64
Na verdade, qualquer crítica pressupõe a existência de critérios que servirão
como parâmetros para o julgamento, e o que Gadamer realiza ao descobrir a dimensão hermenêutica é desautorizar qualquer visão privilegiada sobre as coisas,
visão esta que justificaria a própria crítica. Habermas, por sua vez, na fase inicial
de seu pensamento, trabalhou com o conceito de hermenêutica profunda que consistia na possibilidade de distinção entre um consenso verdadeiro e um consenso
falso, baseando-se nos desenvolvimentos teóricos da psicanálise e da crítica da
ideologia. Essas duas áreas do saber já tinham conhecimento da existência do falso entendimento, isto é, da comunicação distorcida e buscavam conhecimentos
teóricos para a “cura” de tais patologias individuais ou sociais20.
Ocorre que a crítica de Gadamer à transposição à sociedade do quadro conceitual da psicanálise freudiana, realizada por Habermas, é totalmente pertinente,
pois não podemos aceitar que a recusa ao diálogo no âmbito social seja visto como
uma doença, como uma neurose, mas sim como a possibilidade da discordância
Y a la inversa, la recusación del diálogo o la interrupción del mismo con
la frase ‘contigo no se puede hablar’ significa una situación en la que el
entendimiento comunicativo está tan deteriorado que nada cabe esperar
del intento de comunicación. Es un género de trastorno que no habrá que
19
20
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Porto Alegre:
L&PM, 1987. p. 92-93.
“A visão (Einsicht) da estrutura preconceitual da compreensão do sentido não pode responder
pela identificação do consenso faticamente produzido com o consenso verdadeiro. Esta (identificação) antes conduz à ontologização da linguagem e a hipostaziar o contexto da tradição. Uma
hermenêutica criticamente esclarecida sobre si mesma, que diferencia entre visão e cegamento,
assume em si o saber metahermenêutico sobre as condições de possibilidade da comunicação sistematicamente distorcida” (HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica, p. 63), (grifos nossos).
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llamar neurótico. Muy al contrario, es la experiencia cotidiana de la obstinación o de la ceguera emocional, que a menudo se da por ambas partes y
se reprochan unos a otros. No significa, pues, un trastorno de la competencia comunicativa, sino unas diferencias de opinión insalvables21.
Por outro lado, Gadamer questiona a autoridade do psicanalista para determinar o que seja uma comunicação não distorcida em sociedade. No âmbito da
crítica da ideologia, tal questionamento é semelhante à pergunta pelo fundamento
da crítica, ou seja, porque o crítico da ideologia vê melhor do que os outros? Gadamer responderia tal indagação afirmando que a auto-atribuição de uma melhor
compreensão somente demonstra a cegueira do intérprete, pois para a hermenêutica filosófica ninguém pode arrogar para si a posse exclusiva da verdade. De fato,
a hermenêutica trabalha com a explicitação de um horizonte de sentidos que é
anterior a qualquer compreensão, não oferecendo qualquer critério de verdade
que vá além da contingencialidade do mundo.
Habermas, por sua vez, entende que não é possível qualquer crítica e conseqüente processo de aprendizagem em sociedade se não são pressupostas certas
condições ideais de comunicação ilimitada e livre de dominação, tendo se utilizado para tanto, logo no início de seus trabalhos, do pensamento de Apel, já que
tal filósofo concebeu um princípio regulativo do entendimento não distorcido,
princípio este que é antecipado e está vinculado a uma forma de vida ideal.
65
Só a antecipação formal do diálogo idealizado como forma de vida a ser
realizada no futuro garante o último acordo fundamental contrafático
que nos une previamente, e no qual cada acordo fático, quando for falso,
poderá ser criticado como falsa consciência22. (Grifos nossos.)
Essa identificação das condições ideais da fala com uma determinada forma
de vida também foi duramente criticada por Gadamer23, tendo este caracterizado
Habermas como dogmático e idealista, justamente por utilizar esse conceito de
comunidade ideal de fala desenvolvido por Apel.
A mí me resulta familiar por la metafísica este criterio de verdad que deriva
de la idea de bien la idea de verdad, y del concepto de inteligencia “pura”
21
22
23
GADAMER, H. G. Verdade e método II, p. 258. Tradução: “E, inversamente, a recusa ou a interrupção do diálogo do mesmo com a frase ‘não dá para falar com você’, corresponde a uma
situação em que o entendimento comunicativo está tão deteriorado que nada se pode esperar da
tentativa de comunicação. É uma espécie de desordem que não se poderá chamar de neurótica.
Pelo contrário, é a experiência diária de teimosia ou cegueira emocional, que advém muitas vezes
de ambas as partes e criticam uns aos outros. Não significa, pois, uma desordem da competência
comunicativa, mas algumas diferenças de opinião insuperáveis”.
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica, p. 65.
GADAMER, H. G. Verdade e método II: complementos e índice, 2002.
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el ser. El concepto de inteligencia pura procede de la doctrina medieval y
aparece plasmado en el ángel, que goza del privilegio de ver a Dios en su
esencia. Me parece difícil eximir aquí a Habermas de una autocompreensión
ontológica errónea, como también me lo pareció en el caso de la superación
de la naturaleza en la racionalid por parte de Apel24. (Grifos nossos.)
Desenvolveremos no próximo ponto de nosso trabalho a hermenêutica transcendental de Apel25, procurando esclarecer como este distingue a dimensão da
validade da dimensão hermenêutica dos sentidos e também mostrar as diferenças
de seu enfoque reconstrutivo em relação ao adotado por Habermas. Posteriormente, ao trabalharmos a pragmática universal, apresentaremos as alterações que
Habermas realizou um seu pensamento original, na medida em que levou a sério
as críticas que lhe foram endereçadas por Gadamer26.
3.
66
A HERMENÊUTICA TRANSCENDENTAL DE APEL
Como vimos anteriormente, a descoberta da dimensão hermenêutica, ou seja,
de que toda racionalidade está inserida historicamente, sendo, portanto, limitada
como um reflexo da finitude humana, acabou fazendo com que autores do porte
de Heidegger e Gadamer acabassem restringindo o poder emancipatório da razão,
na medida em que entendiam que o condicionamento histórico e social desta significava uma impossibilidade de transcendência dos diversos jogos de linguagem,
das diversas formas cotidianas de vida. Como ressaltado antes, apesar de Gadamer
ter afirmado a possibilidade de fusão de horizontes, adotando em princípio uma
perspectiva mais universalista, a idéia de que a tradição sempre representa um
melhor saber fez com que a possibilidade de dizer não fosse desprestigiada em
favor da autoridade dos preconceitos herdados de nossos antepassados.
Por outro lado, a hermenêutica filosófica entende que o sentido de um texto
sempre ultrapassa a intenção de seu autor, na medida em que, como seres hermenêuticos, nunca podemos livrar-nos de nós mesmos quando tentamos compreender
a tradição que um texto incorpora. Gadamer defende assim que não existe um
ponto privilegiado de observação na sociedade, de modo que toda compreensão,
por ser construtiva, é sempre nova, mas nunca podemos afirmar ser uma melhor
compreensão.
24
25
26
GADAMER, H. G. Verdade e método II, p. 257. Tradução: “A mim parece familiar pela metafísica
esse critério de verdade que deriva da idéia de bem a idéia de verdade, e do conceito de inteligência ‘pura’ o ser. O conceito de inteligência pura tem origem na doutrina e medieval encontra-se
plasmado no anjo, que goza do privilégio de ver Deus, na sua essência. Parece-me difícil isentar
aqui Habermas de uma autocompreensão ontológica equivocada, assim como no caso de superação da natureza na racionalidade a partir de Apel”.
APEL, K.-O. Estudos de moral moderna, 1994.
GADAMER, H. G. Verdade e método II, 2002.
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
En cambio, Apel insiste en que la hermenéutica en cuanto disciplina
científica debe preservar la finalidad y el criterio del “mejor comprender”.
No se puede poner de manifiesto las condiciones de un entender posible
sin plantear al mismo tiempo “la cuestión metodológicamente relevante
de la validez del compreender”27.
A dimensão da validez, para Apel, não pode ser derivada da dimensão hermenêutica, já que ela é a condição de possibilidade de constituição de sentido
do mundo, dessa forma, a própria abertura de mundo por meio da linguagem
pressuporia condições ideais de validade que, segundo Apel, fariam parte do jogo
de linguagem transcendental da filosofia, permanecendo esta como uma visão
soberana da sociedade na medida em que explicitaria as condições de possibilidade
de toda experiência possível, que são por nós sempre pressupostas28.
Habermas afirma que
El fuerte apriorismo de la filosofia kantiana cede aquí el sitio a una versión
más débil. Una investigación transcendental ha de ocuparse en adelante
de la competencia de sujetos cognoscentes que juzgan qué experiencias
pueden ser llamadas experiencias “coherentes”, para analizar después
ese material en lo tocante a los presupuestos categoriales universales y
necesarios que contiene. Toda reconstrucción de un sistema de conceptos
básicos o sistema categorial de la experiencia posible ha de considerarse
una propuesta hipotética que puede ser sometida a comprobación mediante nuevas experiencias. Lhamamos “transcendental” a la estructura
conceptual que se repite en todas las experiencias coherentes, mientras
no quede refutada la afirmación de su necesidad y universalidad. En esta
versión más débil se abandona la pretensión de que de esa necesidad y
universalidad pueda darse una prueba a priori 29.
27
28
29
67
HABERMAS, Jürgen. Verdad y justificación, p. 89. Tradução: “Em vez disso, Apel insiste em que
a hermenêutica como disciplina científica deve preservar a finalidade e os critérios de ‘compreender melhor’. Não se pode dar a conhecer os termos de um entendimento possível, sem definir, ao
mesmo tempo, ‘a questão metodologicamente relevante para a validade de compreender’.”
“E isso ocorre no “discurso teorético” da filosofia engajada praticamente: este discurso, de acordo com a sua pretensão crítica, apresenta a tentativa permanente de antecipar o ponto de vista da
ilimitada comunidade ideal de comunicação na comunidade dos argumentantes, fazendo-o valer
contra as idiossincrasias do presente” (APEL, K.-O. Estudos de moral moderna, p. 31).
HABERMAS, Jürgen. ¿Qué significa pragmática universal? In: Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudos prévios. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Cátedra,
1994. p. 321. Tradução: “O forte apriorismo da filosofia kantiana dá lugar aqui a uma versão
mais fraca. Uma investigação transcendental deve ocupar-se antes da competência dos sujeitos
cognoscentes de experiências que julgam quais experiências devem ser consideradas experiências ‘coerentes’, para analisar depois esse material, no que se refere aos pressupostos categoriais
universais e necessários nele contidos. Toda reconstrução de um sistema de conceitos básicos
ou sistema categorial de experiência possível deve ser considerada uma proposta hipotética que
possa ser submetida à comprovação por meio de novas experiências. Chamamos ‘transcendental’ a estrutura conceitual que se repete em todas as experiências coerentes, enquanto não seja
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Dessa forma, seguindo o pensamento transcendental kantiano, mesmo que
de uma perspectiva fraca, Apel atribui uma posição privilegiada à filosofia, no
sentido de uma filosofia primeira, como aquela que se autofundamenta a partir
do princípio da contradição performativa, diferenciado-a das ciências empíricas,
por entender ter a filosofia o papel de esclarecer os pressupostos necessários de
qualquer argumentação. Os princípios de toda teoria e de toda ação que a filosofia
explicita configuram um paradoxo, pois não são passíveis de ser demonstrados,
mas, ao mesmo tempo, é impossível pensar em qualquer experiência abdicando-se
deles. Nesse sentido é que Apel entende ser a filosofia imprescindível, mesmo não
havendo como provar a veracidade de suas premissas. Cabe lembrar, entretanto,
que o pensamento de Apel encontra-se dentro da perspectiva da virada lingüístico-hermenêutica, não podendo ser sua perspectiva transcendental compreendida
sem se atentar para o fato de que, no lugar da consciência como atribuidora de
sentido do mundo, aparece agora a linguagem, tratando-se assim de um novo
paradigma transcendental, não mais baseado no ser ou no sujeito cognoscente, mas
sim na intersubjetividade.
Então, no lugar da consciência enquanto tal, metafisicamente postulada
por Kant como garante da validade intersubjetiva do conhecimento, põe-se
o princípio regulativo da formação crítica do consenso numa comunidade comunicativa ideal, que ainda deve ser realizado na comunidade
comunicativa real30.
68
A questão levantada por Apel é que, quando argumentamos, sempre pressupomos certas regras ideais que correspondem a uma forma de vida também ideal,
ou seja, sempre pressupomos esse jogo de linguagem transcendental representado
pela filosofia, e essas regras funcionariam como princípios regulativos para a busca
comunicativa de uma verdade discursivamente construída.
Esse autor, para desenvolver sua idéia de um consenso verdadeiro que corresponderia a uma vida correta, utiliza-se do conceito de “comunidade irrestrita de
comunicação” de Peirce, segundo o qual os investigadores de uma ciência justificam
suas afirmações perante seus ouvintes com o intuito de alcançar o entendimento,
sendo tais investigadores abertos à contra-argumentação daqueles outros participantes do discurso e cientes da possibilidade de revisão do acordo alcançado. O
que a “comunidade irrestrita de comunicação” significa é uma situação ideal de
fala correspondente a determinada forma de vida que deve ser sempre buscada
quando da argumentação. Na verdade, esse jogo de linguagem transcendental é
30
refutada a afirmação de sua necessidade e universalidade. Nesta versão mais fraca, abandona-se
a pretensão de que essa universalidade e de necessidade possam ser a priori uma prova”.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea,
p. 78.
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
pressuposto em qualquer argumentação, mas, no entanto, ele não é plenamente
realizado na sociedade, devendo ser sempre almejado. Trata-se aqui, nos termos
do próprio Apel31, de uma mediação dialética entre o transcendental e o real.
A mediação dialética consiste, a meu ver, no fato de o inevitável pressuposto normativo e ideal do jogo de linguagem transcendental de uma
ilimitada comunidade de comunicação ser, de um lado, postulado por
qualquer argumento e mesmo por qualquer palavra humana (a rigor, até
por qualquer ação que, como tal, dever ser compreensível); de outro lado,
porém, ainda estar sempre por se realizar na sociedade historicamente
preexistente. (Grifos nossos.)
Dessa forma, apesar de Apel adotar um enfoque reconstrutivo, na medida
em que delega à filosofia a tarefa de explicitar um saber intuitivo que possuímos
quando da argumentação, isto é, de tematizar as regras que sempre pressupomos
quando queremos nos comunicar com um outro, ele ainda permanece atrelado a
uma concepção metafísica, não dando conta de explicar como se dá a mediação
entre o incondicional abstrato e a realidade, podendo assim ser vítima da mesma
crítica que Hegel fez a Kant, qual seja, a não-explicitação da maneira como podem
ser aplicados princípios universais a situações concretas.
Como já ressaltamos, na tentativa de separar a dimensão da constituição de
sentido da dimensão da fundamentação última do pensar e do agir, Apel conferiu à filosofia uma preponderância sobre as demais ciências, aproximando-a das
teorias do conhecimento desenvolvidas pela filosofia da consciência, ao atribuir
a esta o papel de determinação do incondicional, do transcendente de contexto,
realizando assim uma separação nítida entre teoria e práxis.
69
Para Habermas, como veremos a seguir, o transcendente é intramundano,
ou seja, as condições ideais da argumentação são encontradas no mundo, sendo
a filosofia nada mais do que uma ciência como as demais, não possuindo assim
um papel preponderante de indicador de lugar das ciências empíricas, no sentido
de ser um saber anterior a qualquer conhecimento, saber este que delimitaria os
limites do objetificável, nem mesmo de um juiz supremo da cultura como um
todo, ou seja, não demarcaria mais a filosofia os limites do direito, da moral, da
arte etc.32. A filosofia, como reflexão sobre o necessário, sobre o incondicional,
estaria voltada para a tematização das condições ideais, já presentes em nossas
práticas argumentativas, que tornam possível a compreensão, que tornam possível
o entendimento em sociedade. Nesses termos, ao contrário de Apel, Habermas
31
32
APEL, K.-O. Estudos de moral moderna, p. 21.
Para um aprofundamento sobre o papel da filosofia após a crítica da metafísica, cf. HABERMAS,
A filosofia como guardador de lugar e como intérprete. In: Consciência moral e agir comunicativo.
Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
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encontra o momento transcendental dentro da própria vida cotidiana, ou seja,
o momento de universalização está presente na contingencialidade das formas
concretas de vida.
Segundo Apel, a proposta habermasiana é marcada por uma ambigüidade de fundo, que ele assim articula: de um lado, Habermas encontrou
no princípio de discussão (isto é, no teorema das quatro pretensões de
validade necessárias à discussão e na necessidade de antecipar contrafaticamente a satisfação consensual possível, por princípio, numa discussão
argumentativa) o ponto arquimédico (embora ele se recuse a falar assim)
de uma fundamentação última da filosofia fora seja de um horizonte
ontológico seja de uma filosofia da subjetividade, mas precisamente no
plano pragmático-transcendental. Mas ele não faz dessa descoberta uma
utilização apropriada, pois tenta explicar a partir das fontes de comunicação do mundo vivido não só a “constituição” do sentido, mas também
a “justificação” de sua validade33.
70
Não obstante Apel insistir que Habermas adotaria as regras intuitivas sem
admitir a perspectiva de uma filosofia como um saber superior aos demais saberes em sociedade, justamente por tratar das condições de validade de qualquer
conhecimento, a consideração, realizada por Habermas34, da filosofia como uma
ciência falível como as ciências empíricas revela-nos que o incondicional e o saber
sobre este são momentos diferentes, ou seja, a filosofia, como uma reconstrução
teórica sobre o a priori não é um saber imune a erros. As regras intuitivas podem
ser necessárias e universais, mas o conhecimento sobre estas não35. Por outro lado,
tornar-se-á claro no prosseguimento de nosso trabalho que a teoria habermasiana sobre as condições ideais da argumentação distanciou-se da hermenêutica
transcendental de Apel, não somente quanto à posição da filosofia com relação
aos demais saberes, mas também no que se refere à identificação da situação ideal
de fala com uma forma de vida concreta, passando Habermas a caracterizá-la a
partir de uma perspectiva formal.
33
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para além da fragmentação, p. 289.
34
HABERMAS, J. A filosofia como guardador de lugar e como intérprete. In: Consciência moral e
agir comunicativo, 1989.
35
“A reflexão transcendental, nela mesma, é uma reconstrução hipotética das “intuições” imanentes à prática histórica humana e, enquanto tal, como qualquer saber humano, sujeita a correções.
A certeza do saber intuitivo, que cada participante de uma práxis argumentativa tem sobre os
pressupostos de sua ação não se transfere, sem mais, à reflexão, que procura, a nível do saber
proposicional, detectar as condições de possibilidade da práxis argumentativa. Sendo de carácter
hipotético e não absoluto, a reflexão transcendental não está isenta de uma revisão posterior”
(OLIVEIRA, M. A. de. Ética e ciência. Síntese, Belo Horizonte, n. 36, 1986, p. 19).
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
4.
A PRAGMÁTICA UNIVERSAL
Tal como Chomsky realiza uma reconstrução das regras implícitas dos
falantes, regras estas gerativas da linguagem e que configuram a competência lingüística destes, Habermas também adota uma perspectiva reconstrutiva, só que
não a restringe à dimensão semântica e sintática da linguagem, pois entende que
o uso da linguagem também está sujeito a regras que podem ser explicitadas em
esquemas, conceitos e teorias. Nesse sentido, a pragmática universal preocupa-se
com a linguagem não somente como “estrutura”, mas também como “processo”;
poderíamos dizer que, ao invés de uma competência lingüística, o que a pragmática
formal realiza é uma reconstrução da competência comunicativa36.
Dessa maneira, a pragmática universal habermasiana pode também ser denominada de pragmática formal, seguindo a linha da semântica formal de Frege,
só que, como dissemos antes, a reconstrução aqui, ou seja, a transformação de
um know how em um know that37, diz respeito aos proferimentos lingüísticos, e
não somente às proposições, isto é, não somente às condições de verdade ou não
dos enunciados.
Voy a sostener la tesis de que no sólo el lenguaje sino también el habla,
es decir, el empleo de oraciones en emisiones, es accesible a un análisis
formal. Al igual que las unidades elementales del lenguaje (oraciones),
también las unidades elementales del habla (emisiones) pueden analizarse
en la actitud metodológica de una ciencia reconstructiva38.
71
Assim, o que Habermas se propõe ao analisar a competência comunicativa dos
falantes é tornar explícito um saber intuitivo de regras que todos nós possuímos e
que possibilita nossa compreensão do mundo. A questão colocada em evidência
com a virada pragmática da linguagem é que nosso conhecimento dos objetos no
mundo na verdade se trata de um saber consensual, de uma verdade construída na
36
37
38
Para um aprofundamento sobre o tema, cf. OLIVEIRA, M. A. de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 294-300. É necessário lembrar aqui que todo o desenvolvimento da pragmática universal de Habermas, que será trabalhada no texto, tem como pressuposto
a teoria dos atos de fala de Austin e Searle. Sobre o tema, cf. CALVET DE MAGALHÃES, T.
Filosofia analítica, 1997.
“Podemos (seguiendo una distinción de Ryle) distinguir entre el know how o la capacidad de
un sujeto competente que sabe producir una cosa o efectuar una determinada operación, por
un lado, y el know that, por outro, es decir, el saber explícito acerca de cómo hace el sujeto para
entender de esa cosa, esto es, acerca de en qué consiste el saber o entender de esa cosa” (HABERMAS, Jürgen. ¿Qué significa pragmática universal?, p. 311), (grifos nossos).
HABERMAS, Jürgen. ¿Qué significa pragmática universal?, p. 304. Tradução: “Vou sustentar a tese
de que não só língua, mas também fala, ou seja, o emprego de orações nas emissões, é acessível a
uma análise formal. Tal como as unidades básicas da língua (orações), também as unidades elementares (emissões) podem ser analisadas a partir de uma atitude metodológica de uma ciência
reconstrutiva”.
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intersubjetividade39. Não tem mais sentido, portanto, pensarmos a verdade como a
correspondência entre proposição e realidade, na linha da concepção ontológica de
verdade. Para a pragmática universal, uma afirmação sobre um objeto é verdadeira
quando a pretensão de validade levantada pelo falante é aceita pelo ouvinte, ou
seja, a ênfase volta-se para o como se diz, e não somente para o que é dito40.
Vimos anteriormente que já em Gadamer aparece uma conexão entre significado
e validade, na medida em que este vai além da dimensão da abertura de mundo que
a linguagem em Heidegger apresenta, ao afirmar que a compreensão depende da
tomada de postura do intérprete com relação a um outro, seja este outro sua própria
tradição, seja este outro uma cultura contemporânea mas diversa da sua. Constatamos, também, que Gadamer realiza uma reabilitação da tradição, na medida em
que a qualifica como superior em relação ao presente, limitando assim o processo
de aprendizagem daqueles que participam da comunicação, já que a tradição possui
mais a ensinar do que a aprender com seus intérpretes. Habermas, por sua vez, ao
afirmar que na comunicação são levantadas pretensões de validade, afirma que aos
ouvintes é aberta a possibilidade de dizer “sim” ou “não”, podendo estes refutar a
própria tradição por entenderem não mais haver motivos racionais para mantê-la.
Las estructuras de la imagem del mundo que hacen posible la práctica
intramundana mediante una compreensión previa del mundo, no sólo se
renuevan en virtud de tal creación poiética de significado; antes reaccionann a
su vez a los procesos de aprendizaje posibilitados por ella, cuyos resultados se
reflejan también en el cambio de las estructuras de la imagen del mundo41.
72
39
40
41
Cabe dizer que apesar da verdade proposicional ser construída no discurso, não há que se abdicar
de um mundo objetivo a partir de onde é possível localizar os referentes. “O referente mundano
de uma linguagem proposicionalmente diferenciada, que satisfaz funções de representação, obriga os sujeitos capazes de linguagem e ação a uma projeção de um sistema comum de objetos de
referência existentes independentemente, sobre os quais constroem opiniões e os quais podem
influenciar intencionalmente. A suposição pragmático-formal do mundo projeta guardadores de
lugar para os objetos em relação aos quais os sujeitos falantes e agentes podem tomar referentes”
(HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destrancendentalizada. Tradução de Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002b. p. 55).
“Como alternativa à teoria ontológica da verdade (teoria da correspondência), Habermas apresenta a “teoria consensual da verdade”. De acordo com ela, só posso atribuir um predicado a
um objeto quando qualquer outro, que pudesse dialogar comigo, também o pudesse aplicar.
Portanto, para distinguir sentenças verdadeiras e falsas é necessária a referência ao “julgamento
de outros”, a saber, ao julgamento de todos os outros com os quais eu poderia dialogar. A condição de verdade das sentenças é o acordo potencial de todos os outros” (OLIVEIRA, M. A. de.
Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 310).
HABERMAS, Jürgen. Pensamiento postmetafisico. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madrid:
Taurus Humanidades, 1990. p. 106. Tradução: “As estruturas da imagem do mundo que tornam
possível a prática intramundana por meio de uma compreensão prévia do mundo, não só se renovam em virtude de tal criação poiética de significado; reagem antes, por sua vez, aos processos de
aprendizagem possibilitados por ela, cujos resultados refletem também na mudança das estruturas
da imagem do mundo”.
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Dessa forma, o horizonte de sentidos compartilhados, os preconceitos tal como
fala Gadamer, não somente possibilita o entendimento em sociedade, como também
pode ser alterado no processo de comunicação social. Antes de adentrarmos no
conceito de discurso que está relacionado com essa mudança do saber pré-reflexivo, cabe lembrar que a conexão entre significado e validade em Habermas não se
restringe à função designativa da linguagem, ou seja, à dimensão do conhecimento
dos objetos do mundo, mas também está presente nas funções de expressão e de
coordenação das ações que a linguagem também possui. Nesse sentido, o falante
levanta pretensões de validade não somente em relação à verdade das proposições,
mas também no que concerne à veracidade e à correção normativa.
Quando a sua atitude visa o entendimento, o locutor exige para todo proferimento compreensível, não apenas a verdade do enunciado proferido,
mas também a conformidade da significação das palavras que ele exprime
com a da intenção que ele manifesta e a correção do ato de linguagem
relativamente a um contexto normativo existente. Se um ouvinte rejeita
uma oferta compreensível de ato de linguagem, ele contesta a validade
do proferimento sob pelo menos um desses três aspectos (da verdade,
da veracidade e da correção). O ouvinte faz saber, com o seu “não”, que
o proferimento não preenche pelo menos uma de suas funções, e isto
porque ele não se ajusta, seja ao mundo objetivo (o mundo dos estados
de coisas existentes), seja ao mundo subjetivo (o mundo próprio das
experiências subjetivas), seja ainda ao mundo social (o nosso mundo de
relações interpessoais legitimamente estabelecidas)42.
73
Essas pretensões de validade levantadas pelo falante baseiam-se em condições
ideais de fala que os próprios agentes da comunicação pressupõem ao realizar seus
proferimentos. Habermas parte, assim, de uma “situação ideal de fala” que, ao
contrário de Apel, não estaria vinculada a uma determinada forma de vida boa,
mas sim possuiria uma natureza estritamente formal, apresentando as condições
de universalização que devem ser satisfeitas nos processos comunicativos para que
o consenso alcançado seja “verdadeiro”. De fato, trata-se de condições para que
haja realmente um entendimento, uma compreensão entre falante e ouvinte.
A pragmática formal realiza uma reconstrução dessas regras possibilitadoras do entendimento que já estão presentes no mundo e que, portanto, não são
transcendentais no sentido do pensamento hermenêutico e pragmático de Apel,
e a filosofia, por trabalhar com a explicitação dessas incondicionalidades mundanas, não precisa ser uma ciência superior às demais, sendo um saber falível como
qualquer outro.
42
CALVET DE MAGALHÃES, Theresa. Filosofia analítica: de Wittgenstein à redescoberta da mente, p. 159.
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La filosofía que quiera mantener un pie dentro del sistema de la ciencia y
no sustraerse de este modo a la conciencia falibilista de las ciencias, debe
renunciar al papel de clave de todo y, de forma menos trágica, procurar
orientación al mundo de la vida. De esta forma la filosofía consigue una
autocomprensión más modesta y más realista, pues se sitúa a sí misma en
el conjunto de los diferenciados órdenes del mundo moderno43.
É importante lembrarmos aqui que a ausência da explicitação teórica desses
parâmetros para o alcance de uma comunicação não distorcida, como vimos
anteriormente, é justamente o que se critica na hermenêutica de Heidegger e de
Gadamer. Ao colocarem a estrutura antecipada de preconceitos como condição
de possibilidade da compreensão, esses pensadores não nos apresentam critérios
para que possamos julgar se tais sentidos sedimentados são verdadeiros ou falsos,
isto é, se esses significados devem ser mantidos ou refutados. Na verdade, como já
ressaltamos, Gadamer, mesmo que contraditoriamente com relação ao conceito
de fusão de horizontes por ele próprio elaborado, acaba considerando sempre a
tradição como um saber melhor do que o realizado pelo intérprete.
De fato, ser-no-mundo não significa estar efetivamente em contato
com todas as coisas que constituem o mundo, mas sim estar já sempre
familiarizado com uma totalidade de significados, com um contexto
referencial44. (Grifos nossos.)
74
O que se coloca com a pragmática universal é que significados estabilizados,
apesar de realmente serem essenciais para a comunicação em sociedade, sendo o
mundo da vida45 complementar ao agir voltado para o entendimento, justamente
43
44
45
HABERMAS, Jürgen. Verdad y justificación: ensayos filosóficos, p. 313. Tradução: “A filosofia que
pretende manter um pé dentro do sistema da ciência e, desse modo, não escapar à consciência falibilista das ciências, deve renunciar ao papel de chave de tudo e, de forma menos trágica, procurar
orientação no mundo da vida. Essa filosofia chega a uma autocompreensão mais modesta e mais
realista, uma vez que se situa a si mesma no conjunto das diversas ordens do mundo moderno”.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. 112.
Mundo da vida é um conceito do qual Habermas se utiliza, tendo sido primeiramente elaborado
por Husserl, e significa um horizonte de sentidos não problematizados, um saber pré-reflexivo
que existe na sociedade, sendo complementar ao conceito de agir comunicativo na medida em
que absorve o risco do dissenso, pois às pretensões de validade levantadas sempre resta, como
uma das alternativas, a possibilidade de dizer não. Habermas caracteriza o mundo da vida como
paradoxal, pois ele é um saber sempre presente só que ausente, ou seja, ele está sempre presente
em nossas experiências de vida, mas passa desapercebido, já que quando se torna explícito, quando é tematizado, deixa de ser uma certeza direta e passa a ser um saber falível. Como elementos
do mundo da vida, Habermas elenca os padrões culturais (de onde provém as interpretações de
que se utilizam os participantes na comunicação ao entenderem-se entre si sobre algo no mundo), as ordens consideradas legítimas (que seria a sociedade em sentido estrito, a partir de onde os
integrantes da sociedade regulam sua pertinência a grupos sociais e asseguram a solidariedade)
e as estruturas de personalidade (de onde vêm as razões e competências que possibilitam aos
indivíduos falar e atuar e formar assim suas respectivas identidades). Cf. HABERMAS, Jürgen.
Pensamiento postmetafisico, p. 91-98).
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
por tornar plausível o acordo entre falante e ouvinte, na medida em que nem
tudo pode ser problematizado por meio do discurso46, tais significados não são
válidos simplesmente pelo fato de serem aceitos faticamente, por pertencerem à
nossa tradição. Habermas distingue, assim, a aceitação da aceitabilidade racional,
pois entende que somente é válido um acordo quando as pretensões de validade
apresentadas pelo falante são aceitas pelo ouvinte ou, em outros termos, quando
as justificativas que poderiam ser apresentadas pelo falante são passíveis de serem
aceitas racionalmente pelos demais participantes do processo argumentativo.
O conceito de ação estratégica, como veremos a seguir, revela-nos que Habermas, ao trabalhar com as condições que tornam possível um entendimento não
distorcido em sociedade, paralelamente constatou as formas de ação em que o que
se busca não é a compreensão, a formação de um acordo com o outro, mas sim a
utilização objetificante deste para a consecução de objetivos particulares. Segundo
tal pensador, a ação comunicativa se diferencia da ação estratégica pela forma de
coordenação das ações dos indivíduos envolvidos; e a ação comunicativa possui a
capacidade de criar vínculos na medida em que está voltada para o entendimento,
ao passo que a ação estratégica está direcionada para fins outros que interessam
ao falante, fins estes que para serem alcançados dependem da contribuição do
outro, utilizando-se assim o falante do ouvinte como um meio para realizar os
próprios interesses.
A ação estratégica pode ser implícita, quando o agente leva o ouvinte a fazer
o que deseja por meio da confiança deste nas pretensões de validade levantadas
pelo falante, ou seja, o ouvinte confia no agente quanto à veracidade, quanto à sua
pretensão normativa e quanto à verdade do que diz, mas é desapontado quando
não são concretizadas tais pretensões, podendo também a ação estratégica ser
explícita, o que ocorre quando o agente não se utiliza de pretensões de validade
criticáveis, mas sim de recursos extralingüísticos para conseguir o que deseja de
seu parceiro na interação social, como quando se utiliza de uma arma de fogo para
convencer o outro. A ação comunicativa, ao contrário, somente é levada a cabo
pela força do melhor argumento, sendo que o acordo alcançado será tido como
racional até que não seja novamente problematizado.
75
Dessa forma, o mundo da vida, como um horizonte de sentidos naturalizados, possibilita o entendimento entre os indivíduos, mas no processo em que
isso ocorre ele próprio pode ser alterado, isto é, pode ser reformulado por novos
46
“Não podemos recusar o pano de fundo a partir do qual concebemos um objeto para nós. A tarefa da razão tem de ser pensada de modo sobremaneira diferente: como a articulação desse pano
de fundo, o “desvelamento” do que está envolvido nele. Isso pode abrir o caminho para que nos
desprendamos de parte do que o constituiu, ou para que a reformulamos, podendo na realidade
tornar essa alteração irresistível – mas somente por meio de uma confiança sem questionamentos nas outras partes dele” (TAYLOR, C. Argumentos filosóficos. Tradução de Adail Ubirajara
Sobral. São Paulo: Loyola, 2000. p. 25), (grifos nossos).
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acordos que são frutos do discurso, isto é, da problematização das pretensões de
validade levantadas por aqueles que pretendem entender-se uns com os outros
sobre algo no mundo. A tensão interna entre significado e validade revela-se,
então, como uma tensão sempre presente, uma tensão entre a facticidade dos
sentidos compartilhados e a validade destes, pois a todo momento permanece
aberta a possibilidade de discutir os acordos anteriores a fim de se chegar a novos
consensos justificáveis racionalmente.
Nesse sentido, como as condições ideais da fala argumentativa significam a
possibilidade de transcendência dos contextos, já que se baseando nelas são sempre levantadas pretensões universais de validade, que devem ser fundamentadas e
motivadas para que sejam aceitas por todos os envolvidos, Habermas fala em uma
“transcendência intramundana”, ou seja, não há necessidade de se recorrer a uma
visão exterior à sociedade para que seja possível a crítica, para que seja possível a
reflexão filosófica, pois o próprio mundo vivido apresenta o momento da unidade
em plena multiplicidade, da universalidade na contingencialidade, ou seja, apresenta
as condições a priori possibilitadoras da dimensão emancipatória da razão47.
5.
76
CONCLUSÃO
A virada lingüística, isto é, a constatação de que toda experiência de mundo
somente nos é acessível por meio da linguagem, no sentido do primeiro Wittgenstein e do próprio Heidegger, revelou-nos a implausibilidade de teorias como a da
filosofia da consciência, segundo a qual o indivíduo seria o responsável, isoladamente, pela constituição de sentido do mundo. O fato de que todo observador está
dentro da sociedade, de que é um participante, sendo justamente essa sua inserção
histórica e social que possibilita todo saber, ao mesmo tempo que o limita, pois
expressão da finitude humana, acabou fazendo com que pensadores do porte de
Heidegger e do segundo Wittgenstein acabassem restringindo a capacidade da
razão de transcender os contextos; ou seja, ao constatarem que a racionalidade é
necessariamente situada, tais filósofos negaram a potencialidade de crítica que a
razão, como evidenciado pelo Iluminismo, manifestamente apresenta.
O fato é que a retomada da dimensão da incondicionalidade, da universalidade, da unidade, em um mundo cheio de contingências e de particularidades, sem
que houvesse um retorno ao pensamento metafísico, somente foi possível com o
advento da virada pragmática, de certa forma iniciada pelo segundo Wittgenstein
e por Gadamer, passando pela hermenêutica transcendental de Apel, até chegar à
47
“Tal orientação deixaria entrever a dimensão propriamente libertária da linguagem, na qual os
sujeitos, embora pertencentes a um mundo que lhes dá um horizonte de significados já constituídos simbolicamente, usam sua capacidade de aprendizagem para construir um novo sentido
para o mundo” (ARAGÃO, L. Apresentação. In: Agir comunicativo e razão destrancendentalizada.
Tradução de Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 21).
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Da hermenêutica filosófica à pragmática universal
versão habermasiana de uma pragmática universal. Segundo a perspectiva reconstrutiva adotada por Habermas, não somente as dimensões semântica e sintática da
linguagem são passíveis de uma explicitação em termos teoréticos, o próprio uso da
linguagem está também sujeito a regras que podem ser conhecidas e esquematizadas
por uma análise conceitual. O que essa reconstrução realiza é a explicitação das
condições ideais da fala que já se encontram sempre presentes para aqueles que
participam da comunicação, ou seja, trata-se de tornar evidentes as idealizações
que realizamos ao entendermo-nos com alguém sobre algo no mundo.
Nesse sentido, pressupondo que a própria práxis cotidiana apresenta idealidades, é que Habermas fala de uma transcendência intramundana. Na medida em que
os falantes levantam pretensões de validade criticáveis, ou seja, na medida em que
defendem a universalidade de suas pretensões fundamentando-se em argumentos
racionais, que serão aceitos ou não pelos ouvintes, eles partem de um horizonte
de sentidos compartilhados, já evidenciado pela hermenêutica, tornando plausível
o acordo buscado, mas que também pode ser modificado pelo discurso, estando,
portanto, sempre latente a possibilidade de desencadeamento de um processo de
aprendizagem.
Para finalizar, poderíamos dizer que os significados estabilizados pela tradição,
explicitados pela hermenêutica filosófica, não fornecem, por si só, a validade dos
acordos facticamente encontrados. Ao contrário, desde o início de sua crítica a
Gadamer, Habermas vem tentando mostrar que o acordo alcançado na compreensão nem sempre é legítimo, ou seja, nem sempre é um consenso obtido sem violência, caracterizando-se muitas vezes como uma pseudocomunicação. O que a
pragmática formal evidencia é que existem pressupostos ideais na sociedade que
permitem aos falantes distinguir entre um consenso verdadeiro e um consenso
falso, estando sempre presente uma tensão entre o plexo de sentidos naturalizados
e a tematização deste por meio do discurso, isto é, existindo sempre uma tensão
entre a facticidade do mundo da vida que é complementar ao agir comunicativo e
as pretensões de validade levantadas pelos participantes no processo argumentativo.
“Assim, na disputa discursiva sobre a interpretação correta sobre o que nos ocorre
no mundo, devem ser ultrapassados separadamente os contextos dos mundos da
vida fluindo ‘de dentro’”48.
77
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ARAGÃO, L. Apresentação. In: Agir comunicativo e razão destrancendentalizada. Tradução
de Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 7-21.
48
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