Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 3), 2000 e cols. RelatoElias de Caso Miocardio não compactado isolado Miocárdio não Compactado Isolado Jorge Elias, Wilson Valadão, Ricardo Kuniyoshi, Aloir Queiroz, Carlos André Peixoto Vitória, ES Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 42 anos, com quadro de cansaço por esforços e de palpitação conseqüentes à existência de miocárdio não compactado isolado. Discutem-se os achados clínicos, familiares, a estratificação diagnóstica e as implicações prognósticas e terapêuticas desta rara desordem da morfogênese endomiocárdica. Durante a fase inicial do desenvolvimento embrionário, o coração consiste em uma trama trabecular com miocárdio tipo esponjoso. Os espaços intertrabeculares comunicam-se com as câmaras do coração. À medida que o coração se desenvolve, o miocárdio se condensa e os recessos intertrabeculares são reduzidos a capilares. A compactação trabecular é normalmente mais completa no ventrículo esquerdo que no ventrículo direito. Miocárdio ventricular não compactado é definido como uma anormalidade da morfogênese endomiocárdica e se acredita tratar-se de uma parada da compactação das fibras miocárdicas que se encontram, formando uma malha frouxa entrelaçada durante a vida intra-uterina. A persistência do miocárdio não compactado é uma entidade rara, usualmente diagnosticada na população pediátrica e que se encontra associada com outras malformações estruturais congênitas do coração, predominando em pacientes com obstrução congênita da via de saída do ventrículo direito ou ventrículo esquerdo 1-4. Miocárdio não compactado isolado, definido pela ausência de outra alteração estrutural cardíaca associada, é uma forma de apresentação ainda mais rara, com poucos relatos na literatura 5-8. O miocárdio não compactado isolado pode ser identificado desde a infância até a vida adulta. Seu diagnóstico pode ser retardado devido a achados com alguma similaridade em outras entidades clínicas. Ambos os sexos são afetados e pode haver recorrência familiar. Relatamos caso de uma portadora de miocárdio não compactado isolado, descrevendo os achados de história clínica, familiar, estratificação diagnóstica e abordagem Instituto de Cardiologia do Espírito Santo – Clinica do Ritmo Correspondência: Jorge Elias - Rua Alaor Queiroz de Araujo, 220 - 29055-010 Vitória, ES Recebido para publicação em 24/6/99 Aceito em 29/9/99 terapêutica, acompanhados de uma revisão da literatura, onde são descritos os aspectos clínicos, diagnósticos, prognósticos e terapêuticos, desta rara desordem da morfogênese endomiocárdica. Relato de caso Mulher de 42 anos, apresentando queixa de cansaço aos médios esforços, dor torácica e palpitação de início há 10 anos, foi encaminhada ao nosso serviço para estratificação de arritmia. Apresentava relato da perda de dois filhos no primeiro ano de vida, um por morte súbita aos cinco meses e outro por insuficiência cardíaca refratária, na primeira semana de vida. O estudo anatomopatológico do filho com insuficiência cardíaca, realizado em outro serviço, demonstrou ventrículo esquerdo dilatado, com trabeculação muito aumentada e anormal, tendo como diagnóstico final, nessa época, miocardiopatia de etiologia indeterminada. Relatava ainda dois irmãos com óbito por morte súbita na infância e um tio e uma prima por insuficiência cardíaca congestiva refratária. O exame físico mostrava-se normal. O eletrocardiograma de 12 derivações mostrava ritmo sinusal e presença de eixo desviado para a direita no plano frontal, sem preenchimento de critérios para bloqueio divisional pósteroinferior esquerdo (figura 1A). A radiografia de tórax mostrou-se normal. O teste de esforço apresentou infradesnível de ST associado a precordialgia típica (figura 1C). A cintilografia miocárdica com Tc-MIBI demonstrou área hipocaptante fixa em projeção ântero-apical. O estudo cineangiocoronariográfico mostrou coronárias normais e ventrículo esquerdo com padrão trabeculado e hipertrófico de predomínio apical (figura 2). O Holter mostrou ectopia ventricular freqüente, monomórfica, morfologia tipo bloqueio de ramo esquerdo em V1 e sintomática (figura 1B). O diagnóstico de miocárdio não compactado isolado baseou-se nos seguintes achados ao ecocardiograma com Doppler: 1) ausência de outra anomalia cardíaca coexistente; 2) presença de alterações na estrutura miocárdica caracterizadas por trabeculação excessiva e proeminente de predomínio em região apical; e 3) espaços intertrabeculares perfundidos pela cavidade ventricular visualizadas com Doppler colorido (figura 3). Observou-se ainda ao ecocardiograma presença de acinesia ântero-septal. A fração de ejeção calculada à ventriculografia radioisotópica foi de 49%. O eletrocardiograma de alta resolução mostrou ausência de potenciais tardios ventriculares. O estudo eletrofisiológico, realizado na ausência de dro253 Elias e cols. Miocardio não compactado isolado Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 3), 2000 Fig. 1 – A) Eletrocardiograma de 12 derivações mostrando ritmo sinusal com presença de eixo desviado para direita no plano frontal; B) ectopia ventricular com morfologia tipo BRE no plano horizontal; C) infradesnível de ST com padrão retificado durante teste ergométrico associado a queixa de precordialgia. Fig. 2 – Ventriculografia em projeção OAD em diástole e sístole demonstrando na região apical trabeculação aumentada. gas, não mostrou taquicardia ventricular sustentada indutível com protocolo de até três extra-estímulos, na ponta e na via de saída de ventrículo direito. Foi realizada extensa estratificação familiar com eletrocardiograma e ecocardiograma bidimensional sem identificação de outros indivíduos que preenchessem critérios para miocárdio não compactado isolado. A pa254 ciente foi mantida inicialmente sem medicação durante período de dois anos. Devido à queixa de palpitação à precordialgia e ao risco de fenômeno tromboembólico, atribuído a essa doença, foi introduzida terapêutica com atenolol e anticoagulante oral. Em seguimento ambulatorial de três anos, a paciente mantém-se estável e assintomática. Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 3), 2000 Elias e cols. Miocardio não compactado isolado A B Fig. 3 – A) Ecocardiograma em corte apical quatro câmaras, demonstrando na região apical do ventrículo esquerdo, trabeculações proeminentes; B) com espaços intertrabeculares perfundidos, evidenciados pelo Doppler colorido. Discussão O miocárdio não compactado se caracteriza pela presença de trabéculas numerosas e proeminentes com recessos intertrabeculares que penetram profundamente através do miocárdio ventricular esquerdo. Na maioria dos relatos na literatura, a não compactação ventricular encontra-se associada a outras cardiopatias congênitas, predominando a atresia pulmonar e a obstrução da via de saída de ventrículo esquerdo combinada ao septo interventricular íntegro 1-3. Nesses casos, a não compactação do miocárdio ventricular ocorreria devido aos ventrículos se encontrarem expostos a pressões muito elevadas durante o desenvolvimento intra-uterino. O miocárdio não compactado também foi identificado associado a anormalidades da origem da artéria coronária esquerda a partir do tronco da artéria pulmonar 4. No caso do miocárdio não compactado isolado, sua causa é desconhecida e ainda não foi identificado qualquer fator que possa justificar uma parada na compactação miocárdica ventricular. Chim e cols. 5 realizaram exame histopatológico em portadores de miocárdio não compactado isolado, evidenciando a presença de trabeculações excessivas, de predomínio apical, associadas à continuidade entre o endocárdio ventricular esquerdo e os recessos intertrabeculares profundos e concluíram que os achados expressavam uma parada na compactação do miocárdio ventricular, justificando assim ser mais apropriado o termo não compactação do que persistência dos sinusóides ventriculares. Esses achados foram corroborados por Ritter e cols. em recente publicação que reuniu a maior casuística dessa entidade 6. Nesse estudo, de forma similar à investigação de Chim e cols., a localização do miocárdio não compactado isolado foi predominantemente apical mas evidenciou-se a presença de miocárdio não compactado isolado em ambos os ventrículos, demonstrando uma variância na apresentação dessa doença. Em ambos os trabalhos, os achados nos estudos anatomopatológicos e a localização do miocárdio não compactado isolado foram concordantes com os achados por meio do ecocardiograma. Baseados nessa correlação entre os achados anatomopa- tológicos e ao ecocardiograma, Chin e cols. propuseram que a identificação das alterações estruturais no ecocardiograma seriam suficientes para a comprovação diagnóstica do miocárdio não compactado isolado. Nesse estudo, os autores sugeriram que o diagnóstico de miocárdio não compactado isolado seria baseado na presença ao ecocardiograma de trabeculações numerosas e excessivamente proeminentes e de profundos recessos intertrabeculares na ausência de anormalidades cardíacas coexistentes. Os autores observaram que as trabeculações eram menos proeminentes e menos numerosas próximo à válvula mitral em relação a ponta do ventrículo esquerdo, com espessura da parede livre do ventrículo esquerdo de 8,6±1,6mm no nível da válvula mitral e 22,9±1,2mm no nível da ponta do ventrículo esquerdo. Ritter e cols. 6 acrescentaram que a observação da perfusão dos espaços intertrabeculares ao Doppler colorido demonstraria a continuidade de fluxo a partir da cavidade ventricular. Além da região apical, as regiões anterior, lateral e inferior também podem demonstrar alterações estruturais características. A paciente, por nós relatada, apresentou todos os critérios propostos para diagnóstico de miocárdio não compactado isolado 5. No estudo de Ritter e cols., a prevalência de miocárdio não compactado isolado ao ecocardiograma foi de 0.05% dos casos examinados, com comprometimento isolado de ventrículo esquerdo em 59% dos pacientes e biventricular em 41% 6. A tomografia computadorizada contrastada pode ser um exame complementar para a confirmação diagnóstica, possibilitando um delineamento entre o tecido compactado e o não compactado 7. Os achados mais comuns no eletrocardiograma em ritmo sinusal são a presença de bloqueio incompleto e completo de ramo esquerdo, podendo também existir outros distúrbios de condução intraventricular, alterações da repolarização ventricular e ainda casos com eletrocardiograma normal 8. No nosso caso, um achado interessante foi a presença de alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia miocárdica associada à precordialgia típica durante o teste de esforço, aliado à identificação de área hipocaptante fixa de localização ântero-apical, no estudo cintilográfico e padrão de acinesia ântero-septal no ecocardiograma. Embora não tenhamos encontrado achados clínicos similares na lite255 Elias e cols. Miocardio não compactado isolado ratura, consideramos que a presença de isquemia nessa entidade possa dever-se a alterações funcionais, por demanda regional aumentada de oxigênio e reserva de fluxo coronariano diminuída para a região subendocárdica. Nos achados histopatológicos do miocárdio não compactado isolado, observou-se a presença de lesões isquêmicas nas regiões com trabeculações proeminentes 6. O achado de isquemia miocárdica no miocárdio não compactado isolado e sua implicação prognóstica necessita maior avaliação. As manifestações clínicas podem variar desde pacientes assintomáticos a pacientes com disfunção ventricular esquerda progressiva com arritmias e com fenômenos embólicos sistêmicos ou pulmonares. Com seis anos de diagnóstico, 59% dos pacientes do estudo de Ritter e cols. faleceram ou foram encaminhados para transplante cardíaco. Dados da literatura mostram melhor prognóstico nos pacientes assintomáticos 6. Embora a causa da depressão progressiva da função de ventrículo esquerdo no miocárdio não compactado isolado não esteja bem definida, os achados clínicos e ecocardiográficos lembram os encontrados na cardiomiopatia dilatada, com a exceção de que, no miocárdio não compactado isolado, a parede do ventrículo esquerdo se encontra espessada nos segmentos apical e inferior. Devido ao fato de algum grau de trabeculação ínfero-apical associado a espaços intertrabeculares, poder ser visualizado na cardiomiopatia dilatada, uma distinção entre essas duas doenças, pelo menos do ponto de vista morfológico, nem sempre é nítida. Apesar do fato de a demonstração de recessos intertrabeculares profundos perfundidos pelo ecodopplercardiograma colorido ser um dos marcadores diagnósticos do miocárdio não compactado isolado, variações transicionais entre miocárdio não compactado isolado e cardiomiopatia dilatada podem existir. Além disso, podem existir casos mais discretos de miocárdio não compactado isolado que podem não ter o diagnóstico confirmado, caso não exibam trabeculações excessivas na região ínfero-apical, hipertrofia e espaços intertrabeculares pronunciados. Ritter e cols. 6, baseados no achado de que todos os pacientes com taquicardia ventricular detectada ao Holter apresentavam disfunção sistólica severa de ventrículo esquerdo, sugeriram que a presença do desempenho ventricular esquerdo alterado seria uma das causas maiores da alta incidência de arritmia ventricular esquerda nessa entidade. Outro fator maior seria o aumento da cicatriz e fibrose em zonas com excessiva hipertrofia e trabeculação. Os autores acreditam que o miocárdio não compactado isolado não possa ser comparado à displasia arritmogênica de ventrículo direito, devido ao fato de as características morfológicas dessa doença serem completamente diferentes, apesar de ambas possuírem um potencial arritmogênico. A grande incidência de fenômeno 256 Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 3), 2000 tromboembólico no miocárdio não compactado isolado resultaria principalmente na formação de trombos locais ao nível dos profundos recessos intertrabeculares, além da presença de disfunção ventricular. Baseados na alta incidência de eventos tromboembólicos em sua casuística, os mesmos autores propuseram que pacientes com miocárdio não compactado isolado confirmados ecocardiograficamente deveriam ser submetidos à anticoagulação sistêmica, independentemente da identificação de trombos visualizados ao ecocardiograma. O tratamento clínico dos pacientes com disfunção ventricular seriam os habitualmente utilizados nos pacientes com falência ventricular, devendo-se considerar o transplante cardíaco como opção nos casos refratários à terapêutica mais conservadora. A incidência de falência ventricular, arritmia ventricular e embolizações devem chamar a atenção para essa entidade rara, que é complicada por uma considerável morbidade e alta mortalidade. Recorrência familiar de miocárdio não compactado isolado foi identificada em casos associados à presença de síndrome de Melnick-Needles, que compreende modelamento ósseo não usual, caracterizada por dismorfia facial, e ocasionalmente anomalias múltiplas 9. Recentemente, Bleyl e cols. identificaram pela análise genética de linkage, em uma família portadora de síndrome de Barth, presença de miocárdio não compactado isolado associado à região Xq28 10. No estudo de Ritter e cols. foram identificados dois casos com antecedentes familiares, mas sem outras malformações associadas 6. No caso do recém-nascido da paciente deste relato, morto devido à miocardiopatia indeterminada, apresentava descrição de necropsia sugestiva de miocárdio não compactado isolado. Não foi possível avaliar os demais casos de óbitos na infância na família da paciente, cabendo apenas a hipótese de miocárdio não compactado isolado. A avaliação realizada nos parentes de primeiro grau não permitiu identificação de outros indivíduos com critérios ecocardiográficos para miocárdio não compactado isolado. Concluindo, os achados morfológicos característicos do miocárdio não compactado isolado podem ter comprovação diagnóstica ao ecocardiograma bidimensional com Doppler, e estes achados correspondem aos achados morfológicos macroscópicos durante a necropsia. Seu diagnóstico deve ser considerado nos pacientes com achado de falência ventricular, arritmia ventricular e eventos embólicos. Estratificação familiar por meio de ecocardiograma deve ser considerada em parentes de paciente com diagnóstico de miocárdio não compactado isolado. Apesar de o miocárdio não compactado isolado apresentar alto índice de mortalidade, o presente relato sugere que casos com boa função miocárdica e ausência de arritmias demonstrada através de propedêutica específica normal podem apresentar bom prognóstico. Arq Bras Cardiol volume 74, (nº 3), 2000 Elias e cols. Miocardio não compactado isolado Referências 1. 2. 3. 4. 5. Bellet S, Gouley BA. Congenital heart disease with multiple cardiac anomalies: report of a case showing aortic atresia, fibrous scar in myocardium and embryonal sinusoidal remains. Am J Med Sci 1932; 183: 458-65. Davignon AL, DuShane JW, Kincaid OW, Swan HJC. Pulmonary atresia with intact ventricular septum: report of two cases studied by selective angiocardiography and right heart catheterization. Am Heart J 1961; 62: 690-7. Lauere RM, Fink HP, Petry EL, Dunn MI, Diehl AM. Angiographic demonstration of intramyocardial sinusoids in pulmonary-valve atresia with intact ventricular septum and hypoplastic right ventricle. 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