UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO ESTADO E A SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política DAIANY KAROLINY DE SOUZA Itajaí, junho de 2010 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO ESTADO E A SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política DAIANY KAROLINY DE SOUZA Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Dr. Josemar Sidinei Soares Itajaí, junho de 2010 AGRADECIMENTO Obrigada ao meu bom Deus, pela vida e pela saúde. Pela perfeição das manhãs que me despertaram e que oportunizaram experiências maravilhosas durante esses cinco anos. Agradeço especialmente a minha mãe, pela força e superação. Por construir em mim uma base sólida de educação e respeito. Agradeço a minha avó, pelo exemplo perseverança e pela dedicação eterna. de Obrigada Emanoella, minha irmã querida, pelas palavras doces e pelo olhar que acalma. Pelas noites de conversas e belas risadas. Por ser minha parceira e melhor amiga para sempre. Obrigada Tio Edu e Rose por toda ajuda e preocupação. Obrigada ao meu mestre Josemar Soares. Mais do que orientador e professor, um crítico severo e um incentivador do trabalho constante. Obrigada aos amigos que fizeram parte desta caminhada gratificante. A Anne, por nossos dias difíceis de monografia! A Claudia, pelas boas piadas no ônibus, a Bruna pelas boas músicas e ao Marcelo por ser tão querido. Agradeço a Marília, meu ombro amigo. Ao Renan pela ajuda e paciência e a Thiana, pelos segredos e pelos bons momentos que ficarão guardados. Ao Matheus e Tiago pela ajuda na organização deste trabalho. DEDICATÓRIA Dedico esse trabalho ao meu sobrinho Pedro Otílio, que é fruto de uma história intensa e de muitas saudades. TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo. Itajaí, junho de 2010 Daiany Karoliny de Souza Graduanda PÁGINA DE APROVAÇÃO A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Daiany Karoliny de Souza, sob o título ESTADO E SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política, foi submetida em 11 de junho de 2010 à banca examinadora composta pelos seguintes professores: Josemar Sidinei Soares (Orientador e Presidente da Banca) e Fabiana , e aprovada com a nota [Nota] ([nota Extenso]). Itajaí, 11 de junho de 2010. Josemar Sidinei Soares Orientador e Presidente da Banca Fabiana Bitencourt Coordenação da Monografia SUMÁRIO RESUMO.......................................................................................... VII INTRODUÇÃO .................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 .................................................................................... 11 A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO .................................. 11 1.1 FORMAÇÃO DO ESTADO ........................................................................... 14 1.2 ESTADO MEDIEVAL E ESTADO MODERNO .............................................. 19 1.3 ESTADO DE DIREITO ................................................................................... 22 1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................... 28 CAPÍTULO 2 .................................................................................... 31 A IDÉIA DE SOBERANIA DOS ESTADOS ...................................... 31 2.1 SOBERANIA EM JEAN BODIN .................................................................... 31 2.2 A MANUTENÇÃO DO PODER SOBERANO EM MAQUIAVEL ................... 37 2.3 AS CONCEPÇÕES DE SOBERANIA DOS CONTRATUALISTAS .............. 43 2.3.1THOMAS HOBBES ..................................................................................... 43 2.3.2 JOHN LOCKE.............................................................................................. 47 2.3.3 MONTESQUIEU .......................................................................................... 51 2.3.4 JEAN-JACQUES ROUSSEAU.................................................................... 54 CAPÍTULO 3 ..................................................................................... 57 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .................................... 57 3.1 O ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ............................ 57 3.2 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS BASILARES DO ESTADO BRASILEIRO ..... 64 3.3 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988................................................. 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 80 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 82 7 RESUMO O princípio fundamental da Soberania elencado na Constituição Federal é elemento constitutivo do Estado e possui como titular do poder, o Povo. Para os teóricos contratualistas da Idade Moderna o indivíduo associa-se para garantir seu desenvolvimento, segurança e liberdade. Nesta pesquisa, o objetivo é fazer uma abordagem filosófica e política dos conceitos de Estado e Soberania. A Soberania estatal explícita na Constituição Federal é questionada frente a interferência de fatores externos que possibilitam a interação entre os povos de maneira a limitar o poder do Estado. 8 INTRODUÇÃO A presente Monografia tem como objeto “O Estado e a Soberania: uma abordagem filosófica e política”. O seu objetivo é identificar parâmetros entre a evolução do conceito de Estado, delineando de que modo os cenários políticos de cada momento histórico, bem como as características sociais existentes, influenciaram para a definição da soberania como um dos elementos constitutivos do Estado e como princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil. Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando de formação do conceito de Estado, passando pela conceituação do Estado Medieval e as peculiaridades que deram origem ao Estado Moderno. Analisou-se também o Estado de Direito, caracterizado fundamentalmente por estabelecer leis escritas, e o Estado Democrático de Direito, que assinala a participação política do povo. No Capítulo 2, será abordada a concepção de soberania em Jean Bodin, precursor dessa conceituação na Idade Moderna, bem como as formas de manutenção do poder apresentadas por Maquiavel e sua obra O Princípe. E por fim, apontar-se-ão as concepções de soberania dadas pelos contratualistas Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau. No Capítulo 3, versar-se-á sobre a soberania na Constituição de 1988 e de que modo este princípio é utilizado pelo ordenamento jurídico brasileiro interna e externamente, de modo a favorecer a autonomia do povo que é o titular do poder. Para a presente monografia foram levantadas as seguintes hipóteses: Hipótese 1 - A soberania é um elemento constitutivo do Estado, sendo portanto um princípio fundamental deste. 9 Hipótese 2 – Na teoria contratual de Rousseau se dá a transmissão da soberania do governante ao povo. Hipótese 3 – A soberania explicitada na Constituição Federal de 1988 está em crise devido à interação política, ideológica e econômica existente entre os indivíduos e que supera os limites de ação do Estado. Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia é composto na base lógica Indutiva. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas do Referente e da Pesquisa Bibliográfica. E registra-se por fim, que as categorias fundamentais para a monografia, bem como seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer da mesma. 11 Capítulo 1 A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO A origem do Estado está ligada à família, a mais antiga das sociedades, e também a única natural que pode considerar-se norma primitiva das sociedades políticas, onde a cabeça é a imagem do pai e o povo a dos filhos.1 Essa associação primitiva que é família gera dependência entre os indivíduos e a necessidade de organização se dá, tendo em vista que o ser humano chega a um ponto onde naturalmente precisa evoluir e criar laços. Ainda que lutasse contra os obstáculos de sua conservação, o homem precisava mudar de vida e associar-se para sua própria sobrevivência.2 Como os homens não podem criar novas forças, mas só ligar e gerir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a oposição, pô-las em ação e fazê-las laborar em consonância.3 Analisando a origem da sociedade e numa visão genérica do desenrolar da vida do homem sobre a Terra, verifica-se a necessidade de organização social à medida que se desenvolveram os meios de controle e aproveitamento da natureza, com a descoberta, a invenção e o aperfeiçoamento de instrumentos de trabalho e de defesa. Esta relação, antes simples, agora se torna 1 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 22. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 29. 3 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 29. 2 12 complexa. Grupos constituíram-se dentro da sociedade, cada qual com suas funções específicas. 4 O Estado como ordem política da Sociedade é conhecido desde a antigüidade aos dias atuais. Contudo nem sempre teve essa designação, nem tampouco encobriu a mesma realidade. A polis dos gregos ou a civitas e a respublica dos romanos eram termos, que explanavam a idéia de Estado, principalmente pelo aspecto de personificação da conexão comunitária, de adesão imediata à ordem política e de cidadania.5 Os vocábulos Imperium e Regnum, de uso corrente durante a expansão do Império Romano, passaram a exprimir a idéia de Estado, designadamente como organização de domínio e poder e na Idade Média utilizou-se o termo Laender (‘Países’).6 Modernamente, o emprego do termo Estado, remonta a Maquiavel, quando em sua obra O Príncipe, ilustrou a frase célebre: “Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou principados”.7 Essa frase reflete a idéia de poder que o Estado possui e da autonomia que os indivíduos possuem diante desta instituição que provê ordem e paz através de uma organização jurídica. Neste contexto escreve José Carlos Machado: Tratando-se da organização humana, é preciso salientar que o poder está presente em toda unidade social. O poder social pode ser vislumbrado em todo tipo de organização, onde exerce uma função de coordenação e de coesão entre os seus integrantes. Por conseguinte, havendo um conjunto de homens em grupo é preciso uma organização sob um poder. O homem é tanto o sujeito quanto o objeto do poder social.8 4 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 10. 6 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 11. 7 MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 29. 8 MACHADO, José Carlos. O Poder do Estado e a tese da Separação dos Poderes. Revista Filosofia do Direito e Intersubjetividade. 2. ed. Disponível em: <www.univali.br/direitofilosofia>. Acesso em: 05 abr. 2010. 13 Essa organização não imposta, mas necessária ao progresso social foi sendo gerida através dos tempos e em melhor propriedade, conforme os homens evoluíram e se associaram. Sobre a instituição do Estado e essa formação contratualista, destaca-se a idéia de Hobbes: Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outro e serem protegidos dos restantes homens.9 As nuances que permeiam a passagem do Estado Medieval para o Estado moderno, apontam a busca por um governo ideal, que pudesse controlar os vários reflexos do distanciamento da igreja dos assuntos políticos e um ente preparado para lidar com o elo entre o poder público e privado. A partir dessas transformações em busca de uma autoridade apropriada ao reino, é que o Estado Moderno caracteriza-se com o surgimento da soberania: Até o século XII a situação continua mal definida, aparecendo referências a duas soberanias concomitantes, uma senhorial e outra real. Já no século XIII o monarca vai ampliando a esfera de sua competência exclusiva, afirmando-se soberano de todo o reino, acima de todos os barões, adquirindo o poder supremo de justiça e de polícia, acabando por conquistar o poder legislativo. Assim é que o conceito de soberano, inicialmente relativo, pois se afirmava que os barões eram soberanos em seu senhorio e o rei era soberano em todo o reino, vai adquirindo o caráter absoluto, até atingir o caráter superlativo, como poder supremo.10 Com o passar do tempo, novas características vão aderindo ao Estado e adequando-o à realidade de cada país. Essas características são frutos da evolução socioeconômica, que os povos apresentam, como por exemplo, as guerras, as crises econômicas, ou a transformação do papel da igreja, a busca por direitos fundamentais, como a liberdade individual, o trabalho e a saúde. Todos 9 HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo: Martin Claret, 2009. 10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 76. 14 esses aspectos aspiram mudanças e à necessidade de uma organização sólida, que possa alcançar os anseios da sociedade e refletir a imagem de um governo soberano. Abordar sobre o surgimento do Estado requer expor, em que tempo e em que contextos encontravam-se as sociedades, para que se possa compreender a necessidade do processo de evolução e contemporaneamente definir os meandros que melhor caracterizam cada povo em sua particularidade política. Buscar-se-á expor com maior ênfase, a origem e a função social do Estado através da sua relação com o indivíduo e com as instituições. Além disso, para que haja conexão entre os próximos capítulos, também importante será enfatizar a questão das leis, mais precisamente para o governo republicano, e a idéia de Estado soberano nas suas relações internacionais. 1.1 FORMAÇÃO DO ESTADO A origem do Estado pode ser estabelecida sobre a idéia de ordem, sendo esta a disposição harmônica das coisas e o contrário dela, a desordem, a desarmonia. Primitivamente, nos clãs ou tribos, reinava o caos, predominando a violência, este era o estado de guerra.11 Com o passar do tempo perceberam os homens que tal situação era precária e prejudicial ao grupo e por isso, o mais forte e ardiloso passou a dominar os demais estabelecendo a ordem. O poder soberano pra Hobbes se faz necessário para garantir segurança de todos: E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um 11 CRETELLA JUNIOR, José. Curso de filosofia de direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 93. 15 confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.12 Diante da exigência de organização, o direito torna-se costumeiro e a sociedade convive pacificamente. Por meio dos usos e costumes tecem a vida comunitária e a afirmação da ordem leva ao progresso da sociedade.13 John Locke define como poder político, o direito de elaborar leis, inclusive a pena de morte, visando regular e conservar a propriedade e utilizar a força da comunidade para garantir a execução das leis e para protegê-la das ameaças externas.14 Em determinado momento histórico, o homem passa a questionar o poder; sabe-se quem governa, mas não se sabe porque este é quem tem o direito de mandar. Para definir tal situação, os homens idealizaram um suporte, desligado da figura do governante. Esta base ou fundamento é o Estado.15 A designação Estado que vem do latim status e significa estar firme, com significação permanente de convivência e ligada à sociedade política, aparece pela primeira vez em “O Príncipe” de Maquiavel, de 1513, conforme visto anteriormente e passou a ser utilizada na Itália para corresponder ao nome de uma cidade independente. Durante os séculos XVI e XVII a expressão foi sendo acolhida em registros ingleses, franceses e alemães.16 Duas são as indagações a respeito da origem do Estado: uma diz respeito à época do aparecimento do Estado e a outra, dos motivos que determinaram o surgimento do Estado. O nome Estado indicando uma sociedade política, só apareceu no século XVI e os maiores autores dessa época utilizavam termos próprios; Hobbes usa Commonwealth, que se traduz como República; para Locke, os termos Sociedade Civil e Estado, são sinônimos; Rousseau utilizava muito a expressão Poder Soberano e Montesquieu utilizava ‘Estado Civil’ para definir um 12 HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo: Martin Claret, 2009. 13 CRETELLA JUNIOR, José. Curso de filosofia de direito. p. 93 – 94. 14 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2009. p.14. 15 Cretella p. 95 16 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 11. 16 contexto onde o indivíduo estava inserido, depois de passar do ‘Estado Natural’. Não é só uma questão de nome, mas de características bem definidas que formam as sociedades.17 Sobre o entendimento a respeito do desenvolvimento do Estado, Dallari expõe três posições fundamentais. A primeira adota a posição de que o Estado sempre existiu dotado de poder e autoridade. Uma segunda ordem de autores, que formam a maioria, acolhem que a sociedade existiu sem o Estado por certo período, e que o Estado foi aparecendo em conformidade com as condições de cada lugar. Por fim, uma terceira corrente acredita que o Estado só pode ser uma sociedade política dotada de características bem definidas. Já as causas do aparecimento do Estado estão ligadas a duas teorias de formação: a originária e a derivada. A originária sustenta dois tipos de formação: formação contratual e a formação natural que determina o aparecimento do Estado à família, em atos de força, em causas econômicas ou no desenvolvimento interno da sociedade.18 As teorias a respeito do surgimento do Estado se vêem ligadas ao desenvolvimento e avanço da família, hoje, no entanto, pouco utilizadas, pois haveria um equívoco em identificar a origem da humanidade com a origem do Estado. Quando sai da família, é que o indivíduo vai inserir-se de modo real e consciente na sociedade política.19 Dentro desse contexto, é possível inserir as definições de Hegel quando este define o Estado ‘como a realidade da idéia moral’, a ‘substância ética consciente de si mesma’, colocando o valor social no mais alto grau, onde encontra-se a ligação de Família e Sociedade.20 17 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 51. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 54-56. 19 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. São Paulo, 2005. 20 BONAVIDES, P. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Eeditores,1999. p. 62-63. 18 17 Quanto à origem em causas econômicas, o autor cita que esta talvez tenha sido a origem indicada por Platão: [...] quando nos ‘Diálogos’, no Livro II de ‘A República’, assim se expressa: “Um Estado nasce das necessidades dos homens; ninguém basta a si mesmo, mas todos nós precisamos de muitas coisas”. E logo depois: como temos muitas necessidades e fazem-se mister numerosas pessoas para supri-las, cada um vai recorrendo à ajuda deste para tal fim e daquele para tal outro; e, quando esses associados e auxiliares se reúnem todos numa só habitação, o conjunto dos habitantes recebe o nome de cidade ou Estado". Dessa forma, o Estado teria sido formado para se aproveitarem os benefícios da divisão do trabalho, integrando-se as diferentes atividades profissionais, caracterizando-se, assim, o motivo econômico.21 Sob uma ótica sociológica, Engels assinala que a Sociedade, enquanto Sociedade de classes, não deve dispensar o Estado, isto é, “uma organização da respectiva classe pioneira para a manutenção de suas condições externas de produção.”22 Em mesma acepção sociológica, encontram-se as idéias de Oppenheimer e Duguit. O primeiro destaca que o Estado não passa de uma instituição social, onde existiu um grupo que venceu e se impôs a determinado grupo vencido para se proteger de rebeliões e de agressões estrangeiras. Duguit não difere em muito desse conceito quando considera o Estado uma coletividade que se caracteriza apenas por assinalada e duradoura diferenciação entre fortes e fracos, onde os fortes monopolizam a força de modo concentrado e organizado.23 Sobre o emprego da violência, o conceito já tantas vezes examinado, reaparece igual na envergadura de Max Weber, quando expõe que o Estado repousa na organização ou institucionalização da violência.24 Rudolf von Jhering também destaca o poder coercitivo do Estado, onde este é “a organização social do poder de coerção”25 e onde o Direito é a “disciplina da coação”.26 21 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 54-56. BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65. 23 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 64. 24 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65. 22 18 Afastando-se da formação natural, apresenta-se ainda mais importante a formação contratual, já que esta remonta às obras de Aristóteles, Epicuro e São Tomás de Aquino.27 Estes grandes pensadores sustentavam a idéia de uma convenção entre os membros da sociedade, que resultaria no surgimento do Estado.28 Desse ponto percebe-se o distanciamento dessa concepção de formação natural, conforme já explicitava Aristóteles, em que “na hierarquia da natureza, a cidade precede a família e o indivíduo. Ela é fundada pelo impulso natural do homem para a associação política”.29 Com Hobbes, Locke e Rousseau, a teoria contratualista tem importância primordial. Hobbes destaca que, ante a anarquia, os homens precisaram renunciar em proveito de um ou mais homens, os seus direitos ilimitados.30 Locke fundamenta a idéia de contrato na aceitação de todos, que concordaram da necessidade de se criar um órgão para manter a justiça e a paz. E por fim Rousseau que entende o contrato como sendo geral, unânime e igual para todos os homens, não existindo aqui, limites à vontade geral.31 Azambuja abordando as idéias de Rousseau, destaca: A ciência demonstra que é uma conjetura falsa, e tanto mais perigosa quanto é certo que leva ao despotismo ou à anarquia. Se o Estado fosse uma associação voluntária de homens, cada um teria sempre o direito de sair dela, e isso seria a porta aberta à dissolução social e à anarquia. Se a vontade geral, criada pelo contrato, fosse ilimitada, seria criar o despotismo do Estado, ou melhor, das maiorias, cuja opinião e decisão poderia arbitrariamente violentar os indivíduos, mesmo aqueles direitos que Rousseau considera invioláveis, pois segundo o seu pitoresco raciocínio, o que discorda da maioria se engana e se ilude, e só é livre quando obedece à vontade geral.32 25 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 64. BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65. 27 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 90-91. 28 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91. 29 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret. 2009 p. 35. 30 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91. 31 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91. 32 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 92. 26 19 Em que pese essa acepção jurídica, Kant, através de premissas racionalistas, expressa a noção de dever como fim da ação humana, e é no sentido de que torno-me meta para mim mesmo, que estão baseadas as reflexões kantianas sobre um ideal jurídico de comportamento que a sociedade deve perseguir.33 Para acrescentar ao que anteriormente se expôs e tendo em vista as características atuais nas relações entre Estados, a formação derivada, ou seja, a partir de Estados preexistentes, encontra procedimentos típicos e comuns, como por exemplo, o fracionamento e a união de Estados, a separação de parte de um território, o que ocorre quase sempre por meios violentos. Outra ação típica é a união de Estados, quando deste ato, adota-se uma Constituição comum.34 1.2 ESTADO MEDIEVAL E ESTADO MODERNO As características da passagem do Estado Medieval para o Estado Moderno são importantes para a análise do surgimento da Soberania e que tamanha importância tem para o presente estudo. A Idade Média trata-se de um período conturbado por sua instabilidade e heterogenia, e por isso é que se encontra dificuldade em sua caracterização. É possível constituir a forma e os princípios próprios das sociedades políticas que, integrando novos fatores, dissolveram a rígida organização romana, revelando novas possibilidades e aspirações, culminando no Estado Moderno.35 Sem dispensar outros fatores que atuaram concomitantemente numa interação contínua, é possível destacar três elementos que se fizeram presentes na sociedade política medieval: o cristianismo, as invasões bárbaras e o feudalismo.36 Neste âmbito de intenso fracionamento do poder e de nuviosa noção de autoridade, estava presente a vontade de unificação: 33 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 206. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 57. 35 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66. 36 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66. 34 20 Pode-se mesmo dizer que, quanto maior era a fraqueza revelada, mais acentuada se tornava o desejo de unidade e de força, pretendendo-se caminhar para uma grande unidade política, que tivesse um poder eficaz como o de Roma e que, ao mesmo tempo, fosse livre da influência de fatores tradicionais, aceitando o indivíduo como um valor em si mesmo.37 As invasões bárbaras, incursões armadas que percorriam o Império Romano, iniciadas no século III e reiteradas no século VI, perturbaram e constituíram grandes transformações na ordem estabelecida. Os bárbaros, que eram constituídos de germanos, godos, eslavos, etc., incentivaram a criação de novos Estados. Em algumas regiões, os povos cristãos chegam a fazer alianças com os chefes bárbaros, para fins econômicos. O cristianismo trará a idéia de igualdade, onde os homens já não valiam diferentemente, e a Igreja se vê unida, ao passo que não há uma unidade política firmada.38 Como o intuito era transformar toda a humanidade em cristãos, inevitável era a idéia de um Estado universal, em que todos fossem conduzidos pelos mesmos princípios e normas de comportamento: A própria Igreja vai estimular a afirmação do Império como unidade política, pensando, obviamente, no Império da Cristandade. Com esse intuito é que o Papa Leão III confere a Carlos Magno, no ano de 800, o título de Imperador. Entretanto, dois fatores de perturbação iriam influir nesses planos: em primeiro lugar, uma infinita multiplicidade de centros de poder, como os remos, os senhorios, as comunas, as organizações religiosas, as corporações de ofícios, todos ciosos de sua autoridade e sua independência, jamais se submetendo, de fato, à autoridade do Imperador; em segundo lugar, o próprio Imperador recusando submeter-se à autoridade da Igreja, havendo imperadores que pretenderam influir em assuntos eclesiásticos, bem como inúmeros papas que pretenderam o comando, não só dos assuntos de ordem espiritual, mas também de todos os assuntos de ordem temporal.39 Acrescenta-se a estes fatos, a influência do feudalismo, tendo em vista a importância de possuir terras num período marcado pela dificuldade no desenvolvimento do comércio. Aqui, ricos e pobres tiravam seu sustento da terra, 37 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 67. 39 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p.67. 38 21 desenvolvendo-se um sistema administrativo e um arranjo militar estreitamente ligados ao patrimônio.40 Três institutos jurídicos se envolvem: a vassalagem, o benefício e a imunidade. Na vassalagem, os proprietários menos poderosos, colocavam-se a serviço do senhor feudal, dando-lhes uma contribuição em pecúnia e apoio nas guerras e em troca, recebiam proteção. No benefício, aquele que não possuía patrimônios, era contratado pelo senhor feudal e recebia uma faixa de terra para cultivar e dividir a produção. O servo então era parte da propriedade da terra e estava sob o comando de seu senhor. Na imunidade, concedia-se a isenção de tributos às terras sujeitas ao benefício. Ocorre então uma fusão do setor público com o privado, bem observado por Dallari: Conjugados os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo, a invasão dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do Estado Medieval, mais como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender, era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe de criação do Estado Moderno.41 A intensa distribuição de terras tanto para os latifundiários quanto dos que adquiriram o domínio de áreas menores constituída de unidades familiares voltadas para a produção de subsistência, ampliou o número de proprietários. Os senhores feudais não toleravam as exigências de monarcas aventureiros e de circunstância, que impunham uma tributação indiscriminada e mantinham um estado de guerra constante, que só causavam prejuízo à vida econômica e social.42 A busca por um poder estabelecido em uma só pessoa, combinada à aspiração de uma ordem econômica e a necessidade da delimitação 40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 69. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70. 42 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70. 41 22 territorial concretizam-se com os tratados de paz de Westfália, que tiveram o caráter de documentação da existência de um novo tipo de Estado, com a característica básica de unidade territorial dotada de um poder soberano”.43 Neste dado momento, é possível perceber a maneira como o Estado já se distancia da Igreja, de modo que esta não possa mais se intrometer nos assuntos políticos. Fato que caracteriza a primeira grande vitória do absolutismo no século XIV, foi a situação lastimável que ocorreu entre o rei da França, Filipe, o Belo, e o Papa Bonifácio VIII, quando o monarca não admitiu a intromissão do pontífice em matéria temporal, prendendo-o. Depois de consentida sua libertação pelo rei, o Papa, humilhado e abatido, morreu no mês seguinte em Roma.44 Vistas as características do Estado Medieval, cabe agora ressaltar as que caracterizaram os Estado Moderno, que divergem entre vários autores, mas que resultam nos elementos que hoje são indispensáveis para a existência do Estado: soberania, território e povo. Neste período histórico, já possível perceber os meandros que se seguiram para a formação do Estado da maneira como hoje é adotado. Jean Bodin, que foi um severo defensor do absolutismo, é o primeiro a expor sistematicamente o conceito de soberania, atribuindo-a ao princípe um poder supremo que não pode estar submetido aos comandos de outrem.45 Com base nas transformações ocorridas ao longo dos séculos, é possível compor uma análise do elemento ‘SOBERANIA’ dentro da conjuntura atual dos Estados e em mais refinado estudo, dentro do Estado brasileiro. 1.3 ESTADO DE DIREITO Para compreender do que trata o Estado de Direito, é preciso entender que este é um dos momentos que caracterizam o Estado Constitucional como hoje é conhecido. 43 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 67-68. 45 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137. 44 23 O Estado de Direito reflete um Estado idealizado pelos contratualistas e tornou-se realidade com a Independência Americana em 4 de julho de 1776 e com a Revolução Francesa de 1789 e os seus ideais. O Estado sempre almeja fins e traz junto com o constitucionalismo escrito a função de racionalização e humanização, o que remete à necessidade de declarações de direitos, destacando-se historicamente as Declarações da Virgínia, em 1776, a Declaração da Independência dos Estados Unidos, no mesmo ano, e sua Constituição em 1789.46 Neste mesmo ano, ressaltase com tamanha importância a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (droits naturels et sacrés de l’homme), que serviu como uma ‘pré – constituição’, promulgada então, em 1791. O Constitucionalismo liberal do século XIX consagra o Estado de Direito e destaca a Constituição de Cádis, em 1812, e também a 1ª Constituição Portuguesa (1822), a 1ª Constituição Brasileira (1824) e a Constituição Belga de 1831. O manifesto comunista de Karl Marx, que embasava o movimento dos trabalhadores em conjunto com os reflexos do cartismo na Inglaterra e à Comuna Francesa de 1871, passa a minar as bases do Estado Liberal.47 Destaca-se ainda, no ano de 1848, a Declaração de Direitos da Constituição Francesa, que foi um texto percussor do século XX, pois previa como princípios a igualdade, a liberdade e a fraternidade, e tendo como base a família, o trabalho, a propriedade e a ordem pública. Em 1919 com a Constituição de Weimar, que tecnicamente ensejava uma idéia de democracia liberal e que serviu de modelo para várias constituições do pós-guerra, houve uma crescente constitucionalização do Estado Social de Direito com o intuito de converter em direito positivo as várias acepções sociais que se transformaram em princípios do Estado de Direito.48 46 MORAES, A. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 3. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 3. 48 MORAES, A. Direito Constitucional p. 4. 47 24 O Estado de Direito é, portanto, conforme prescreve Alexandre de Moraes, um Estado de onde há a supremacia da legalidade, no sentido de proteção da ordem e segurança pública.49 A Constituição informada pelos princípios materiais do constitucionalismo, que estão vinculados ao Estado de Direito, ao reconhecimento e garantia de direitos fundamentais e a não confusão de poderes e democracia, é uma estrutura política conformadora do Estado.50 Sobre essa elevação dos direitos sociais, expõe Alexandre de Moraes: Verifica-se a inclusão de conteúdos predominantemente programáticos nos textos constitucionais, complementando o constitucionalismo nascido com o Estado Liberal de Direito com normas relativas aos direitos sociais e econômicos, passando a existir expressamente normas programáticas político-sociais, além do tradicional estatuto político, contendo os princípios e normas sobre a ordenação social, os fundamentos das relações entre pessoas e grupos e as formas de participação da comunidade, inclusive no processo produtivo. [...] Essa evolução foi acompanhada pela consagração de novas formas de exercício da democracia representativa, em especial, com a tendência de universalização do voto e constante legitimação dos detentores do Poder, fazendo surgir a idéia de Estado Democrático.51 O Estado Liberal surge contra o absolutismo que delimitava a liberdade individual. Através da democratização do sistema, e dos novos conceitos de igualdade que surgem em vários âmbitos (social, político, econômico), resta evidente necessidade da intervenção estatal. A passagem do Estado liberal ao Estado social foi importante para solucionar problemas vindos das buscas constantes pelo setor público para mediar as crises provocadas pelo fortalecimento do capitalismo.52 Na crise de 1929 fica evidenciada a necessidade de intervenção do Estado no capitalismo como forma de manter o equilíbrio social, e desse modo, entre as duas guerras mundiais, acentuam-se as crises econômicas e 49 MORAES, A. Direito Constitucional p. 5. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7. ed. São Paulo: Almedina, 2003. p. 87. 51 MORAES, A. Direito Constitucional p. 4. 52 DIAS, R. Ciência Política. São Paulo: Atlas, 2008. p. 225. 50 25 a divisão de classes, possibilitando movimentos totalitários como o nazismo, o fascismo, o franquismo, etc.53 Para Reinaldo Dias, o Estado social é, portanto, “uma resposta histórica a um desafio trazido pelas novas questões colocadas pela intensificação da industrialização, que se refletiam no âmbito econômico e social.”54 Posteriormente a esta necessidade de ligação entre Estado e indivíduos, o Estado Constitucional vem definir esta relação de lei e poder, tendo em vista que a constituição só se compreende através do Estado55, sendo que este pode ser definido como uma forma histórica de organização jurídica de poder dotada de qualidades que a distinguem de outros poderes e organizações de poder.56 Como modelo operacional, salienta-se duas dimensões de Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) O Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) Estado Constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se combateram dois “arbítrios” ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais.57 Apesar dos vários conceitos e justificações, o Estado só se apresenta hoje como Estado Constitucional, e o constitucionalismo buscou explicar um Estado submetido ao direito, regido por leis e sem confusão de poderes. E para ser um Estado Constitucional moderno, este deve ser um Estado de direito democrático, dotado, portanto, de duas qualidades: Estado de direito e Estado democrático. O Estado constitucional democrático de direito tenta propor uma ligação entre a democracia e o Estado de direito.58 O Estado de Direito assinala certas premissas, a saber: 53 DIAS, R. Ciência Política. p. 225. DIAS, R. Ciência Política. p. 225. 55 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 89 . 56 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 89. 57 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 90. 58 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93. 54 26 [...] (1) primazia da lei, (2) sistema hierárquico de normas que preserva a segurança jurídica e que se concretiza na diferente natureza das distintas normas e em seu correspondente âmbito de validade; (3) observância obrigatória da legalidade pela administração pública; (4) separação de poderes como garantia da liberdade ou controle de possíveis abusos; (5) reconhecimento da personalidade jurídica do Estado, que mantém relações jurídicas com os cidadãos; (6) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional; (7) em alguns casos, a existência de controle de constitucionalidade das leis como garantia ante o despotismo do Legislativo.59 A efetivação do Estado constitucional de direito, resulta dos mais variados costumes, culturas e históricos político-sociais, por isso analisa-se cuidadosamente os conceitos como Rechtsstaat, Rule of Law, État légal, tendo em vista que todos eles tendem a alicerçar a juridicidade estatal.60 No direito inglês, a Rule of Law pode ser interpretada apontando-se suas quatro dimensões: 1) obrigatoriedade de se compor um processo justo em observação à Magna Charta de 1215, quando houver a necessidade de julgar e punir seus cidadãos; 2) essa expressão deve significar a predominância das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real; 3) todos os atos do poder Executivo devem estar sujeitos a soberania do Parlamento; 4) a igualdade para que todos tenham acesso aos tribunais, para que defendam seus direitos segundo os princípios ingleses (Common Law).61 A Always under Law, no direito norte-americano, retrata o direito do povo de fazer uma lei superior onde se estabeleçam os esquemas essenciais do governo e seus respectivos limites. Dentro desses esquemas, incluem-se os direitos e liberdades dos cidadãos. Em segundo lugar, as razões do governo precisam ser as razões do povo e que este aceite a forma como é governado. O governo deve estar subordinado às leis e estas formam um conjunto unificado de princípios de justiça e direito. O governo justificado é aquele que 59 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 5. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93. 61 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93-94. 60 27 cumpre sua obrigação de governar segundo leis repletas de unidade, publicidade, durabilidade e antecedência.62 Por fim, no âmbito constitucional norte-americano, existem os tribunais que desempenham a função de fazer justiça em nome do povo, e são constituídos por juízes que devem preservar a justiça e o direito. Esses juízes podem desaplicar, se o caso exigir, as más leis e declará-las nulas.63 Na França, a idéia do Estado de direito baseia-se no État égal, assinalado como uma ordem jurídica hierárquica, onde as declarações dos direitos de 1789 são como uma ‘supraconstituição’ e uma ‘pré-constituição’. Supra, pois estabelece disciplinas à própria constituição e pré, porque cronologicamente surgiu antes dessa primeira lei superior. O Rechtsstaat, que quer dizer Estado de direito em alemão, caracterizou-se pelo chamado constitucionalismo da restauração (paradigma a Carta Constitucional de Luís XVIII, de 1812) e o constitucionalismo da revolução com o seu princípio da soberania popular.64 Esse Estado de direito contrariava a idéia de um Estado de Polícia e limitava-se à defesa da ordem e da segurança pública com intuito de prover liberdade individual e liberdade de concorrência em detrimento dos domínios econômicos e sociais, o que não caracterizava uma ação revolucionária de direitos, mas o respeito de uma esfera de liberdade individual.65 A limitação de direitos teria que alcançar até mesmo o soberano que nada mais era do que um órgão do Estado. A administração pública teria que agir de acordo com o exposto na lei e não causar excessos quando atuasse. Os atos da administração fiscalizados pelos tribunais poderiam ser feitos em dois modelos: (1) confiar aos tribunais originários o julgamento das atividades administrativas; ou (2) atribuiria- se aos tribunais administrativos, o poder de julgar 62 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 94. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 95. 64 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 96. 65 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 97. 63 28 os atos da administração (modelo adotado pelas leis da Prússia de 1875 e da Baviera de 1878).66 Não obstante toda essa estrutura jurídica que sustenta a organização estatal, é preciso que haja uma coligação entre o direito e a democracia para que se possa compor um Estado Constitucional moderno, conforme já dito anteriormente. Faz-se necessário, portanto, estabelecer os meandros da democracia, com o intuito de obter a melhor qualificação para o presente estudo. 1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Contemporaneamente, o conceito que se faz da democracia é ‘o governo do povo pelo povo’, onde a massa detém o poder por meio de seus representantes eleitos.67 Com a Revolução Francesa, a democracia ganha as seguintes características: essência política; visava a liberdade política e a participação efetiva no governo; basicamente espiritualista, implicando na aceitação de idéias morais.68 Apesar de ainda em evolução, o conceito de democracia deve abranger os direitos individuais e sociais, estabelecendo uma segurança econômica onde haja preocupação com a vida e a liberdade, mas também com a saúde, o trabalho, a educação, etc. Por isso há nos estados modernos essa abundante legislação social.69 Diante desses primeiros traços existentes de democracia, unise às bases do Estado de direito, de peculiar aspecto jurídico, contornos de indissociável conteúdo político, que torna inaceitável a dissociação dessas duas formas para caracterizar o Estado Constitucional. Sobre essa ligação jurídica e política, resume Dallari: 66 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 97. AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 212. 68 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 214. 69 AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 214. 67 29 A respeito do relacionamento do Estado com o direito muito já se disse no estudo dos problemas da soberania e do poder. Como se tem procurado evidenciar, inclusive com o objetivo de assegurar o respeito aos valores fundamentais da pessoa humana, o Estado deve procurar o máximo de juridicidade. Assim é que se acentua o caráter de ordem jurídica, na qual estão sintetizados os elementos componentes do Estado. Além disso, ganham evidência as idéias da personalidade jurídica do Estado e da existência, nele, de um poder jurídico, tudo isso procurando reduzir a margem de arbítrio e discricionariedade e assegurar a existência de limites jurídicos à ação do Estado. Mas, não obstante a aspiração ao máximo possível de juridicidade, há o reconhecimento de que não se pode pretender reduzir o Estado a uma ordem normativa, existindo no direito e exclusivamente para fins jurídicos. 66. Enquanto sociedade política, voltada para fins políticos, o Estado participa da natureza política, que convive com a jurídica, influenciando-a e sendo por ela influenciada, devendo, portanto, exercer um poder político. Este é o aspecto mais difícil e mais fascinante do estudo do Estado, pois introduz o estudioso numa problemática extremamente rica, dinâmica e polêmica, onde se faz presente a busca dos valores fundamentais do indivíduo, da sociedade e do Estado, a par da procura da organização mais eficaz para a promoção desses valores.70 O Estado Constitucional moderno não pode ser apenas um Estado de direito, como dito anteriormente, mas deve ter uma ordem de domínio validada pelo povo. Tudo que está instituído pelo direito e pelo poder, deve ser organizado de forma democrática. Novamente aqui destaca-se o papel da soberania popular “afastando a tendência humana ao autoritarismo e à concentração de poder.” 71 É importante destacar, diante de tudo o que já se observou da formação do Estado de Direito, que o que faltava a ele era, em melhorada síntese, a “legitimação democrática do poder”72 e a “liberdade democrática que legitima o poder”.73 Rousseau destaca o poder democrático do povo: 70 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 128. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 5. 72 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 98. 73 CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 98. 71 30 O soberano pode confiar o governo a todo povo, ou à maior parte dele, de modo que haja mais cidadãos magistrados que cidadãos simples particulares. Essa forma de governo se chama democracia.74 Canotilho destaca também que o Estado de Direito e a democracia são duas formas de se ver a liberdade. No Estado de Direito existe a liberdade negativa, uma postura de defesa perante o Estado. Na democracia existe a liberdade positiva, onde há o exercício do poder. A liberdade negativa, segundo expõe, teria preferência, pois a liberdade pessoal e moral teriam uma importância maior do que as liberdades políticas; “o homem civil precederia o homem político, o burguês estaria antes do cidadão”75 Sendo a Constituição, a norma máxima que rege juridicamente o Estado e que este deve agir de acordo com os preceitos por ela impostos, os princípios da legalidade e legitimidade dão contornos à maneira como o povo estabelece sua vontade. O princípio da legalidade exprime a observância das leis, ou seja, “o poder estatal deve atuar sempre em conformidade com as regras jurídicas vigentes”.76 E a legitimidade atribui um valor ao aspecto legal: A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu enquadramento nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso, a ideologia democrática.77 A Constituição Brasileira ao proclamar que a soberania popular será exercida por meio de voto direto e secreto, concretiza o princípio democrático e ratifica que todo poder emana do povo. O povo e o Estado devem estar sempre envolvidos nas decisões políticas, a fim de baseadas num sistema jurídico pleno, possam ser eficazes na conservação da ordem e do desenvolvimento do país. 74 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p.65. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 99. 76 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 111. 77 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 112. 75 31 É possível aprontar, que o Estado por si só, é a “principal forma de organização política”78 e em termos mais específicos, o Estado Constitucional Brasileiro caracteriza-se, portanto, pela junção do estado direito e pela democracia, possuindo legitimidade e contornos delimitados ao poder, proporcionando ao indivíduos 78 segurança DIAS, R. Ciência Política. p. 49. e liberdades civis e políticas. 32 Capítulo 2 A IDÉIA DE SOBERANIA DOS ESTADOS 2.1 SOBERANIA EM JEAN BODIN Na Grécia Antiga, o Estado representava uma esfera dotada de auto-suficiência, onde se desconhecia o conflito interno de poderes sociais, a rivalidade de instituições, facções ou partidos políticos. Com esse pensamento homogêneo, a nenhum pensador ou jurista grego surgiu a idéia de distinção entre o Estado e mais comunidades políticas.79 A Idade Média, que seguiu esse modelo de organização político romano, assinala um período de competição entre poderes, o que propicia o amortecimento da idéia de Estado, que tem seu poder político centralizado na pessoa do Imperador. Aqui é visto claramente a luta entre duas ordens: a ordem temporal e a ordem espiritual. Os poderes autônomos de ordens intermediárias estavam sujeitos à autoridade do Império e somente este não estava subordinado a nenhuma jurisdição. O princípio de soberania começa por exprimir um poder desembaraçado de qualquer tipo de sujeição, distinguindo o Estado dos demais poderes rivais que lhe contestavam a supremacia.80 Posteriormente a essas incertezas, o Estado Moderno precisava se impor, necessitando de uma teoria que pudesse firmar o poder absoluto como sede na monarquia. É na França, onde ficou mais clara essa rivalidade entre o Império e a Igreja, que nasceu o primeiro conceito de soberania e que tem como destaque o teórico Jean Bodin. Jean Bodin nasceu em Angers por volta de 1529/1530 e dedicou-se aos estudos de letras jurídicas em Toulouse, onde também foi professor, 79 80 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 124. BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 124. 33 bem como advogou em Paris. Sempre atento a sua pátria, e com a exteriorização de lutas que fazia o rei da França contra o sacerdócio, é que Bodin afigura a soberania como elemento essencial do Estado. Bodin defende o absolutismo, o poder absoluto, e o amplo exercício da soberania, e discorreu sobre o assunto como nenhum autor da teoria política.81 Sobre o assunto expõe Bittar: A primeira exposição sistemática da soberania é normalmente atribuída ao jurista francês Jean Bodin (1529/30-1596), que reclama justamente da falta de uma clara definição desse conceito. Há, de fato, a necessidade de formular a definição de soberania, porque não existiu nem jurisconsulto nem filósofo político que a tenha definido, embora seja o ponto principal e o mais importante a ser entendido no tratado sobre a República (República I, 8, p. 179).82 Entre os vários trabalhos de Bodin, destacam-se duas principais obras: Método para fácil compreensão da história de 1566 e Os seis livros da República de 1576. Essas abordagens foram de essencial importância para o tema soberania. Historicamente, a partir da divulgação de suas obras, caminhase no sentido da centralização e do absolutismo, que ganha maior repercussão com o Luís XIV (O rei Sol, Le roi soleil). As idéias de Bodin refletiam soluções para os problemas enfrentados pelo Estado, tais como a insegurança político-internacional, a perda de territórios, a intolerância religiosa e a desordem social.83 A obra Six Livres de La republique destaca a soberania como elemento essencial para definir uma república e Bodin acrescenta que nenhum outro autor do passado deu importância àquele que é o ponto absolutamente necessário à composição desta. A idéia de um comando absoluto já reinava entre os imperadores e os papas na Idade Média. O que ocorre, no entanto, é que Bodin foi o 81 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 133. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 27. 83 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 135. 82 34 primeiro a tratar de soberania como elemento de organização da vida civil e da possibilidade de unificar os sistemas dos conhecimentos políticos.84 A conjunção harmônica de três leis deve ser o limiar do governo de toda república, sendo elas: a lei moral, cujo meio de aplicação e atuação é o foro íntimo de cada indivíduo frente a suas decisões e no comportamento perante os demais; a lei doméstica, delimitada no âmbito da casa e a lei civil, no que diz respeito à participação na sociedade política, nas relações entre a família e os colégios. E é com base nessa maneira social de organização por leis que apresentase a definição bodiniana de soberania.85 A soberania apresenta-se como centro de uma estrutura da república, sendo que dela “dependem os magistrados, as leis, os ordenamentos: somente ela é a ligação e a união que transforma famílias, corpos, colegiados, particulares em um único corpo perfeito, que é, justamente, a república”.86 Essas ligações, no entanto, não são suficientes para caracterizar a soberania, é preciso que todos estejam reunidos sob uma mesma autoridade e acrescenta-se a isso o fato de que todos devam partilhar de coisas comuns com certa utilidade geral.87 Sobre a composição ideal do poder soberano acrescenta Merio Scattola: O impacto da idéia elaborado por Bodin não se reflete, evidentemente, apenas sobre os modos em que é organizada e transmitida a disciplina política, mas também estrutura em profundidade o seu significado. Definindo a soberania como um poder absoluto de disposição sobre a lei civil, Bodin consegue o efeito de neutralizar o conflito sobre a interpretação da lei e, mais em geral, sobre a vontade que deve guiar a república. Já que o soberano é uma fonte de comando que não admite superiores e não está sujeita a controles, o quadro das instâncias constitucionais múltiplas, 84 SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. p.61. 85 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136. 86 SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 61- 62. 87 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136. 35 característica das sociedades estamentárias, nas quais o comando era o resultado de uma busca complexa e compartilhada por centros de governos autônomos e concorrentes, é completamente desmontado. O comando, agora, é o produto de uma simplificação que coloca todas as forças que operam dentro de um território numa linha descendente e dependente do vértice do sumo poder. À doutrina da colaboração, do equilíbrio e do acordo entre estamentos e ordens substitui-se, assim, uma doutrina da concentração do poder nas mãos do soberano 88 A vida organizada politicamente e a existência do Estado tornam-se impossíveis se não houver esse cimento das relações sociais que é a soberania, ou melhor, o solo onde se constroem os modos de vida e o convívio em sociedade. Em melhor significado, expõe Bittar: O uso do adjetivo absoluto implica atribuir ao poder soberano as características de superior, independente, incondicional e ilimitado. Ilimitado porque qualquer limitação é incompatível com a própria idéia de um poder supremo: ‘A soberania não é limitada, nem em poder, nem em obrigações, nem em relação ao tempo’ (República I, 8, p. 181). Incondicional na medida em que este poder deve estar desvinculado de qualquer obrigação: ‘A soberania dada a um príncipe sob condições e obrigações não é propriamente soberania nem poder absoluto’ (República I, 8, p. 187). Independente, pois seu detentor deve ter plena liberdade de ação: ‘Assim como o papa não tem suas mãos atadas, como dizem os canonistas tampouco o príncipe soberano pode ter suas mãos atadas, mesmo se o desejar’ (República, I, 8, p.192). Superior porque aquele que possui o poder soberano não pode estar submetido ou numa posição de igualdade em relação a outros poderes: ‘É preciso que os soberanos não estejam submetidos aos comandos de outrem’ (República, I, 8, p. 191).89 O elemento caracterizador mais importante do Estado é a soberania, sendo esta incontrastável e inalienável, por assim dizer: Os direitos da soberania são considerados inalienáveis, pertencentes apenas ao soberano: ‘É preciso que as marcas da soberania sejam tais que não possam ser convenientes senão ao príncipe soberano; de outro modo, se elas são comunicáveis aos súditos, não se pode dizer que sejam marcas da soberania’ (República I, 10, p. 298).90 88 SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 62-63. 89 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136-137. 90 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137. 36 Para Bodin, o soberano deve agir sem estar limitado em sua atuação, tendo a máxima liberdade de ação para poder cumprir as metas do Estado, estabelecendo leis ou revogando-as em face de seus súditos. Esse poder não poderá ser exercido se estiver sob o comando de outrem. Uma sociedade sem leis, sem ordem, transforma-se no caos, prestando ao Estado o papel de governar a partir de leis que se estabelecem diante das famílias e dos colégios. Ao conferir leis ao povo, o soberano faz com que esses cumpram suas metas e finalidades. Nesse ponto, cabe ao soberano, conforme a necessidade, modificar, alterar, corrigir ou emendar as leis, repassando-as aos seus súditos. Por necessidade, estabelece-se a vontade do soberano, pois ele é quem deve determinar, conforme explícita Bittar: A primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em geral e a cada um em particular. (República I, 10, p. 306).91 Ao se questionar de onde provém a soberania de um rei, não se pode dizer que este constituiu uma sociedade ou por sua ação unificou um povo. O que existia era um indivíduo que detinha uma posição de poder e que juridicamente repassou sua colocação a outro. Interessante destacar, portanto, que a soberania é um conjunto de direitos e possibilidades que podem ser transmitidos. Ocorre que os súditos irão sempre pertencer a um mesmo conjunto político, mesmo que o titular da soberania mude.92 No que tange às formas de exercer a soberania, Bodin expõe uma tripla divisão que remonta à separação de governo feita por Aristóteles: “a soberania pertence necessariamente seja a um só indivíduo, seja a um pequeno número de notáveis, seja ao conjunto de todos ou pelo menos da maioria dos cidadãos, e nós temos, segundo o caso, uma monarquia, uma aristocracia ou uma democracia” (Método VI, p. 368 A)”93 Essa tripartição permite ao teórico, discorrer sobre as mudanças no ordenamento jurídico e pela necessidade que encontra em seu 91 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137 – 138. SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe (Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 66. 93 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139. 92 37 contexto político-social, de reflexão sobre as modificações existentes no governo e nas leis. E mais uma vez apresenta-se, como idéia fundamental, que a soberania perpassa de um para outro governo, e que diante disto, há uma real modificação do ordenamento jurídico. Se a soberania não muda de um agente para o outro, isto é, de um Estado para o outro, não há que se falar em mudança no ordenamento político.94 Dos três modos de Estado, Bodin defende a monarquia como melhor modo de exercer a soberania, conforme explica: Entre os três Estados, o monárquico é considerado a forma mais adequada para a República. Os argumentos utilizados por Bodin para provar sua superioridade são de diferentes procedências. O primeiro vem da história, que revela a aprovação dos povos antigos: ‘Vemos que todos os povos da terra de toda antiguidade, quando se deixaram guiar pela luz natural, não tiveram outra forma de República senão a monarquia’ (República VI, 4, p. 188). Os relatos históricos mostram que os estados populares e aristocráticos, quando estão em perigo, recorrem à forma monárquica: ‘Os estados aristocráticos e populares, vendo-se em perigosa guerra contra os inimigos, ou contra eles mesmos, ou em dificuldade de processar um poderoso cidadão [...] instituem um ditador como monarca soberano, pois sabem que a monarquia é a âncora sagrada, à qual é necessário recorrer em dificuldades. (República VI, 4, p. 188).95 E de maneira definitiva, pontua sua predileção pela monarquia: A principal marca de uma República, que é o direito da soberania, não se pode estar nem subsistir, falando propriamente, senão numa monarquia, pois só um deve ser soberano numa República. Se são dois, ou três, ou vários, ninguém é soberano, visto que não se pode dar nem receber a lei de um companheiro (República VI, 4, p. 178).96 A impressão que se tem da definição de soberania, portanto, é a de que a ela nada pode opor-se. Porém, Bodin expõe que há duas leis que a antecedem: as leis divinas e as leis naturais. O poder dos soberanos, segundo Bodin, são posteriores ao poder divino e essas leis servem de parâmetro para distinguir a tirania da 94 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139. 96 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 140. 95 38 monarquia. Para o teórico, o rei limita-se às leis da natureza e o tirano não às respeita. Surge nesse ponto, uma preocupação com a questão do julgamento do soberano, caso este viole alguma lei natural ou divina. Não caberia ao povo julgá-lo tendo em vista a contradição que se acolheria: um súdito afrontando seu rei. Uma afronta à soberania seria o fato de julgar um soberano, visto que não há autoridade capaz de julgá-lo.97 E diante dessa encruzilhada, Bodin preza sempre pelo poder absoluto. Neste caso, as leis divinas e naturais na promovem eficácia legal e, portanto, não exercem coerção jurídica sobre o soberano.98 A obra de Bodin, tendo como núcleo, a preocupação com o conceito de soberania e estabelece para o Estado Moderno, os limites do poder soberano. Sustenta ainda o absolutismo como forma de manutenção da ordem e a proteção da própria existência da sociedade política. 2.2 A MANUTENÇÃO DO PODER SOBERANO EM MAQUIAVEL Niccolò Macchiavelli nasceu em Florença, no ano de 1469, iniciando sua carreira política em 1498, na época do último traço republicano na Itália antes da afirmação do Estado Moderno. Suas obras são o retrato de sua vida política e das causas dos Estados nos quais se envolveu.99 Nicolau Maquiavel foi estrategista do poder, diplomata e pensador das causas políticas de sua época. Viveu num período conturbado, onde foi torturado e acusado de complô contra o governo dos Médicis, em 1513.100 Num tempo em que se fundavam e se destituíam principados e repúblicas rapidamente, expor novos métodos e sistemas tronava-se perigoso. 97 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p.141-142. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 142. 99 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 144. 100 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 143. 98 39 Assim como já citado anteriormente, Bodin propunha o fortalecimento do poder por meio do Direito, Maquiavel tem a solução pela idéia de virtú.101 A virtú, ao contrário do plural latino virtudes, apresenta-se, no conceito de Maquiavel, “a qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e feitos” [...] “o poder humano de efetuar mudanças e controlar eventos” [...] “o pré-requisito da liderança.”102 Entre suas obras destacam-se: O príncipe, O discurso sobre a primeira década de Tito-Lívio, A arte da guerra, Discurso sobre a reforma do Estado de Florença, entre outras. O texto que tem maior destaque, talvez por retratar a suma de seu pensamento político, é O príncipe. Nesta ocasião, Maquiavel explora a maneira como os homens devem se portar diante do poder; como manter-se no poder de forma que seus súditos também estejam satisfeitos. Esse livro é fruto muito mais da experiência do que da inteligência e serve de orientação política para a condução do Estado e do governo. Inspirado nos clássicos romanos (Tácito, Tito Lívio, Políbio), Maquiavel trata de propor sua metodologia, descrevendo histórias do poder e das formas de governar: a verdade efetiva (veritá effettuale).103 A expressão maquiavelismo ou maquiavélico remete a um modo de agir falso e sem escrúpulos, o que resulta de uma forma distorcida da obra de Maquiavel e da rejeição inicial causada por seus escritos, tendo em vista a moralidade cristã que via uma justificativa para o poder sem limites do Estado.104 Sobre essa realidade, Bittar expõe: Em verdade, o que ocorre é que Maquiavel inaugura uma nova ética para a política. O maquiavelismo implica orientar e guiar as atitudes práticas dos governantes com base nas próprias práticas humanas relativas ao poder. Próximas ao poder estão o desmando, a vaidade, 101 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 134. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 14. 103 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 145. 104 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 146. 102 40 a corrupção, o favoritismo, a crueldade, o egoísmo, a arrogância, o unilateralismo, o interesse particular, a volúpia... e, em vez de ignorar ou maquiar estes irmãos e primos próximos do poder, Maquiavel, os tem em consideração ao propor sua análise do poder e das formas de conquistá-lo, administrá-lo e conservá-lo. Os práticos do poder costumam ser medíocres nesse aspecto, pois não se fala das técnicas de gerenciamento do poder nem são elas objeto de comentário, mas de todas valem-se eles e se utilizam para a gestão de suas posições. Maquiavel procura sistematizar sua experiência e seus conhecimentos sobre essas técnicas e legá-las para a posteridade e para aqueles que exercem funções de governo.105 Sobre o comportamento dos príncipes, Maquiavel demonstra inicialmente, certos ditames que devem ser seguidos a partir das características de governo. Nas monarquias hereditárias, basta que o monarca não transgrida os costumes tradicionais e que saiba adaptar-se a circunstâncias imprevistas. Nas monarquias mistas, onde sempre há mudanças de governantes, o príncipe fará inimigos pela ocupação do território, no entanto deve manter a amizade com aqueles que o ajudaram na conquista.106 O que esperar de um príncipe? O que desejar do poder e como administrá-lo? Quais métodos adotar para manter a estabilidade do poder? Todas essas são as questões que permeiam as idéias estabelecidas por Maquiavel.107 Na análise de Maquiavel, a paz só é alcançada por meio da guerra, e esta é, portanto, a preocupação para a qual o príncipe deve ater-se: Os príncipes, por conseguinte, não deveriam ter outro objetivo ou pensamento além da guerra, a organização e disciplina das tropas, nem estudar qualquer outro assunto; pois esta é a única arte que se espera de quem comanda. Tal é sua importância que não só mantém no poder os que nasceram príncipes, mas torna possível a homens comuns galgar a posição de soberano. Observemos que, quando os príncipes se interessam mais pelas coisas amenas do que pelas armas, perdem seus domínios. A causa principal da perda dos 105 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 146-147. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 32. 107 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 150. 106 41 Estados é o negligenciar a arte da guerra; e a maneira de conquistálos e ser nela bem-versado.108 Sendo assim, o príncipe precisa preparar suas tropas, que devem estar sempre em compasso de espera e em constante processo de aprimoramento. Soma-se a isso a importância de analisar as experiências gloriosas dos grandes homens do passado: [...] exercícios que devem praticar na paz mais ainda que na guerra, de duas formas: pela ação física e pelo estudo. A primeira consiste no constante exercício da caça, que habitua o corpo às agruras, além de manter seus homens bem-disciplinados e exercitados. [...] A fim de exercitar o espírito, o príncipe deve estudar a história e as ações dos grandes homens; ver como se conduziram na guerra, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, para imitar as primeiras e evitar as últimas. Acima de tudo, deve agir como alguns grandes homens do passado ao seguir um modelo que tenha sido muito elogiado e glorificado, ter sempre em mente seus gestos e ações.109 A biografia maquiavélica foi construída sob as disputas do Renascimento (século XVI) da burguesia ascendente da Itália e de uma Europa fracionada por grupos de interesse. A unificação e a estabilidade do poder eram, para Maquiavel, essenciais à reconstrução do seu mundo e da própria política.110 No capítulo XVII, o teórico trata da idéia de crueldade como uma atitude que por vezes faz-se necessária ao bom andamento do governo do príncipe: [...] todos os príncipes devem preferir ser considerados clementes, e não cruéis. É necessário, contudo, evitar o mau emprego dessa clemência. César Borgia foi tido como cruel, mas sua crueldade impôs ordem à Romanha; unificou-a, reduzindo-a à paz e gerando confiança. Se examinarmos desse ponto, veremos que na verdade ele foi muito mais clemente do que o povo florentino, o qual para se esquivar à fama de cruel permitiu a destruição de Pistóia. O príncipe, portanto, não deve se incomodar com a reputação de cruel, se seu propósito e manter o povo unido e leal. De fato, com uns poucos exemplos duros poderá ser mais clemente do que outros que, por muita piedade, permitirem os distúrbios que levem ao assassínio e ao roubo. Tais ocorrências, de modo geral, prejudicam toda a 108 MAQUIAVEL. Nicolau, O Príncipe. p. 92. MAQUIAVEL. Nicolau, O Príncipe. p. 94. 110 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 152. 109 42 comunidade, enquanto as execuções ordenadas pelo príncipe só afetam uns poucos indivíduos isolados.111 Mas Maquiavel também trata da importância da confiança dos súditos em seu soberano, pois ao inserir uma nova ordem, não faltaram opositores para inflamar as dúvidas na cabeça do povo. Quem se beneficiou com o antigo governo, será inimigo do novo príncipe. É necessário que o príncipe mantenha a aparência de que possui todas as qualidades que agradam seu povo, como a misericórdia, a lealdade, a sinceridade e a religiosidade, mas se houver necessidade de ater-se a outras condutas para ficar no poder, essas deverão ser usadas. A frase célebre deste político se passa justamente neste ponto: Nada é mais necessário do que a aparência da religiosidade. De modo geral, os homens julgam mais com os olhos do que com o tato: todos podem ver, mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos, e estes poucos não ousarão opor-se à maioria que tenha a majestade do Estado a defendê-la. Na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios. Portanto, se um príncipe pretende conquistar e manter o poder, os meios que empregue serão sempre tidos como honrosos, e elogiados por todos, pois o vulgo atenta sempre para as aparências e os resultados; o mundo se compõe só de pessoas do vulgo e de umas poucas que, não sendo vulgares, ficam sem oportunidade quando a multidão se reúne em torno do soberano.112 Para se manter na condição de dominante, o príncipe deve demonstrar sua amizade pelo povo. Ainda que tenha chegado ao poder por favor dos grandes, a norma é conservar a admiração destes e conquistar aqueles que não participaram do processo de sua ascensão ao trono. No capítulo XIX, Maquiavel adverte para a maneira de evitar o desprezo e o ódio. O príncipe deve evitar usurpar os bens e as mulheres dos súditos e que lute contra a ambição de poucos. Suas atitudes devem estar rodeadas de 111 112 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 101. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 108-109. 43 grandeza, força de ânimo, gravidade e fortaleza. Deve cuidar da questão interna, que são seus súditos e da externa, que são as potencias estrangeiras.113 As conspirações não existiriam, se os súditos forem favoráveis ao seu soberano e este não precisará temer a morte. Maquiavel cita um exemplo da França, onde havia muitas instituições que garantiam a liberdade do povo e a segurança do monarca. O parlamento era um modelo onde regiam estas circunstâncias.114 Ainda que siga por todos esses caminhos, e consiga impedir rebeliões, o príncipe deve dar atenção especial à maneira como seus soldados convivem com o povo. Maquiavel diz que os imperadores que chegaram ao poder vindos da condição de cidadão comum, pelas dificuldades e pelo interesse, agradavam somente aos soldados, atribuindo pouca importância ao que estes faziam contra o povo. O ódio de alguns é normal, o que não pode haver é o desprezo da massa e a ira dos partidos poderosos.115 Maquiavel se preocupou com a participação do cidadão dentro do Estado, a fim de que este esteja satisfeito e não se vire contra o governo: Os príncipes devem demonstrar também apreço pelas virtudes, dar oportunidade aos mais capazes e honrar os excelentes em cada arte. Devem, além disso, incentivar os cidadãos a praticar pacificamente sua atividade – no comércio, na agricultura ou em qualquer outro ramo profissional. Assim, que uns não deixem de aumentar seu patrimônio pelo temor de que lhes seja retirado o que possuem, e outros não deixem de iniciar um comércio, com medo dos tributos; devem os príncipes, ao contrário, instituir prêmios para quem é ativo e procurar de um modo ou de outro melhorar sua cidade ou Estado. Além disso, precisam manter o povo entretido com festas e espetáculos, nas épocas convenientes; e como toda cidade se divide em corporações ou em classes, devem dar atenção a todos esses grupos, reunir-se com seus membros de tempos em tempos, dandolhes um exemplo da sua solidariedade e munificência – guardando sempre, contudo, sua dignidade majestosa, que não deve faltar em nenhum momento.116 113 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 110-111. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 113. 115 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 115. 116 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 134-135. 114 44 Maquiavel também descreve a importância de escolher bem os ministros. A inteligência do governante se mede pelos homens que o cercam. Se estes são fiéis e eficientes, pode-se considerar o príncipe sábio. O ministro deve preocupar-se em primeiro lugar com os propósitos do Estado e não consigo mesmo. E o príncipe deve sempre adular e honrar seus ministros.117 Por fim, Maquiavel ressalta o modo como escapar das lisonjas, escolhendo com sabedoria seus conselheiros, dando-lhes liberdade para falar a verdade a fim de que estes sejam prudentes quando solicitados. O príncipe deve ser astuto, para que saiba discernir por si, e não pelos conselhos que lhe forem dados. O autor impõe uma regra infalível: [...] o príncipe que não é sábio por si mesmo não poderá ser bem aconselhado a não ser que por sorte se entregue às mãos de um homem de grande prudência, que o oriente em tudo. Neste caso, poderá sem dúvida receber bons conselhos, mas não por muito tempo, pois o orientador logo lhe usurpará o poder. Aconselhando-se com muitos, no entanto, o príncipe que não é sábio nunca receberá conselhos condizentes, e não saberá harmonizá-los por si mesmo.118 A obra de Maquiavel teve uma preocupação esmiuçadora com o tema política. Vivendo em uma época de grandes transformações neste âmbito e presenciando a destituição e ascensão de grandes reinos, o autor promove uma espécie de manual para o soberano, um guia para ascender e mais difícil que isto, manter-se no poder. A experiência era o que guiava Maquiavel, e este adotou uma ética de fins e não de meios para a política.119 Vale tudo para permanecer no poder, ainda que em desacordo com alguns, o que contava era a maneira como o Estado progredia. A segurança e a coerção do Estado são premissas que beneficiam o cidadão, de forma que este não consegue se desligar da sociedade, pois fora dela, não encontrará essa defesa se alguém o usurpá-lo. 117 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 136-137. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 141. 119 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p.124. 118 45 2.3 AS CONCEPÇÕES DE SOBERANIA DOS CONTRATUALISTAS 2.3.1 THOMAS HOBBES Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra em 1588 e está entre os principais autores do jusnaturalismo racional dos séculos XVI, XVII e XVIII, onde conceitua e sistematiza elementos essenciais para argumentar a unidade do Estado, o reforço do poder e a manutenção da sociedade civil.120 Entre suas principais obras destacam-se, Leviatã, De Cive e Elementos da lei natural e política. O jusnaturalismo racional de Hobbes enfatiza a questão da necessidade que o homem tem de adentrar e permanecer no estado civil de convívio, conforme expõe: “Para o que é do direito entre as nações, é a mesma coisa que a lei natural; porque o que é lei natural entre dois homens antes do estabelecimento da república, é, depois, o direito dos indivíduos entre soberano e soberano. (Hobbes, Elementos do direito natural e político, p. 237)”121 No estado de natureza, Hobbes aponta para um período précívico onde a lei maior era a liberdade no convívio social, onde reinava a violência e não existia uma autoridade soberana capaz de controlar o egoísmo feroz de cada um em busca de sua sobrevivência. A igualdade de todos, aliadas à liberdade de todos, logicamente resultará em conflitos. Diante do medo da morte e do desejo de uma vida confortável através do trabalho, os homens precisam criar normas de convivência, que poderiam ser chamadas de leis da natureza. Quando todos são contra todos, existe o que Hobbes identifica de estado de guerra, e por isso, propõe que o homem largue o estado de natureza e tencione em direção ao um estado civil por meio de um acordo, de um contrato. O Estado protege a vida e exerce o poder soberano, e para Hobbes é uma necessidade, segundo os comentários de Bittar: 120 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 155. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 156. 121 46 O Estado é uma necessidade, um impositivo para os homens que anteriormente viviam em estado de natureza. O Estado, e somente ele, é capaz de impor ordem, por instaurar um governo comum, regras comuns e exercer soberanamente a justiça da sociedade. Nesse sentido, a idéia da guerra como algo abominável, de que se tem de fugir, sob pena do extermínio completo de todos por todos, ressalte-se, é o que promove a propulsão acelerada do homem para a sociedade civil.122 O Leviatã é um monstro que Hobbes utiliza para caracterizar a figura do Estado, como uma criação do homem em substituição ao estado de natureza. O homem é capaz de se desenvolver e aperfeiçoar a natureza para lhe dar uma finalidade nobre de servir a todos. Inicialmente, com consenso de vontades, um contrato é fundado artificialmente pelos homens, e é firmado de modo irreversível entre as pessoas e o soberano.123 O poder do Estado é o mais forte para reunir o povo a fim de protegê-lo e de dar capacidade para que, através de um terceiro árbitro, possam resolver suas pendências de modo pacífico. Essa pacificidade que o Estado proporciona, gera segurança ante a ameaça de dissolução, de anarquia, de destruição e de retorno ao estado de natureza. Neste ponto Hobbes aponta que o poder conferido ao soberano deve ter sabores fortes, já que a soberania enfraquecida é instável. E mais uma vez, destaca-se a preferência de um teórico pela monarquia, tendo em vista o medo da desagregação e da corrupção completa do Estado, que para Hobbes é mais difícil de ocorrer no Estado monárquico.124 Quando trata da sociedade civil, Hobbes destaca que esta é fundada por meio de um pacto de união entre as pessoas, onde todos se sujeitam ao soberano e este reivindica obediência. A soberania que surge desse pacto possui três características: a irrevogabilidade, o caráter absoluto e a indivisibilidade, sem as quais o poder estatal não é verdadeiramente soberano. Vejamos a distinção dessas características segundo Bittar: a) um pacto de submissão estipulado entre indivíduos, e não entre o povo e o soberano; b) consiste em atribuir a um terceiro, situado 122 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 161. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 162-161. 124 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 164 -165. 123 47 acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza; c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três definições acima o sublinham, é uma única pessoa. O soberano exerce o poder absoluto, porém este encontra limites de ação quando a questão é o respeito da vida. O direito de viver e sobreviver fez com que os súditos aceitassem o pacto e por isso a todos é dada a garantia de unidade e ordem. E todos devem honrar ao pacto; o soberano garante a segurança e os súditos devem manter-se fiéis ao pacto.125 Hobbes define que a quebra deste pacto gera injustiça, guerra e desordem: Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o nãocumprimento de um pacto. E tudo que não é injusto é justo.126 Neste seguimento, Hobbes reflete que a lei é algo intrínseco do Estado, necessária para estabelecer obediência entre os súditos: Considerado isto, defino a lei civil da seguinte maneira: A lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não contrário a regra.127 Fazer, revogar e abolir leis são capacidades que o soberano possui tendo em vista a extensão de seus poderes. A lei é uma maneira de conduzir o Estado, e conforme as necessidades deste é que o soberano utiliza as leis de modo a aplicar o melhor fim aos seus súditos. As leis devem servir ao soberano e não o contrário. O soberano é quem deve controlar o sentido e a hermenêutica das leis vigentes no Estado e Hobbes teme que essas sejam desfavoráveis à vontade do soberano. Assim destacou Bittar sobre esse contexto: 125 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 166. HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. p. 123. 127 HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. p. 207. 126 48 [...] a natureza da lei não consiste na letra, mas na intenção ou significado, isto é, na autêntica interpretação da lei (ou seja, do que o legislador quis dizer), portanto a interpretação de todas as leis depende da autoridade soberana, e os intérpretes só podem ser aqueles que o soberano, (única pessoa a quem o súdito deve obediência) venha designar. Se assim não for a astúcia do intérprete, pode fazer que a lei adquira um sentido contrário ao que o soberano quis dizer, e desse modo o intérprete tornar-se-á legislador. (Hobbes, O leviatã, 1999, p. 213).128 Hobbes, assim como outros de sua época, é defensor do poder absoluto, da máxima integração do poder na pessoa do soberano. Antes, quando viviam em estado de natureza, os homens agiam de forma instintiva, sem rumo e sobre tudo sem limites. Surge a necessidade de autodefesa, de cada um pelo o que é seu. Neste ponto funda-se a sociedade para oferecer maior conforto, paz e prosperidade.129 E para a manutenção dessa sociedade civil é que os homens estabelecem um pacto com o poder. Esse poder está introduzido na figura de um soberano que deve proporcionar a ordem entre os súditos. Hobbes preocupa-se, portanto, com a manutenção da sociedade civil, tendo em vista que a anarquia seria o retorno ao estado de natureza, onde há destruição, guerra e dissolução.130 2.3.2 JOHN LOCKE John Locke nasceu no ano de 1632, em Wrington, na Inglaterra, e é considerado um dos principais pensadores da teoria política da Idade Moderna. Foi professor em Oxford, além de participar de cargos e funções públicas, que determinaram seu exílio na Holanda, de 1683 a 1689, antes de publicar suas principais obras, que são: Ensaios sobre a lei da natureza, Dois tratados sobre o governo civil; Ensaio sobre o entendimento humano e Cartas sobre a tolerância religiosa.131 Locke pode ser considerado o fundador do liberalismo político e traz consigo a idéia de que o conhecimento humano depende da experiência. 128 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 172. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 173. 130 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 174. 131 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 175-176. 129 49 Assim como Aristóteles, diz que ao nascer, a mente humana é uma tabula rasa que posteriormente vai se formando com base nas experiências e nas atividades sensoriais. Dessa preocupação com o conhecimento empírico, derivam outras idéias acerca das relações humanas e da formação da sociedade.132 Locke, assim como Hobbes também aborda os nomes, estado de natureza e estado civil, só que conceitua de maneira diversa. O estado de natureza é um estado real e histórico que constituiu a humanidade. O estado civil seria o aprimoramento do estado natural. No entanto, ambos chegam a um denominador comum: só o estado natural não basta.133 Locke aponta no capítulo III ‘Do estado de guerra’, que a falta de um juiz, uma autoridade detentora do poder decisório, é o que causa o estado de guerra, pois se não há quem faça um julgamento, o indivíduo sente-se no ‘direito de fazer guerra a seu agressor’.134 Quando Locke trata do estado civil, diz que este deixa o estado de natureza e passa a fundar-se nas relações sociais com amparo de autoridades que decidem e julgam conflitos. A sociedade civil, portanto, seria o oposto de estado de guerra e o aperfeiçoamento do estado de natureza.135 A formação da sociedade civil apontada por Locke no capítulo VII do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, é fruto de relações de obrigação, necessidade e conveniência de união, que a princípio são determinações de Deus e que conduzem o homem conseqüentemente a livra-se do estado de natureza.136 Neste ponto Locke trata também da questão de conservação, onde a primeira das sociedades, o homem e a mulher, deu origem à família e convivem por comunhão de interesses e no cuidado essencial que precisam ter com a prole: 132 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 177. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 178-179. 134 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 180. 135 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 182. 136 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 57. 133 50 A sociedade conjugal é formada mediante pacto voluntário entre homem e mulher; e embora consista principalmente na comunhão e direito ao corpo um do outro, como exige seu fim principal, que é a procriação, traz consigo o sustento e amparo mútuos, bem como comunhão de interesses, necessária não só para o cuidado recíproco, mas também em proveito da prole comum, que tem o direito de ser alimentada e orientada por eles até ser apta para prover às próprias necessidades.137 Algumas são as características que permeiam a sociedade civil e que são a ampliação da sociedade familiar: possibilidade de punir seus membros; perda do poder natural por parte de seus membros; atribuição de poderes, para que decida conforme as leis pela sociedade estabelecidas; exercício do direito de soberania; constituição de uma autoridade julgadora dos conflitos entre os indivíduos; etc.138 O governo deve zelar pelos fins da sociedade civil e pela conservação da propriedade, algo que no estado de natureza não é possível. Aqui é possível rever mais uma vez respaldo na teoria contratual da formação do Estado: Por isso, os homens, apesar dos privilégios do estado de natureza, nele permanecendo em condições precárias, são rapidamente introduzidos a se associar. Daí resulta que raramente se encontra um grupo de homens vivendo nessas condições. Os percalços a que os expõem o exercício irregular e aleatório do poder próprio do homem, de punir as transgressões dos outros, obrigam-nos a buscar abrigo nas leis estabelecidas e no governo, e nele buscar a preservação da propriedade. É isso que os induz a abdicarem de boa vontade do poder individual de punir, para que um só indivíduo, por eles escolhidos, o exerça; e isso através de regras que a comunidade, ou os que ela eleger, concordem em estabelecer. E nisso residem o direito original dos poderes legislativo e executivo, bem como dos governos e da sociedade.139 A respeito dessa distinção, Locke conclui que todos os poderes devem estar submetidos ao Poder Legislativo: Em qualquer caso, enquanto vigora um governo, o legislativo é o poder supremo; o que deve fazer leis para os demais deve necessariamente ser-lhe superior; e uma vez que o legislativo é superior apenas pelo trabalho de fazer leis válidas para todos os 137 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 57. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 183. 139 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 85. 138 51 membros da sociedade, prescrevendo regras às suas ações, e acionando o poder executivo quando as transgredirem, o legislativo necessariamente terá de ser supremo, e todos os outros poderes vigentes na sociedade, dele derivados ou a ele subordinados.140 Essa hierarquia é a condição para a manutenção do Estado e diferentemente de Hobbes, que aponta um soberano para manter a coesão do Estado, Locke afirma que ninguém está submetido a outro poder senão ao poder contido na lei. Eis ai o princípio da legalidade, que marca todas as constituições dos Estados Democráticos de Direito. Submeter-se às leis, é não estar condicionado a nenhuma outra forma de autoridade, pois ninguém pode estar submetido a outro, mas sim todos devem estar sob o comando da lei.141 Por fim, ao analisar a obra de Locke e compará-la a de Hobbes, ambos jusnaturalistas, é possível destacar principalmente, como já mencionado, o estado de natureza e o estado de guerra. Locke acredita que o estado de natureza é regido pela razão e que o estado civil instaura-se para evitar o estado de guerra. Locke destaca que a garantia de propriedade e a conveniência de se manter um poder soberano, pertence ao Poder Legislativo, já que este é quem cria as regras de convivência em sociedade com base na vontade da maioria. Neste Estado, aquele que, eleito pelo povo tornar-se ilegítimo, será destituído e um novo representante será escolhido a fim de que atenda a perspectiva de todos. 2.3.3 MONTESQUIEU Charles Louis de Secondat, também conhecido como Barão de La Brède et de Montesquieu, nasceu em 1689 e teve grande influência teórica sob o reinado de Louis XV, na França iluminista pré-revolucionária do século XVIII. Seus estudos foram feitos na Faculdade de Direito de Bordeaux. Ficou muito próximo da 140 141 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 102. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 187. 52 corte e de figuras políticas importantes da época, o que lhe proporcionou grandes viagens e a convivência com grupos literários do momento.142 Sua principal obra de destaque político foi O espírito das leis, que tratava de assuntos impertinentes ao cenário católico dogmático e que entrou para o índex librorum prohibitorum,143(lista de publicações proibidas pela Igreja Católica. Montesquieu aborda a importância das leis na sociedade e porque os homens vivem sob a regência delas, traço que aborda nos livros XI e XII sobre a liberdade política e da liberdade em relação ao Estado. Montesquieu opõe-se à teoria hobbesiana quando vê nas leis uma forma de regulamentação do convívio social e não uma imposição para que o estado de guerra cesse: Aliás, ele nega total aderência a Hobbes, que identifica na guerra de todos contra todos a necessidade de surgimento do Leviatã. Montesquieu vê com moderações a postura de Hobbes, e apenas diz que a guerra entre as nações deu origem às legislações. Essas legislações serão, então: o das gentes (relações entre os povos); o direito político (governantes e governados); o direito civil (cidadãos entre si). Eis aí o surgimento das leis como forma de regulamentação da conduta humana. Ora, sem leis o convívio social estaria desfalcado de algo que parece ser sua linha-mestra.144 E sobre a liberdade política expõe logo no início, a subordinação às leis: Deve-se ter em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam esse poder. 145 Segundo Montesquieu, na democracia e na aristocracia não existe liberdade política e esta só pode ser encontrado nos Estados moderados que não abusam do poder. Diz que a liberdade política em um cidadão vem da opinião 142 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190. 144 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190. 145 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 164. 143 53 de tranqüilidade que cada um faz a respeito da sua segurança, e que o governo, para manter essa liberdade, precisa que nenhum cidadão tenha medo de outro.146 Quando, em 1729, Montesquieu viajou para a Inglaterra, verificou a possibilidade de a teoria da separação dos três poderes tornar-se um princípio universal na construção da liberdade. Com isso, pretendia estudar uma maneira que seria suficientemente garantidora da liberdade dos cidadãos.147 No livro XI, onde trata da divisão dos poderes do Estado em legislativo, executivo e judiciário, Montesquieu expõe que tudo estaria perdido se o mesmo homem ou um grupo de principais exercesse os três poderes, pois tampouco existiria liberdade, visto que o mesmo homem seria juiz e legislador, tornando-se um opressor.148 O poder de julgar, segundo o teórico, deve ser exercido por pessoas de classe popular para formar um tribunal que dure o tempo necessário para seu intuito, onde não existiria um senado permanente. Uma vez que, em um Estado livre, todo homem que supostamente tem uma alma livre deve ser governado por si mesmo, seria necessário que o povo em conjunto exerça o poder legislativo; mas como isso é impossível nos grandes Estados, e nos Estados pequenos estaria sujeito a muitos inconvenientes, é preciso que o povo exerça pelos seus representantes tudo o que não pode exercer por si mesmo.149 Já o poder executivo deve estar confiado a uma só pessoa, visto que, as ações nessa parte do governo, devam ser tomadas rapidamente e se disto depender várias pessoas, como por exemplo, com o poder legislativo, não serão bem administradas.150 No décimo segundo livro, como ora citado, Montesquieu dispõe sobre a liberdade política na relação com o cidadão, a idéia de que a liberdade das 146 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 166. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 194. 148 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p.165-166. 149 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 168. 150 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p.170. 147 54 pessoas está ligada à própria vontade e à segurança que a lei proporciona a cada indivíduo.151 Montesquieu esclarece que os homens devem ser condenados de acordo com a especificidade do crime, onde então a liberdade triunfa, e não há que existir a violência de um homem contra outro. Classifica quatro espécies de crime: [...] os da primeira espécie ferem a religião; os da segunda, os costumes; os da terceira, a tranqüilidade; e os da quarta, a segurança dos cidadãos. As penas a serem aplicadas devem derivar da natureza de cada uma dessas espécies 152 Nesse ponto Montesquieu diz que, como a distribuição de bens não é comum a todos, então os cidadãos que violam os bens de outros, devem ser punidos com a pena corporal para suprir a pecuniária.153 É possível identificar que a garantia de segurança, favorece a liberdade para o cidadão. Essa liberdade disponibilizada através das leis é considerada umas das máximas de Montesquieu. Montesquieu viveu numa época peculiar, marcada pelo movimento Iluminista, que tinha como princípios filosóficos, a reflexão das origens, dos fins e das formas das leis. Portanto, uma época marcada pela instrumentalização da sociedade contra as ideologias da Igreja e pela ofensiva ao sistema feudal do Estado Medieval. Também o jusnaturalismo pode ser revisto na obra de Montesquieu, quando parte do fundamento de que as leis positivas são precedidas pelas naturais e que naturalmente devem se completar. 2.3.4 JEAN-JACQUES ROUSSEAU 151 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 196-197. MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis p. 198. 153 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis p. 200. 152 55 Jean Jacques Rousseau nasceu em 1712, em Genebra, e sua filosofia, seus pensamentos e suas idéias foram fortes argumentos de sustentação para a Revolução Francesa de 1789. Suas principais obra de doutrina política foram Do Contrato Social e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Rousseau preocupa-se com a idéia do contrato social. No que consiste este contrato; se é algo artificial e convencionalmente se pactua formar; qual o surgimento da pessoa que não se confunde com os indivíduos que fazem parte do pacto; fala-se em uma pessoa pública ou corpo coletivo. A vontade geral tem que sobrepor-se à vontade individual, o que garante a condição de igualdade entre os homens onde o entrelace é o pacto social. O jusnaturalismo rousseauniano difere do de Hobbes, quando prevê que é do estado de natureza que emana a perfeição, onde repousaria a felicidade, a igualdade, a abundância, etc. Aqui não reina a noção de guerra de todos contra todos, e é também onde se encontra o “homem livre, com o coração em paz e o corpo de boa saúde.”154 Rousseau adverte-se para o conceito de vontade geral, conforme expõe Bittar: A vontade geral é algo que transcende e que está acima das vontades individuais. Trata-se de outra vontade, resultante da união das vontades individuais não como somatório, nem como repositório de vontades, mas como conjunção de interesses num só. Com isso, não se está a falar de unanimidade, mas de consenso, com base na idéia da maioria. O consenso da maioria é o diferencial.155 Na acepção de Rousseau, o povo é quem detém a soberania e da emanação desta é que as leis são criadas. Com a intenção de manter a ordem, a agregação do pacto e a união de interesses é que necessário que a lei impere, pois é ela quem protege a vontade geral. 154 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 201. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 199. 155 56 No Livro I, Rousseau expõe que o soberano é a união dos particulares que o constituem e que o seu interesse não pode ser contrário aos deles. O pacto social precisa que todos obedeçam a vontade geral e quando algum indivíduo foge dessa imposição, então todos o forçarão à obediência.156 Rousseau destaca no Livro II, que a soberania é inalienável e indivisível. É inalienável, pois é somente a vontade geral que pode dirimir as forças do Estado, com o fim único do bem comum, tendo em vista que os interesses são recíprocos: Digo, portanto, que, não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode representar. É dado transmitir o poder, não a vontade.157 A soberania é indivisível, como se pode supor, pois a vontade é una e não vem de uma só parte do povo. Não se pode dividir o princípio de soberania, mas é possível dividir o objeto, como por exemplo entre o poder executivo e legislativo: A soberania é indivisível pela mesma razão de ser inalienável. Porque ou a vontade é geral, ou não; ou é a do corpo do povo, ou só de uma parte dele. No primeiro caso, a vontade declarada é um ato de soberania e faz lei. No segundo, não é mais que uma vontade particular, ou ato de magistratura; é, quando muito, um decreto. Mas nossos políticos, não podendo dividir o princípio da soberania, dividem-lhe o objeto; dividem-no em força e em vontade, em poder legislativo e em poder executivo, em direitos de imposição, de justiça, e de guerra, em administração interior e em poder de tratar com os estrangeiros; algumas vezes confundem todas estas partes, outras a separam; fazem do soberano um ser fantástico, composto de peças reunidas, como se formassem o homem de muitos corpos, dos quais um tivesse olhos, outros braços, outro pés, e nada mais.158 Rousseau trata também dos limites do poder soberano, onde estabelece que o soberano faz parte do pacto social e que todos, sem distinção estão igualmente obrigados das mesmas condições. O soberano conhece o corpo da nação que representa: 156 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 31-32. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 36. 158 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 37. 157 57 Que é pois rigorosamente um ato de soberania? Não é uma convenção do superior com o inferior, mas uma convenção do corpo com cada um de seus membros; convenção legítima, porque se escora no contrato social; justa, por ser a todos comum; útil, porque não pode ter outro alvo senão o bem geral; e sólida, porque a força pública e o poder supremo lhe servem de garantia. Enquanto os vassalos estão sujeitos a tais convenções, não obedecem a ninguém, salvo à própria vontade; e perguntar até onde se estendem os direitos respectivos dos soberano e dos cidadãos é perguntar até que ponto estes se podem comprometer consigo mesmos, cada um com todos e todos com cada um.159 Para complementar as idéias a respeito da figura do soberano, Rousseau aborda a maneira de manter a autoridade soberana. Diz que o soberano não possui outra força senão a do legislativo e que por meio das leis é que lhe é permitido obrar, mesmo que o povo não esteja presente, visto que as leis provém da vontade geral. Neste ponto, é necessário reforçar que o soberano para Rousseau, caracteriza-se como sendo o povo, o titular do poder. Para Rousseau, o pacto transforma a condição natural dos homens e os traz para a realidade cívica. Já nas primeiras abordagens que trata no Contrato, o filósofo destaca q questão da liberdade. “O homem nasceu livre, e por toda parte geme agrilhoado”160; quando passa da condição natural ao passar ao estado cívico, o homem perde alguns direitos que lhe eram atribuídos pela própria natureza, e Rousseau, através de seu jusnaturalismo, embutiu o retorno ao natural dentro do estado cívico, por meio da recuperação de valores da condição natural.161 159 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p .41. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 21. 161 BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 203. 160 58 Capítulo 3 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 3.1 O ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 O conceito de Constituição pode ser definido, em sentido amplo, como o ato de constituir, de estabelecer, de firmar ou ainda um modo pelo qual os indivíduos se organizam, porém, juridicamente a Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado.162 Ao estudar a evolução constitucional brasileira, percebe-se a distinção entre três fases históricas com relação a valores políticos, jurídicos e ideológicos, que caracterizaram as instituições. A primeira, vinculada aos moldes do constitucionalismo francês e inglês do século XIX; a segunda, já com certo interstício, atada ao modelo norte-americano e a terceira, que está em curso, a presença de traços do constitucionalismo alemão atual.163 Interessante analisar esse desenvolvimento, tendo em vista a importância da cada fase para o processo de formação da atual Carta de 5 de outubro de 1988. O primeiro período histórico constitucional do Brasil inicia-se no ano de 1822, ano da independência e vai até 1889, com o advento da República. Entre alguns fatos importantes dessa fase, é possível destacar: o decreto de 3 de julho de 1822, que convocou uma ‘Assembléia Luso-Brasiliense’; a instalação da Assembléia Constituinte, em 3 de maio de 1823; a outorga da Constituição Política 162 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 6. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p.361. 163 59 do Império do Brasil, de 25 de março de 1824; o Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, a única emenda constitucional da Monarquia.164 O projeto desta Constituinte seguia basicamente a estrutura da organização dos três poderes, conforme Montesquieu: Executivo, Legislativo e Judiciário. Mais tarde, a Constituição Imperial somaria o Poder Moderador, aderindo ao modelo de Benjamin Constant; e sob a inspiração francesa de 1791, abordava a garantia dos direitos individuais e políticos. 165 Em breve síntese, Bonavides atenta para a maneira como decorreu este período: [...] a monarquia constitucional do Império do Brasil foi um equilíbrio relativamente estável, pois durou 65 anos, entre o princípio representativo, gerador de um parlamentarismo sui generis, introduzido nos mecanismos institucionais, e o princípio absolutista, dissimuladamente preservado com prerrogativas de poder pessoal, de que era titular, o Imperador, em cujas mãos se acumulava, tanto em termos formais como efetivos, o exercício de dois poderes: o Executivo e o Moderador. O último concentrava mais faculdades de mando e competências do que o primeiro. A monarquia foi, não obstante, um largo passo para a estréia formal definitiva de um Estado liberal, vinculado, todavia, a uma sociedade escravocata, aspecto que nunca se deve perder de vista no exame das instituições imperiais166 Na segunda fase, temos o constitucionalismo da primeira república e, conforme mencionado, a adoção do modelo americano com o federalismo e o presidencialismo. É neste ponto que o Brasil ingressa de vez na sua história constitucional e muda o foco dos valores e princípios de organização formal do poder para os princípios chaves que faziam a estrutura do novo Estado: o sistema republicano, a forma presidencial, a forma federativa do Estado e o funcionamento de uma suprema corte. Enfim, tudo se funde para o chamado ideal de democracia republicana imperante nos Estados Unidos.167 164 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 363. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 363. 166 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 364. 167 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 364-365. 165 60 A Constituição republicana de 1891 ganhou uma só revisão, promulgada em 1926, e não obteve êxito em sua finalidade nem impediu que a primeira república desmoronasse, em decorrência da devassidão do poder oligárquico. Na terceira fase, temos o constitucionalismo do Estado social, iniciando com a promulgação da Constituição de 1934 e caracterizada pelas crises, golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de presidentes, bem como a queda de governos, repúblicas e Constituições. Nesta constituição de 1934, penetra-se uma nova corrente de princípios que consagravam o aspecto social. Esse período (Segunda República de 1934-1937) foi agônico e marcado pelo golpe de Estado de 1937.168 A nossa segunda Constituição Republicana de 1934 trouxe novas imagens em matéria constitucional, e reaparecem de maneira ainda mais expressiva no texto constitucional de 1946: [...] a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado. [...] da Constituição de 1946, que preceituava a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela forma que a lei determinar 169 Com o golpe de Estado de 1945, foi eleita uma Assembléia Constituinte que formulou uma nova Constituição, a da terceira República, promulgada em 18 de setembro de 1946 e que perdurou até 1964, com a chamada ‘revolução’ dos militares: Desse largo e acidentado período – a terceira época constitucional do Brasil – vamos destacar para exame e reflexão, em primeiro lugar, os estatutos fundamentais expedidos com algum grau de legitimidade e que durante certo espaço de tempo – não importa se curto ou prolongado – mantiveram as aparências dum regime normal de governo, debaixo do princípio representativo e das regras 168 169 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 366 -367. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 369. 61 inerentes ao denominado, Estado de Direito, propugnado pelas ideologias do liberalismo. Aí se inserem, por exemplo, as Constituições de 16 de julho de 1934 e 18 de setembro de 1946, bem como a recém-promulgada Constituição de 5 de outubro de 1988. 170 Estes documentos têm profunda influência do constitucionalismo alemão do século XX: O constitucionalismo dessa terceira época fez brotar no Brasil desde 1934 o modelo fascinante de um Estado social de inspiração alemã, atado politicamente a formas democráticas, em que a Sociedade e o homem-pessoa – não o homem-indivíduo – são os valores supremos. Tudo, porém, indissoluvelmente vinculado a uma concepção reabilitadora e legitimante do papel do Estado com referência à democracia, à liberdade e à igualdade.171 A mais recente das constituições brasileiras, a de 5 de outubro de 1988, também seguida dos inovadores preceitos trazidos pela Constituição de 1934, busca na técnica, na forma e na substância da matéria pertinente aos direitos fundamentais que derivam da Lei Fundamental alemã de 1949, a preeminência ao social.172 Feita essa retrospectiva da história da Constituição brasileira e tendo em vista, que atualmente ela é fundamentalmente voltada para o âmbito social, cabe analisar essa característica do Estado brasileiro. Conforme exposto na Constituição da República Federativa do Brasil, O Estado brasileiro é um Estado democrático de direito. Por Estado de Direito, é possível denominar alguns traços de legitimidade que o compõe: pactuado ou outorgado, todo direito pode ser estabelecido de modo racional, e com propensão de ser respeitado, ao menos pelos seus membros; todo direito, em essência, é um sistema de regras abstratas que de maneira geral são estabelecidas intencionalmente; o soberano orienta, manda e obedece a uma ordem impessoal pela qual orienta suas disposições. Segundo Reinaldo Dias: Assim, o Estado de direito implica o estabelecimento de um sistema de normas jurídicas hierarquicamente dispostas, à frente das quais está a Constituição. O restante das normas do ordenamento jurídico 170 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 367. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 368. 172 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 369- 370. 171 62 está subordinado a ela, com a qual se garante o respeito à liberdade individual que é essencial ao poder do Estado com seus agentes submetidos à lei, evitando, desse modo, a possibilidade da existência de abusos que prejudiquem a liberdade individual. É necessário destacar que o Estado de direito implica a existência de toda uma série de garantias, basicamente judiciais, que operam quando a liberdade individual está vulnerável.173 O Estado social, que também se pode denominar característico do Estado brasileiro, é um modelo que sucede o Estado liberal democrático e que alarga sua intervenção na sociedade, no que diz respeito à economia e a prestação de serviços que atendem as demandas sociais. Tem como pontos característicos conforme Dias: [...] intervenção do Estado na economia, que tem o objetivo de manter a renda e o emprego. Esta intervenção se dá, principalmente, através da regulação do mercado e participação do Estado na sustentação de uma economia social; prestação de serviços públicos de caráter universal (educação, saúde, previdência social, habitação etc.) com os quais se pretende garantir um nível mínimo de atendimento à população. A responsabilidade estatal na manutenção desse nível mínimo deve ser entendida como um direito e não caridade pública para uma minoria.174 Dois conceitos não podem ser confundidos: o liberalismo e a democracia, pois a idéia chave do liberalismo é a liberdade e da democracia é a igualdade, considerada como o direito de todos os cidadãos ao acesso a condições idênticas.175 Das diversas dimensões essenciais da Constituição de 1988, ela é basicamente uma constituição do Estado Social. É com base nos conceitos dessa modalidade de ordenamento que devem ser examinados e resolvidos os problemas referentes a relações de poderes e exercício de direitos subjetivos. Pois uma Constituição do Estado liberal diz respeito a uma constituição antigoverno e uma Constituição do Estado social refere-se a valores imunes ao individualismo do direito e ao absolutismo no poder.176 173 DIAS, R. Ciência Política. p. 221. DIAS, R. Ciência Política. p. 223-224. 175 DIAS, R. Ciência Política. p. 222. 176 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 371. 174 63 Podemos identificar pelo conteúdo do Capítulo II, dos artigos 6º a 11 da Constituição Brasileira de 1988, que o Estado nacional é um Estado social, onde ficam explicitados os direitos sociais, que se estendem a todos sem distinção. Estão incluídos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.177 Posteriormente, o artigo 7º destaca o direito dos trabalhadores; o artigo 8º afirma a liberdade de associação; o artigo 9º garante o direito de greve; no artigo 10º fica garantida a participação dos trabalhadores e empregadores nos órgãos que tratem de seus interesses profissionais e previdenciários e o artigo 11º institui que as empresas com mais de duzentos funcionários, deve ter um representante dos trabalhadores, que será escolhido por meio de eleição. Além disso, outros artigos detalham durante todo o decorrer da Constituição, o caráter social que prevalece no Estado brasileiro. 178 Por outro lado, apesar de produzir condições e desígnios reais ao exercício dos direitos fundamentais, é possível perceber uma dependência do indivíduo em relação às prestações do Estado, incumbindo este, de cumprir a tarefa igualitária e distributiva, sem a qual não há democracia nem liberdade.179 O que se conclui desse ponto, é que proporcionar igualdade entre os membros da sociedade, não é tarefa somente do Estado. A liberdade dos indivíduos tornou-os aptos a manterem-se em posições sociais desniveladas, o que altera um dos princípios do Estado democrático brasileiro. Vejamos o que comenta Bonavides: Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez desatendidos, se tornam os grandes desestabilizadores das Constituições. Tal acontece sobretudo nos países de economia frágil, sempre em crise. Volvidos para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se inserem numa esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime. Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazêla dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas 177 DIAS, R. Ciência Política. p. 226. DIAS, R. Ciência Política. p. 226-227. 179 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 378. 178 64 crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania e as instituições.180 Por fim, é interessante suscitar a crise constituinte existente no Brasil, onde o futuro de uma nova Constituição depende em grande parte da adequação da lei às exigências da sociedade na busca por governos sólidos e legítimos. Já não se discute mais direitos e sim garantias, numa Constituição cunhada em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora remetem a concretização do preceito contido na norma ou num dispositivo de uma lei complementar ou ordinária, mas que nunca se forma. Um exemplo disso, é o disposto no inciso IV do art. 157 da Constituição de 1946, que trata da participação dos trabalhadores nos lucros da empresa. Este dispositivo esteve presente em quatro Constituições, inclusive na atual de 1988 e até hoje não se aplicou ou foi regulamentado.181Segundo Bonavides, “a crise da estatalidade social no Brasil não é de uma Constituição, mas a da Sociedade, do Estado e do Governo; em suma, das próprias instituições por todos os ângulos possíveis”.182 Importante estabelecer uma diferenciação entre uma crise constitucional e a crise constituinte. Se há uma irregularidade em algum ponto da Constituição, então basta removê-la e utilizar de uma revisão. A crise da Constituição, no entanto, é uma crise do próprio poder constituinte, que quando reforma ou organiza, não altera ou arranca a raiz dos males políticos e sociais que agoniam o Estado, as instituições, a Sociedade e o regime.183 3.2 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS BASILARES DO ESTADO BRASILEIRO O Estado brasileiro quanto a sua forma, se classifica com uma democracia parlamentarista, mas seu regime ou sistema de governo é o presidencialista onde ocorre uma separação estrita entre os Poderes Executivo e Legislativo. O sistema presidencialista, inspirada na teoria de Montesquieu, tem sua principal característica no princípio da separação das funções dos Poderes 180 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 380. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 381-382. 182 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 383. 183 BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 383-384. 181 65 Executivo e Legislativo. Há uma interdependência recíproca entre o Congresso que não dá voto de censura ao Executivo, e nem este pode dissolver o Congresso.184 O presidencialismo possui as seguintes características: O Poder Executivo está concentrado em uma pessoa, o presidente da República que é eleito pelo povo e, portanto sua legitimidade procede deste, bem como possui independência de exercício, pois seu mandato pode ser renovado.185 O Poder Legislativo é atribuído a um Parlamento bicameral. O Senado e a Câmara dos Deputados formam o Congresso que também goza de dupla independência; de origem (legitimado pelo sufrágio universal) e de exercício (não pode ser dissolvido pelo presidente e seu mandato e tem prazo fixo: oito anos para o Senado e quatro para a Câmara).186 Risco de conflitos devido à estrita divisão de poderes. Por se tratar de um Estado democrático, existe uma unidade de decisão e isto não significa que deva haver uma organização política monolítica, mas que possíveis discordâncias devem ser relegadas a um segundo plano em nome da unidade e do comando.187 O Brasil é um Estado federado e este se origina de um ato regido pelo direito público interno. Esta estrutura possui uma delicada disposição de relações de poder entre o governo federal e os Estados – membros e os poderes locais (municípios). Estas relações estão em constante movimento, estabelecendose um equilíbrio dinâmico de poder que oscila entre as diversas aspirações de maior autonomia e menor dependência em relação ao poder central. Cada Estado que forma a federação possui sua própria Constituição com base nos princípios da Constituição federal, e todo município possui sua lei orgânica.188 184 DIAS, R. Ciência Política. p. 147-148. DIAS, R. Ciência Política. p. 148. 186 DIAS, R. Ciência Política. p.148. 187 DIAS, R. Ciência Política. p. 148. 188 DIAS, R. Ciência Política. p. 144. 185 66 Dentre as formas de exercício de poder, o Estado brasileiro adotou a democracia, que significa o governo do povo. Na democracia, os indivíduos influenciam abertamente na tomada de decisões. Os cidadãos, por intermédio de seus representantes legitimados, assumem deliberações coletivas que sustentam a convivência social onde todos os habitantes são livres e iguais perante a lei.189 O Brasil contemplou na Constituição de 1988, mecanismos de democracia direta, quando incluiu a iniciativa popular, o referendo, plebiscito, entre outros. Toda essa estrutura que baseia a representação por meio do direito ao voto, e que constitui a legitimidade e soberania do povo, caracteriza o sistema de governo adotado pelo país, através de plebiscito em 1993: uma república federativa constitucional presidencialista.190 A democracia parlamentar engloba as seguintes características: [...] legitimação a partir do princípio de soberania popular e participação política dos cidadãos; emanação democrática do direito, através de um parlamento, escolhido pelo povo; responsabilidade dos poderes públicos. A democracia parlamentar como forma de Estado, portanto, não se refere à articulação dos poderes desse Estado, mas sim ao fundamento legitimador: o povo, representado no Parlamento, instituição central do Estado.191 Contemporaneamente, a idéia de democracia consiste basicamente, num modelo de governo em que o poder político não pertence a nenhum grupo determinado e limitado de pessoas ou uma pessoa, mas a todo povo na forma do direito. Algumas são as considerações que sustentam esta definição: 1. O exercício da autoridade (soberania) que se reflete nos diferentes órgãos do sistema ocorre de acordo com o direito. Significa portanto, que não existe, pelo menos teoricamente, arbitrariedade e, portanto, não existem ações que não estejam prescritas pelas normas jurídicas. Estas têm origem no Poder Legislativo, que por sua vez possui a legitimação do eleitorado. 2. Os órgãos dos sistemas dependem do povo, no sentido de que é este que os escolhe e os controla efetivamente. Em termos ideais o melhor seria que os três poderes dependessem do povo, no sentido de sua escolha e efetivo 189 DIAS, R. Ciência Política. p. 152. DIAS, R. Ciência Política. p. 153. 191 DIAS, R. Ciência Política. p. 154 – 155. 190 67 controle. 3. É desejável a tendência a que todos os membros do sistema tenham voz e voto em condições idênticas aos demais. As desigualdades devem estar limitadas ao mínimo razoável e, no caso de que não estejam, deve existir um controle para que deixem de ser efetivas. Nesse sentido é que se pode identificar a tendência de ampliação do direito de voto para as mulheres, adolescentes etc.192 O Estado democrático de direito brasileiro rege-se pelos princípios elencados no Título I da Constituição da República Federativa do Brasil e tem por fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. A soberania pode ser definida como um poder supremo e independente. Supremo pois não está limitado por nenhuma outra ordem interna e independente, pois na sociedade internacional decide voluntariamente se aceita regras e se está em igualdade com os poderes dos outros povos.193 A cidadania se apresenta como o direito fundamental das pessoas. A dignidade da pessoa humana contempla os direitos e garantias fundamentais, de modo que somente excepcionalmente possam ser feitas limitações a esses direitos, sem, no entanto, menosprezar a estima que merecem todos os seres humanos.194 O trabalho dignifica o homem, lhe garante a subsistência e fortalece o crescimento do país. A Constituição assegura a liberdade, o respeito e dignidade do trabalhador (CF, arts. 5º, XIII; 6º,7º,8º). E por fim, o pluralismo político afirma a ampla e livre participação popular no futuro político do país, e garante a liberdade de pensamento político e a da associação e participação em partidos políticos.195 Ainda é importante destacar os princípios que regem a República do Brasil em suas relações internacionais, que são os seguintes: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos 192 DIAS, R. Ciência Política. p. 159. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 21. 194 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 21-22. 195 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 22. 193 68 povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e a concessão de asilo político. O asilo político, por exemplo, consiste em acolher um estrangeiro por parte de um Estado que não o seu, em conseqüência de perseguição por ele sofrida e praticada por seu país ou mesmo por terceiro. Os motivos dessa perseguição pode ser de base política, liberdade de pensamento ou crimes contra a segurança do Estado, que não se configurem como penais. Ao entrar nas fronteiras de um novo Estado, ao estrangeiro que teve sua entrada autorizada, passa ao âmbito soberano deste Estado. Outros dois princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro de forma bastante propalada são o princípio da igualdade e o da legalidade. O princípio da igualdade de direitos adotado pela Constituição Federal de 1988, marca de maneira profunda a relação do indivíduo para com o Estado, tendo em vista o tratamento idêntico que a lei dá a todo cidadão. O conceito tradicional de Justiça permite que se trate com desigualdade os desiguais, o que não se permite é que sejam feitas discriminações absurdas e diferenciações arbitrárias.196 Senão, vejamos o que dispõe Alexandre de Moraes: O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão do sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.197 196 197 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 36. MORAES, A. Direito Constitucional. p.37. 69 Importante ressaltar que a igualdade possui três finalidades limitadoras, quais sejam: a limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular. O legislador não deve afastar-se do princípio da igualdade sob pena de flagrante de inconstitucionalidade. O intérprete/autoridade pública não pode aplicar as normas de maneira que crie ou aumente as desigualdades. O Poder Judiciário, em especial, deve manter sua interpretação sempre ligada à norma jurídica. E finalmente, o particular não deve agir de forma a ferir este princípio, de maneira que não pode pautar-se em condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas.198 O princípio da legalidade, elencado no artigo 5º, II, da Constituição, prescreve que somente em virtude de lei, o indivíduo será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo. Só por meio de normas e de um devido processo legal é que se criam obrigações. O privilégio da vontade detentora do poder cessa com o primado soberano da lei.199 Moraes faz uma fundamental análise da ligação que o Poder Legislativo tem com esse princípio: Importante salientarmos as razões pelas quais, em defesa do princípio da legalidade, o Parlamento historicamente detém o monopólio da atividade legislativa, de maneira a assegurar o primado da lei como fonte máxima do direito: trata-se da sede institucional dos debates políticos; configura-se em uma caixa de ressonância para efeito de informação e mobilização da opinião pública; é o órgão que, em tese, devido a sua composição heterogênea e a seu processo de funcionamento, torna a lei não uma mera expressão dos sentimentos dominantes em determinado setor social, mas a vontade resultante da síntese de posições antagônicas e pluralistas da sociedade.200 Combinado ao princípio da legalidade, encontra-se o da reserva legal que incide sobre os campos materiais especificados pela Constituição. Há que não se fazer confusão, pois o princípio da legalidade significa a submissão à lei e a reserva legal cuida da regulamentação de certas matérias que devem fazerse necessariamente por lei formal. Quando a Constituição reserva conteúdo específico à lei, encontra-se o princípio da reserva legal. Este pode se dar de duas 198 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 37-38. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 41. 200 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 42. 199 70 maneiras: absoluta, quando para sua total regulamentação, a constituição exige lei formal de acordo com o devido processo legislativo constitucional e relativa quando apesar da exigência de lei formal, outro órgão administrativo pode complementá-la, sempre observados os limites da legislação.201 Além dos já citados, é de tamanha importância expor também como princípios chaves de destaque permanente no ordenamento jurídico brasileiro: princípio do juiz natural e do devido processo legal. O princípio do juiz natural prevê que ninguém pode ser processado nem sentenciado, senão por uma autoridade competente, conforme estabelecido no art. 5º, LIII da Constituição Federal: A imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis. [...] O juiz natural é somente aquele integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais previstas na Constituição Federal.202 O princípio do devido processo legal, contraditório, ampla defesa e celeridade processual, disposto no art. 5º, LIV, LV e LXXVIII e Lei 11.419/06203, configura dupla proteção ao indivíduo, tanto no intuito de preservar o direito material de liberdade, quanto assegura total condição perante o Estado, de obter total plenitude de defesa, com direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, à produção de provas, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal.204 O devido processo legal tem como viés, a ampla defesa e o contraditório: Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução 201 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 42-42. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 88. 203 A EC nº 45/04 incluiu no rol de Direitos e Garantias Individuais e Coletivos a razoável duração do processo e a celeridade processual. 204 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 106. 202 71 dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.205 Buscou-se com a EC nº 45/04 (Reforma do Judiciário), assegurar a todos, um processo com duração razoável e medidas que evitem a burocratização dos procedimentos, garantindo todos os direitos às partes e a qualidade das decisões. Entre alguns mecanismos de desburocratização e de celeridade processual, é possível citar: a vedação de férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau; um número proporcional de juízes para a demanda judicial e à população existente; a distribuição imediata de processos; a necessidade de demonstração de repercussão geral das questões constitucionais para admissibilidade de recurso extraordinário; as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal; entre outros. Combinados a estes princípios considerados basilares para o Estado brasileiro, é possível citar alguns direitos e garantias fundamentais conforme contemplados no artigo 5º da Constituição Federal. São eles: tratamento constitucional de tortura (incisos III e XLIII); a liberdade e pensamento, direito de resposta e responsabilidade por dano material, moral ou à imagem (incisos IV e V); liberdade de consciência, religião, filosofia e política (incisos VI e VIII); expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX); inviolabilidade domiciliar, de dados bancários e fiscais (incisos XI, X e XIII). A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, demonstra as aspirações do povo brasileiro, e a luta diária para conservar os objetivos e finalidades dispostos no preâmbulo constitucional. Visa a limitação do poder do Estado e a preservação dos direitos e garantias individuais. O poder constituinte é a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo organizado jurídica e socialmente.206 205 206 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 106-107. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 26. 72 3.3 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição possui normas para a estruturação do Estado, formas de governo, formação de poderes públicos, aquisição do poder de governar, direitos e deveres dos cidadãos e distribuição de competências. Somado a isto, a Constituição prevê, para os respectivos órgãos, a edição de preceitos jurídicos, legislativos e administrativos.207 O Estado tem como fundamento, três elementos constitutivos, a poder, o povo e o território. O poder representa uma força que anima a existência de uma comunidade, num determinado território e conserva-a unida, coesa e solidária. Aponta Bonavides: [...] o poder significa a organização ou disciplina jurídica da força e a autoridade enfim traduz o poder quando ele se explica pelo consentimento, tácito ou expresso, dos governados (quanto mais consentimento mais legitimidade e quanto mais legitimidade maior autoridade). O poder com autoridade é o poder em toda sua plenitude, apto a dar soluções aos problemas sociais. Quanto menor a contestação e quanto maior a base de consentimento e adesão do grupo, mais estável se apresentará o ordenamento estatal, unindo a força ao poder e o poder à autoridade. Onde porém o consentimento social for fraco, a autoridade refletirá essa fraqueza; onde for forte, a autoridade se achará robustecida.208 Alguns traços podem ser considerados absolutos ao Estado, como a imperatividade e natureza integrativa do poder estatal, a capacidade de auto-organização, a unidade e indivisibilidade do poder, o princípio da legalidade e legitimidade e a soberania. A indivisibilidade assinala uma nota característica do poder estatal, e significa que este somente pode ser atribuído a um titular. Este postulado essencial do Estado Moderno põe de lado o dualismo medievo que ligava o poder estatal do poder pessoal do governante.209 207 MORAES, A. Direito Constitucional. p.6. BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 106-107. 209 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 109. 208 73 Quando se discute a fonte originária do poder dentro de um regime político, nenhum órgão, função ou instância é dotado de legitimidade se não é constituído ou derivado da vontade soberana do povo.210 A soberania foi assunto de destaque para a ciência política e para a teoria do Estado no século XX. A importância dada por Bodin a este tema contribuiu para a formação do Estado Moderno coloca a soberania como poder absoluto que caracteriza a República por sua capacidade de dar, anular e interpretar a lei sem nenhuma limitação.211 Já Rousseau, democratiza o termo soberania por meio da vontade geral, caracterizando o soberano como um ser do coletivo. Para Rousseau, o poder se transmite, mas não a vontade e por isso que o povo é quem detém o poder e não seus representantes. Na Constituição de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único, dispõe o princípio fundamental do poder da seguinte maneira: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente.”212 O povo é quem detém o poder e os órgãos pelos quais se concretiza esse poder, são o corpo eleitoral, o Parlamento, o Ministério, etc. O princípio da separação dos poderes, consagrado na Constituição e elaborado por Montesquieu, não divide o poder do Estado. O que existe é uma divisão de funções quanto à aplicação do poder.213 A soberania exprime o mais alto poder do Estado e se apresenta de duas formas: interna e externa. Internamente ela impõe-se através de normas jurídicas impostas pela Constituição e externamente pela igualdade que deve existir entre os Estados. Sobre a autonomia do poder, assim destaca Dias: 210 DIAS, R. Ciência Política. p. 114. DIAS, R. Ciência Política. p. 111. 212 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 02 mar. 2010. 213 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 109. 211 74 A soberania política destaca o monopólio por parte do Estado de todo poder e força que gera uma coação incondicional, dentro dos limites de sua competência, e com a qual se afirma a soberania política do Estado como poder irresistível; é uma autonomia do poder, na qual este não seja delegado, mas supremo em seu âmbito de atuação. É afirmação da independência do Estado perante outros poderes. Em relação ao exemplo anterior, pode-se aceitar a possibilidade de uma ordem jurídica de caráter internacional, e no entanto, pode-se afirmar a independência e autonomia da soberania política do Estado.214 Internamente, a soberania do Estado Brasileiro pode ser também caracterizada pela divisão dos três poderes: o executivo, o legislativo e o judiciário, tendo em vista que atuam de modo que haja colaboração e para que não exista a concentração de poder em um único órgão. Existe atualmente, uma preocupação maior com a participação do povo nas funções do Estado: Há uma necessidade urgente de reformar o Estado e suas funções, e o principal desafio que se enfrenta é abri-lo para a sociedade, aperfeiçoar a descentralização e a redistribuição do poder e transformar as questões estatais em assunto público. Ou seja, valorizar a sociedade como sua fonte originária de legitimidade. Isto implica uma mudança profunda na cultura organizacional do Estado. O objetivo é passar de um Estado estruturado com base no princípio autoritário e hierárquico a um sistema pluralista flexível de tomada de decisões, que incorpore diferentes atores no processo de governança, sem colocar em risco as bases da ordem democrática 215 Segundo Montesquieu, essa divisão de poderes, auto-limita o Estado no exercício do poder e essa limitação objetiva a máxima liberdade para o indivíduo, e esta liberdade só se dá quando o poder de julgar não está vinculado, nem ao executivo, nem ao legislativo. Essa doutrina considera a atuação do Estado sobre a comunidade pública se manifesta a partir de três funções: do estabelecimento de normas que regem a conduta dos integrantes da comunidade de forma geral e obrigatória (função do legislativo); execução dessas norma (função do executivo); resolver conflitos entre os integrantes da comunidade ou entre estes e a comunidade (função do judiciário)216 214 DIAS, R. Ciência Política. p. 113. DIAS, R. Ciência Política. p. 124-125. 216 DIAS, R. Ciência Política. p. 127-128. 215 75 A idéia de democracia no Estado brasileiro reflete uma forma de governo onde o poder não se encontra limitado a um grupo de pessoas ou a uma só pessoa, mas pertence a todo povo. Internamente, o art. 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal reconhece a instituição do Tribunal do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurada a defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Nesta instituição está desenhado uma das formas, pelas quais o povo, num estado democrático, exerce sua soberania. É dada aos cidadãos a prerrogativa de julgar seus semelhantes. Ainda que haja recurso de apelação, este fato não afeta a soberania dos veredictos, pois uma nova decisão será dada por esses jurados. Essa garantia de soberania é dada com o retorno dos autos ao Tribunal do Júri, de acordo com o entendimento do STF: EMENTA: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS, ART. 408 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. ELOQUÊNCIA ACUSATÓRIA. AFIRMATIVA DE AUTORIA. PRONUNCIAMENTO SOBRE OS ASPECTOS SUBJETIVOS DA CONDUTA DO ACUSADO. AFASTAMNENTO DE POSSÏVEL TESE DEFENSIVA. PEÇA QUE PODE INFLUIR INDEVIDAMENTE no CONVENCIMENTO DOS JURADOS. PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS DO JURI. OFENSA CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. I - Fere o princípio da soberania dos veredictos a afirmação peremptória do magistrado, na sentença de pronúncia, que se diz convencido da autoria do delito. II - A decisão de pronúncia deve guardar correlação, moderação e comedimento com a fase de mera admissibilidade e encaminhamento da ação penal ao Tribunal do Júri. III Ordem concedida.217 A doutrina da soberania nacional no plano externo teve grande contribuição de Hugo Grocio, que estabeleceu princípios básicos das relações internacionais, alguns dos quais permanecem válidos até hoje.218 Grocio foi um jurista holandês e expôs seu pensamento político nas obras De jure belli ac pacis (1625) e Mare liberum (1609). Vários foram os 217 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299, Primeira Turma Julgadora, Brasília, DF, 16 de Setembro de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557313. Acesso em: 03 mar. 2010. 218 DIAS, R. Ciência Política. p. 120. 76 acontecimentos que marcaram suas teorias entre elas, as lutas civis na França e a primeira fase da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).219 O jurista tem seu principal mérito em ter criado um sistema de direitos e obrigações que se aplicam às relações entre os Estados, sob a proteção e sanção do direito natural. Esse sistema é visível hoje, por exemplo no artigo 2 da Carta das Nações Unidas, em seu primeiro parágrafo, consagra que “a Organização esta baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”. A ONU constitui-se em uma associação dos membros que a integram em caráter de igualdade e não de um órgão acima dos Estados e atualmente é constituída de 192 Estados soberanos.220 Dias esclarece que: Baseado no caráter da exclusividade de sua competência, o Estado tem dentro de seu território o monopólio do uso legítimo da força, exercendo desse modo seu poder constitucional, legislativo, jurídico e administrativo. Como conseqüência, qualquer ato realizado por um Estado no território de outro implica violação da soberania, configurando-se, portanto um delito 221 É possível identificar a soberania do Estado brasileiro, na questão da extradição, elencada no artigo 5º, incisos LI e LII da Constituição Federal. O entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da natureza jurídica do pedido extradicional perante o Estado brasileiro: [...] constitui – quando instaurada a fase judicial de seu procedimento – ação de índole especial, de caráter constitutivo, que objetiva a formação de título jurídico apto a legitimar o Poder Executivo da União a efetivar, com fundamento em tratado internacional ou em compromisso de reciprocidade, a entrega do súdito reclamado.222 Para obter a extradição, o Estado estrangeiro deverá fundamentar seu pedido, com base nas hipóteses constitucionais e formas legais, quais sejam: observar as hipóteses materiais elencadas nos incisos LI e LII da 219 DIAS, R. Ciência Política. p. 120 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299, Primeira Turma Julgadora, Brasília, DF, 16 de Setembro de 2008.. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557313. Acesso em: 03 mar. 2010. 220 DIAS, R. Ciência Política. p. 121. 221 DIAS, R. Ciência Política. p. 122. 222 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 93. 77 Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito ao tratamento com Portugal; observar o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6815/80); Lei Federal nº 6964/81; e Regimento Interno do STF (arts. 207 a 214).223 E ainda alguns outros requisitos devem ser preenchidos, como: o pedido deve ser fundado em tratado internacional e se não existir, deve o Estado requerente comprometer-se a dar igual tratamento ao Estado Brasileiro; a Justiça do Estado Requerente é quem processa e julga o extraditando; ausência de caráter político da infração atribuída ao extraditado; o crime do extraditando não pode infringir pena igual ou inferior a um ano da lei brasileira; não fazer reextradição (entrega do extraditando a outro Estado que reclamou) sem consentimento do Brasil; etc. 224 Importante sempre analisar os julgados de STF, a exemplo: EMENTA: EXTRADIÇÃO EXECUTÓRIA. REPÚBLICA ITALIANA. SENTENÇAS CONDENATÓRIAS. CRIME FALIMENTAR. RECEPTAÇÃO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA: ARTIGO 199 DO DECRETO-LEI 7.661/45 (ANTIGA LEI DE FALÊNCIA). SÚMULA 147 DO STF. ART. 109 DO CÓDIGO PENAL. PEDIDO PARCIALMENTE DEFERIDO. 1. Prescrição da pretensão executória, no tocante às Sentenças proferidas pelo Tribunal de Apelação em Trento e pelo Tribunal de 1ª Instância de Cremona. Crimes falimentares cometidos nos anos de 1994 e 1995. Prescrição consumada nos termos da legislação brasileira (art. 199 do Decreto-Lei 7.661/45 e art. 109 do CPB). 2. Regularidade do pedido quanto à Sentença proferida pelo Tribunal de Apelação de Florença. Fatos criminosos que equivalem, no Brasil, aos delitos de receptação e formação de quadrilha (arts. 180 e 288 do Código Penal). Pedido que atende às exigências do art. XI do Tratado Bilateral de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana (Decreto 863/93), bem assim às formalidades do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80). 3. Pedido parcialmente deferido.225 Este procedimento retrata seriamente o Estado brasileiro em toda sua autonomia e soberania diante dos outros Estados soberanos. A não interferência de outro Estado em território brasileiro afirma o poder do Brasil, tendo 223 MORAES, A. Direito Constitucional. p. 96. MORAES, A. Direito Constitucional. p. 96-97. 225 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº1152, Tribunal Pleno, Brasília, DF, 106 de maio de 2010. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2652394>. Acesso em: 04 abr. 2010. 224 78 em vista que a centralização e o monopólio do poder são condições indispensáveis de sua existência.226 A soberania encontra-se ligada ao território, pois é este que dá uma delimitação clara de onde o poder é exercido e destaca a importância da autonomia e da independência. Pelo caráter territorial é possível observar a distribuição de funções que implica o próprio poder, além de diferenciar as formas de Estado e as formas de governo.227 Essa organização do poder por via do âmbito territorial, onde se combinam as competências da União com as competências assumidas por diferentes partes do território, que possuem autonomia em funções específicas, forma o Estado federal. O que pretende se destacar portanto, é que a soberania territorial é um fator de organização do poder.228 Atualmente o tema soberania tem necessidade de ser revisto, pois tudo se volta para a idéia de um Estado que não é delegado e que é o poder supremo. Ocorre, no entanto, que a crescente importância no cenário global, das cidades, das organizações e das empresas e de uma ordem internacional vêm limitando os poderes do Estado.229 Diante dos desafios que apresentam os processos de globalização, um estudo acerca da soberania se faz cada vez mais necessário, pois os laços de nacionalidade não permanecem mais tão fortalecidos, quanto, por exemplo, as ideologias entre indivíduos de diferentes países. Há juristas, sociólogos e pensadores políticos que pensam que este conceito encontra-se em declínio.230 Destaca-se neste ponto também, as grandes transações realizadas por multinacionais, que ultrapassam as barreiras dos Estados e de forma pacífica tiram proveito deste ou daquele país, beneficiando-se reciprocamente. Há, portanto, um comércio internacional em constante crescimento, que atualmente 226 DIAS, R. Ciência Política. p. 122. DIAS, R. Ciência Política. p. 122. 228 DIAS, R. Ciência Política. p. 122-123. 229 DIAS, R. Ciência Política. p. 123. 230 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 132. 227 79 supera, até mesmo os interesses ideológicos ou políticos que possam afetar a soberania estatal A necessidade de uma ordem internacional tem maior relevância do que a primazia nacional, tendo em vista que o Direito pode ser uno e coercitivamente se imponha a todos os Estados.231 A soberania popular pode ser entendida como a soma da soberania que é atribuída a cada indivíduo. Rousseau entendeu possível compatibilizá-la a todos os tipos de governo232, pois o poder que emana do povo será sempre uno, ainda que exista sempre uma troca de representantes desse poder. A concepção de soberania popular teve grande influência nos desdobramentos das idéias democráticas, principalmente na progressão universal do sufrágio. Na Constituição brasileira fica clara a vontade geral estabelecida, principalmente no art. 5º, que aborda aquilo que é legítimo do povo e a maneira que este tem de garanti-lo. Territorialmente, o Estado brasileiro não sofre nenhum tipo de disputa com seus países vizinhos, nem mesmo possui restrições internas quanto a seus Estados federados. Ainda que atualmente se conteste a soberania estatal, é possível perceber a força que exerce esse princípio fundamental na ideologia política brasileira. 231 232 BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 133. BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 130. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme demonstrou-se, a formação histórica do Estado está disposta sobre a idéia de ordem, da necessidade de coordenação do poder, tendo em vista que no Estado primitivo não existia uma organização política capaz de impedir que reinasse o caos. A partir de dado momento, um indivíduo considerado o mais forte, conseguiu assumir uma posição de comando e todos puderam se beneficiar através desse representante. É possível perceber que do período compreendido entre o Estado Medieval até o contemporâneo Estado Democrático de Direito, a sociedade aspira à liberdade, à igualdade e à melhora nas condições econômicas e sociais, fato que por si só, desenha a característica soberana do povo. A passagem do Estado Medieval, onde imperava o conceito do poder absoluto do monarca, para o Estado Moderno, caracteriza muito bem o surgimento da soberania, não só como conceito específico, mas como forma prática da participação dos indivíduos nas decisões políticas. Os estudiosos desse período, chamado também de Idade Moderna, procuravam definir a vontade geral como única detentora do poder. Contemporaneamente, no Estado de Direito, um Estado caracterizado por observar intensamente a questão da legitimidade e legalidade, observa-se a participação que o povo tem na elaboração de leis. O titular do poder, o ente que decide o destino de seu Estado através da escolha de seus representantes, é o poder soberano que emana dos cidadãos. Expôs-se que no plano interno a soberania aplica as normas do ordenamento jurídico existente como forma de firmar a ordem social e a preservar os direitos e garantias individuais. Dotado de soberania, cada cidadão com base nos princípios basilares do Estado brasileiro e dos direitos e garantias fundamentais, possui 81 liberdade e segurança para agir do modo como melhor lhe convier, desde que observados as sanções e os limites que ferem a liberdade do outro. No âmbito externo, a soberania trata das relações com outros estados, a fim de manter sua autonomia e de firmar tratados que beneficiem a todos os envolvidos, como forma de manter a paz e a dignidade humana. Verificou-se, no entanto, que esta soberania encontra-se em crise, devido ao advento da globalização que gerou a aproximação entre os setores econômicos e políticos, e por que não dizer ideológicos. Algumas pessoas identificam-se muito mais com a ideologia de certos países do que com seu próprio. É preciso, no entanto, analisar mais profundamente as causas dessa crise, tendo em vista que ela ocorre de maneira mais expressiva no âmbito externo. Ainda que possa haver uma universalização de direitos, os usos e costumes próprios de cada país podem ser afetados e os indivíduos não saberão a quem recorrer quando entender que seus direitos foram violados. Todas as hipóteses levantadas no início deste trabalho foram confirmadas. A soberania, conforme explanado na Constituição em seu art. 1º, é um princípio fundamental do Estado brasileiro. A soberania não pertence somente ao governante, tendo em vista que todo poder emana do povo. A crise contemporânea da soberania está cada vez mais perceptível, tendo em vista as invasões e guerras territoriais existentes em todo o mundo. 82 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2009. AZAMBUJA, D. Introdução a ciência política. São Paulo, 2005. BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. BONAVIDES, P. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros editores, 1999. BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros editores, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 02 mar. 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº1152, Tribunal Pleno, Brasília, DF, 106 de maio de 2010. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2652394 >. Acesso em: 04 abr. 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299, Primeira Turma Julgadora, Brasília, DF, 16 de Setembro de 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557313>. Acesso em: 03 mar. 2010. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. São Paulo: Almedina, 2003. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. DIAS, R. Ciência Política. São Paulo: Atlas, 2008. DUSO, G. O Poder: História da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2009. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Martin Claret, 2006. 83 MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis.Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2009. MORAES, A. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009. ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2009.