UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI ESTADO E A

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
ESTADO E A SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política
DAIANY KAROLINY DE SOUZA
Itajaí, junho de 2010
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
ESTADO E A SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política
DAIANY KAROLINY DE SOUZA
Monografia submetida à Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Direito.
Orientador: Professor Dr. Josemar Sidinei Soares
Itajaí, junho de 2010
AGRADECIMENTO
Obrigada ao meu bom Deus, pela vida e pela saúde.
Pela perfeição das manhãs que me despertaram e
que oportunizaram experiências maravilhosas
durante esses cinco anos.
Agradeço especialmente a minha mãe, pela força e
superação. Por construir em mim uma base sólida
de educação e respeito.
Agradeço a minha avó, pelo exemplo
perseverança e pela dedicação eterna.
de
Obrigada Emanoella, minha irmã querida, pelas
palavras doces e pelo olhar que acalma. Pelas
noites de conversas e belas risadas. Por ser minha
parceira e melhor amiga para sempre.
Obrigada Tio Edu e Rose por toda ajuda e
preocupação.
Obrigada ao meu mestre Josemar Soares. Mais do
que orientador e professor, um crítico severo e um
incentivador do trabalho constante.
Obrigada aos amigos que fizeram parte desta
caminhada gratificante. A Anne, por nossos dias
difíceis de monografia! A Claudia, pelas boas piadas
no ônibus, a Bruna pelas boas músicas e ao Marcelo
por ser tão querido. Agradeço a Marília, meu ombro
amigo. Ao Renan pela ajuda e paciência e a Thiana,
pelos segredos e pelos bons momentos que ficarão
guardados. Ao Matheus e Tiago pela ajuda na
organização deste trabalho.
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho ao meu sobrinho Pedro Otílio,
que é fruto de uma história intensa e de muitas
saudades.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, junho de 2010
Daiany Karoliny de Souza
Graduanda
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Daiany Karoliny de Souza, sob o título
ESTADO E SOBERANIA: uma abordagem filosófica e política, foi submetida em 11
de junho de 2010 à banca examinadora composta pelos seguintes professores:
Josemar Sidinei Soares (Orientador e Presidente da Banca) e Fabiana , e aprovada
com a nota [Nota] ([nota Extenso]).
Itajaí, 11 de junho de 2010.
Josemar Sidinei Soares
Orientador e Presidente da Banca
Fabiana Bitencourt
Coordenação da Monografia
SUMÁRIO
RESUMO.......................................................................................... VII
INTRODUÇÃO .................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 .................................................................................... 11
A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO .................................. 11
1.1 FORMAÇÃO DO ESTADO ........................................................................... 14
1.2 ESTADO MEDIEVAL E ESTADO MODERNO .............................................. 19
1.3 ESTADO DE DIREITO ................................................................................... 22
1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ...................................................... 28
CAPÍTULO 2 .................................................................................... 31
A IDÉIA DE SOBERANIA DOS ESTADOS ...................................... 31
2.1 SOBERANIA EM JEAN BODIN .................................................................... 31
2.2 A MANUTENÇÃO DO PODER SOBERANO EM MAQUIAVEL ................... 37
2.3 AS CONCEPÇÕES DE SOBERANIA DOS CONTRATUALISTAS .............. 43
2.3.1THOMAS HOBBES ..................................................................................... 43
2.3.2 JOHN LOCKE.............................................................................................. 47
2.3.3 MONTESQUIEU .......................................................................................... 51
2.3.4 JEAN-JACQUES ROUSSEAU.................................................................... 54
CAPÍTULO 3 ..................................................................................... 57
SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .................................... 57
3.1 O ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ............................ 57
3.2 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS BASILARES DO ESTADO BRASILEIRO ..... 64
3.3 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988................................................. 71
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 80
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 82
7
RESUMO
O
princípio
fundamental
da
Soberania
elencado
na
Constituição Federal é elemento constitutivo do Estado e possui como titular do
poder, o Povo. Para os teóricos contratualistas da Idade Moderna o indivíduo
associa-se para garantir seu desenvolvimento, segurança e liberdade. Nesta
pesquisa, o objetivo é fazer uma abordagem filosófica e política dos conceitos de
Estado e Soberania. A Soberania estatal explícita na Constituição Federal é
questionada frente a interferência de fatores externos que possibilitam a interação
entre os povos de maneira a limitar o poder do Estado.
8
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto “O Estado e a
Soberania: uma abordagem filosófica e política”.
O seu objetivo é identificar parâmetros entre a evolução do
conceito de Estado, delineando de que modo os cenários políticos de cada momento
histórico, bem como as características sociais existentes, influenciaram para a
definição da soberania como um dos elementos constitutivos do Estado e como
princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando de formação
do conceito de Estado, passando pela conceituação do Estado Medieval e as
peculiaridades que deram origem ao Estado Moderno. Analisou-se também o Estado
de Direito, caracterizado fundamentalmente por estabelecer leis escritas, e o Estado
Democrático de Direito, que assinala a participação política do povo.
No Capítulo 2, será abordada a concepção de soberania em
Jean Bodin, precursor dessa conceituação na Idade Moderna, bem como as formas
de manutenção do poder apresentadas por Maquiavel e sua obra O Princípe. E por
fim, apontar-se-ão as concepções de soberania dadas pelos contratualistas Thomas
Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau.
No Capítulo 3, versar-se-á sobre a soberania na Constituição
de 1988 e de que modo este princípio é utilizado pelo ordenamento jurídico brasileiro
interna e externamente, de modo a favorecer a autonomia do povo que é o titular do
poder.
Para a presente monografia foram levantadas as seguintes
hipóteses:
Hipótese 1 - A soberania é um elemento constitutivo do Estado,
sendo portanto um princípio fundamental deste.
9
Hipótese 2 – Na teoria contratual de Rousseau se dá a
transmissão da soberania do governante ao povo.
Hipótese 3 – A soberania explicitada na Constituição Federal
de 1988 está em crise devido à interação política, ideológica e econômica existente
entre os indivíduos e que supera os limites de ação do Estado.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de
Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o
Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia
é composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas
do Referente e da Pesquisa Bibliográfica. E registra-se por fim, que as categorias
fundamentais para a monografia, bem como seus conceitos operacionais serão
apresentados
no
decorrer
da
mesma.
11
Capítulo 1
A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE ESTADO
A origem do Estado está ligada à família, a mais antiga das
sociedades, e também a única natural que pode considerar-se norma primitiva das
sociedades políticas, onde a cabeça é a imagem do pai e o povo a dos filhos.1
Essa associação primitiva que é família gera dependência
entre os indivíduos e a necessidade de organização se dá, tendo em vista que o ser
humano chega a um ponto onde naturalmente precisa evoluir e criar laços. Ainda
que lutasse contra os obstáculos de sua conservação, o homem precisava mudar de
vida e associar-se para sua própria sobrevivência.2
Como os homens não podem criar novas forças, mas só ligar e
gerir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação
uma soma de forças que vença a oposição, pô-las em ação e fazê-las laborar em
consonância.3
Analisando a origem da sociedade e numa visão genérica do
desenrolar da vida do homem sobre a Terra, verifica-se a necessidade de
organização social à medida que se desenvolveram os meios de controle e
aproveitamento da natureza, com a descoberta, a invenção e o aperfeiçoamento de
instrumentos de trabalho e de defesa. Esta relação, antes simples, agora se torna
1
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 22.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 29.
3
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 29.
2
12
complexa. Grupos constituíram-se dentro da sociedade, cada qual com suas
funções específicas. 4
O Estado como ordem política da Sociedade é conhecido
desde a antigüidade aos dias atuais. Contudo nem sempre teve essa designação,
nem tampouco encobriu a mesma realidade. A polis dos gregos ou a civitas e a
respublica dos romanos eram termos, que explanavam a idéia de Estado,
principalmente pelo aspecto de personificação da conexão comunitária, de adesão
imediata à ordem política e de cidadania.5
Os vocábulos Imperium e Regnum, de uso corrente durante a
expansão do Império Romano, passaram a exprimir a idéia de Estado,
designadamente como organização de domínio e poder e na Idade Média utilizou-se
o termo Laender (‘Países’).6
Modernamente, o emprego do termo Estado, remonta a
Maquiavel, quando em sua obra O Príncipe, ilustrou a frase célebre: “Todos os
Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou principados”.7
Essa frase reflete a idéia de poder que o Estado possui e da
autonomia que os indivíduos possuem diante desta instituição que provê ordem e
paz através de uma organização jurídica. Neste contexto escreve José Carlos
Machado:
Tratando-se da organização humana, é preciso salientar que o poder
está presente em toda unidade social. O poder social pode ser
vislumbrado em todo tipo de organização, onde exerce uma função
de coordenação e de coesão entre os seus integrantes. Por
conseguinte, havendo um conjunto de homens em grupo é preciso
uma organização sob um poder. O homem é tanto o sujeito quanto o
objeto do poder social.8
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
5
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 10.
6
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 11.
7
MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 29.
8
MACHADO, José Carlos. O Poder do Estado e a tese da Separação dos Poderes. Revista Filosofia
do Direito e Intersubjetividade. 2. ed. Disponível em: <www.univali.br/direitofilosofia>. Acesso em:
05 abr. 2010.
13
Essa organização não imposta, mas necessária ao progresso
social foi sendo gerida através dos tempos e em melhor propriedade, conforme os
homens evoluíram e se associaram. Sobre a instituição do Estado e essa formação
contratualista, destaca-se a idéia de Hobbes:
Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens
concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a
qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído
pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja,
de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram
a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos
os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal
como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em
paz uns com os outro e serem protegidos dos restantes homens.9
As nuances que permeiam a passagem do Estado Medieval
para o Estado moderno, apontam a busca por um governo ideal, que pudesse
controlar os vários reflexos do distanciamento da igreja dos assuntos políticos e um
ente preparado para lidar com o elo entre o poder público e privado. A partir dessas
transformações em busca de uma autoridade apropriada ao reino, é que o Estado
Moderno caracteriza-se com o surgimento da soberania:
Até o século XII a situação continua mal definida, aparecendo
referências a duas soberanias concomitantes, uma senhorial e outra
real. Já no século XIII o monarca vai ampliando a esfera de sua
competência exclusiva, afirmando-se soberano de todo o reino,
acima de todos os barões, adquirindo o poder supremo de justiça e
de polícia, acabando por conquistar o poder legislativo. Assim é que
o conceito de soberano, inicialmente relativo, pois se afirmava que os
barões eram soberanos em seu senhorio e o rei era soberano em
todo o reino, vai adquirindo o caráter absoluto, até atingir o caráter
superlativo, como poder supremo.10
Com o passar do tempo, novas características vão aderindo ao
Estado e adequando-o à realidade de cada país. Essas características são frutos da
evolução socioeconômica, que os povos apresentam, como por exemplo, as
guerras, as crises econômicas, ou a transformação do papel da igreja, a busca por
direitos fundamentais, como a liberdade individual, o trabalho e a saúde. Todos
9
HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo:
Martin Claret, 2009.
10
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 76.
14
esses aspectos aspiram mudanças e à necessidade de uma organização sólida, que
possa alcançar os anseios da sociedade e refletir a imagem de um governo
soberano.
Abordar sobre o surgimento do Estado requer expor, em que
tempo e em que contextos encontravam-se as sociedades, para que se possa
compreender a necessidade do processo de evolução e contemporaneamente
definir os meandros que melhor caracterizam cada povo em sua particularidade
política.
Buscar-se-á expor com maior ênfase, a origem e a função social
do Estado através da sua relação com o indivíduo e com as instituições. Além disso,
para que haja conexão entre os próximos capítulos, também importante será
enfatizar a questão das leis, mais precisamente para o governo republicano, e a
idéia de Estado soberano nas suas relações internacionais.
1.1 FORMAÇÃO DO ESTADO
A origem do Estado pode ser estabelecida sobre a idéia de
ordem, sendo esta a disposição harmônica das coisas e o contrário dela, a
desordem, a desarmonia. Primitivamente, nos clãs ou tribos, reinava o caos,
predominando a violência, este era o estado de guerra.11
Com o passar do tempo perceberam os homens que tal
situação era precária e prejudicial ao grupo e por isso, o mais forte e ardiloso passou
a dominar os demais estabelecendo a ordem. O poder soberano pra Hobbes se faz
necessário para garantir segurança de todos:
E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para
dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de
natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las
e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um
poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um
11
CRETELLA JUNIOR, José. Curso de filosofia de direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.
93.
15
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria
força e capacidade, como proteção contra todos os outros.12
Diante da exigência de organização, o direito torna-se
costumeiro e a sociedade convive pacificamente. Por meio dos usos e costumes
tecem a vida comunitária e a afirmação da ordem leva ao progresso da sociedade.13
John Locke define como poder político, o direito de elaborar
leis, inclusive a pena de morte, visando regular e conservar a propriedade e utilizar a
força da comunidade para garantir a execução das leis e para protegê-la das
ameaças externas.14
Em determinado momento histórico, o homem passa a
questionar o poder; sabe-se quem governa, mas não se sabe porque este é quem
tem o direito de mandar. Para definir tal situação, os homens idealizaram um
suporte, desligado da figura do governante. Esta base ou fundamento é o Estado.15
A designação Estado que vem do latim status e significa estar
firme, com significação permanente de convivência e ligada à sociedade política,
aparece pela primeira vez em “O Príncipe” de Maquiavel, de 1513, conforme visto
anteriormente e passou a ser utilizada na Itália para corresponder ao nome de uma
cidade independente. Durante os séculos XVI e XVII a expressão foi sendo acolhida
em registros ingleses, franceses e alemães.16
Duas são as indagações a respeito da origem do Estado: uma
diz respeito à época do aparecimento do Estado e a outra, dos motivos que
determinaram o surgimento do Estado. O nome Estado indicando uma sociedade
política, só apareceu no século XVI e os maiores autores dessa época utilizavam
termos próprios; Hobbes usa Commonwealth, que se traduz como República; para
Locke, os termos Sociedade Civil e Estado, são sinônimos; Rousseau utilizava muito
a expressão Poder Soberano e Montesquieu utilizava ‘Estado Civil’ para definir um
12
HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo:
Martin Claret, 2009.
13
CRETELLA JUNIOR, José. Curso de filosofia de direito. p. 93 – 94.
14
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. São Paulo: Martin Claret, 2009. p.14.
15
Cretella p. 95
16
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 11.
16
contexto onde o indivíduo estava inserido, depois de passar do ‘Estado Natural’. Não
é só uma questão de nome, mas de características bem definidas que formam as
sociedades.17
Sobre o entendimento a respeito do desenvolvimento do
Estado, Dallari expõe três posições fundamentais. A primeira adota a posição de que
o Estado sempre existiu dotado de poder e autoridade. Uma segunda ordem de
autores, que formam a maioria, acolhem que a sociedade existiu sem o Estado por
certo período, e que o Estado foi aparecendo em conformidade com as condições de
cada lugar. Por fim, uma terceira corrente acredita que o Estado só pode ser uma
sociedade política dotada de características bem definidas.
Já as causas do aparecimento do Estado estão ligadas a duas
teorias de formação: a originária e a derivada.
A originária sustenta dois tipos de formação: formação
contratual e a formação natural que determina o aparecimento do Estado à família,
em atos de força, em causas econômicas ou no desenvolvimento interno da
sociedade.18
As teorias a respeito do surgimento do Estado se vêem ligadas
ao desenvolvimento e avanço da família, hoje, no entanto, pouco utilizadas, pois
haveria um equívoco em identificar a origem da humanidade com a origem do
Estado. Quando sai da família, é que o indivíduo vai inserir-se de modo real e
consciente na sociedade política.19
Dentro desse contexto, é possível inserir as definições de
Hegel quando este define o Estado ‘como a realidade da idéia moral’, a ‘substância
ética consciente de si mesma’, colocando o valor social no mais alto grau, onde
encontra-se a ligação de Família e Sociedade.20
17
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 51.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 54-56.
19
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. São Paulo, 2005.
20
BONAVIDES, P. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Eeditores,1999. p. 62-63.
18
17
Quanto à origem em causas econômicas, o autor cita que esta
talvez tenha sido a origem indicada por Platão:
[...] quando nos ‘Diálogos’, no Livro II de ‘A República’, assim se
expressa: “Um Estado nasce das necessidades dos homens;
ninguém basta a si mesmo, mas todos nós precisamos de muitas
coisas”. E logo depois: como temos muitas necessidades e fazem-se
mister numerosas pessoas para supri-las, cada um vai recorrendo à
ajuda deste para tal fim e daquele para tal outro; e, quando esses
associados e auxiliares se reúnem todos numa só habitação, o
conjunto dos habitantes recebe o nome de cidade ou Estado". Dessa
forma, o Estado teria sido formado para se aproveitarem os
benefícios da divisão do trabalho, integrando-se as diferentes
atividades profissionais, caracterizando-se, assim, o motivo
econômico.21
Sob uma ótica sociológica, Engels assinala que a Sociedade,
enquanto Sociedade de classes, não deve dispensar o Estado, isto é, “uma
organização da respectiva classe pioneira para a manutenção de suas condições
externas de produção.”22
Em mesma acepção sociológica, encontram-se as idéias de
Oppenheimer e Duguit. O primeiro destaca que o Estado não passa de uma
instituição social, onde existiu um grupo que venceu e se impôs a determinado grupo
vencido para se proteger de rebeliões e de agressões estrangeiras. Duguit não
difere em muito desse conceito quando considera o Estado uma coletividade que se
caracteriza apenas por assinalada e duradoura diferenciação entre fortes e fracos,
onde os fortes monopolizam a força de modo concentrado e organizado.23
Sobre o emprego da violência, o conceito já tantas vezes
examinado, reaparece igual na envergadura de Max Weber, quando expõe que o
Estado repousa na organização ou institucionalização da violência.24
Rudolf von Jhering também destaca o poder coercitivo do
Estado, onde este é “a organização social do poder de coerção”25 e onde o Direito é
a “disciplina da coação”.26
21
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 54-56.
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65.
23
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 64.
24
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65.
22
18
Afastando-se da formação natural, apresenta-se ainda mais
importante a formação contratual, já que esta remonta às obras de Aristóteles,
Epicuro e São Tomás de Aquino.27
Estes grandes pensadores sustentavam a idéia de uma
convenção entre os membros da sociedade, que resultaria no surgimento do
Estado.28 Desse ponto percebe-se o distanciamento dessa concepção de formação
natural, conforme já explicitava Aristóteles, em que “na hierarquia da natureza, a
cidade precede a família e o indivíduo. Ela é fundada pelo impulso natural do
homem para a associação política”.29
Com Hobbes, Locke e Rousseau, a teoria contratualista tem
importância primordial. Hobbes destaca que, ante a anarquia, os homens precisaram
renunciar em proveito de um ou mais homens, os seus direitos ilimitados.30
Locke fundamenta a idéia de contrato na aceitação de todos,
que concordaram da necessidade de se criar um órgão para manter a justiça e a
paz. E por fim Rousseau que entende o contrato como sendo geral, unânime e igual
para todos os homens, não existindo aqui, limites à vontade geral.31
Azambuja abordando as idéias de Rousseau, destaca:
A ciência demonstra que é uma conjetura falsa, e tanto mais
perigosa quanto é certo que leva ao despotismo ou à anarquia. Se o
Estado fosse uma associação voluntária de homens, cada um teria
sempre o direito de sair dela, e isso seria a porta aberta à dissolução
social e à anarquia. Se a vontade geral, criada pelo contrato, fosse
ilimitada, seria criar o despotismo do Estado, ou melhor, das
maiorias, cuja opinião e decisão poderia arbitrariamente violentar os
indivíduos, mesmo aqueles direitos que Rousseau considera
invioláveis, pois segundo o seu pitoresco raciocínio, o que discorda
da maioria se engana e se ilude, e só é livre quando obedece à
vontade geral.32
25
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 64.
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 65.
27
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 90-91.
28
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91.
29
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret. 2009 p. 35.
30
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91.
31
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 91.
32
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 92.
26
19
Em que pese essa acepção jurídica, Kant, através de
premissas racionalistas, expressa a noção de dever como fim da ação humana, e é
no sentido de que torno-me meta para mim mesmo, que estão baseadas as
reflexões kantianas sobre um ideal jurídico de comportamento que a sociedade deve
perseguir.33
Para acrescentar ao que anteriormente se expôs e tendo em
vista as características atuais nas relações entre Estados, a formação derivada, ou
seja, a partir de Estados preexistentes, encontra procedimentos típicos e comuns,
como por exemplo, o fracionamento e a união de Estados, a separação de parte de
um território, o que ocorre quase sempre por meios violentos. Outra ação típica é a
união de Estados, quando deste ato, adota-se uma Constituição comum.34
1.2 ESTADO MEDIEVAL E ESTADO MODERNO
As características da passagem do Estado Medieval para o
Estado Moderno são importantes para a análise do surgimento da Soberania e que
tamanha importância tem para o presente estudo.
A Idade Média trata-se de um período conturbado por sua
instabilidade e heterogenia, e por isso é que se encontra dificuldade em sua
caracterização. É possível constituir a forma e os princípios próprios das sociedades
políticas que, integrando novos fatores, dissolveram a rígida organização romana,
revelando novas possibilidades e aspirações, culminando no Estado Moderno.35
Sem dispensar outros fatores que atuaram concomitantemente
numa interação contínua, é possível destacar três elementos que se fizeram
presentes na sociedade política medieval: o cristianismo, as invasões bárbaras e o
feudalismo.36 Neste âmbito de intenso fracionamento do poder e de nuviosa noção
de autoridade, estava presente a vontade de unificação:
33
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 206.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 57.
35
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66.
36
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66.
34
20
Pode-se mesmo dizer que, quanto maior era a fraqueza revelada,
mais acentuada se tornava o desejo de unidade e de força,
pretendendo-se caminhar para uma grande unidade política, que
tivesse um poder eficaz como o de Roma e que, ao mesmo tempo,
fosse livre da influência de fatores tradicionais, aceitando o indivíduo
como um valor em si mesmo.37
As invasões bárbaras, incursões armadas que percorriam o
Império Romano, iniciadas no século III e reiteradas no século VI, perturbaram e
constituíram grandes transformações na ordem estabelecida. Os bárbaros, que eram
constituídos de germanos, godos, eslavos, etc., incentivaram a criação de novos
Estados. Em algumas regiões, os povos cristãos chegam a fazer alianças com os
chefes bárbaros, para fins econômicos.
O cristianismo trará a idéia de igualdade, onde os homens já
não valiam diferentemente, e a Igreja se vê unida, ao passo que não há uma
unidade política firmada.38 Como o intuito era transformar toda a humanidade em
cristãos, inevitável era a idéia de um Estado universal, em que todos fossem
conduzidos pelos mesmos princípios e normas de comportamento:
A própria Igreja vai estimular a afirmação do Império como unidade
política, pensando, obviamente, no Império da Cristandade. Com
esse intuito é que o Papa Leão III confere a Carlos Magno, no ano de
800, o título de Imperador. Entretanto, dois fatores de perturbação
iriam influir nesses planos: em primeiro lugar, uma infinita
multiplicidade de centros de poder, como os remos, os senhorios, as
comunas, as organizações religiosas, as corporações de ofícios,
todos ciosos de sua autoridade e sua independência, jamais se
submetendo, de fato, à autoridade do Imperador; em segundo lugar,
o próprio Imperador recusando submeter-se à autoridade da Igreja,
havendo imperadores que pretenderam influir em assuntos
eclesiásticos, bem como inúmeros papas que pretenderam o
comando, não só dos assuntos de ordem espiritual, mas também de
todos os assuntos de ordem temporal.39
Acrescenta-se a estes fatos, a influência do feudalismo, tendo
em vista a importância de possuir terras num período marcado pela dificuldade no
desenvolvimento do comércio. Aqui, ricos e pobres tiravam seu sustento da terra,
37
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 66
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 67.
39
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p.67.
38
21
desenvolvendo-se um sistema administrativo e um arranjo militar estreitamente
ligados ao patrimônio.40
Três institutos jurídicos se envolvem: a vassalagem, o benefício
e a imunidade. Na vassalagem, os proprietários menos poderosos, colocavam-se a
serviço do senhor feudal, dando-lhes uma contribuição em pecúnia e apoio nas
guerras e em troca, recebiam proteção. No benefício, aquele que não possuía
patrimônios, era contratado pelo senhor feudal e recebia uma faixa de terra para
cultivar e dividir a produção. O servo então era parte da propriedade da terra e
estava sob o comando de seu senhor. Na imunidade, concedia-se a isenção de
tributos às terras sujeitas ao benefício. Ocorre então uma fusão do setor público com
o privado, bem observado por Dallari:
Conjugados os três fatores que acabamos de analisar, o cristianismo,
a invasão dos bárbaros e o feudalismo, resulta a caracterização do
Estado Medieval, mais como aspiração do que como realidade: um
poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade
de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável
multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial,
a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito
comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações
dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas
corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender,
era causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política,
econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e
de autoridade, que seria o germe de criação do Estado Moderno.41
A intensa distribuição de terras tanto para os latifundiários
quanto dos que adquiriram o domínio de áreas menores constituída de unidades
familiares voltadas para a produção de subsistência, ampliou o número de
proprietários. Os senhores feudais não toleravam as exigências de monarcas
aventureiros e de circunstância, que impunham uma tributação indiscriminada e
mantinham um estado de guerra constante, que só causavam prejuízo à vida
econômica e social.42
A busca por um poder estabelecido em uma só pessoa,
combinada à aspiração de uma ordem econômica e a necessidade da delimitação
40
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 69.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70.
42
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70.
41
22
territorial concretizam-se com os tratados de paz de Westfália, que tiveram o caráter
de documentação da existência de um novo tipo de Estado, com a característica
básica de unidade territorial dotada de um poder soberano”.43 Neste dado momento,
é possível perceber a maneira como o Estado já se distancia da Igreja, de modo que
esta não possa mais se intrometer nos assuntos políticos.
Fato que caracteriza a primeira grande vitória do absolutismo
no século XIV, foi a situação lastimável que ocorreu entre o rei da França, Filipe, o
Belo, e o Papa Bonifácio VIII, quando o monarca não admitiu a intromissão do
pontífice em matéria temporal, prendendo-o. Depois de consentida sua libertação
pelo rei, o Papa, humilhado e abatido, morreu no mês seguinte em Roma.44
Vistas as características do Estado Medieval, cabe agora
ressaltar as que caracterizaram os Estado Moderno, que divergem entre vários
autores, mas que resultam nos elementos que hoje são indispensáveis para a
existência do Estado: soberania, território e povo. Neste período histórico, já
possível perceber os meandros que se seguiram para a formação do Estado da
maneira como hoje é adotado.
Jean Bodin, que foi um severo defensor do
absolutismo, é o primeiro a expor sistematicamente o conceito de soberania,
atribuindo-a ao princípe um poder supremo que não pode estar submetido aos
comandos de outrem.45
Com base nas transformações ocorridas ao longo dos séculos,
é possível compor uma análise do elemento ‘SOBERANIA’ dentro da conjuntura
atual dos Estados e em mais refinado estudo, dentro do Estado brasileiro.
1.3 ESTADO DE DIREITO
Para compreender do que trata o Estado de Direito, é preciso
entender que este é um dos momentos que caracterizam o Estado Constitucional
como hoje é conhecido.
43
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 70.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 67-68.
45
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137.
44
23
O Estado de Direito reflete um Estado idealizado pelos
contratualistas e tornou-se realidade com a Independência Americana em 4 de julho
de 1776 e com a Revolução Francesa de 1789 e os seus ideais.
O
Estado
sempre
almeja
fins
e
traz
junto
com
o
constitucionalismo escrito a função de racionalização e humanização, o que remete
à necessidade de declarações de direitos, destacando-se historicamente as
Declarações da Virgínia, em 1776, a Declaração da Independência dos Estados
Unidos, no mesmo ano, e sua Constituição em 1789.46 Neste mesmo ano, ressaltase com tamanha importância a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão (droits naturels et sacrés de l’homme), que serviu como uma ‘pré –
constituição’, promulgada então, em 1791.
O Constitucionalismo liberal do século XIX consagra o Estado
de Direito e destaca a Constituição de Cádis, em 1812, e também a 1ª Constituição
Portuguesa (1822), a 1ª Constituição Brasileira (1824) e a Constituição Belga de
1831. O manifesto comunista de Karl Marx, que embasava o movimento dos
trabalhadores em conjunto com os reflexos do cartismo na Inglaterra e à Comuna
Francesa de 1871, passa a minar as bases do Estado Liberal.47
Destaca-se ainda, no ano de 1848, a Declaração de Direitos da
Constituição Francesa, que foi um texto percussor do século XX, pois previa como
princípios a igualdade, a liberdade e a fraternidade, e tendo como base a família, o
trabalho, a propriedade e a ordem pública.
Em 1919 com a Constituição de Weimar, que tecnicamente
ensejava uma idéia de democracia liberal e que serviu de modelo para várias
constituições do pós-guerra, houve uma crescente constitucionalização do Estado
Social de Direito com o intuito de converter em direito positivo as várias acepções
sociais que se transformaram em princípios do Estado de Direito.48
46
MORAES, A. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 3.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 3.
48
MORAES, A. Direito Constitucional p. 4.
47
24
O Estado de Direito é, portanto, conforme prescreve Alexandre
de Moraes, um Estado de onde há a supremacia da legalidade, no sentido de
proteção da ordem e segurança pública.49
A Constituição informada pelos princípios materiais do
constitucionalismo, que estão vinculados ao Estado de Direito, ao reconhecimento e
garantia de direitos fundamentais e a não confusão de poderes e democracia, é uma
estrutura política conformadora do Estado.50 Sobre essa elevação dos direitos
sociais, expõe Alexandre de Moraes:
Verifica-se a inclusão de conteúdos predominantemente
programáticos nos textos constitucionais, complementando o
constitucionalismo nascido com o Estado Liberal de Direito com
normas relativas aos direitos sociais e econômicos, passando a
existir expressamente normas programáticas político-sociais, além do
tradicional estatuto político, contendo os princípios e normas sobre a
ordenação social, os fundamentos das relações entre pessoas e
grupos e as formas de participação da comunidade, inclusive no
processo produtivo. [...] Essa evolução foi acompanhada pela
consagração de novas formas de exercício da democracia
representativa, em especial, com a tendência de universalização do
voto e constante legitimação dos detentores do Poder, fazendo surgir
a idéia de Estado Democrático.51
O Estado Liberal surge contra o absolutismo que delimitava a
liberdade individual. Através da democratização do sistema, e dos novos conceitos
de igualdade que surgem em vários âmbitos (social, político, econômico), resta
evidente necessidade da intervenção estatal. A passagem do Estado liberal ao
Estado social foi importante para solucionar problemas vindos das buscas
constantes pelo setor público para mediar as crises provocadas pelo fortalecimento
do capitalismo.52
Na crise de 1929 fica evidenciada a necessidade de
intervenção do Estado no capitalismo como forma de manter o equilíbrio social, e
desse modo, entre as duas guerras mundiais, acentuam-se as crises econômicas e
49
MORAES, A. Direito Constitucional p. 5.
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.7. ed. São Paulo: Almedina,
2003. p. 87.
51
MORAES, A. Direito Constitucional p. 4.
52
DIAS, R. Ciência Política. São Paulo: Atlas, 2008. p. 225.
50
25
a divisão de classes, possibilitando movimentos totalitários como o nazismo, o
fascismo, o franquismo, etc.53
Para Reinaldo Dias, o Estado social é, portanto, “uma resposta
histórica a um desafio trazido pelas novas questões colocadas pela intensificação da
industrialização, que se refletiam no âmbito econômico e social.”54
Posteriormente a esta necessidade de ligação entre Estado e
indivíduos, o Estado Constitucional vem definir esta relação de lei e poder, tendo em
vista que a constituição só se compreende através do Estado55, sendo que este
pode ser definido como uma forma histórica de organização jurídica de poder dotada
de qualidades que a distinguem de outros poderes e organizações de poder.56
Como modelo operacional, salienta-se duas dimensões de
Estado como comunidade juridicamente organizada:
(1) O Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional
das sociedades modernas; (2) Estado Constitucional é uma
tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se
combateram dois “arbítrios” ligados a modelos anteriores, a saber: a
autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo
medievais.57
Apesar dos vários conceitos e justificações, o Estado só se
apresenta hoje como Estado Constitucional, e o constitucionalismo buscou explicar
um Estado submetido ao direito, regido por leis e sem confusão de poderes. E para
ser um Estado Constitucional moderno, este deve ser um Estado de direito
democrático, dotado, portanto, de duas qualidades: Estado de direito e Estado
democrático. O Estado constitucional democrático de direito tenta propor uma
ligação entre a democracia e o Estado de direito.58
O Estado de Direito assinala certas premissas, a saber:
53
DIAS, R. Ciência Política. p. 225.
DIAS, R. Ciência Política. p. 225.
55
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 89 .
56
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 89.
57
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 90.
58
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93.
54
26
[...] (1) primazia da lei, (2) sistema hierárquico de normas que
preserva a segurança jurídica e que se concretiza na diferente
natureza das distintas normas e em seu correspondente âmbito de
validade; (3) observância obrigatória da legalidade pela
administração pública; (4) separação de poderes como garantia da
liberdade ou controle de possíveis abusos; (5) reconhecimento da
personalidade jurídica do Estado, que mantém relações jurídicas com
os cidadãos; (6) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais
incorporados à ordem constitucional; (7) em alguns casos, a
existência de controle de constitucionalidade das leis como garantia
ante o despotismo do Legislativo.59
A efetivação do Estado constitucional de direito, resulta dos
mais variados costumes, culturas e históricos político-sociais, por isso analisa-se
cuidadosamente os conceitos como Rechtsstaat, Rule of Law, État légal, tendo em
vista que todos eles tendem a alicerçar a juridicidade estatal.60
No direito inglês, a Rule of Law pode ser interpretada
apontando-se suas quatro dimensões: 1) obrigatoriedade de se compor um processo
justo em observação à Magna Charta de 1215, quando houver a necessidade de
julgar e punir seus cidadãos; 2) essa expressão deve significar a predominância das
leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real; 3) todos os atos
do poder Executivo devem estar sujeitos a soberania do Parlamento; 4) a igualdade
para que todos tenham acesso aos tribunais, para que defendam seus direitos
segundo os princípios ingleses (Common Law).61
A Always under Law, no direito norte-americano, retrata o
direito do povo de fazer uma lei superior onde se estabeleçam os esquemas
essenciais do governo e seus respectivos limites. Dentro desses esquemas,
incluem-se os direitos e liberdades dos cidadãos. Em segundo lugar, as razões do
governo precisam ser as razões do povo e que este aceite a forma como é
governado. O governo deve estar subordinado às leis e estas formam um conjunto
unificado de princípios de justiça e direito. O governo justificado é aquele que
59
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 5.
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93.
61
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 93-94.
60
27
cumpre sua obrigação de governar segundo leis repletas de unidade, publicidade,
durabilidade e antecedência.62
Por fim, no âmbito constitucional norte-americano, existem os
tribunais que desempenham a função de fazer justiça em nome do povo, e são
constituídos por juízes que devem preservar a justiça e o direito. Esses juízes
podem desaplicar, se o caso exigir, as más leis e declará-las nulas.63
Na França, a idéia do Estado de direito baseia-se no État égal,
assinalado como uma ordem jurídica hierárquica, onde as declarações dos direitos
de 1789 são como uma ‘supraconstituição’ e uma ‘pré-constituição’. Supra, pois
estabelece disciplinas à própria constituição e pré, porque cronologicamente surgiu
antes dessa primeira lei superior.
O Rechtsstaat, que quer dizer Estado de direito em alemão,
caracterizou-se pelo chamado constitucionalismo da restauração (paradigma a Carta
Constitucional de Luís XVIII, de 1812) e o constitucionalismo da revolução com o
seu princípio da soberania popular.64
Esse Estado de direito contrariava a idéia de um Estado de
Polícia e limitava-se à defesa da ordem e da segurança pública com intuito de prover
liberdade individual e liberdade de concorrência em detrimento dos domínios
econômicos e sociais, o que não caracterizava uma ação revolucionária de direitos,
mas o respeito de uma esfera de liberdade individual.65
A limitação de direitos teria que alcançar até mesmo o
soberano que nada mais era do que um órgão do Estado. A administração pública
teria que agir de acordo com o exposto na lei e não causar excessos quando
atuasse. Os atos da administração fiscalizados pelos tribunais poderiam ser feitos
em dois modelos: (1) confiar aos tribunais originários o julgamento das atividades
administrativas; ou (2) atribuiria- se aos tribunais administrativos, o poder de julgar
62
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 94.
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 95.
64
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 96.
65
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 97.
63
28
os atos da administração (modelo adotado pelas leis da Prússia de 1875 e da
Baviera de 1878).66
Não obstante toda essa estrutura jurídica que sustenta a
organização estatal, é preciso que haja uma coligação entre o direito e a democracia
para que se possa compor um Estado Constitucional moderno, conforme já dito
anteriormente.
Faz-se
necessário,
portanto,
estabelecer
os
meandros
da
democracia, com o intuito de obter a melhor qualificação para o presente estudo.
1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Contemporaneamente, o conceito que se faz da democracia é
‘o governo do povo pelo povo’, onde a massa detém o poder por meio de seus
representantes eleitos.67
Com a Revolução Francesa, a democracia ganha as seguintes
características: essência política; visava a liberdade política e a participação efetiva
no governo; basicamente espiritualista, implicando na aceitação de idéias morais.68
Apesar de ainda em evolução, o conceito de democracia deve
abranger os direitos individuais e sociais, estabelecendo uma segurança econômica
onde haja preocupação com a vida e a liberdade, mas também com a saúde, o
trabalho, a educação, etc. Por isso há nos estados modernos essa abundante
legislação social.69
Diante desses primeiros traços existentes de democracia, unise às bases do Estado de direito, de peculiar aspecto jurídico, contornos de
indissociável conteúdo político, que torna inaceitável a dissociação dessas duas
formas para caracterizar o Estado Constitucional. Sobre essa ligação jurídica e
política, resume Dallari:
66
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 97.
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 212.
68
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 214.
69
AZAMBUJA, Darcy. Introdução a ciência política. p. 214.
67
29
A respeito do relacionamento do Estado com o direito muito já se
disse no estudo dos problemas da soberania e do poder. Como se
tem procurado evidenciar, inclusive com o objetivo de assegurar o
respeito aos valores fundamentais da pessoa humana, o Estado
deve procurar o máximo de juridicidade. Assim é que se acentua o
caráter de ordem jurídica, na qual estão sintetizados os elementos
componentes do Estado. Além disso, ganham evidência as idéias da
personalidade jurídica do Estado e da existência, nele, de um poder
jurídico, tudo isso procurando reduzir a margem de arbítrio e
discricionariedade e assegurar a existência de limites jurídicos à
ação do Estado. Mas, não obstante a aspiração ao máximo possível
de juridicidade, há o reconhecimento de que não se pode pretender
reduzir o Estado a uma ordem normativa, existindo no direito e
exclusivamente para fins jurídicos. 66. Enquanto sociedade política,
voltada para fins políticos, o Estado participa da natureza política,
que convive com a jurídica, influenciando-a e sendo por ela
influenciada, devendo, portanto, exercer um poder político. Este é o
aspecto mais difícil e mais fascinante do estudo do Estado, pois
introduz o estudioso numa problemática extremamente rica, dinâmica
e polêmica, onde se faz presente a busca dos valores fundamentais
do indivíduo, da sociedade e do Estado, a par da procura da
organização mais eficaz para a promoção desses valores.70
O Estado Constitucional moderno não pode ser apenas um
Estado de direito, como dito anteriormente, mas deve ter uma ordem de domínio
validada pelo povo. Tudo que está instituído pelo direito e pelo poder, deve ser
organizado de forma democrática. Novamente aqui destaca-se o papel da soberania
popular “afastando a tendência humana ao autoritarismo e à concentração de
poder.” 71
É importante destacar, diante de tudo o que já se observou da
formação do Estado de Direito, que o que faltava a ele era, em melhorada síntese, a
“legitimação democrática do poder”72 e a “liberdade democrática que legitima o
poder”.73 Rousseau destaca o poder democrático do povo:
70
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. p. 128.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 5.
72
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 98.
73
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 98.
71
30
O soberano pode confiar o governo a todo povo, ou à maior parte
dele, de modo que haja mais cidadãos magistrados que cidadãos
simples particulares. Essa forma de governo se chama democracia.74
Canotilho destaca também que o Estado de Direito e a
democracia são duas formas de se ver a liberdade. No Estado de Direito existe a
liberdade negativa, uma postura de defesa perante o Estado. Na democracia existe
a liberdade positiva, onde há o exercício do poder. A liberdade negativa, segundo
expõe, teria preferência, pois a liberdade pessoal e moral teriam uma importância
maior do que as liberdades políticas; “o homem civil precederia o homem político, o
burguês estaria antes do cidadão”75
Sendo a Constituição, a norma máxima que rege juridicamente
o Estado e que este deve agir de acordo com os preceitos por ela impostos, os
princípios da legalidade e legitimidade dão contornos à maneira como o povo
estabelece sua vontade.
O princípio da legalidade exprime a observância das leis, ou
seja, “o poder estatal deve atuar sempre em conformidade com as regras jurídicas
vigentes”.76 E a legitimidade atribui um valor ao aspecto legal:
A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu
enquadramento nos moldes de uma constituição observada e
praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela
constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os
valores e os princípios da ideologia dominante, no caso, a ideologia
democrática.77
A Constituição Brasileira ao proclamar que a soberania popular
será exercida por meio de voto direto e secreto, concretiza o princípio democrático e
ratifica que todo poder emana do povo. O povo e o Estado devem estar sempre
envolvidos nas decisões políticas, a fim de baseadas num sistema jurídico pleno,
possam ser eficazes na conservação da ordem e do desenvolvimento do país.
74
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p.65.
CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 99.
76
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 111.
77
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 112.
75
31
É possível aprontar, que o Estado por si só, é a “principal forma
de organização política”78 e em termos mais específicos, o Estado Constitucional
Brasileiro caracteriza-se, portanto, pela junção do estado direito e pela democracia,
possuindo legitimidade e contornos delimitados ao poder, proporcionando ao
indivíduos
78
segurança
DIAS, R. Ciência Política. p. 49.
e
liberdades
civis
e
políticas.
32
Capítulo 2
A IDÉIA DE SOBERANIA DOS ESTADOS
2.1 SOBERANIA EM JEAN BODIN
Na Grécia Antiga, o Estado representava uma esfera dotada de
auto-suficiência, onde se desconhecia o conflito interno de poderes sociais, a
rivalidade de instituições, facções ou partidos políticos. Com esse pensamento
homogêneo, a nenhum pensador ou jurista grego surgiu a idéia de distinção entre o
Estado e mais comunidades políticas.79
A Idade Média, que seguiu esse modelo de organização
político romano, assinala um período de competição entre poderes, o que propicia o
amortecimento da idéia de Estado, que tem seu poder político centralizado na
pessoa do Imperador. Aqui é visto claramente a luta entre duas ordens: a ordem
temporal e a ordem espiritual. Os poderes autônomos de ordens intermediárias
estavam sujeitos à autoridade do Império e somente este não estava subordinado a
nenhuma jurisdição. O princípio de soberania começa por exprimir um poder
desembaraçado de qualquer tipo de sujeição, distinguindo o Estado dos demais
poderes rivais que lhe contestavam a supremacia.80
Posteriormente a essas incertezas, o Estado Moderno
precisava se impor, necessitando de uma teoria que pudesse firmar
o poder
absoluto como sede na monarquia. É na França, onde ficou mais clara essa
rivalidade entre o Império e a Igreja, que nasceu o primeiro conceito de soberania e
que tem como destaque o teórico Jean Bodin.
Jean Bodin nasceu em Angers por volta de 1529/1530 e
dedicou-se aos estudos de letras jurídicas em Toulouse, onde também foi professor,
79
80
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 124.
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 124.
33
bem como advogou em Paris. Sempre atento a sua pátria, e com a exteriorização de
lutas que fazia o rei da França contra o sacerdócio, é que Bodin afigura a soberania
como elemento essencial do Estado.
Bodin defende o absolutismo, o poder absoluto, e o amplo
exercício da soberania, e discorreu sobre o assunto como nenhum autor da teoria
política.81 Sobre o assunto expõe Bittar:
A primeira exposição sistemática da soberania é normalmente
atribuída ao jurista francês Jean Bodin (1529/30-1596), que reclama
justamente da falta de uma clara definição desse conceito. Há, de
fato, a necessidade de formular a definição de soberania, porque não
existiu nem jurisconsulto nem filósofo político que a tenha definido,
embora seja o ponto principal e o mais importante a ser entendido no
tratado sobre a República (República I, 8, p. 179).82
Entre os vários trabalhos de Bodin, destacam-se duas
principais obras: Método para fácil compreensão da história de 1566 e Os seis livros
da República de 1576. Essas abordagens foram de essencial importância para o
tema soberania.
Historicamente, a partir da divulgação de suas obras, caminhase no sentido da centralização e do absolutismo, que ganha maior repercussão com
o Luís XIV (O rei Sol, Le roi soleil). As idéias de Bodin refletiam soluções para os
problemas enfrentados pelo Estado, tais como a insegurança político-internacional, a
perda de territórios, a intolerância religiosa e a desordem social.83
A obra Six Livres de La republique destaca a soberania como
elemento essencial para definir uma república e Bodin acrescenta que nenhum outro
autor do passado deu importância àquele que é o ponto absolutamente necessário à
composição desta.
A idéia de um comando absoluto já reinava entre os
imperadores e os papas na Idade Média. O que ocorre, no entanto, é que Bodin foi o
81
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 133.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 27.
83
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 135.
82
34
primeiro a tratar de soberania como elemento de organização da vida civil e da
possibilidade de unificar os sistemas dos conhecimentos políticos.84
A conjunção harmônica de três leis deve ser o limiar do
governo de toda república, sendo elas: a lei moral, cujo meio de aplicação e atuação
é o foro íntimo de cada indivíduo frente a suas decisões e no comportamento
perante os demais; a lei doméstica, delimitada no âmbito da casa e a lei civil, no que
diz respeito à participação na sociedade política, nas relações entre a família e os
colégios. E é com base nessa maneira social de organização por leis que apresentase a definição bodiniana de soberania.85
A soberania apresenta-se como centro de uma estrutura da
república, sendo que dela “dependem os magistrados, as leis, os ordenamentos:
somente ela é a ligação e a união que transforma famílias, corpos, colegiados,
particulares em um único corpo perfeito, que é, justamente, a república”.86
Essas ligações, no entanto, não são suficientes para
caracterizar a soberania, é preciso que todos estejam reunidos sob uma mesma
autoridade e acrescenta-se a isso o fato de que todos devam partilhar de coisas
comuns com certa utilidade geral.87
Sobre a composição ideal do poder soberano acrescenta Merio
Scattola:
O impacto da idéia elaborado por Bodin não se reflete,
evidentemente, apenas sobre os modos em que é organizada e
transmitida a disciplina política, mas também estrutura em
profundidade o seu significado. Definindo a soberania como um
poder absoluto de disposição sobre a lei civil, Bodin consegue o
efeito de neutralizar o conflito sobre a interpretação da lei e, mais em
geral, sobre a vontade que deve guiar a república. Já que o soberano
é uma fonte de comando que não admite superiores e não está
sujeita a controles, o quadro das instâncias constitucionais múltiplas,
84
SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe
(Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz
e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. p.61.
85
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136.
86
SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe
(Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 61- 62.
87
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136.
35
característica das sociedades estamentárias, nas quais o comando
era o resultado de uma busca complexa e compartilhada por centros
de governos autônomos e concorrentes, é completamente
desmontado. O comando, agora, é o produto de uma simplificação
que coloca todas as forças que operam dentro de um território numa
linha descendente e dependente do vértice do sumo poder. À
doutrina da colaboração, do equilíbrio e do acordo entre estamentos
e ordens substitui-se, assim, uma doutrina da concentração do poder
nas mãos do soberano 88
A vida organizada politicamente e a existência do Estado
tornam-se impossíveis se não houver esse cimento das relações sociais que é a
soberania, ou melhor, o solo onde se constroem os modos de vida e o convívio em
sociedade. Em melhor significado, expõe Bittar:
O uso do adjetivo absoluto implica atribuir ao poder soberano as
características de superior, independente, incondicional e ilimitado.
Ilimitado porque qualquer limitação é incompatível com a própria
idéia de um poder supremo: ‘A soberania não é limitada, nem em
poder, nem em obrigações, nem em relação ao tempo’ (República I,
8, p. 181). Incondicional na medida em que este poder deve estar
desvinculado de qualquer obrigação: ‘A soberania dada a um
príncipe sob condições e obrigações não é propriamente soberania
nem poder absoluto’ (República I, 8, p. 187). Independente, pois seu
detentor deve ter plena liberdade de ação: ‘Assim como o papa não
tem suas mãos atadas, como dizem os canonistas tampouco o
príncipe soberano pode ter suas mãos atadas, mesmo se o desejar’
(República, I, 8, p.192). Superior porque aquele que possui o poder
soberano não pode estar submetido ou numa posição de igualdade
em relação a outros poderes: ‘É preciso que os soberanos não
estejam submetidos aos comandos de outrem’ (República, I, 8, p.
191).89
O elemento caracterizador mais importante do Estado é a
soberania, sendo esta incontrastável e inalienável, por assim dizer:
Os direitos da soberania são considerados inalienáveis, pertencentes
apenas ao soberano: ‘É preciso que as marcas da soberania sejam
tais que não possam ser convenientes senão ao príncipe soberano;
de outro modo, se elas são comunicáveis aos súditos, não se pode
dizer que sejam marcas da soberania’ (República I, 10, p. 298).90
88
SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe
(Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 62-63.
89
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 136-137.
90
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137.
36
Para Bodin, o soberano deve agir sem estar limitado em sua
atuação, tendo a máxima liberdade de ação para poder cumprir as metas do Estado,
estabelecendo leis ou revogando-as em face de seus súditos. Esse poder não
poderá ser exercido se estiver sob o comando de outrem. Uma sociedade sem leis,
sem ordem, transforma-se no caos, prestando ao Estado o papel de governar a
partir de leis que se estabelecem diante das famílias e dos colégios. Ao conferir leis
ao povo, o soberano faz com que esses cumpram suas metas e finalidades. Nesse
ponto, cabe ao soberano, conforme a necessidade, modificar, alterar, corrigir ou
emendar as leis, repassando-as aos seus súditos. Por necessidade, estabelece-se a
vontade do soberano, pois ele é quem deve determinar, conforme explícita Bittar: A
primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em geral e a cada um em
particular. (República I, 10, p. 306).91
Ao se questionar de onde provém a soberania de um rei, não
se pode dizer que este constituiu uma sociedade ou por sua ação unificou um povo.
O que existia era um indivíduo que detinha uma posição de poder e que
juridicamente repassou sua colocação a outro. Interessante destacar, portanto, que
a soberania é um conjunto de direitos e possibilidades que podem ser transmitidos.
Ocorre que os súditos irão sempre pertencer a um mesmo conjunto político, mesmo
que o titular da soberania mude.92
No que tange às formas de exercer a soberania, Bodin expõe
uma tripla divisão que remonta à separação de governo feita por Aristóteles: “a
soberania pertence necessariamente seja a um só indivíduo, seja a um pequeno
número de notáveis, seja ao conjunto de todos ou pelo menos da maioria dos
cidadãos, e nós temos, segundo o caso, uma monarquia, uma aristocracia ou uma
democracia” (Método VI, p. 368 A)”93
Essa tripartição permite ao teórico, discorrer sobre as
mudanças no ordenamento jurídico e pela necessidade que encontra em seu
91
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 137 – 138.
SCATTOLA, Merio. Ordem da justiça e doutrina da soberania em Jean Bodin. In: DUSO, Giuseppe
(Org.). O Poder: história da filosofia política moderna. p. 66.
93
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139.
92
37
contexto político-social, de reflexão sobre as modificações existentes no governo e
nas leis. E mais uma vez apresenta-se, como idéia fundamental, que a soberania
perpassa de um para outro governo, e que diante disto, há uma real modificação do
ordenamento jurídico. Se a soberania não muda de um agente para o outro, isto é,
de um Estado para o outro, não há que se falar em mudança no ordenamento
político.94
Dos três modos de Estado, Bodin defende a monarquia como
melhor modo de exercer a soberania, conforme explica:
Entre os três Estados, o monárquico é considerado a forma mais
adequada para a República. Os argumentos utilizados por Bodin
para provar sua superioridade são de diferentes procedências. O
primeiro vem da história, que revela a aprovação dos povos antigos:
‘Vemos que todos os povos da terra de toda antiguidade, quando se
deixaram guiar pela luz natural, não tiveram outra forma de
República senão a monarquia’ (República VI, 4, p. 188). Os relatos
históricos mostram que os estados populares e aristocráticos,
quando estão em perigo, recorrem à forma monárquica: ‘Os estados
aristocráticos e populares, vendo-se em perigosa guerra contra os
inimigos, ou contra eles mesmos, ou em dificuldade de processar um
poderoso cidadão [...] instituem um ditador como monarca soberano,
pois sabem que a monarquia é a âncora sagrada, à qual é
necessário recorrer em dificuldades. (República VI, 4, p. 188).95
E de maneira definitiva, pontua sua predileção pela monarquia:
A principal marca de uma República, que é o direito da soberania,
não se pode estar nem subsistir, falando propriamente, senão numa
monarquia, pois só um deve ser soberano numa República. Se são
dois, ou três, ou vários, ninguém é soberano, visto que não se pode
dar nem receber a lei de um companheiro (República VI, 4, p. 178).96
A impressão que se tem da definição de soberania, portanto, é
a de que a ela nada pode opor-se. Porém, Bodin expõe que há duas leis que a
antecedem: as leis divinas e as leis naturais.
O poder dos soberanos, segundo Bodin, são posteriores ao
poder divino e essas leis servem de parâmetro para distinguir a tirania da
94
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 139.
96
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 140.
95
38
monarquia. Para o teórico, o rei limita-se às leis da natureza e o tirano não às
respeita.
Surge nesse ponto, uma preocupação com a questão do
julgamento do soberano, caso este viole alguma lei natural ou divina. Não caberia ao
povo julgá-lo tendo em vista a contradição que se acolheria: um súdito afrontando
seu rei. Uma afronta à soberania seria o fato de julgar um soberano, visto que não
há autoridade capaz de julgá-lo.97
E diante dessa encruzilhada, Bodin preza sempre pelo poder
absoluto. Neste caso, as leis divinas e naturais na promovem eficácia legal e,
portanto, não exercem coerção jurídica sobre o soberano.98
A obra de Bodin, tendo como núcleo, a preocupação com o
conceito de soberania e estabelece para o Estado Moderno, os limites do poder
soberano. Sustenta ainda o absolutismo como forma de manutenção da ordem e a
proteção da própria existência da sociedade política.
2.2 A MANUTENÇÃO DO PODER SOBERANO EM MAQUIAVEL
Niccolò Macchiavelli nasceu em Florença, no ano de 1469,
iniciando sua carreira política em 1498, na época do último traço republicano na
Itália antes da afirmação do Estado Moderno. Suas obras são o retrato de sua vida
política e das causas dos Estados nos quais se envolveu.99
Nicolau Maquiavel foi estrategista do poder, diplomata e
pensador das causas políticas de sua época. Viveu num período conturbado, onde
foi torturado e acusado de complô contra o governo dos Médicis, em 1513.100
Num tempo em que se fundavam e se destituíam principados e
repúblicas rapidamente, expor novos métodos e sistemas tronava-se perigoso.
97
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p.141-142.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 142.
99
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 144.
100
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 143.
98
39
Assim como já citado anteriormente, Bodin propunha o fortalecimento do poder por
meio do Direito, Maquiavel tem a solução pela idéia de virtú.101
A virtú, ao contrário do plural latino virtudes, apresenta-se, no
conceito de Maquiavel, “a qualidade do homem que o capacita a realizar grandes
obras e feitos” [...] “o poder humano de efetuar mudanças e controlar eventos” [...] “o
pré-requisito da liderança.”102
Entre suas obras destacam-se: O príncipe, O discurso sobre a
primeira década de Tito-Lívio, A arte da guerra, Discurso sobre a reforma do Estado
de Florença, entre outras.
O texto que tem maior destaque, talvez por retratar a suma de
seu pensamento político, é O príncipe. Nesta ocasião, Maquiavel explora a maneira
como os homens devem se portar diante do poder; como manter-se no poder de
forma que seus súditos também estejam satisfeitos.
Esse livro é fruto muito mais da experiência do que da
inteligência e serve de orientação política para a condução do Estado e do governo.
Inspirado nos clássicos romanos (Tácito, Tito Lívio, Políbio), Maquiavel trata de
propor sua metodologia, descrevendo histórias do poder e das formas de governar:
a verdade efetiva (veritá effettuale).103
A expressão maquiavelismo ou maquiavélico remete a um
modo de agir falso e sem escrúpulos, o que resulta de uma forma distorcida da obra
de Maquiavel e da rejeição inicial causada por seus escritos, tendo em vista a
moralidade cristã que via uma justificativa para o poder sem limites do Estado.104
Sobre essa realidade, Bittar expõe:
Em verdade, o que ocorre é que Maquiavel inaugura uma nova ética
para a política. O maquiavelismo implica orientar e guiar as atitudes
práticas dos governantes com base nas próprias práticas humanas
relativas ao poder. Próximas ao poder estão o desmando, a vaidade,
101
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 134.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 14.
103
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 145.
104
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 146.
102
40
a corrupção, o favoritismo, a crueldade, o egoísmo, a arrogância, o
unilateralismo, o interesse particular, a volúpia... e, em vez de ignorar
ou maquiar estes irmãos e primos próximos do poder, Maquiavel, os
tem em consideração ao propor sua análise do poder e das formas
de conquistá-lo, administrá-lo e conservá-lo. Os práticos do poder
costumam ser medíocres nesse aspecto, pois não se fala das
técnicas de gerenciamento do poder nem são elas objeto de
comentário, mas de todas valem-se eles e se utilizam para a gestão
de suas posições. Maquiavel procura sistematizar sua experiência e
seus conhecimentos sobre essas técnicas e legá-las para a
posteridade e para aqueles que exercem funções de
governo.105
Sobre o comportamento dos príncipes, Maquiavel demonstra
inicialmente, certos ditames que devem ser seguidos a partir das características de
governo.
Nas monarquias hereditárias, basta que o monarca não
transgrida os costumes tradicionais e que saiba adaptar-se a circunstâncias
imprevistas. Nas monarquias mistas, onde sempre há mudanças de governantes, o
príncipe fará inimigos pela ocupação do território, no entanto deve manter a amizade
com aqueles que o ajudaram na conquista.106
O que esperar de um príncipe? O que desejar do poder e como
administrá-lo? Quais métodos adotar para manter a estabilidade do poder? Todas
essas são as questões que permeiam as idéias estabelecidas por Maquiavel.107
Na análise de Maquiavel, a paz só é alcançada por meio da
guerra, e esta é, portanto, a preocupação para a qual o príncipe deve ater-se:
Os príncipes, por conseguinte, não deveriam ter outro objetivo ou
pensamento além da guerra, a organização e disciplina das tropas,
nem estudar qualquer outro assunto; pois esta é a única arte que se
espera de quem comanda. Tal é sua importância que não só mantém
no poder os que nasceram príncipes, mas torna possível a homens
comuns galgar a posição de soberano. Observemos que, quando os
príncipes se interessam mais pelas coisas amenas do que pelas
armas, perdem seus domínios. A causa principal da perda dos
105
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 146-147.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 32.
107
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 150.
106
41
Estados é o negligenciar a arte da guerra; e a maneira de conquistálos e ser nela bem-versado.108
Sendo assim, o príncipe precisa preparar suas tropas, que
devem estar sempre em compasso de espera e em constante processo de
aprimoramento. Soma-se a isso a importância de analisar as experiências gloriosas
dos grandes homens do passado:
[...] exercícios que devem praticar na paz mais ainda que na guerra,
de duas formas: pela ação física e pelo estudo. A primeira consiste
no constante exercício da caça, que habitua o corpo às agruras, além
de manter seus homens bem-disciplinados e exercitados. [...] A fim
de exercitar o espírito, o príncipe deve estudar a história e as ações
dos grandes homens; ver como se conduziram na guerra, examinar
as razões de suas vitórias e derrotas, para imitar as primeiras e evitar
as últimas. Acima de tudo, deve agir como alguns grandes homens
do passado ao seguir um modelo que tenha sido muito elogiado e
glorificado, ter sempre em mente seus gestos e ações.109
A biografia maquiavélica foi construída sob as disputas do
Renascimento (século XVI) da burguesia ascendente da Itália e de uma Europa
fracionada por grupos de interesse. A unificação e a estabilidade do poder eram,
para Maquiavel, essenciais à reconstrução do seu mundo e da própria política.110
No capítulo XVII, o teórico trata da idéia de crueldade como
uma atitude que por vezes faz-se necessária ao bom andamento do governo do
príncipe:
[...] todos os príncipes devem preferir ser considerados clementes, e
não cruéis. É necessário, contudo, evitar o mau emprego dessa
clemência. César Borgia foi tido como cruel, mas sua crueldade
impôs ordem à Romanha; unificou-a, reduzindo-a à paz e gerando
confiança. Se examinarmos desse ponto, veremos que na verdade
ele foi muito mais clemente do que o povo florentino, o qual para se
esquivar à fama de cruel permitiu a destruição de Pistóia. O príncipe,
portanto, não deve se incomodar com a reputação de cruel, se seu
propósito e manter o povo unido e leal. De fato, com uns poucos
exemplos duros poderá ser mais clemente do que outros que, por
muita piedade, permitirem os distúrbios que levem ao assassínio e
ao roubo. Tais ocorrências, de modo geral, prejudicam toda a
108
MAQUIAVEL. Nicolau, O Príncipe. p. 92.
MAQUIAVEL. Nicolau, O Príncipe. p. 94.
110
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 152.
109
42
comunidade, enquanto as execuções ordenadas pelo príncipe só
afetam uns poucos indivíduos isolados.111
Mas Maquiavel também trata da importância da confiança dos
súditos em seu soberano, pois ao inserir uma nova ordem, não faltaram opositores
para inflamar as dúvidas na cabeça do povo. Quem se beneficiou com o antigo
governo, será inimigo do novo príncipe.
É necessário que o príncipe mantenha a aparência de que
possui todas as qualidades que agradam seu povo, como a misericórdia, a lealdade,
a sinceridade e a religiosidade, mas se houver necessidade de ater-se a outras
condutas para ficar no poder, essas deverão ser usadas. A frase célebre deste
político se passa justamente neste ponto:
Nada é mais necessário do que a aparência da religiosidade. De
modo geral, os homens julgam mais com os olhos do que com o tato:
todos podem ver, mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem
nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos, e estes
poucos não ousarão opor-se à maioria que tenha a majestade do
Estado a defendê-la. Na conduta dos homens, especialmente dos
príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios.
Portanto, se um príncipe pretende conquistar e manter o poder, os
meios que empregue serão sempre tidos como honrosos, e
elogiados por todos, pois o vulgo atenta sempre para as aparências e
os resultados; o mundo se compõe só de pessoas do vulgo e de
umas poucas que, não sendo vulgares, ficam sem oportunidade
quando a multidão se reúne em torno do soberano.112
Para se manter na condição de dominante, o príncipe deve
demonstrar sua amizade pelo povo. Ainda que tenha chegado ao poder por favor
dos grandes, a norma é conservar a admiração destes e conquistar aqueles que não
participaram do processo de sua ascensão ao trono.
No capítulo XIX, Maquiavel adverte para a maneira de evitar o
desprezo e o ódio. O príncipe deve evitar usurpar os bens e as mulheres dos súditos
e que lute contra a ambição de poucos. Suas atitudes devem estar rodeadas de
111
112
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 101.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 108-109.
43
grandeza, força de ânimo, gravidade e fortaleza. Deve cuidar da questão interna,
que são seus súditos e da externa, que são as potencias estrangeiras.113
As conspirações não existiriam, se os súditos forem favoráveis
ao seu soberano e este não precisará temer a morte. Maquiavel cita um exemplo da
França, onde havia muitas instituições que garantiam a liberdade do povo e a
segurança do monarca. O parlamento era um modelo onde regiam estas
circunstâncias.114
Ainda que siga por todos esses caminhos, e consiga impedir
rebeliões, o príncipe deve dar atenção especial à maneira como seus soldados
convivem com o povo. Maquiavel diz que os imperadores que chegaram ao poder
vindos da condição de cidadão comum, pelas dificuldades e pelo interesse,
agradavam somente aos soldados, atribuindo pouca importância ao que estes
faziam contra o povo. O ódio de alguns é normal, o que não pode haver é o
desprezo da massa e a ira dos partidos poderosos.115
Maquiavel se preocupou com a participação do cidadão dentro
do Estado, a fim de que este esteja satisfeito e não se vire contra o governo:
Os príncipes devem demonstrar também apreço pelas virtudes, dar
oportunidade aos mais capazes e honrar os excelentes em cada arte.
Devem, além disso, incentivar os cidadãos a praticar pacificamente
sua atividade – no comércio, na agricultura ou em qualquer outro
ramo profissional. Assim, que uns não deixem de aumentar seu
patrimônio pelo temor de que lhes seja retirado o que possuem, e
outros não deixem de iniciar um comércio, com medo dos tributos;
devem os príncipes, ao contrário, instituir prêmios para quem é ativo
e procurar de um modo ou de outro melhorar sua cidade ou Estado.
Além disso, precisam manter o povo entretido com festas e
espetáculos, nas épocas convenientes; e como toda cidade se divide
em corporações ou em classes, devem dar atenção a todos esses
grupos, reunir-se com seus membros de tempos em tempos, dandolhes um exemplo da sua solidariedade e munificência – guardando
sempre, contudo, sua dignidade majestosa, que não deve faltar em
nenhum momento.116
113
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 110-111.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 113.
115
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 115.
116
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 134-135.
114
44
Maquiavel também descreve a importância de escolher bem os
ministros. A inteligência do governante se mede pelos homens que o cercam. Se
estes são fiéis e eficientes, pode-se considerar o príncipe sábio. O ministro deve
preocupar-se em primeiro lugar com os propósitos do Estado e não consigo mesmo.
E o príncipe deve sempre adular e honrar seus ministros.117
Por fim, Maquiavel ressalta o modo como escapar das lisonjas,
escolhendo com sabedoria seus conselheiros, dando-lhes liberdade para falar a
verdade a fim de que estes sejam prudentes quando solicitados. O príncipe deve ser
astuto, para que saiba discernir por si, e não pelos conselhos que lhe forem dados.
O autor impõe uma regra infalível:
[...] o príncipe que não é sábio por si mesmo não poderá ser bem
aconselhado a não ser que por sorte se entregue às mãos de um
homem de grande prudência, que o oriente em tudo. Neste caso,
poderá sem dúvida receber bons conselhos, mas não por muito
tempo, pois o orientador logo lhe usurpará o poder. Aconselhando-se
com muitos, no entanto, o príncipe que não é sábio nunca receberá
conselhos condizentes, e não saberá harmonizá-los por si mesmo.118
A obra de Maquiavel teve uma preocupação esmiuçadora com
o tema política. Vivendo em uma época de grandes transformações neste âmbito e
presenciando a destituição e ascensão de grandes reinos, o autor promove uma
espécie de manual para o soberano, um guia para ascender e mais difícil que isto,
manter-se no poder.
A experiência era o que guiava Maquiavel, e este adotou uma
ética de fins e não de meios para a política.119 Vale tudo para permanecer no poder,
ainda que em desacordo com alguns, o que contava era a maneira como o Estado
progredia. A segurança e a coerção do Estado são premissas que beneficiam o
cidadão, de forma que este não consegue se desligar da sociedade, pois fora dela,
não encontrará essa defesa se alguém o usurpá-lo.
117
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 136-137.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. p. 141.
119
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p.124.
118
45
2.3 AS CONCEPÇÕES DE SOBERANIA DOS CONTRATUALISTAS
2.3.1 THOMAS HOBBES
Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra em 1588 e está entre os
principais autores do jusnaturalismo racional dos séculos XVI, XVII e XVIII, onde
conceitua e sistematiza elementos essenciais para argumentar a unidade do Estado,
o reforço do poder e a manutenção da sociedade civil.120 Entre suas principais obras
destacam-se, Leviatã, De Cive e Elementos da lei natural e política.
O jusnaturalismo racional de Hobbes enfatiza a questão da
necessidade que o homem tem de adentrar e permanecer no estado civil de
convívio, conforme expõe:
“Para o que é do direito entre as nações, é a mesma coisa que a lei
natural; porque o que é lei natural entre dois homens antes do
estabelecimento da república, é, depois, o direito dos indivíduos
entre soberano e soberano. (Hobbes, Elementos do direito natural e
político, p. 237)”121
No estado de natureza, Hobbes aponta para um período précívico onde a lei maior era a liberdade no convívio social, onde reinava a violência e
não existia uma autoridade soberana capaz de controlar o egoísmo feroz de cada
um em busca de sua sobrevivência. A igualdade de todos, aliadas à liberdade de
todos, logicamente resultará em conflitos.
Diante do medo da morte e do desejo de uma vida confortável
através do trabalho, os homens precisam criar normas de convivência, que poderiam
ser chamadas de leis da natureza. Quando todos são contra todos, existe o que
Hobbes identifica de estado de guerra, e por isso, propõe que o homem largue o
estado de natureza e tencione em direção ao um estado civil por meio de um
acordo, de um contrato. O Estado protege a vida e exerce o poder soberano, e para
Hobbes é uma necessidade, segundo os comentários de Bittar:
120
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 155.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 156.
121
46
O Estado é uma necessidade, um impositivo para os homens que
anteriormente viviam em estado de natureza. O Estado, e somente
ele, é capaz de impor ordem, por instaurar um governo comum,
regras comuns e exercer soberanamente a justiça da sociedade.
Nesse sentido, a idéia da guerra como algo abominável, de que se
tem de fugir, sob pena do extermínio completo de todos por todos,
ressalte-se, é o que promove a propulsão acelerada do homem para
a sociedade civil.122
O Leviatã é um monstro que Hobbes utiliza para caracterizar a
figura do Estado, como uma criação do homem em substituição ao estado de
natureza. O homem é capaz de se desenvolver e aperfeiçoar a natureza para lhe dar
uma finalidade nobre de servir a todos. Inicialmente, com consenso de vontades, um
contrato é fundado artificialmente pelos homens, e é firmado de modo irreversível
entre as pessoas e o soberano.123
O poder do Estado é o mais forte para reunir o povo a fim de
protegê-lo e de dar capacidade para que, através de um terceiro árbitro, possam
resolver suas pendências de modo pacífico. Essa pacificidade que o Estado
proporciona, gera segurança ante a ameaça de dissolução, de anarquia, de
destruição e de retorno ao estado de natureza. Neste ponto Hobbes aponta que o
poder conferido ao soberano deve ter sabores fortes, já que a soberania
enfraquecida é instável. E mais uma vez, destaca-se a preferência de um teórico
pela monarquia, tendo em vista o medo da desagregação e da corrupção completa
do Estado, que para Hobbes é mais difícil de ocorrer no Estado monárquico.124
Quando trata da sociedade civil, Hobbes destaca que esta é
fundada por meio de um pacto de união entre as pessoas, onde todos se sujeitam
ao soberano e este reivindica obediência. A soberania que surge desse pacto possui
três características: a irrevogabilidade, o caráter absoluto e a indivisibilidade, sem as
quais o poder estatal não é verdadeiramente soberano. Vejamos a distinção dessas
características segundo Bittar:
a) um pacto de submissão estipulado entre indivíduos, e não entre o
povo e o soberano; b) consiste em atribuir a um terceiro, situado
122
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 161.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 162-161.
124
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 164 -165.
123
47
acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza;
c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três
definições acima o sublinham, é uma única pessoa.
O soberano exerce o poder absoluto, porém este encontra
limites de ação quando a questão é o respeito da vida. O direito de viver e
sobreviver fez com que os súditos aceitassem o pacto e por isso a todos é dada a
garantia de unidade e ordem. E todos devem honrar ao pacto; o soberano garante a
segurança e os súditos devem manter-se fiéis ao pacto.125 Hobbes define que a
quebra deste pacto gera injustiça, guerra e desordem:
Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque
sem pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem
tem direito a todas as coisas, consequentemente, nenhuma ação
pode ser injusta. Mas depois de celebrado um pacto, rompê-lo é
injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o nãocumprimento de um pacto. E tudo que não é injusto é justo.126
Neste seguimento, Hobbes reflete que a lei é algo intrínseco do
Estado, necessária para estabelecer obediência entre os súditos:
Considerado isto, defino a lei civil da seguinte maneira: A lei civil é,
para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe
impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua
vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal;
isto é, do que é contrário ou não contrário a regra.127
Fazer, revogar e abolir leis são capacidades que o soberano
possui tendo em vista a extensão de seus poderes. A lei é uma maneira de conduzir
o Estado, e conforme as necessidades deste é que o soberano utiliza as leis de
modo a aplicar o melhor fim aos seus súditos.
As leis devem servir ao soberano e não o contrário. O
soberano é quem deve controlar o sentido e a hermenêutica das leis vigentes no
Estado e Hobbes teme que essas sejam desfavoráveis à vontade do soberano.
Assim destacou Bittar sobre esse contexto:
125
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política p. 166.
HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. p. 123.
127
HOBBES, Thomas. Leviatã matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. p. 207.
126
48
[...] a natureza da lei não consiste na letra, mas na intenção ou
significado, isto é, na autêntica interpretação da lei (ou seja, do que o
legislador quis dizer), portanto a interpretação de todas as leis
depende da autoridade soberana, e os intérpretes só podem ser
aqueles que o soberano, (única pessoa a quem o súdito deve
obediência) venha designar. Se assim não for a astúcia do intérprete,
pode fazer que a lei adquira um sentido contrário ao que o soberano
quis dizer, e desse modo o intérprete tornar-se-á legislador. (Hobbes,
O leviatã, 1999, p. 213).128
Hobbes, assim como outros de sua época, é defensor do poder
absoluto, da máxima integração do poder na pessoa do soberano. Antes, quando
viviam em estado de natureza, os homens agiam de forma instintiva, sem rumo e
sobre tudo sem limites. Surge a necessidade de autodefesa, de cada um pelo o que
é seu. Neste ponto funda-se a sociedade para oferecer maior conforto, paz e
prosperidade.129 E para a manutenção dessa sociedade civil é que os homens
estabelecem um pacto com o poder. Esse poder está introduzido na figura de um
soberano que deve proporcionar a ordem entre os súditos.
Hobbes
preocupa-se,
portanto,
com
a
manutenção
da
sociedade civil, tendo em vista que a anarquia seria o retorno ao estado de natureza,
onde há destruição, guerra e dissolução.130
2.3.2 JOHN LOCKE
John Locke nasceu no ano de 1632, em Wrington, na
Inglaterra, e é considerado um dos principais pensadores da teoria política da Idade
Moderna. Foi professor em Oxford, além de participar de cargos e funções públicas,
que determinaram seu exílio na Holanda, de 1683 a 1689, antes de publicar suas
principais obras, que são: Ensaios sobre a lei da natureza, Dois tratados sobre o
governo civil; Ensaio sobre o entendimento humano e Cartas sobre a tolerância
religiosa.131
Locke pode ser considerado o fundador do liberalismo político
e traz consigo a idéia de que o conhecimento humano depende da experiência.
128
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 172.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 173.
130
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 174.
131
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 175-176.
129
49
Assim como Aristóteles, diz que ao nascer, a mente humana é uma tabula rasa que
posteriormente vai se formando com base nas experiências e nas atividades
sensoriais. Dessa preocupação com o conhecimento empírico, derivam outras idéias
acerca das relações humanas e da formação da sociedade.132
Locke, assim como Hobbes também aborda os nomes, estado
de natureza e estado civil, só que conceitua de maneira diversa. O estado de
natureza é um estado real e histórico que constituiu a humanidade. O estado civil
seria o aprimoramento do estado natural. No entanto, ambos chegam a um
denominador comum: só o estado natural não basta.133
Locke aponta no capítulo III ‘Do estado de guerra’, que a falta
de um juiz, uma autoridade detentora do poder decisório, é o que causa o estado de
guerra, pois se não há quem faça um julgamento, o indivíduo sente-se no ‘direito de
fazer guerra a seu agressor’.134
Quando Locke trata do estado civil, diz que este deixa o estado
de natureza e passa a fundar-se nas relações sociais com amparo de autoridades
que decidem e julgam conflitos. A sociedade civil, portanto, seria o oposto de estado
de guerra e o aperfeiçoamento do estado de natureza.135
A formação da sociedade civil apontada por Locke no capítulo
VII do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, é fruto de relações de obrigação,
necessidade e conveniência de união, que a princípio são determinações de Deus e
que conduzem o homem conseqüentemente a livra-se do estado de natureza.136
Neste ponto Locke trata também da questão de conservação,
onde a primeira das sociedades, o homem e a mulher, deu origem à família e
convivem por comunhão de interesses e no cuidado essencial que precisam ter com
a prole:
132
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 177.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 178-179.
134
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 180.
135
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 182.
136
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 57.
133
50
A sociedade conjugal é formada mediante pacto voluntário entre
homem e mulher; e embora consista principalmente na comunhão e
direito ao corpo um do outro, como exige seu fim principal, que é a
procriação, traz consigo o sustento e amparo mútuos, bem como
comunhão de interesses, necessária não só para o cuidado
recíproco, mas também em proveito da prole comum, que tem o
direito de ser alimentada e orientada por eles até ser apta para
prover às próprias necessidades.137
Algumas são as características que permeiam a sociedade civil
e que são a ampliação da sociedade familiar: possibilidade de punir seus membros;
perda do poder natural por parte de seus membros; atribuição de poderes, para que
decida conforme as leis pela sociedade estabelecidas; exercício do direito de
soberania; constituição de uma autoridade julgadora dos conflitos entre os
indivíduos; etc.138
O governo deve zelar pelos fins da sociedade civil e pela
conservação da propriedade, algo que no estado de natureza não é possível. Aqui é
possível rever mais uma vez respaldo na teoria contratual da formação do Estado:
Por isso, os homens, apesar dos privilégios do estado de natureza,
nele permanecendo em condições precárias, são rapidamente
introduzidos a se associar. Daí resulta que raramente se encontra um
grupo de homens vivendo nessas condições. Os percalços a que os
expõem o exercício irregular e aleatório do poder próprio do homem,
de punir as transgressões dos outros, obrigam-nos a buscar abrigo
nas leis estabelecidas e no governo, e nele buscar a preservação da
propriedade. É isso que os induz a abdicarem de boa vontade do
poder individual de punir, para que um só indivíduo, por eles
escolhidos, o exerça; e isso através de regras que a comunidade, ou
os que ela eleger, concordem em estabelecer. E nisso residem o
direito original dos poderes legislativo e executivo, bem como dos
governos e da sociedade.139
A respeito dessa distinção, Locke conclui que todos os poderes
devem estar submetidos ao Poder Legislativo:
Em qualquer caso, enquanto vigora um governo, o legislativo é o
poder supremo; o que deve fazer leis para os demais deve
necessariamente ser-lhe superior; e uma vez que o legislativo é
superior apenas pelo trabalho de fazer leis válidas para todos os
137
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 57.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 183.
139
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 85.
138
51
membros da sociedade, prescrevendo regras às suas ações, e
acionando o poder executivo quando as transgredirem, o legislativo
necessariamente terá de ser supremo, e todos os outros poderes
vigentes na sociedade, dele derivados ou a ele subordinados.140
Essa hierarquia é a condição para a manutenção do Estado e
diferentemente de Hobbes, que aponta um soberano para manter a coesão do
Estado, Locke afirma que ninguém está submetido a outro poder senão ao poder
contido na lei. Eis ai o princípio da legalidade, que marca todas as constituições dos
Estados Democráticos de Direito. Submeter-se às leis, é não estar condicionado a
nenhuma outra forma de autoridade, pois ninguém pode estar submetido a outro,
mas sim todos devem estar sob o comando da lei.141
Por fim, ao analisar a obra de Locke e compará-la a de
Hobbes, ambos jusnaturalistas, é possível destacar principalmente, como já
mencionado, o estado de natureza e o estado de guerra. Locke acredita que o
estado de natureza é regido pela razão e que o estado civil instaura-se para evitar o
estado de guerra.
Locke destaca que a garantia de propriedade e a conveniência
de se manter um poder soberano, pertence ao Poder Legislativo, já que este é quem
cria as regras de convivência em sociedade com base na vontade da maioria. Neste
Estado, aquele que, eleito pelo povo tornar-se ilegítimo, será destituído e um novo
representante será escolhido a fim de que atenda a perspectiva de todos.
2.3.3 MONTESQUIEU
Charles Louis de Secondat, também conhecido como Barão de
La Brède et de Montesquieu, nasceu em 1689 e teve grande influência teórica sob o
reinado de Louis XV, na França iluminista pré-revolucionária do século XVIII. Seus
estudos foram feitos na Faculdade de Direito de Bordeaux. Ficou muito próximo da
140
141
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. p. 102.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 187.
52
corte e de figuras políticas importantes da época, o que lhe proporcionou grandes
viagens e a convivência com grupos literários do momento.142
Sua principal obra de destaque político foi O espírito das leis,
que tratava de assuntos impertinentes ao cenário católico dogmático e que entrou
para o índex librorum prohibitorum,143(lista de publicações proibidas pela Igreja
Católica.
Montesquieu aborda a importância das leis na sociedade e
porque os homens vivem sob a regência delas, traço que aborda nos livros XI e XII
sobre a liberdade política e da liberdade em relação ao Estado.
Montesquieu opõe-se à teoria hobbesiana quando vê nas leis
uma forma de regulamentação do convívio social e não uma imposição para que o
estado de guerra cesse:
Aliás, ele nega total aderência a Hobbes, que identifica na guerra de
todos contra todos a necessidade de surgimento do Leviatã.
Montesquieu vê com moderações a postura de Hobbes, e apenas diz
que a guerra entre as nações deu origem às legislações. Essas
legislações serão, então: o das gentes (relações entre os povos); o
direito político (governantes e governados); o direito civil (cidadãos
entre si). Eis aí o surgimento das leis como forma de regulamentação
da conduta humana. Ora, sem leis o convívio social estaria
desfalcado de algo que parece ser sua linha-mestra.144
E sobre a liberdade política expõe logo no início, a
subordinação às leis:
Deve-se ter em mente o que é independência e o que é liberdade. A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um
cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade,
porque os outros também teriam esse poder. 145
Segundo Montesquieu, na democracia e na aristocracia não
existe liberdade política e esta só pode ser encontrado nos Estados moderados que
não abusam do poder. Diz que a liberdade política em um cidadão vem da opinião
142
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190.
144
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 190.
145
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 164.
143
53
de tranqüilidade que cada um faz a respeito da sua segurança, e que o governo,
para manter essa liberdade, precisa que nenhum cidadão tenha medo de outro.146
Quando, em 1729, Montesquieu viajou para a Inglaterra,
verificou a possibilidade de a teoria da separação dos três poderes tornar-se um
princípio universal na construção da liberdade. Com isso, pretendia estudar uma
maneira que seria suficientemente garantidora da liberdade dos cidadãos.147
No livro XI, onde trata da divisão dos poderes do Estado em
legislativo, executivo e judiciário, Montesquieu expõe que tudo estaria perdido se o
mesmo homem ou um grupo de principais exercesse os três poderes, pois tampouco
existiria liberdade, visto que o mesmo homem seria juiz e legislador, tornando-se um
opressor.148
O poder de julgar, segundo o teórico, deve ser exercido por
pessoas de classe popular para formar um tribunal que dure o tempo necessário
para seu intuito, onde não existiria um senado permanente.
Uma vez que, em um Estado livre, todo homem que supostamente
tem uma alma livre deve ser governado por si mesmo, seria
necessário que o povo em conjunto exerça o poder legislativo; mas
como isso é impossível nos grandes Estados, e nos Estados
pequenos estaria sujeito a muitos inconvenientes, é preciso que o
povo exerça pelos seus representantes tudo o que não pode exercer
por si mesmo.149
Já o poder executivo deve estar confiado a uma só pessoa,
visto que, as ações nessa parte do governo, devam ser tomadas rapidamente e se
disto depender várias pessoas, como por exemplo, com o poder legislativo, não
serão bem administradas.150
No décimo segundo livro, como ora citado, Montesquieu dispõe
sobre a liberdade política na relação com o cidadão, a idéia de que a liberdade das
146
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 166.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 194.
148
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p.165-166.
149
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 168.
150
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p.170.
147
54
pessoas está ligada à própria vontade e à segurança que a lei proporciona a cada
indivíduo.151
Montesquieu esclarece que os homens devem ser condenados
de acordo com a especificidade do crime, onde então a liberdade triunfa, e não há
que existir a violência de um homem contra outro. Classifica quatro espécies de
crime:
[...] os da primeira espécie ferem a religião; os da segunda, os
costumes; os da terceira, a tranqüilidade; e os da quarta, a
segurança dos cidadãos. As penas a serem aplicadas devem derivar
da natureza de cada uma dessas espécies 152
Nesse ponto Montesquieu diz que, como a distribuição de bens
não é comum a todos, então os cidadãos que violam os bens de outros, devem ser
punidos com a pena corporal para suprir a pecuniária.153
É possível identificar que a garantia de segurança, favorece a
liberdade para o cidadão. Essa liberdade disponibilizada através das leis é
considerada umas das máximas de Montesquieu.
Montesquieu viveu numa época peculiar, marcada pelo
movimento Iluminista, que tinha como princípios filosóficos, a reflexão das origens,
dos
fins
e
das
formas
das
leis.
Portanto,
uma
época
marcada
pela
instrumentalização da sociedade contra as ideologias da Igreja e pela ofensiva ao
sistema feudal do Estado Medieval.
Também o jusnaturalismo pode ser revisto na obra de
Montesquieu, quando parte do fundamento de que as leis positivas são precedidas
pelas naturais e que naturalmente devem se completar.
2.3.4 JEAN-JACQUES ROUSSEAU
151
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis. p. 196-197.
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis p. 198.
153
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis p. 200.
152
55
Jean Jacques Rousseau nasceu em 1712, em Genebra, e sua
filosofia, seus pensamentos e suas idéias foram fortes argumentos de sustentação
para a Revolução Francesa de 1789. Suas principais obra de doutrina política foram
Do Contrato Social e Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens.
Rousseau preocupa-se com a idéia do contrato social. No que
consiste este contrato; se é algo artificial e convencionalmente se pactua formar;
qual o surgimento da pessoa que não se confunde com os indivíduos que fazem
parte do pacto; fala-se em uma pessoa pública ou corpo coletivo. A vontade geral
tem que sobrepor-se à vontade individual, o que garante a condição de igualdade
entre os homens onde o entrelace é o pacto social.
O jusnaturalismo rousseauniano difere do de Hobbes, quando
prevê que é do estado de natureza que emana a perfeição, onde repousaria a
felicidade, a igualdade, a abundância, etc. Aqui não reina a noção de guerra de
todos contra todos, e é também onde se encontra o “homem livre, com o coração em
paz e o corpo de boa saúde.”154
Rousseau adverte-se para o conceito de vontade geral,
conforme expõe Bittar:
A vontade geral é algo que transcende e que está acima das
vontades individuais. Trata-se de outra vontade, resultante da união
das vontades individuais não como somatório, nem como repositório
de vontades, mas como conjunção de interesses num só. Com isso,
não se está a falar de unanimidade, mas de consenso, com base na
idéia da maioria. O consenso da maioria é o diferencial.155
Na acepção de Rousseau, o povo é quem detém a soberania e
da emanação desta é que as leis são criadas. Com a intenção de manter a ordem, a
agregação do pacto e a união de interesses é que necessário que a lei impere, pois
é ela quem protege a vontade geral.
154
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 201.
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 199.
155
56
No Livro I, Rousseau expõe que o soberano é a união dos
particulares que o constituem e que o seu interesse não pode ser contrário aos
deles. O pacto social precisa que todos obedeçam a vontade geral e quando algum
indivíduo foge dessa imposição, então todos o forçarão à obediência.156
Rousseau destaca no Livro II, que a soberania é inalienável e
indivisível. É inalienável, pois é somente a vontade geral que pode dirimir as forças
do Estado, com o fim único do bem comum, tendo em vista que os interesses são
recíprocos:
Digo, portanto, que, não sendo a soberania mais que o exercício da
vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é
unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode representar. É
dado transmitir o poder, não a vontade.157
A soberania é indivisível, como se pode supor, pois a vontade é
una e não vem de uma só parte do povo. Não se pode dividir o princípio de
soberania, mas é possível dividir o objeto, como por exemplo entre o poder
executivo e legislativo:
A soberania é indivisível pela mesma razão de ser inalienável.
Porque ou a vontade é geral, ou não; ou é a do corpo do povo, ou só
de uma parte dele. No primeiro caso, a vontade declarada é um ato
de soberania e faz lei. No segundo, não é mais que uma vontade
particular, ou ato de magistratura; é, quando muito, um decreto. Mas
nossos políticos, não podendo dividir o princípio da soberania,
dividem-lhe o objeto; dividem-no em força e em vontade, em poder
legislativo e em poder executivo, em direitos de imposição, de justiça,
e de guerra, em administração interior e em poder de tratar com os
estrangeiros; algumas vezes confundem todas estas partes, outras a
separam; fazem do soberano um ser fantástico, composto de peças
reunidas, como se formassem o homem de muitos corpos, dos quais
um tivesse olhos, outros braços, outro pés, e nada mais.158
Rousseau trata também dos limites do poder soberano, onde
estabelece que o soberano faz parte do pacto social e que todos, sem distinção
estão igualmente obrigados das mesmas condições. O soberano conhece o corpo
da nação que representa:
156
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 31-32.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 36.
158
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 37.
157
57
Que é pois rigorosamente um ato de soberania? Não é uma
convenção do superior com o inferior, mas uma convenção do corpo
com cada um de seus membros; convenção legítima, porque se
escora no contrato social; justa, por ser a todos comum; útil, porque
não pode ter outro alvo senão o bem geral; e sólida, porque a força
pública e o poder supremo lhe servem de garantia. Enquanto os
vassalos estão sujeitos a tais convenções, não obedecem a
ninguém, salvo à própria vontade; e perguntar até onde se estendem
os direitos respectivos dos soberano e dos cidadãos é perguntar até
que ponto estes se podem comprometer consigo mesmos, cada um
com todos e todos com cada um.159
Para complementar as idéias a respeito da figura do soberano,
Rousseau aborda a maneira de manter a autoridade soberana. Diz que o soberano
não possui outra força senão a do legislativo e que por meio das leis é que lhe é
permitido obrar, mesmo que o povo não esteja presente, visto que as leis provém da
vontade geral. Neste ponto, é necessário reforçar que o soberano para Rousseau,
caracteriza-se como sendo o povo, o titular do poder.
Para Rousseau, o pacto transforma a condição natural dos
homens e os traz para a realidade cívica. Já nas primeiras abordagens que trata no
Contrato, o filósofo destaca q questão da liberdade. “O homem nasceu livre, e por
toda parte geme agrilhoado”160; quando passa da condição natural ao passar ao
estado cívico, o homem perde alguns direitos que lhe eram atribuídos pela própria
natureza, e Rousseau, através de seu jusnaturalismo, embutiu o retorno ao natural
dentro do estado cívico, por meio da recuperação de valores da condição natural.161
159
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p .41.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. p. 21.
161
BITTAR, E. C. B. Curso de Filosofia Política. p. 203.
160
58
Capítulo 3
SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
3.1 O ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O conceito de Constituição pode ser definido, em sentido
amplo, como o ato de constituir, de estabelecer, de firmar ou ainda um modo pelo
qual os indivíduos se organizam, porém, juridicamente a Constituição deve ser
entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado.162
Ao estudar a evolução constitucional brasileira, percebe-se a
distinção entre três fases históricas com relação a valores políticos, jurídicos e
ideológicos, que caracterizaram as instituições. A primeira, vinculada aos moldes do
constitucionalismo francês e inglês do século XIX; a segunda, já com certo
interstício, atada ao modelo norte-americano e a terceira, que está em curso, a
presença de traços do constitucionalismo alemão atual.163
Interessante analisar esse desenvolvimento, tendo em vista a
importância da cada fase para o processo de formação da atual Carta de 5 de
outubro de 1988.
O primeiro período histórico constitucional do Brasil inicia-se no
ano de 1822, ano da independência e vai até 1889, com o advento da República.
Entre alguns fatos importantes dessa fase, é possível destacar: o decreto de 3 de
julho de 1822, que convocou uma ‘Assembléia Luso-Brasiliense’; a instalação da
Assembléia Constituinte, em 3 de maio de 1823; a outorga da Constituição Política
162
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 6.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p.361.
163
59
do Império do Brasil, de 25 de março de 1824; o Ato Adicional de 12 de agosto de
1834, a única emenda constitucional da Monarquia.164
O projeto desta Constituinte seguia basicamente a estrutura da
organização dos três poderes, conforme Montesquieu: Executivo, Legislativo e
Judiciário. Mais tarde, a Constituição Imperial somaria o Poder Moderador, aderindo
ao modelo de Benjamin Constant; e sob a inspiração francesa de 1791, abordava a
garantia dos direitos individuais e políticos. 165
Em breve síntese, Bonavides atenta para a maneira como
decorreu este período:
[...] a monarquia constitucional do Império do Brasil foi um equilíbrio
relativamente estável, pois durou 65 anos, entre o princípio
representativo, gerador de um parlamentarismo sui generis,
introduzido nos mecanismos institucionais, e o princípio absolutista,
dissimuladamente preservado com prerrogativas de poder pessoal,
de que era titular, o Imperador, em cujas mãos se acumulava, tanto
em termos formais como efetivos, o exercício de dois poderes: o
Executivo e o Moderador. O último concentrava mais faculdades de
mando e competências do que o primeiro. A monarquia foi, não
obstante, um largo passo para a estréia formal definitiva de um
Estado liberal, vinculado, todavia, a uma sociedade escravocata,
aspecto que nunca se deve perder de vista no exame das instituições
imperiais166
Na segunda fase, temos o constitucionalismo da primeira
república e, conforme mencionado, a adoção do modelo americano com o
federalismo e o presidencialismo. É neste ponto que o Brasil ingressa de vez na sua
história constitucional e muda o foco dos valores e princípios de organização formal
do poder para os princípios chaves que faziam a estrutura do novo Estado: o
sistema republicano, a forma presidencial, a forma federativa do Estado e o
funcionamento de uma suprema corte. Enfim, tudo se funde para o chamado ideal
de democracia republicana imperante nos Estados Unidos.167
164
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 363.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 363.
166
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 364.
167
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 364-365.
165
60
A Constituição republicana de 1891 ganhou uma só revisão,
promulgada em 1926, e não obteve êxito em sua finalidade nem impediu que a
primeira república desmoronasse, em decorrência da devassidão do poder
oligárquico.
Na terceira fase, temos o constitucionalismo do Estado social,
iniciando com a promulgação da Constituição de 1934 e caracterizada pelas crises,
golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de presidentes,
bem como a queda de governos, repúblicas e Constituições. Nesta constituição de
1934, penetra-se uma nova corrente de princípios que consagravam o aspecto
social. Esse período (Segunda República de 1934-1937) foi agônico e marcado pelo
golpe de Estado de 1937.168
A nossa segunda Constituição Republicana de 1934 trouxe
novas imagens em matéria constitucional, e reaparecem de maneira ainda mais
expressiva no texto constitucional de 1946:
[...] a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou
coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do
Trabalho, o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador
obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador
dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o
socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da
educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado. [...]
da Constituição de 1946, que preceituava a participação obrigatória e
direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela
forma que a lei determinar 169
Com o golpe de Estado de 1945, foi eleita uma Assembléia
Constituinte que formulou uma nova Constituição, a da terceira República,
promulgada em 18 de setembro de 1946 e que perdurou até 1964, com a chamada
‘revolução’ dos militares:
Desse largo e acidentado período – a terceira época constitucional
do Brasil – vamos destacar para exame e reflexão, em primeiro lugar,
os estatutos fundamentais expedidos com algum grau de
legitimidade e que durante certo espaço de tempo – não importa se
curto ou prolongado – mantiveram as aparências dum regime normal
de governo, debaixo do princípio representativo e das regras
168
169
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 366 -367.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 369.
61
inerentes ao denominado, Estado de Direito, propugnado pelas
ideologias do liberalismo. Aí se inserem, por exemplo, as
Constituições de 16 de julho de 1934 e 18 de setembro de 1946, bem
como a recém-promulgada Constituição de 5 de outubro de 1988. 170
Estes
documentos
têm
profunda
influência
do
constitucionalismo alemão do século XX:
O constitucionalismo dessa terceira época fez brotar no Brasil desde
1934 o modelo fascinante de um Estado social de inspiração alemã,
atado politicamente a formas democráticas, em que a Sociedade e o
homem-pessoa – não o homem-indivíduo – são os valores
supremos. Tudo, porém, indissoluvelmente vinculado a uma
concepção reabilitadora e legitimante do papel do Estado com
referência à democracia, à liberdade e à igualdade.171
A mais recente das constituições brasileiras, a de 5 de outubro
de 1988, também seguida dos inovadores preceitos trazidos pela Constituição de
1934, busca na técnica, na forma e na substância da matéria pertinente aos direitos
fundamentais que derivam da Lei Fundamental alemã de 1949, a preeminência ao
social.172
Feita essa retrospectiva da história da Constituição brasileira e
tendo em vista, que atualmente ela é fundamentalmente voltada para o âmbito
social, cabe analisar essa característica do Estado brasileiro.
Conforme exposto na Constituição da República Federativa do
Brasil, O Estado brasileiro é um Estado democrático de direito. Por Estado de
Direito, é possível denominar alguns traços de legitimidade que o compõe: pactuado
ou outorgado, todo direito pode ser estabelecido de modo racional, e com propensão
de ser respeitado, ao menos pelos seus membros; todo direito, em essência, é um
sistema
de
regras
abstratas
que
de
maneira
geral
são
estabelecidas
intencionalmente; o soberano orienta, manda e obedece a uma ordem impessoal
pela qual orienta suas disposições. Segundo Reinaldo Dias:
Assim, o Estado de direito implica o estabelecimento de um sistema
de normas jurídicas hierarquicamente dispostas, à frente das quais
está a Constituição. O restante das normas do ordenamento jurídico
170
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 367.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 368.
172
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 369- 370.
171
62
está subordinado a ela, com a qual se garante o respeito à liberdade
individual que é essencial ao poder do Estado com seus agentes
submetidos à lei, evitando, desse modo, a possibilidade da existência
de abusos que prejudiquem a liberdade individual. É necessário
destacar que o Estado de direito implica a existência de toda uma
série de garantias, basicamente judiciais, que operam quando a
liberdade individual está vulnerável.173
O
Estado
social,
que
também
se
pode
denominar
característico do Estado brasileiro, é um modelo que sucede o Estado liberal
democrático e que alarga sua intervenção na sociedade, no que diz respeito à
economia e a prestação de serviços que atendem as demandas sociais. Tem como
pontos característicos conforme Dias:
[...] intervenção do Estado na economia, que tem o objetivo de
manter a renda e o emprego. Esta intervenção se dá, principalmente,
através da regulação do mercado e participação do Estado na
sustentação de uma economia social; prestação de serviços públicos
de caráter universal (educação, saúde, previdência social, habitação
etc.) com os quais se pretende garantir um nível mínimo de
atendimento à população. A responsabilidade estatal na manutenção
desse nível mínimo deve ser entendida como um direito e não
caridade pública para uma minoria.174
Dois conceitos não podem ser confundidos: o liberalismo e a
democracia, pois a idéia chave do liberalismo é a liberdade e da democracia é a
igualdade, considerada como o direito de todos os cidadãos ao acesso a condições
idênticas.175
Das diversas dimensões essenciais da Constituição de 1988,
ela é basicamente uma constituição do Estado Social. É com base nos conceitos
dessa modalidade de ordenamento que devem ser examinados e resolvidos os
problemas referentes a relações de poderes e exercício de direitos subjetivos. Pois
uma Constituição do Estado liberal diz respeito a uma constituição antigoverno e
uma Constituição do Estado social refere-se a valores imunes ao individualismo do
direito e ao absolutismo no poder.176
173
DIAS, R. Ciência Política. p. 221.
DIAS, R. Ciência Política. p. 223-224.
175
DIAS, R. Ciência Política. p. 222.
176
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 371.
174
63
Podemos identificar pelo conteúdo do Capítulo II, dos artigos 6º
a 11 da Constituição Brasileira de 1988, que o Estado nacional é um Estado social,
onde ficam explicitados os direitos sociais, que se estendem a todos sem distinção.
Estão incluídos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à
segurança, à previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência
aos desamparados.177
Posteriormente, o artigo 7º destaca o direito dos trabalhadores;
o artigo 8º afirma a liberdade de associação; o artigo 9º garante o direito de greve;
no artigo 10º fica garantida a participação dos trabalhadores e empregadores nos
órgãos que tratem de seus interesses profissionais e previdenciários e o artigo 11º
institui que as empresas com mais de duzentos funcionários, deve ter um
representante dos trabalhadores, que será escolhido por meio de eleição. Além
disso, outros artigos detalham durante todo o decorrer da Constituição, o caráter
social que prevalece no Estado brasileiro. 178
Por outro lado, apesar de produzir condições e desígnios reais
ao exercício dos direitos fundamentais, é possível perceber uma dependência do
indivíduo em relação às prestações do Estado, incumbindo este, de cumprir a tarefa
igualitária e distributiva, sem a qual não há democracia nem liberdade.179 O que se
conclui desse ponto, é que proporcionar igualdade entre os membros da sociedade,
não é tarefa somente do Estado. A liberdade dos indivíduos tornou-os aptos a
manterem-se em posições sociais desniveladas, o que altera um dos princípios do
Estado democrático brasileiro. Vejamos o que comenta Bonavides:
Contemporaneamente, os direitos sociais básicos, uma vez
desatendidos, se tornam os grandes desestabilizadores das
Constituições. Tal acontece sobretudo nos países de economia frágil,
sempre em crise. Volvidos para o desenvolvimento e o
aperfeiçoamento da ordem social, esses direitos se inserem numa
esfera de luta, controvérsia, mobilidade, fazendo sempre precária a
obtenção de um consenso sobre o sistema, o governo e o regime.
Alojados na própria Constituição concorrem materialmente para fazêla dinâmica, sujeitando-a ao mesmo passo a graves e periódicas
177
DIAS, R. Ciência Política. p. 226.
DIAS, R. Ciência Política. p. 226-227.
179
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 378.
178
64
crises de instabilidade, que afetam o Estado, o governo, a cidadania
e as instituições.180
Por fim, é interessante suscitar a crise constituinte existente no
Brasil, onde o futuro de uma nova Constituição depende em grande parte da
adequação da lei às exigências da sociedade na busca por governos sólidos e
legítimos. Já não se discute mais direitos e sim garantias, numa Constituição
cunhada em fórmulas vagas, abstratas e genéricas, ora remetem a concretização do
preceito contido na norma ou num dispositivo de uma lei complementar ou ordinária,
mas que nunca se forma. Um exemplo disso, é o disposto no inciso IV do art. 157 da
Constituição de 1946, que trata da participação dos trabalhadores nos lucros da
empresa. Este dispositivo esteve presente em quatro Constituições, inclusive na
atual de 1988 e até hoje não se aplicou ou foi regulamentado.181Segundo Bonavides,
“a crise da estatalidade social no Brasil não é de uma Constituição, mas a da Sociedade, do
Estado e do Governo; em suma, das próprias instituições por todos os ângulos possíveis”.182
Importante estabelecer uma diferenciação entre uma crise
constitucional e a crise constituinte. Se há uma irregularidade em algum ponto da
Constituição, então basta removê-la e utilizar de uma revisão. A crise da
Constituição, no entanto, é uma crise do próprio poder constituinte, que quando
reforma ou organiza, não altera ou arranca a raiz dos males políticos e sociais que
agoniam o Estado, as instituições, a Sociedade e o regime.183
3.2 ESTRUTURA E PRINCÍPIOS BASILARES DO ESTADO BRASILEIRO
O Estado brasileiro quanto a sua forma, se classifica com uma
democracia parlamentarista, mas seu regime ou sistema de governo é o
presidencialista onde ocorre uma separação estrita entre os Poderes Executivo e
Legislativo. O sistema presidencialista, inspirada na teoria de Montesquieu, tem sua
principal característica no princípio da separação das funções dos Poderes
180
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 380.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 381-382.
182
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 383.
183
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. p. 383-384.
181
65
Executivo e Legislativo. Há uma interdependência recíproca entre o Congresso que
não dá voto de censura ao Executivo, e nem este pode dissolver o Congresso.184
O presidencialismo possui as seguintes características:
O Poder Executivo está concentrado em uma pessoa, o
presidente da República que é eleito pelo povo e, portanto sua legitimidade procede
deste, bem como possui independência de exercício, pois seu mandato pode ser
renovado.185
O Poder Legislativo é atribuído a um Parlamento bicameral. O
Senado e a Câmara dos Deputados formam o Congresso que também goza de
dupla independência; de origem (legitimado pelo sufrágio universal) e de exercício
(não pode ser dissolvido pelo presidente e seu mandato e tem prazo fixo: oito anos
para o Senado e quatro para a Câmara).186
Risco de conflitos devido à estrita divisão de poderes. Por se
tratar de um Estado democrático, existe uma unidade de decisão e isto não significa
que deva haver uma organização política monolítica, mas que possíveis
discordâncias devem ser relegadas a um segundo plano em nome da unidade e do
comando.187
O Brasil é um Estado federado e este se origina de um ato
regido pelo direito público interno. Esta estrutura possui uma delicada disposição de
relações de poder entre o governo federal e os Estados – membros e os poderes
locais (municípios). Estas relações estão em constante movimento, estabelecendose um equilíbrio dinâmico de poder que oscila entre as diversas aspirações de maior
autonomia e menor dependência em relação ao poder central. Cada Estado que
forma a federação possui sua própria Constituição com base nos princípios da
Constituição federal, e todo município possui sua lei orgânica.188
184
DIAS, R. Ciência Política. p. 147-148.
DIAS, R. Ciência Política. p. 148.
186
DIAS, R. Ciência Política. p.148.
187
DIAS, R. Ciência Política. p. 148.
188
DIAS, R. Ciência Política. p. 144.
185
66
Dentre as formas de exercício de poder, o Estado brasileiro
adotou a democracia, que significa o governo do povo. Na democracia, os indivíduos
influenciam abertamente na tomada de decisões. Os cidadãos, por intermédio de
seus representantes legitimados, assumem deliberações coletivas que sustentam a
convivência social onde todos os habitantes são livres e iguais perante a lei.189
O Brasil contemplou na Constituição de 1988, mecanismos de
democracia direta, quando incluiu a iniciativa popular, o referendo, plebiscito, entre
outros. Toda essa estrutura que baseia a representação por meio do direito ao voto,
e que constitui a legitimidade e soberania do povo, caracteriza o sistema de governo
adotado pelo país, através de plebiscito em 1993: uma república federativa
constitucional presidencialista.190
A
democracia
parlamentar
engloba
as
seguintes
características:
[...] legitimação a partir do princípio de soberania popular e
participação política dos cidadãos; emanação democrática do direito,
através de um parlamento, escolhido pelo povo; responsabilidade
dos poderes públicos. A democracia parlamentar como forma de
Estado, portanto, não se refere à articulação dos poderes desse
Estado, mas sim ao fundamento legitimador: o povo, representado no
Parlamento, instituição central do Estado.191
Contemporaneamente,
a
idéia
de
democracia
consiste
basicamente, num modelo de governo em que o poder político não pertence a
nenhum grupo determinado e limitado de pessoas ou uma pessoa, mas a todo povo
na forma do direito. Algumas são as considerações que sustentam esta definição:
1. O exercício da autoridade (soberania) que se reflete nos diferentes
órgãos do sistema ocorre de acordo com o direito. Significa portanto,
que não existe, pelo menos teoricamente, arbitrariedade e, portanto,
não existem ações que não estejam prescritas pelas normas
jurídicas. Estas têm origem no Poder Legislativo, que por sua vez
possui a legitimação do eleitorado. 2. Os órgãos dos sistemas
dependem do povo, no sentido de que é este que os escolhe e os
controla efetivamente. Em termos ideais o melhor seria que os três
poderes dependessem do povo, no sentido de sua escolha e efetivo
189
DIAS, R. Ciência Política. p. 152.
DIAS, R. Ciência Política. p. 153.
191
DIAS, R. Ciência Política. p. 154 – 155.
190
67
controle. 3. É desejável a tendência a que todos os membros do
sistema tenham voz e voto em condições idênticas aos demais. As
desigualdades devem estar limitadas ao mínimo razoável e, no caso
de que não estejam, deve existir um controle para que deixem de ser
efetivas. Nesse sentido é que se pode identificar a tendência de
ampliação do direito de voto para as mulheres, adolescentes etc.192
O Estado democrático de direito brasileiro rege-se pelos
princípios elencados no Título I da Constituição da República Federativa do Brasil e
tem por fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
A soberania pode ser definida como um poder supremo e
independente. Supremo pois não está limitado por nenhuma outra ordem interna e
independente, pois na sociedade internacional decide voluntariamente se aceita
regras e se está em igualdade com os poderes dos outros povos.193
A cidadania se apresenta como o direito fundamental das
pessoas. A dignidade da pessoa humana contempla os direitos e garantias
fundamentais, de modo que somente excepcionalmente possam ser feitas limitações
a esses direitos, sem, no entanto, menosprezar a estima que merecem todos os
seres humanos.194
O trabalho dignifica o homem, lhe garante a subsistência e
fortalece o crescimento do país. A Constituição assegura a liberdade, o respeito e
dignidade do trabalhador (CF, arts. 5º, XIII; 6º,7º,8º). E por fim, o pluralismo político
afirma a ampla e livre participação popular no futuro político do país, e garante a
liberdade de pensamento político e a da associação e participação em partidos
políticos.195
Ainda é importante destacar os princípios que regem a
República do Brasil em suas relações internacionais, que são os seguintes:
independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos
192
DIAS, R. Ciência Política. p. 159.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 21.
194
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 21-22.
195
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 22.
193
68
povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica
dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade e a concessão de asilo político.
O asilo político, por exemplo, consiste em acolher um
estrangeiro por parte de um Estado que não o seu, em conseqüência de
perseguição por ele sofrida e praticada por seu país ou mesmo por terceiro. Os
motivos dessa perseguição pode ser de base política, liberdade de pensamento ou
crimes contra a segurança do Estado, que não se configurem como penais. Ao
entrar nas fronteiras de um novo Estado, ao estrangeiro que teve sua entrada
autorizada, passa ao âmbito soberano deste Estado.
Outros dois princípios que regem o ordenamento jurídico
brasileiro de forma bastante propalada são o princípio da igualdade e o da
legalidade.
O princípio da igualdade de direitos adotado pela Constituição
Federal de 1988, marca de maneira profunda a relação do indivíduo para com o
Estado, tendo em vista o tratamento idêntico que a lei dá a todo cidadão. O conceito
tradicional de Justiça permite que se trate com desigualdade os desiguais, o que não
se permite é que sejam feitas discriminações absurdas e diferenciações
arbitrárias.196
Senão, vejamos o que dispõe Alexandre de Moraes:
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois
planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio
executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e
medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos
abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em
situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete,
basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos
de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em
razão do sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça,
classe social.197
196
197
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 36.
MORAES, A. Direito Constitucional. p.37.
69
Importante ressaltar que a igualdade possui três finalidades
limitadoras, quais sejam: a limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e
ao particular. O legislador não deve afastar-se do princípio da igualdade sob pena de
flagrante de inconstitucionalidade. O intérprete/autoridade pública não pode aplicar
as normas de maneira que crie ou aumente as desigualdades. O Poder Judiciário,
em especial, deve manter sua interpretação sempre ligada à norma jurídica. E
finalmente, o particular não deve agir de forma a ferir este princípio, de maneira que
não pode pautar-se em condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas.198
O princípio da legalidade, elencado no artigo 5º, II, da
Constituição, prescreve que somente em virtude de lei, o indivíduo será obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo. Só por meio de normas e de um devido processo legal
é que se criam obrigações. O privilégio da vontade detentora do poder cessa com o
primado soberano da lei.199
Moraes faz uma fundamental análise da ligação que o Poder
Legislativo tem com esse princípio:
Importante salientarmos as razões pelas quais, em defesa do
princípio da legalidade, o Parlamento historicamente detém o
monopólio da atividade legislativa, de maneira a assegurar o primado
da lei como fonte máxima do direito: trata-se da sede institucional
dos debates políticos; configura-se em uma caixa de ressonância
para efeito de informação e mobilização da opinião pública; é o órgão
que, em tese, devido a sua composição heterogênea e a seu
processo de funcionamento, torna a lei não uma mera expressão dos
sentimentos dominantes em determinado setor social, mas a vontade
resultante da síntese de posições antagônicas e pluralistas da
sociedade.200
Combinado ao princípio da legalidade, encontra-se o da
reserva legal que incide sobre os campos materiais especificados pela Constituição.
Há que não se fazer confusão, pois o princípio da legalidade significa a submissão à
lei e a reserva legal cuida da regulamentação de certas matérias que devem fazerse necessariamente por lei formal. Quando a Constituição reserva conteúdo
específico à lei, encontra-se o princípio da reserva legal. Este pode se dar de duas
198
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 37-38.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 41.
200
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 42.
199
70
maneiras: absoluta, quando para sua total regulamentação, a constituição exige lei
formal de acordo com o devido processo legislativo constitucional e relativa quando
apesar da exigência de lei formal, outro órgão administrativo pode complementá-la,
sempre observados os limites da legislação.201
Além dos já citados, é de tamanha importância expor também
como princípios chaves de destaque permanente no ordenamento jurídico brasileiro:
princípio do juiz natural e do devido processo legal.
O princípio do juiz natural prevê que ninguém pode ser
processado nem sentenciado, senão por uma autoridade competente, conforme
estabelecido no art. 5º, LIII da Constituição Federal:
A imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o
arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas
garantias indispensáveis. [...] O juiz natural é somente aquele
integrado no Poder Judiciário, com todas as garantias institucionais
previstas na Constituição Federal.202
O princípio do devido processo legal, contraditório, ampla
defesa e celeridade processual, disposto no art. 5º, LIV, LV e LXXVIII e Lei
11.419/06203, configura dupla proteção ao indivíduo, tanto no intuito de preservar o
direito material de liberdade, quanto assegura total condição perante o Estado, de
obter total plenitude de defesa, com direito a defesa técnica, à publicidade do
processo, à citação, à produção de provas, aos recursos, à decisão imutável, à
revisão criminal.204
O devido processo legal tem como viés, a ampla defesa e o
contraditório:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de
condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os
elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se
ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a
própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução
201
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 42-42.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 88.
203
A EC nº 45/04 incluiu no rol de Direitos e Garantias Individuais e Coletivos a razoável duração do
processo e a celeridade processual.
204
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 106.
202
71
dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela
acusação caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe
a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma
interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.205
Buscou-se com a EC nº 45/04 (Reforma do Judiciário),
assegurar a todos, um processo com duração razoável e medidas que evitem a
burocratização dos procedimentos, garantindo todos os direitos às partes e a
qualidade das decisões. Entre alguns mecanismos de desburocratização e de
celeridade processual, é possível citar: a vedação de férias coletivas nos juízos e
tribunais de segundo grau; um número proporcional de juízes para a demanda
judicial e à população existente; a distribuição imediata de processos; a necessidade
de demonstração de repercussão geral das questões constitucionais para
admissibilidade de recurso extraordinário; as súmulas vinculantes do Supremo
Tribunal Federal; entre outros.
Combinados a estes princípios considerados basilares para o
Estado brasileiro, é possível citar alguns direitos e garantias fundamentais conforme
contemplados no artigo 5º da Constituição Federal. São eles: tratamento
constitucional de tortura (incisos III e XLIII); a liberdade e pensamento, direito de
resposta e responsabilidade por dano material, moral ou à imagem (incisos IV e V);
liberdade de consciência, religião, filosofia e política (incisos VI e VIII); expressão de
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (inciso IX); inviolabilidade
domiciliar, de dados bancários e fiscais (incisos XI, X e XIII).
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada
em 1988, demonstra as aspirações do povo brasileiro, e a luta diária para conservar
os objetivos e finalidades dispostos no preâmbulo constitucional. Visa a limitação do
poder do Estado e a preservação dos direitos e garantias individuais. O poder
constituinte é a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo
organizado jurídica e socialmente.206
205
206
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 106-107.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 26.
72
3.3 SOBERANIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição possui normas para a estruturação do Estado,
formas de governo, formação de poderes públicos, aquisição do poder de governar,
direitos e deveres dos cidadãos e distribuição de competências. Somado a isto, a
Constituição prevê, para os respectivos órgãos, a edição de preceitos jurídicos,
legislativos e administrativos.207
O Estado tem como fundamento, três elementos constitutivos,
a poder, o povo e o território. O poder representa uma força que anima a existência
de uma comunidade, num determinado território e conserva-a unida, coesa e
solidária. Aponta Bonavides:
[...] o poder significa a organização ou disciplina jurídica da força e a
autoridade enfim traduz o poder quando ele se explica pelo
consentimento, tácito ou expresso, dos governados (quanto mais
consentimento mais legitimidade e quanto mais legitimidade maior
autoridade). O poder com autoridade é o poder em toda sua
plenitude, apto a dar soluções aos problemas sociais. Quanto menor
a contestação e quanto maior a base de consentimento e adesão do
grupo, mais estável se apresentará o ordenamento estatal, unindo a
força ao poder e o poder à autoridade. Onde porém o consentimento
social for fraco, a autoridade refletirá essa fraqueza; onde for forte, a
autoridade se achará robustecida.208
Alguns traços podem ser considerados absolutos ao Estado,
como a imperatividade e natureza integrativa do poder estatal, a capacidade de
auto-organização, a unidade e indivisibilidade do poder, o princípio da legalidade e
legitimidade e a soberania.
A indivisibilidade assinala uma nota característica do poder
estatal, e significa que este somente pode ser atribuído a um titular. Este postulado
essencial do Estado Moderno põe de lado o dualismo medievo que ligava o poder
estatal do poder pessoal do governante.209
207
MORAES, A. Direito Constitucional. p.6.
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 106-107.
209
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 109.
208
73
Quando se discute a fonte originária do poder dentro de um
regime político, nenhum órgão, função ou instância é dotado de legitimidade se não
é constituído ou derivado da vontade soberana do povo.210
A soberania foi assunto de destaque para a ciência política e
para a teoria do Estado no século XX. A importância dada por Bodin a este tema
contribuiu para a formação do Estado Moderno coloca a soberania como poder
absoluto que caracteriza a República por sua capacidade de dar, anular e interpretar
a lei sem nenhuma limitação.211
Já Rousseau, democratiza o termo soberania por meio da
vontade geral, caracterizando o soberano como um ser do coletivo. Para Rousseau,
o poder se transmite, mas não a vontade e por isso que o povo é quem detém o
poder e não seus representantes.
Na Constituição de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único,
dispõe o princípio fundamental do poder da seguinte maneira: “Todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente.”212
O povo é quem detém o poder e os órgãos pelos quais se
concretiza esse poder, são o corpo eleitoral, o Parlamento, o Ministério, etc. O
princípio da separação dos poderes, consagrado na Constituição e elaborado por
Montesquieu, não divide o poder do Estado. O que existe é uma divisão de funções
quanto à aplicação do poder.213
A soberania exprime o mais alto poder do Estado e se
apresenta de duas formas: interna e externa. Internamente ela impõe-se através de
normas jurídicas impostas pela Constituição e externamente pela igualdade que
deve existir entre os Estados. Sobre a autonomia do poder, assim destaca Dias:
210
DIAS, R. Ciência Política. p. 114.
DIAS, R. Ciência Política. p. 111.
212
BRASIL.
Constituição
da
República
Federativa
do
Brasil.
Disponível
em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 02 mar. 2010.
213
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 109.
211
74
A soberania política destaca o monopólio por parte do Estado de
todo poder e força que gera uma coação incondicional, dentro dos
limites de sua competência, e com a qual se afirma a soberania
política do Estado como poder irresistível; é uma autonomia do
poder, na qual este não seja delegado, mas supremo em seu âmbito
de atuação. É afirmação da independência do Estado perante outros
poderes. Em relação ao exemplo anterior, pode-se aceitar a
possibilidade de uma ordem jurídica de caráter internacional, e no
entanto, pode-se afirmar a independência e autonomia da soberania
política do Estado.214
Internamente, a soberania do Estado Brasileiro pode ser
também caracterizada pela divisão dos três poderes: o executivo, o legislativo e o
judiciário, tendo em vista que atuam de modo que haja colaboração e para que não
exista a concentração de poder em um único órgão. Existe atualmente, uma
preocupação maior com a participação do povo nas funções do Estado:
Há uma necessidade urgente de reformar o Estado e suas funções, e
o principal desafio que se enfrenta é abri-lo para a sociedade,
aperfeiçoar a descentralização e a redistribuição do poder e
transformar as questões estatais em assunto público. Ou seja,
valorizar a sociedade como sua fonte originária de legitimidade. Isto
implica uma mudança profunda na cultura organizacional do Estado.
O objetivo é passar de um Estado estruturado com base no princípio
autoritário e hierárquico a um sistema pluralista flexível de tomada de
decisões, que incorpore diferentes atores no processo de
governança, sem colocar em risco as bases da ordem democrática
215
Segundo Montesquieu, essa divisão de poderes, auto-limita o
Estado no exercício do poder e essa limitação objetiva a máxima liberdade para o
indivíduo, e esta liberdade só se dá quando o poder de julgar não está vinculado,
nem ao executivo, nem ao legislativo. Essa doutrina considera a atuação do Estado
sobre a comunidade pública se manifesta a partir de três funções: do
estabelecimento de normas que regem a conduta dos integrantes da comunidade de
forma geral e obrigatória (função do legislativo); execução dessas norma (função do
executivo); resolver conflitos entre os integrantes da comunidade ou entre estes e a
comunidade (função do judiciário)216
214
DIAS, R. Ciência Política. p. 113.
DIAS, R. Ciência Política. p. 124-125.
216
DIAS, R. Ciência Política. p. 127-128.
215
75
A idéia de democracia no Estado brasileiro reflete uma forma
de governo onde o poder não se encontra limitado a um grupo de pessoas ou a uma
só pessoa, mas pertence a todo povo.
Internamente, o art. 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal
reconhece a instituição do Tribunal do Júri, com a organização que lhe der a lei,
assegurada a defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Nesta
instituição está desenhado uma das formas, pelas quais o povo, num estado
democrático, exerce sua soberania. É dada aos cidadãos a prerrogativa de julgar
seus semelhantes. Ainda que haja recurso de apelação, este fato não afeta a
soberania dos veredictos, pois uma nova decisão será dada por esses jurados. Essa
garantia de soberania é dada com o retorno dos autos ao Tribunal do Júri, de acordo
com o entendimento do STF:
EMENTA: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS, ART. 408 DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. ELOQUÊNCIA
ACUSATÓRIA. AFIRMATIVA DE AUTORIA. PRONUNCIAMENTO
SOBRE OS ASPECTOS SUBJETIVOS DA CONDUTA DO
ACUSADO. AFASTAMNENTO DE POSSÏVEL TESE DEFENSIVA.
PEÇA
QUE
PODE
INFLUIR
INDEVIDAMENTE
no
CONVENCIMENTO DOS JURADOS. PRINCÍPIO DA SOBERANIA
DOS VEREDICTOS DO JURI. OFENSA CARACTERIZADA. ORDEM
CONCEDIDA. I - Fere o princípio da soberania dos veredictos a
afirmação peremptória do magistrado, na sentença de pronúncia, que
se diz convencido da autoria do delito. II - A decisão de pronúncia
deve guardar correlação, moderação e comedimento com a fase de
mera admissibilidade e encaminhamento da ação penal ao Tribunal
do
Júri.
III
Ordem
concedida.217
A doutrina da soberania nacional no plano externo teve grande
contribuição de Hugo Grocio, que estabeleceu princípios básicos das relações
internacionais, alguns dos quais permanecem válidos até hoje.218
Grocio foi um jurista holandês e expôs seu pensamento político
nas obras De jure belli ac pacis (1625) e Mare liberum (1609). Vários foram os
217
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299, Primeira Turma Julgadora,
Brasília,
DF,
16
de
Setembro
de
2008.
Disponível
em:
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557313. Acesso em: 03 mar. 2010.
218
DIAS, R. Ciência Política. p. 120.
76
acontecimentos que marcaram suas teorias entre elas, as lutas civis na França e a
primeira fase da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).219
O jurista tem seu principal mérito em ter criado um sistema de
direitos e obrigações que se aplicam às relações entre os Estados, sob a proteção e
sanção do direito natural. Esse sistema é visível hoje, por exemplo no artigo 2 da
Carta das Nações Unidas, em seu primeiro parágrafo, consagra que “a Organização
esta baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”. A
ONU constitui-se em uma associação dos membros que a integram em caráter de
igualdade e não de um órgão acima dos Estados e atualmente é constituída de 192
Estados soberanos.220
Dias esclarece que:
Baseado no caráter da exclusividade de sua competência, o Estado
tem dentro de seu território o monopólio do uso legítimo da força,
exercendo desse modo seu poder constitucional, legislativo, jurídico
e administrativo. Como conseqüência, qualquer ato realizado por um
Estado no território de outro implica violação da soberania,
configurando-se, portanto um delito 221
É possível identificar a soberania do Estado brasileiro, na
questão da extradição, elencada no artigo 5º, incisos LI e LII da Constituição
Federal. O entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da natureza
jurídica do pedido extradicional perante o Estado brasileiro:
[...] constitui – quando instaurada a fase judicial de seu procedimento
– ação de índole especial, de caráter constitutivo, que objetiva a
formação de título jurídico apto a legitimar o Poder Executivo da
União a efetivar, com fundamento em tratado internacional ou em
compromisso de reciprocidade, a entrega do súdito reclamado.222
Para obter a extradição, o Estado estrangeiro deverá
fundamentar seu pedido, com base nas hipóteses constitucionais e formas legais,
quais sejam: observar as hipóteses materiais elencadas nos incisos LI e LII da
219
DIAS, R. Ciência Política. p. 120 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299,
Primeira Turma Julgadora, Brasília, DF, 16 de Setembro de 2008.. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557313. Acesso em: 03 mar. 2010.
220
DIAS, R. Ciência Política. p. 121.
221
DIAS, R. Ciência Política. p. 122.
222
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 93.
77
Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito ao tratamento com
Portugal; observar o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6815/80); Lei Federal nº
6964/81; e Regimento Interno do STF (arts. 207 a 214).223
E ainda alguns outros requisitos devem ser preenchidos, como:
o pedido deve ser fundado em tratado internacional e se não existir, deve o Estado
requerente comprometer-se a dar igual tratamento ao Estado Brasileiro; a Justiça do
Estado Requerente é quem processa e julga o extraditando; ausência de caráter
político da infração atribuída ao extraditado; o crime do extraditando não pode
infringir pena igual ou inferior a um ano da lei brasileira; não fazer reextradição
(entrega do extraditando a outro Estado que reclamou) sem consentimento do Brasil;
etc. 224 Importante sempre analisar os julgados de STF, a exemplo:
EMENTA: EXTRADIÇÃO EXECUTÓRIA. REPÚBLICA ITALIANA.
SENTENÇAS
CONDENATÓRIAS.
CRIME
FALIMENTAR.
RECEPTAÇÃO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. PRESCRIÇÃO DA
PRETENSÃO EXECUTÓRIA: ARTIGO 199 DO DECRETO-LEI
7.661/45 (ANTIGA LEI DE FALÊNCIA). SÚMULA 147 DO STF. ART.
109 DO CÓDIGO PENAL. PEDIDO PARCIALMENTE DEFERIDO. 1.
Prescrição da pretensão executória, no tocante às Sentenças
proferidas pelo Tribunal de Apelação em Trento e pelo Tribunal de 1ª
Instância de Cremona. Crimes falimentares cometidos nos anos de
1994 e 1995. Prescrição consumada nos termos da legislação
brasileira (art. 199 do Decreto-Lei 7.661/45 e art. 109 do CPB). 2.
Regularidade do pedido quanto à Sentença proferida pelo Tribunal
de Apelação de Florença. Fatos criminosos que equivalem, no Brasil,
aos delitos de receptação e formação de quadrilha (arts. 180 e 288
do Código Penal). Pedido que atende às exigências do art. XI do
Tratado Bilateral de Extradição entre a República Federativa do
Brasil e a República Italiana (Decreto 863/93), bem assim às
formalidades do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80). 3. Pedido
parcialmente deferido.225
Este procedimento retrata seriamente o Estado brasileiro em
toda sua autonomia e soberania diante dos outros Estados soberanos. A não
interferência de outro Estado em território brasileiro afirma o poder do Brasil, tendo
223
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 96.
MORAES, A. Direito Constitucional. p. 96-97.
225
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº1152, Tribunal Pleno, Brasília, DF, 106 de maio
de
2010.
Disponível
em:
<
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2652394>. Acesso em:
04 abr. 2010.
224
78
em vista que a centralização e o monopólio do poder são condições indispensáveis
de sua existência.226
A soberania encontra-se ligada ao território, pois é este que dá
uma delimitação clara de onde o poder é exercido e destaca a importância da
autonomia e da independência. Pelo caráter territorial é possível observar a
distribuição de funções que implica o próprio poder, além de diferenciar as formas de
Estado e as formas de governo.227
Essa organização do poder por via do âmbito territorial, onde
se combinam as competências da União com as competências assumidas por
diferentes partes do território, que possuem autonomia em funções específicas,
forma o Estado federal. O que pretende se destacar portanto, é que a soberania
territorial é um fator de organização do poder.228
Atualmente o tema soberania tem necessidade de ser revisto,
pois tudo se volta para a idéia de um Estado que não é delegado e que é o poder
supremo. Ocorre, no entanto, que a crescente importância no cenário global, das
cidades, das organizações e das empresas e de uma ordem internacional vêm
limitando os poderes do Estado.229
Diante dos desafios que apresentam os processos de
globalização, um estudo acerca da soberania se faz cada vez mais necessário, pois
os laços de nacionalidade não permanecem mais tão fortalecidos, quanto, por
exemplo, as ideologias entre indivíduos de diferentes países. Há juristas, sociólogos
e pensadores políticos que pensam que este conceito encontra-se em declínio.230
Destaca-se neste ponto também, as grandes transações
realizadas por multinacionais, que ultrapassam as barreiras dos Estados e de forma
pacífica tiram proveito deste ou daquele país, beneficiando-se reciprocamente. Há,
portanto, um comércio internacional em constante crescimento, que atualmente
226
DIAS, R. Ciência Política. p. 122.
DIAS, R. Ciência Política. p. 122.
228
DIAS, R. Ciência Política. p. 122-123.
229
DIAS, R. Ciência Política. p. 123.
230
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 132.
227
79
supera, até mesmo os interesses ideológicos ou políticos que possam afetar a
soberania estatal
A necessidade de uma ordem internacional tem maior
relevância do que a primazia nacional, tendo em vista que o Direito pode ser uno e
coercitivamente se imponha a todos os Estados.231
A soberania popular pode ser entendida como a soma da
soberania que é atribuída a cada indivíduo. Rousseau entendeu possível
compatibilizá-la a todos os tipos de governo232, pois o poder que emana do povo
será sempre uno, ainda que exista sempre uma troca de representantes desse
poder.
A concepção de soberania popular teve grande influência nos
desdobramentos das idéias democráticas, principalmente na progressão universal
do sufrágio. Na Constituição brasileira fica clara a vontade geral estabelecida,
principalmente no art. 5º, que aborda aquilo que é legítimo do povo e a maneira que
este tem de garanti-lo.
Territorialmente, o Estado brasileiro não sofre nenhum tipo de
disputa com seus países vizinhos, nem mesmo possui restrições internas quanto a
seus Estados federados.
Ainda que atualmente se conteste a soberania estatal, é
possível perceber a força que exerce esse princípio fundamental na ideologia
política brasileira.
231
232
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 133.
BONAVIDES, P. Ciência Política. p. 130.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme demonstrou-se, a formação histórica do Estado está
disposta sobre a idéia de ordem, da necessidade de coordenação do poder, tendo
em vista que no Estado primitivo não existia uma organização política capaz de
impedir que reinasse o caos. A partir de dado momento, um indivíduo considerado o
mais forte, conseguiu assumir uma posição de comando e todos puderam se
beneficiar através desse representante.
É possível perceber que do período compreendido entre o
Estado Medieval até o contemporâneo Estado Democrático de Direito, a sociedade
aspira à liberdade, à igualdade e à melhora nas condições econômicas e sociais,
fato que por si só, desenha a característica soberana do povo.
A passagem do Estado Medieval, onde imperava o conceito do
poder absoluto do monarca, para o Estado Moderno, caracteriza muito bem o
surgimento da soberania, não só como conceito específico, mas como forma prática
da participação dos indivíduos nas decisões políticas. Os estudiosos desse período,
chamado também de Idade Moderna, procuravam definir a vontade geral como
única detentora do poder.
Contemporaneamente, no Estado de Direito, um Estado
caracterizado por observar intensamente a questão da legitimidade e legalidade,
observa-se a participação que o povo tem na elaboração de leis. O titular do poder,
o ente que decide o destino de seu Estado através da escolha de seus
representantes, é o poder soberano que emana dos cidadãos.
Expôs-se que no plano interno a soberania aplica as normas do
ordenamento jurídico existente como forma de firmar a ordem social e a preservar os
direitos e garantias individuais.
Dotado de soberania, cada cidadão com base nos princípios
basilares do Estado brasileiro e dos direitos e garantias fundamentais, possui
81
liberdade e segurança para agir do modo como melhor lhe convier, desde que
observados as sanções e os limites que ferem a liberdade do outro.
No âmbito externo, a soberania trata das relações com outros
estados, a fim de manter sua autonomia e de firmar tratados que beneficiem a todos
os envolvidos, como forma de manter a paz e a dignidade humana.
Verificou-se, no entanto, que esta soberania encontra-se em
crise, devido ao advento da globalização que gerou a aproximação entre os setores
econômicos e políticos, e por que não dizer ideológicos. Algumas pessoas
identificam-se muito mais com a ideologia de certos países do que com seu próprio.
É preciso, no entanto, analisar mais profundamente as causas
dessa crise, tendo em vista que ela ocorre de maneira mais expressiva no âmbito
externo. Ainda que possa haver uma universalização de direitos, os usos e
costumes próprios de cada país podem ser afetados e os indivíduos não saberão a
quem recorrer quando entender que seus direitos foram violados.
Todas as hipóteses levantadas no início deste trabalho foram
confirmadas. A soberania, conforme explanado na Constituição em seu art. 1º, é um
princípio fundamental do Estado brasileiro. A soberania não pertence somente ao
governante, tendo em vista que todo poder emana do povo. A crise contemporânea
da soberania está cada vez mais perceptível, tendo em vista as invasões e guerras
territoriais existentes em todo o mundo.
82
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS
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Claret, 2009.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº1152, Tribunal Pleno, Brasília,
DF,
106
de
maio
de
2010.
Disponível
em:
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http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2652394
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 93299, Primeira Turma
Julgadora, Brasília, DF, 16 de Setembro de 2008. Disponível em:
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CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. São
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DUSO, G. O Poder: História da filosofia política moderna. Tradução de Andrea
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LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Alex Marins. São
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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Martin
Claret, 2006.
83
MONTESQUIEU. Do Espírito Das Leis.Tradução de Jean Melville. São Paulo:
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MORAES, A. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social. Tradução de Pietro Nasseti. São
Paulo: Martin Claret, 2009.
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