2 D E S TAQ U E 20 ANOS DE ADESÃO À CEE PÚBLICO • SÁBADO, 31 DEZ 2005 Quinze anos de aproximação à Europa, cinco anos a marcar passo Há 20 anos, a adesão à então CEE trazia a promessa de prosperidade e do fim do atraso português em relação à Europa. Ao cabo de duas décadas, Portugal é um país mais rico e mais próximo da média comunitária. Mas depois de 15 anos de convergência, os últimos cinco foram de estagnação PAULO RICCA PEDRO RIBEIRO Em 1 de Janeiro de 1986, Portugal concretizou a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), hoje União Europeia. Os objectivos da adesão à grande casa europeia não eram apenas económicos — mas a maior expectativa da época era que “entrar na Europa” representasse prosperidade e a recuperação do atraso económico em relação às principais nações do continente. Mário Soares, o primeiroministro que em Junho de 1985 assinou o tratado de adesão à CEE, esperava da CEE “um futuro de progresso e de modernidade”. Vinte anos depois, como é que a economia portuguesa se saiu da sua experiência europeia? No cômputo geral, bastante bem. Em 1985, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita em paridades de poder de compra (PPC) — ou seja, o que cada português produzia em média e em termos comparáveis a nível internacional — era 7240 dólares americanos, segundo o Banco Mundial. Em 2004, o PIB per capita em PPC português era de 17.900 dólares. Em termos absolutos, os portugueses estão claramente mais ricos. Mas a prosperidade não se mede apenas em termos absolutos. Com a adesão à CEE, o termo de comparação de Portugal passou a ser os seus parceiros europeus. E, na comparação com o resto do “clube”, Portugal também não se saiu mal. Recorrendo novamente ao critério do PIB per capita em PPC, em 1985 a riqueza de Portugal era equivalente a 53 por cento da média dos 12 países que hoje constituem a zona euro; em 2004, a proporção era de 76 por cento. Assim, nestes 20 anos a economia portuguesa aproximou-se bastante da média comunitária — ou, num jargão A adesão tornou o país mais rico. Apesar da estagnação dos últimos cinco anos, a convergência é uma evidência que entrou na linguagem corrente depois da adesão, houve “convergência”. Agora as más notícias: a convergência só durou 15 anos. Nos últimos cinco, o processo de aproximação à média europeia estagnou. Essa estagnação é particularmente grave porque no século XXI a União Europeia tem crescido pouco. Mas se a Europa cresceu devagar, Portugal cresceu devagaríssimo. Por isso, a convergência interrompeu-se — e, a avaliar pelas previsões para os próximos anos, será difícil retomá-la tão cedo. século XIX, Portugal aproximou-se continuamente da média europeia, com dois breves períodos de interrupção — o pós-II Guerra Mundial e o pós25 de Abril. Mas é notório que, nos primeiros 15 anos do “Portugal europeu”, a convergência foi acelerada. Os efeitos da adesão sobre a economia são visíveis pita português e espanhol é muito semelhante até ao ano 2000. A partir daí, a curva portuguesa estabiliza, enquanto a curva espanhola continua a aproximar-se da média. Mais: em duas décadas de adesão, a Espanha deu grandes passos na solução do seu problema económico mais grave — a taxa de desemprego, que, embora continue acima da média da UE25, caiu para metade dos níveis de 1985. Pelo contrário, em Portugal o desemprego está quase ao mesmo nível que há 20 anos. A Europa não é só dinheiro O impacto económico da adesão é muito complexo, mas há dois factores principais de transformação nas últimas duas décadas. Por um lado, a economia portuguesa tornouse mais aberta e integrada no espaço europeu, com um aumento espectacular das trocas comerciais com os parceiros da União. A Espanha converge mais depressa A adesão à CEE acelerou a convergência de Portugal com a Europa. Ao longo de quase todo o século XX (ver gráfico), esse foi o sentido da economia portuguesa. Depois de uma decadência prolongada desde meados do O BOM ALUNO TORNOU-SE CÁBULA pela comparação entre o que havia em 1985 e o que há agora (mais auto-estradas, mais automóveis) e pelo que nem existia na altura e é ubíquo hoje (telemóveis, hipermercados). Nesses 15 anos, a curva da convergência era igual para os dois países ibéricos, que se juntaram ao “clube” no mesmo dia. A evolução dos PIB per ca- Até ao ano 2000, a economia portuguesa justificava a descrição de “bom aluno” pelo antigo presidente da Comissão Europeia Jacques Delors. Com excepção da recessão de 92/93, em todos os anos até ao final do século Portugal cresceu e aproximouse da média comunitária. A Espanha, que se juntou ao “clube” no mesmo ano, seguiu idêntica trajectória. Mas em 2001 a história mudou. Portugal não só não está a convergirno passo acelerado do final dos anos 80 e dos anos 90 — não está a convergir de todo. Portugal estagnou. O SAUDÁVEL TOMBO DA INFLAÇÃO Por outro, Portugal beneficiou dos fundos de coesão atribuídos pela União às suas regiões mais pobres. Os “fundos” tornaram-se de resto na face mais visível da adesão — os anos 90 foram a época em que, como tem sido dito na actual campanha presidencial, Portugal recebia da Europa “um milhão de contos por dia”. A partir de meados dos anos 90, a entrada de Portugal no Sistema Monetário Europeu trouxe outras consequências de peso. A inflação, que nas vésperas da entrada na CEE ainda atingia os 20 por cento anuais, caiu para níveis muito reduzidos; as taxas de juro também, atingindo mesmo níveis historicamente baixos nos últimos anos. Em contrapartida, ao ceder o controlo da sua política monetária ao Banco Central Europeu, Portugal abdicou de um dos instrumentos tradicionais em tempos de crise (como agora) — a desvalorização da moeda. Seria Portugal um país mais rico ou mais pobre sem a adesão à União Europeia? Será mais ou menos consensual a resposta de que Portugal fora da União seria hoje mais pobre. Mas o balanço de 20 anos de adesão não pode ser feito apenas pela evolução do PIB e dos fundos comunitários. Os portugueses transferiram parte da sua soberania para Bruxelas, viajam para Madrid sem levar passaporte ou para Helsínquia sem fazer câmbio de moeda. E a União ganhou com Portugal. Escrevia esta semana na Visão o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso: “Há 20 anos, as empresas e os cidadãos dos outros dez Estados-membros passaram a ter acesso, de um dia para o outro, a novos mercados e consumidores, a melhores oportunidades comerciais e de investimento, a experiências culturais mais ricas. Isto não tem preço.” ■ O êxito económico mais completo da adesão à UE foi no combate à inflação. Quando Portugal aderiu, os preços aumentavam a ritmos próximos dos 20 por cento ao ano. Com a adesão ao Sistema Monetário Europeu, a inflação tornouse residual. O último ano em que a inflação portuguesa ultrapassou os cinco por cento foi 1994. Hoje, com a moeda única e a política monetária única, os países da zona euro têm uma inflação na casa dos dois por cento. O reverso da medalha é que Portugal deixou de dispor de autonomia para combater recessões. D E S TAQ U E 3 PÚBLICO • SÁBADO, 31 DEZ 2005 MAIS RIQUEZA, CONSUMO DIFERENTE O rendimento disponível do português médio em 2005 é muito superior ao do português de 1985, às portas da adesão à então Comunidade Económica Europeia (CEE). O cabaz de compras utilizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) para calcular o Índice de Preços no Consumidor (a taxa inflação) reflecte essas diferenças. Em 1985, o perfil do cabaz de compras português era típico de um país, senão pobre, pelo menos remediado. Quase metade (46 por cento) da sua composição era dedicada à classe de produtos “alimentação e bebidas”. O índice actual separa as bebidas alcoólicas (incluída, junto com o tabaco, numa categoria que se pode descrever como “vícios”) e o consumo em restaurantes e hotéis da classe “produtos alimentares e bebidas não alcoólicas”; mas, mesmo juntando o álcool, os restaurantes, o tabaco e os hotéis, a ponderação actual de alimentos e afins não ultrapassa os 33 por cento. Ou seja: a família portuguesa média pré-adesão gastava perto de 50 por cento do seu dinheiro com a mais básica das necessidades: comer. No Portugal contemporâneo, e com maior rendimento disponível, essa família gasta pouco mais de um terço com a comida (e isso já inclui as despesas com cigarros e álcool), sobra-lhe mais dinheiro para outros produtos e serviços. O peso de outra necessidade básica — a habitação — mantevese. As categorias “rendas” e “conforto da habitação” ocupavam perto de 18 por cento do cabaz de 1985, sensivelmente o mesmo que hoje em dia. As famílias actuais também gastam actualmente menos três por cento em vestuário e calçado que há 20 anos. Para onde foi o rendimento extra? Para a classe “saúde”, cujo peso mais que duplicou, de 2,6 para 5,5 por cento do cabaz. Para pagar o carro e o telemóvel, entre outras despesas de transportes e comunicações — a categoria cujo peso mais aumentou, de 13,8 por cento para 22,7 por cento do total do cabaz de compras. E também para o saber, que passou a ocupar mais lugar no cabaz do INE. Em 1985, a classe “ensino, cultura e distracção” valia apenas 4,1 por cento do cabaz de compras das famílias portuguesas; em 2005, as classes “educação” e “lazer, recreação e cultura” pesavam 6,6 por cento no total. ■ P.R. DESEMPREGO: A MÁ EUROPA A concentração do comércio A Opinião de A integração europeia alterou completamente a geografia do comércio externo português. Até meados dos anos 70 as trocas portuguesas dividiam-se entre a África, o Atlântico e a Europa. Hoje estão completamente centradas na União Europeia (UE), que representa mais de 80 por cento do comércio externo. O forte aumento das trocas que se seguiu à integração portuguesa dirigiu-se maioritariamente aos países continentais da UE, que absorveram todo o aumento do grau de abertura verificado. Desde a adesão, as trocas com os países da Europa continental cresceram mais de 400 por cento, a preços constantes. As trocas com os países atlânticos aumentaram a um ritmo dez vezes inferior. O comércio com estes países (nos quais se destacam o Reino Unido, os EUA, Brasil e países escandinavos) aumentou desde 1986 cerca de 40 por cento, crescimento inferior ao aumento das trocas portuguesas. O peso das trocas com estes países no PIB diminuiu apenas ligeiramente com a integração, sendo hoje semelhante ao verificado na década de 70, e significativamente superior ao registado nos anos 60. Esta evidência sugere que as fortes alterações na orientação do nosso comércio depois da adesão estão mais associadas a um acentuado efeito de criação de comércio (com os países da Europa continental) do que a efeitos de desvio de comércio do Atlântico para a Europa continental. Outra alteração marcante que não pode ser associada à integração europeia foi a perda de importância do comércio com os países africanos. Com a descolonização, o peso do comércio com Angola e Moçambique caiu para valores muito baixos, tornando-se pouco expressivo. Hoje o conjunto dos PALOP representa apenas 1,3 por cento do total das trocas portuguesas, valor três vezes menor do que com a Bélgica ou a Holanda e quatro vezes mais pequeno do que o das trocas de Portugal com a Galiza. No final dos anos 60, Angola era o segundo maior parceiro comercial de Portugal (com mais de 12 por cento das trocas) e Moçambique o quinto (com 7 por cento). A perda de peso da África após 1974 não mostra qualquer sinal de poder ser invertida, dado o forte endividamento destes países e a limitada dimensão das suas economias. De facto, as economias dos PALOP somadas têm um produto pouco superior ao do distrito de Braga, produto que é quatro a cinco vezes menor que o da região da Galiza. A proximidade e esta diferença de dimensão fazem com que as relações comerciais com esta região devam continuar a ser mais importantes do que as do nosso país com a totalidade da África subsariana. A taxa de desemprego portuguesa antes da adesão era relativamente baixa. Continua a ser inferior à média europeia, mas, numa época de crescimento económico fraco como a actual, tende a crescer. Portugal chegou a 2000 perto de uma situação técnica de pleno emprego (abaixo dos 5 por cento), mas as coisas pioraram. Pelo contrário, a Espanha, que nos anos 90 chegou a ter taxas assustadoras na casa dos 20 por cento, conseguiu reduzir espectacularmente “el paro”. Em direcções inversas, o desemprego tem convergido. MANUEL CALDEIRA CABRAL A integração europeia consistiu assim, em primeiro lugar, numa integração no mercado ibérico INTEGRAÇÃO IBÉRICA O aumento das trocas com Espanha foi o facto mais marcante da integração portuguesa. Desde 1986, o volume de trocas com o país vizinho foi multiplicado por 20. A Espanha passou a ser o nosso principal parceiro comercial em 1994, depois de durante muitos anos não constar sequer entre os cinco principais parceiros de Portugal. De facto, até à primeira metade dos anos 80 as trocas com Espanha tinham uma expressão idêntica à de vários pequenos países europeus como a Suíça, Suécia ou Holanda. Em 1961, as trocas com Espanha eram cinco vezes inferiores às registadas com a Bélgica, representando pouco mais de 1 por cento do total do comércio externo português (um peso apenas ligeiramente superior ao de Marrocos). A integração europeia consistiu assim, em primeiro lugar, numa integração no mercado ibérico. Esta alteração veio corrigir uma situação absurda em que muitas oportunidades de negócios e cooperação com o mercado mais próximo estavam a ser desperdiçadas. Portugal tem hoje um quarto das suas trocas com Espanha. Esta concentração de comércio com um único país não é inédita no espaço europeu. Pelo contrário, esta proporção é até inferior à registada por muitos países europeus de dimensão idêntica à portuguesa nas trocas com o respectivo grande país vizinho. Este é o caso da Áustria, Hungria, Re- Professor Auxiliar do Departamento de Economia da Universidade do Minho pública Checa e Polónia, para os quais a Alemanha representa mais de 30 por cento do comércio, ou da Irlanda, em que o Reino Unido é reponsável por idêntica proporção das trocas. A Alemanha representa também perto de um quarto do comércio dos países escandinavos, da Holanda e da Bélgica. Nestes dois últimos países a França assume também uma posição importante. Para a Bélgica os países vizinhos (França, Holanda e Alemanha) representam quase 60 por cento das trocas. Esta regularidade há muito que foi identificada pelos modelos geográficos do comércio, em que a dimensão das economias e a proximidade são os factores explicativos mais importantes da intensidade de trocas comerciais. CONCENTRAÇÃO GEOGRÁFICA A concentração geográfica das trocas portuguesas aumentou fortemente com a adesão. O comércio português centrou-se em menos países e em países pertencentes a um único bloco, a UE, o que torna a nossa economia muito dependente de um espaço que não se tem revelado muito dinâmico nos últimos anos. Os cinco principais parceiros concentram hoje quase dois terços das trocas, enquanto até 1985 concentravam apenas cerca de metade. O número equivalente de parceiros comerciais com quota idêntica revelado pela distribuição das percentagens de cada parceiro no comércio total de Portugal desceu quase para metade, passando de 16 para oito. Tal significa que estamos cada vez mais dependentes do que acontece num número pequeno de países da União Europeia. Para além do comércio, estes países são também a origem do grosso do investimento estrangeiro realizado em Portugal, bem como dos turistas que nos visitam (em que os espanhóis substituíram os ingleses como grupo mais importante). Esta situação é estranha às alianças e afinidades culturais tradicionais de Portugal. O nosso país mantém uma forte tradição de aliança militar com os países atlânticos, da qual no passado dependeu a sua independência. Portugal tem laços culturais e linguísticos que o ligam aos países africanos e ao Brasil. A imigração e o investimento de Portugal no estrangeiro são duas excepções à concentração no espaço europeu, reflectindo esses laços, cuja importância não deve ser descurada. Nestas duas áreas Portugal continua a manter o grosso dos seus interesses fora do espaço comunitário, surgindo como um grande investidor no Brasil, nos PALOP e em alguns países do Magrebe e recebendo imigrantes extracomunitários, embora mesmo estes, em números crescentes, tenham origem em países europeus. ■ DINHEIRO BARATO PARA TODOS Outro triunfo para Portugal e Espanha, primeiro da adesão à CEE e, mais tarde, à moeda única, foi a redução das taxas de juro. Nos últimos anos os juros da zona euro estiveram a níveis historicamente baixos. Isso teve duas consequências importantes para países como Portugal e Espanha, cuja divisa era tradicionalmente fraca: os juros a pagar pela dívida pública caíram muito; e as taxas de juro do crédito a particulares (especialmente no crédito à habitação) desceram bastante, o que permitiu a muitas famílias endividar-se para consumo.