XIV Congresso Brasileiro de Sociologia 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) Grupo de Trabalho "Saúde e Sociedade" LIMITES DO UNIVERSALISMO E DO IGUALITARISMO NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Diogo Neves Pereira Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília Resumo: O trabalho discute conflitos inerentes à efetivação dos princípios da universalidade e da igualdade pelo Sistema Único de Saúde. Para tanto, demonstra as afinidades conceituais entre estes princípios e certa ideologia individualista ocidental, e que eles são operacionalizáveis unicamente por meio de uma partilha entre corpo e pessoa. Com base na reconstrução de trajetórias de pacientes por instituições de saúde de diversas partes do país – empreendida por meio de entrevistas realizadas em pesquisa no Hospital de Base (DF) – toma-se a problemática do acesso aos serviços como âmbito privilegiado de reflexão acerca dos limites e possibilidades práticos do universalismo e do igualitarismo. Demonstra-se então como, do ponto de vista da execução dos serviços de saúde, o individualismo suposto se contrapõe ao holismo e às hierarquizações sociais de poder, assim como corpo e pessoa se confundem. Definições legais A Constituição Federal de 1988 é seguramente um marco importante na história da saúde pública brasileira. Neste âmbito, trouxe consigo todo um novo conjunto de parâmetros legais, tendo expandido direitos dos cidadãos e aumentado deveres por parte do Estado, estabelecendo assim um novo modelo para a saúde pública no Brasil. Pela primeira vez a saúde universal se torna obrigação do Estado e direito dos brasileiros. Até então, em seu aspecto curativo, a saúde pública no país se caracterizava por seu caráter previdenciário. Desde 1978 apenas algumas classes de trabalhadores que possuíam carteira de trabalho registrada tinham direito à assistência médica através do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Deste modo, encontramos no artigo n°196 (Título VIII – “Da Ordem Social”; Capítulo II – Seção II, “Da Saúde”) da Constituição de 1988 o fundamento legal desta mudança de paradigma. Nele encontra-se estabelecido: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Interessa-nos notar aqui, sobretudo, que o artigo define que o acesso às ações e serviços de saúde no país deve ser “universal e igualitário”. Dois anos depois, a lei federal n°8.080, de 19 de setembro de 1990, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), então criado pela Constituição de 1988, viria corroborar como princípios do sistema a universalidade e a igualdade1. Em seu artigo 2° (Título I – Das Disposições Gerais) lemos: Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Mais adiante, no artigo 7 (Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes) da mesma lei encontramos nova referência à universalidade e à igualdade, desta vez anunciadas como princípios do SUS. Note-se: 1 As leis n°8.080 e n°8.142, em conjunto, formam a Lei Orgânica da Saúde, ou seja, são aquelas que disciplinam de modo genérico e fundamental o funcionamento do SUS. 2 Art. 7º. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde - SUS, são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; [...] IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; Ao longo destes vinte anos do SUS o Ministério da Saúde (MS) vem desenvolvendo ações e documentos que visam reafirmar e aperfeiçoar tanto a compreensão quanto a execução destes princípios. Exemplar neste contexto é a publicação Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas, lançada no ano 2000 pelo MS. Dela, vejamos os seguintes trechos: O SUS pode ser considerado uma das maiores conquistas sociais consagradas na Constituição de 1988. Seus princípios apontam para a democratização nas ações e nos serviços de saúde que deixam de ser restritos e passam a ser universais, da mesma forma, deixam de ser centralizados e passam a nortear-se pela democratização. (Brasil, 2000: 5). Desse modo, trabalha-se arduamente pela consolidação de seus princípios doutrinários (universalidade, equidade e integralidade nos serviços e ações de saúde), bem como dos princípios que dizem respeito a sua operacionalização (descentralização dos serviços, regionalização e hierarquização da rede e participação social). (Brasil, 2000: 7). Constata-se, entretanto, tal como o trecho acima torna explícito, que o princípio da igualdade – que supõe o tratamento igualitário de todos os indivíduos assistidos pelo sistema, definindo o acesso a serviços públicos de saúde como direito idêntico entre todos os brasileiros – vem sendo concebido articuladamente (inclusive pelo MS) ao de eqüidade – que, por sua vez, supõe o tratamento desigual para com os desiguais. Contudo, tal noção de eqüidade tem sido associada especialmente às pretensões de diminuição das desigualdades regionais em saúde. Entende-se que, dadas as grandes disparidades nos níveis de saúde das populações localizadas em diferentes áreas do país, o poder público deve empreender ações diferenciadas para com cada uma delas, atendendo assim a necessidades específicas. Sendo assim, ao fim e ao cabo a adoção do princípio da eqüidade tem como objetivo final a criação de uma realidade mais 3 igualitária no país, ou seja, preserva e reforça o ideal da igualdade. Observe-se o que diz a publicação acima citada acerca do princípio da eqüidade: Na esteira dos dois princípios acima [universalidade e integralidade], vem a necessidade de se reduzir as disparidades sociais e regionais existentes em nosso país. O princípio da equidade reafirma que essa necessidade deve dar-se também por meio das ações e dos serviços de saúde. Ainda são grandes as disparidades regionais e sociais do Brasil. No entanto, há uma sinergia e uma série de externalidades positivas geradas a partir da melhora das condições de saúde da população o que faz concluir que de fato a saúde é fundamental na busca de uma maior equidade. (Brasil, 2000: 32). Todavia, se numa dimensão social mais ampla a idéia de eqüidade suplanta (embora preserve) a de igualdade, no que tange à instância mais específica do acesso dos indivíduos aos serviços públicos de saúde a igualdade se mantém como princípio norteador principal da organização da assistência. Nesse ínterim, concebe-se que, se numa dada situação particular dois indivíduos procurarem uma mesma instituição de saúde, estes deverão ser atendidos igualitariamente, não podendo haver qualquer razão para discriminações que justificassem tratamentos diferenciados2. Em síntese, até aqui vim tentando demonstrar que as idéias de universalidade e de igualdade são dois dentre os pilares fundamentais do SUS – estabelecidos em lei e consagrados pelos órgãos governamentais responsáveis pela saúde pública no país. Em contraposição aos modelos vigentes anteriormente, o SUS definiu que os brasileiros têm direito à saúde universal, e que o Estado deve garanti-la de forma não discriminatória. Mais além, vale ressaltar que, tal como se pode perceber nos artigos acima citados, tanto a Constituição de 1988 quanto a Lei Orgânica da Saúde anunciam duas problemáticas centrais a serem enfrentadas pelo sistema, a saber: acesso e assistência – entendidas 2 Quando este texto já estava finalizado, pude acompanhar o seminário nacional "Diversidade de Sujeitos e Igualdade de Direitos no SUS", promovido pelo MS e ocorrido em Brasília entre os dias 8 e 11 de maio de 2009. O evento reuniu representantes de movimentos sociais bastante variados, que puderam apresentar e discutir suas realidades e demandas relativas ao SUS. Num certo sentido, o seminário constituiu-se num marco importante no que tange à consolidação de um novo campo de debates envolvendo a consideração para com a diversidade (não apenas étnica, mas também de gênero, religiosa etc) na saúde pública brasileira. Todavia, não deixou de explicitar os conflitos inerentes à reunião de diversidades sociais sob um mesmo marco político-ideológico. Provavelmente por isso os projetos e soluções concebidos praticamente se resumiram à busca da construção de serviços específicos com vistas à promoção da igualdade de direitos entre os “sujeitos diferenciados”, mas preservando os princípios do SUS já estabelecidos. Houve, portanto, uma demanda pelo reconhecimento da diferença, mas ao mesmo tempo esse reconhecimento discursivamente se apresentou, não contraditoriamente, como instrumento para a consecução da igualdade - se não "social", ao menos "de cidadania". Para mais detalhes sobre os resultados do encontro, ver a Carta de Brasília, disponível no endereço eletrônico http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/carta_bsb_130509.pdf (acessado em 20/05/2009). 4 como duas etapas essenciais da prestação dos serviços de saúde. A elas nos dedicaremos mais detidamente na seqüência do texto. Comumente percebidos como frutos da mobilização de diversos setores sociais e como conquistas no campo da cidadania, os princípios da universalidade e da igualdade vêm encontrando amplo apoio por parte da opinião pública, dos especialistas e dos executores das políticas públicas de saúde. Dada a crença na correção ideológica dos mesmos, os debates que os circundam em geral se referem aos caminhos a serem percorridos no sentido de suas melhores e mais amplas implantações. Tendo em vista tal constatação, e sem pretender argumentar desfavoravelmente acerca desta postura comum, este trabalho tenciona tomar uma direção distinta. Intenta-se aqui refletir acerca dos limites destes princípios, buscando suas genealogias enquanto valores, para então demonstrar que não podem ser compreendidos para além de suas localizações sóciohistóricas, além de contrapô-los ao contexto social no qual se pretende efetivá-los. Sob este prisma, assumirei como questão inicial a ser analisada o modo como o acesso aos serviços de saúde oferecidos pelas instituições públicas de saúde é executado. O que percebemos então é que a operacionalização tanto do acesso às instituições quanto da assistência à saúde é realizada através de uma concepção médica de corpo. No limite, o suposto fundamental presente no SUS é que todos os indivíduoscorpos (medicamente assim entendidos) obteriam acesso e assistência igualitários e universais. O que inevitavelmente institui uma diferença, uma vez que condições corporais diferenciadas implicam acessos distintos, já que os estados corporais dos indivíduos seriam os definidores de acessos e assistências específicas. Estaria posta assim uma igualdade por princípio em contraposição às diferenças práticas contextuais – ambas assentadas numa suposta isonomia médica da avaliação das condições corporais. Ajuíza-se que pacientes com condições corporais diferenciadas seriam assistidos diferentemente; mas conjuntamente entende-se que pacientes com condições corporais iguais seriam assistidos igualitariamente. Teríamos, portanto, um mecanismo próximo à utilização de uma perspectiva de eqüidade, mas com vistas à promoção da igualdade; ou seja, condições corporais diferentes recebem atenção diferenciada (quer estas se encontrem nas diferenças regionais dos patamares de saúde, quer se encontrem na condição específica dos pacientes que utilizam determinado serviço), enquanto condições corporais iguais recebem atenção igualitária. Delineado este quadro, na intenção de discutir os limites dos princípios da universalidade e da igualdade no SUS, argumentarei que eles mantêm íntimas afinidades com certa ideologia individualista ocidental. Por outro lado, procurarei demonstrar que o 5 princípio da igualdade do SUS se efetiva unicamente a partir de certa partilha cosmológica vigente entre nós entre corpo e pessoa. Isso porque, do ponto de vista da operacionalização da assistência e do acesso às instituições, a suposição da igualdade recairia apenas na dimensão do corpo – como se os indivíduos pudessem ser tomados para além da pessoa. Para melhor fundamentar tais assertivas, ao final me dedicarei à discussão da questão do acesso às instituições do ponto de vista da experiência real de pacientes que procuram os serviços públicos de saúde. Fá-lo-ei com base em dados coletados em pesquisa realizada no ano de 2007 com pacientes de uma grande instituição pública de saúde do Distrito Federal. A ideologia individualista ocidental Pretendo compreender o lugar sócio-histórico dos ideais de universalidade e igualdade apresentados pelo SUS apoiando-me em teses de Louis Dumont. No entanto, para que os argumentos deste autor sejam entendidos, antes de qualquer coisa faz-se necessário termos em mente três pilares a partir dos quais suas análises são construídas. O primeiro deles refere-se ao fato de que suas elaborações partem de uma contraposição analítica entre a Índia e o Ocidente. Dumont empreende tal comparação na intenção de iluminar a relatividade das concepções ocidentais para, com isso, aprimorar os conceitos antropológicos. Entende que, na medida em que estes conceitos se fazem mais cientes de suas localizações sócio-históricas, podem alcançar maior universalidade. A compreensão da realidade indiana – mais especificamente do seu sistema de castas –, nesse sentido, reflexivamente serviria para a interpretação do próprio Ocidente, uma vez que permite certo deslocamento de suas formas de compreensão para com suas origens e pressupostos não-explicitados. A comparação se faz então um instrumento de universalização conceitual. Segundo ele, O progresso consiste em substituir pouco a pouco, se necessário um a um, os nossos conceitos por outros mais adequados, isto é, mais libertos de suas origens modernas e mais capazes de abranger os dados que começamos por desfigurar. (1983: 17). A aquisição de um ângulo de visão exterior, a colocação em perspectiva – e talvez só ela – permite uma visão global que não seja arbitrária. Aí está o essencial. (1983: 20). A segunda questão a ser observada diz respeito à sua distinção entre duas noções de “indivíduo”. Para Dumont, seria preciso separar o indivíduo como valor do indivíduo empírico. Afirma que o indivíduo empiricamente entendido pode ser encontrado em 6 qualquer contexto. Todas as sociedades teriam uma noção do indivíduo enquanto uma unidade observável, embora a idéia de que exista um indivíduo empírico indivisível e previamente dado seja uma noção particular. Por seu turno, a noção de indivíduo enquanto um valor não seria universal. A rigor, boa parte de seu trabalho consiste numa investigação das origens e desenvolvimento dessa noção de indivíduo enquanto um valor, encontrado apenas em algumas configurações sócio-históricas ocidentais. Nessa acepção específica, indivíduo designa o “ser de razão”, o “ser moral” sujeito de vontade independente e autônoma, concebido como abstratamente anterior e desvinculado da sociedade. Tal noção de indivíduo seria própria e específica das sociedades ocidentais. Vale ressaltar que, para Dumont, o fato de não haver tal idéia de indivíduo em algumas sociedades, ou seja, a noção de um indivíduo isolado valorativamente concebido, não significa que nelas não exista certa concepção de “subjetividade” ou de “individualidade”. Imperativo se faz também termos claro o que ele denomina por ideologia. Não obstante seja possível ponderar a possível demasiada generalidade desta noção em seu trabalho, tem-se que Dumont define ideologia como o “sistema de idéias e valores que tem curso num dado meio social” (1983: 20). Acerca deste conceito, o autor esclarece ainda: a. A distinção entre os aspectos ideológicos (ou conscientes) e os outros se impõe metodologicamente em virtude de uns e outros não serem conhecidos da mesma maneira. b. Metodologicamente, o postulado inicial é o de que a ideologia é central com relação ao conjunto da realidade social (o homem age conscientemente, e acedemos diretamente ao aspecto consciente de seus atos). c. Ela não é toda a realidade social, e o estudo tem seu resultado na tarefa difícil do posicionamento relativo dos aspectos ideológicos e do que se pode chamar de aspectos não-ideológicos. Tudo o que se pode supor a priori é que normalmente existe uma relação de complementaridade, aliás variável, entre uns e outros. (1992: 51). Sendo assim, de um modo geral em Dumont ideologia designa o ideal moral e político presente conscientemente em uma sociedade específica. Isto posto, seu projeto de pesquisa que aqui exploramos consiste em, com base na contraposição analítica entre Índia e Ocidente, compreender o surgimento histórico do indivíduo como valor para, a partir daí, delinear a constituição da ideologia ocidental moderna. Dessa forma, Dumont realiza a reconstituição da história do indivíduo no Ocidente. Tal empreendimento encontra-se mais bem acabado na obra O Individualismo (1983), onde apresenta estudo sobre o encadeamento histórico de noções encontradas 7 nas crenças cristãs primitivas, nos filósofos europeus medievais, na Declaração dos Direitos do Homem, assim como em outros marcos da constituição ideológico-histórica do individualismo moderno. Mostra como o “indivíduo-em-relação-a-Deus” do cristianismo primitivo vai pouco a pouco se inserindo no mundo, se libertando da Igreja e do Estado, transformando-se num “indivíduo-fora-do-mundo”, até se tornar um “indivíduo-no-mundo”. Nesse percurso, as mudanças principais nas formas de conceber o indivíduo se referem à relação entre o divino e o terreno. Os resultados desta trajetória seriam então o indivíduo enquanto valor e a ideologia individualista ocidental3. No que tange à contraposição entre Índia e Ocidente, a principal questão que se coloca diferencialmente entre os dois contextos é, por conseguinte, onde se localiza o maior peso ideológico das formações sociais, se no todo social, ou se na sua parte; ou, dito de outro modo, se na sociedade ou no indivíduo. No primeiro caso teríamos assim o holismo, característico da sociedade indiana. No segundo estaríamos diante do individualismo, característico das sociedades ocidentais. Ao contrário do que ocorre numa visão holista, com o individualismo há a suposição da autonomia da vontade do indivíduo, ou seja, crê-se que os indivíduos cuidam isoladamente dos seus próprios assuntos, sendo a sociedade o resultado de certo “contrato” entre eles4. 3 Dumont sintetiza de modo muito apropriado essas questões no seguinte trecho: “Eis a minha tese, em termos aproximados: algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata exatamente do individualismo que nos é familiar. Na realidade, a antiga forma e a nova estão separadas por uma transformação tão radical e tão complexa que foram precisos nada menos de dezessete séculos de história cristã para completa-la, e talvez prossiga ainda em nossos dias. A religião foi o fermento inicial, primeiro, na generalização da fórmula e, em seguida, na sua evolução. Nos nossos limites cronológicos, o pedigree do individualismo moderno é, por assim dizer, duplo: uma origem ou aceitação de uma certa espécie, e uma lenta transformação numa outra espécie. [...]. Para vermos a nossa cultura em sua unidade e especificidade, cumpre coloca-la em perspectiva, contrastando-a com outras culturas. Somente assim podemos tomar consciência do que, aliás, deveria ser óbvio: o fundamento familiar e implícito do nosso discurso ordinário. Assim, quando falamos de “indivíduo”, designamos duas coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de nós e um valor. A comparação obriga-nos a distinguir analiticamente esses dois aspectos: de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderno do homem e da sociedade. Deste ponto de vista, existem duas espécies de sociedades. Quando o Indivíduo constitui o valor supremo, falo de individualismo; no caso oposto, em que o valor se encontra na sociedade como um todo, falo de holismo” (1983: 36-7). 4 Numa arriscada e incompleta avaliação, poder-se-ia conceber que haveria, ademais, relações de afinidade entre certo olhar antropológico e o holismo, por um lado, e certo olhar sociológico e o individualismo, por outro. Na perspectiva antropológica ordinária o que é dado por princípio é o todo social, a partir do qual se depreende a posição dos indivíduos – algo similar à ideologia holista. Por sua vez, um olhar sociológico comum observa inicialmente os indivíduos isoladamente e, num segundo movimento, estes se agregando para a composição da sociedade – ponto de vista que encontra ressonância no individualismo. Em outras palavras, nos olhares antropológico ou tradicional o todo predomina sobre as partes, enquanto no olhar moderno ou sociológico a parte predomina sobre o todo. Em ambas perspectivas é imprescindível a adoção de certa noção de totalidade, diferindo como é elaborada a junção entre esta e outra de particularidade, bem como qual delas é assumida como princípio desta junção. 8 Estabelecida a especificidade sócio-histórica da ideologia individualista ocidental, é importante atentarmo-nos para o conteúdo de sua categoria-chave, o indivíduo. Ao fazê-lo percebemos que o indivíduo enquanto valor traz consigo uma série de atributos e de noções inescapavelmente associadas, acerca das quais dentre as principais podem ser arroladas as de “igualitarismo” e de “universalismo”. Concebidos como mônadas logicamente anteriores ao todo social, os indivíduos existiriam unicamente como iguais entre si. Por outro lado, no individualismo os direitos individuais são concebidos como limitados apenas pelos direitos de outros indivíduos-mônadas, decorrendo daí certo igualitarismo moral e político. Impõe-se assim que o fim da sociedade consiste no bem do indivíduo, pois é ele o elemento de direito e razão da relação. Contrastivamente, na ideologia holista o que é dado por princípio é a hierarquia, uma vez que os indivíduos seriam logicamente posteriores ao todo social, existindo unicamente como hierarquizados a partir das relações que estabelecem dentro do conjunto do social. Neste caso, o elemento estruturante não é a igualdade universal das partes, mas a diferença diferencial para com o todo. Aqui, enquanto medida das coisas e das relações, o bem do todo é o fim da sociedade5. Estando desse modo delineada mais amplamente o que Dumont denomina de ideologia individualista ocidental, podemos relacioná-la aos princípios doutrinários estruturantes do SUS aqui discutidos. Percebemos então que o universalismo e o igualitarismo indicados pela legislação e direcionadores das políticas de saúde no país afinizam-se intimamente com o sistema de valores mais amplo identificado pelo autor. Isso se dá porque o igualitarismo e o universalismo tal como assumidos pelo SUS são concebíveis tão somente num contexto ideológico individualista. Anteriormente demonstramos que o SUS tem como horizonte o acesso universal e igualitário a todos os seus serviços por parte de todos os seus pacientes. Nesse sentido, a unidade de direito em questão é o indivíduo enquanto valor, tal como estudado por Dumont. É o indivíduo autônomo, senhor e pleno de seus direitos, além de igual para com os outros indivíduos, que se entende como beneficiário das ações em saúde oferecidas pelo SUS. Apenas numa sociedade em que a unidade básica é o indivíduo, e na qual os indivíduos supostamente encontram-se reunidos de maneira não-hierárquica, é que se pode pensar que todos possuirão (ou, mais corretamente, deverão possuir) direito a acesso universal e 5 Relevante é não olvidarmos, contudo, que o indivíduo é essencialmente um valor presente na ideologia individualista ocidental, um elemento ideológico num sistema de valores particular. Entre tal sistema e a forma concreta da experiência social existente no Ocidente não há correspondência imediata. A essa questão retornaremos na parte final do artigo. 9 igualitário a determinado serviço. No SUS espera-se que nenhum tipo de diferenciação social poderá fazer com que determinado indivíduo deixe de ter acesso a algum tipo de serviço de saúde, ou então que tenha acesso diferenciado a este mesmo serviço. O pressuposto que viabiliza tal visão é que os serviços do SUS existiriam (ou, podem existir) numa situação em que a hierarquia não seria considerada, onde importaria apenas o indivíduo ou, mais adequadamente, o corpo e sua condição corporal. Não obstante, é preciso irmos adiante em nossa discussão e percebermos que, no caso da operacionalização dos princípios doutrinários do universalismo e do igualitarismo no SUS, o indivíduo é tomado enquanto corpo. Neste caso particular, encontramos certo aspecto individualista relacionado ao corpo, numa articulação especial com certo aspecto holista relacionado à pessoa. Estamos assim diante de uma cisão cosmológica entre corpo e pessoa; cisão esta que deveremos compreender para completarmos o quadro que aqui se faz necessário do ponto de vista do entendimento dos limites do universalismo e do igualitarismo no SUS. A partilha cosmológica entre corpo e pessoa Se Dumont nos explicita a relatividade das formas de conceber a relação entre o indivíduo e o social, outros estudos antropológicos nos demonstram que, de maneira mais ampla, também os modos de caracterização da humanidade não são universalmente iguais. Sendo assim, na intenção de compreender como os indivíduos são figurados no Ocidente, a antropologia tem lidado com certa cisão cosmológica entre corpo e pessoa. Tal distinção não é compartilhada por todas as sociedades, tendo cada grupo social suas próprias formulações acerca da constituição ontológica da humanidade. Nesse sentido, no que se refere às nossas sociedades, percebemos analiticamente a separação cosmológica entre um corpo – relacionado a certa concepção de natureza – e uma pessoa – relativa ao lugar social do indivíduo. Ainda que uma grande multiplicidade de abordagens acerca desta temática possa ser encontrada na tradição das ciências sociais, podemos situar nos escritos de Marcel Mauss um primeiro movimento de criação desse campo de estudos em antropologia. Sob este prisma, especialmente seu texto, já clássico, “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’” nos é basilar. Em suas palavras, o objetivo deste trabalho seria: Trata-se de nada menos que de vos explicar como uma das categorias do espírito humano – uma dessas idéias que acreditamos inatas – lentamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de numerosas vicissitudes, de tal modo que ela é, 10 mesmo hoje, flutuante, delicada, preciosa, e passível de maior elaboração. É a idéia de “pessoa”, a idéia do “Eu”. Todos a consideram natural, bem definida no fundo da sua própria consciência, perfeitamente equipada no fundo da moral que dela se deduz. Trata-se de substituir essa visão ingênua de sua história e de seu atual valor por uma visão mais precisa. (1938: 369). Nele Mauss empreende certa reconstituição histórica dos princípios que no Ocidente dão fundamento à noção de indivíduo enquanto um valor específico, à noção de pessoa enquanto individualidade atomizada e carregada de valor moral e metafísico. Em sua análise o autor perpassa diversos contextos histórico-sociais, situando os elementos conceituais que, embora em cada contexto esteja referido a uma totalidade social particular, possibilitaram a transcendência histórica desta noção específica de “eu”. Mauss mostra que foi necessário um longo percurso para que surgisse a concepção da existência de um indivíduo indivisível e anterior à sua inserção no mundo, para que, da percepção de um elemento da constituição do mundo, a “pessoa” se transformasse em um “fato moral”, em um “sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável” (1938: 390-1). Sendo assim, a característica final desta idéia de “eu” é a consciência, sendo a “pessoa” caracterizada como elemento possuidor e definido pela capacidade de consciência própria e independente6. Nota-se, portanto, que a “pessoa” de que fala Mauss se afiniza intimamente com a noção de indivíduo que Dumont identifica no individualismo ocidental. Os termos se distinguem, mas o sentido da idéia permanece o mesmo. O que Mauss indicou e outros autores, tais como Dumont, desenvolveram é o argumento de que a noção de indivíduo enquanto ser indiviso dotado e centrado na consciência é característico da forma ocidental de conceber a individualidade humana, sendo assim um “valor” localizado. Nela o corpo perde importância em favor – e se separa – da consciência. Além disso, com ela o indivíduo se apresenta como unidade básica do – e anterior ao – social. A distinção principal entre os autores é que Dumont apresenta tal forma de concepção enquanto uma ideologia. O que especialmente nos interessa assinalar é que ambos os autores desnaturalizam, historicizam e sociologizam as formas de conceber a “pessoa”. Outros fizeram o mesmo para com experiências sociais das mais variadas, corroborando as 6 Em complemento às discussões apresentadas neste artigo, os argumentos presentes em seu texto “As técnicas do corpo” (1935) são importantes do ponto de vista da construção dos elementos analíticos nessa área de estudos. Nesse, Mauss demonstra que as formas de utilização do corpo são também socialmente localizadas. Além disso, explicita como a subjetividade individual é construída corporalmente – tanto quanto a intelecção, por exemplo. 11 teses de que a cisão corpo-pessoa é característica do Ocidente, e de que outras sociedades organizam tal problemática de modos distintos. Nesse campo, poderíamos arrolar os clássicos trabalhos de Levy-Bruhl (1927) e Leenhardt (1947). A meio caminho entre aquilo que consideramos “ocidental” ou não, há o trabalho de Vernant (2002) acerca dos gregos do período clássico. Já no campo da etnologia sul-americana, Viveiros de Castro (1986, 1996) e Descola (1993) são referências importantes para essa discussão. Estas e outras pesquisas poderiam ser citadas como demonstrações da variabilidade das formas de concepção e constituição da pessoa em contextos não-ocidentais. Entretanto, se desejássemos estender e aprofundar tais constatações, poderíamos nos atentar também para contextos ocidentais, onde variações da mesma ordem seriam identificadas. Neles igualmente percebemos mecanismos relativamente variados, noções que se diferenciam relativamente etc. Especialmente nos estudos que se dirigem às questões de engravidamento, concepção, constituição da vida etc. encontramos essas questões claramente colocadas. Neste caso, boas referências seriam os trabalhos de Dias Duarte (1986), Butler (1990), Chazan (2005), Luna (2007), e Machado (2008)7. Tomada em conjunto, essa bibliografia demonstra como em cada contexto social há um constante movimento de posicionamento valorativo entre a indivisibilidade do indivíduo e sua imersão numa totalidade, bem como entre a consciência e o corpo como definidores da indivisibilidade ou não da individualidade. Claro está que em nenhum deles há a ausência de uma noção de “corpo”, de “pessoa” ou de “individualidade”, variando como eles são alocados com relação aos outros e quais valores lhes são associados. Posto isso, o que é singular ao Ocidente é a diferenciação ideológica entre o indivíduo e sua posição social, entre os seres de agência consciente e o somatório deles. Noutros registros sociais existe sempre algo concebido como detentor de agência, variando então a caracterização da inserção deste elemento numa determinada totalidade. Onde há participação do indivíduo para com essa totalidade, a agência não é pensada como uma ação individual autônoma, tal como no Ocidente, mas como uma ação relacional constituída a partir de um feixe de relações mais amplo. No Ocidente, do ponto de vista lógico, e/ou ideológico, concebemos inicialmente que há um indivíduo (este limitado ao corpo), e em seguida que este indivíduo age de forma “externa”, independente, para com a totalidade (social ou não) na qual se insere. Essa nossa noção de pessoa como 7 Para uma análise bem acabada da história dos estudos antropológicos sobre a "construção social da pessoa", com também uma análise do campo dos estudos sobre experiências de saúde/doença no Brasil que fazem uso de tal perspectiva, ver Dias Duarte (2003). 12 indivíduo consciente e pré-social, detentora de direitos e igual a qualquer outra pessoa, participa do que Dumont chama de ideologia individualista ocidental. Contudo, embora no Ocidente esse indivíduo possa ser constituído diferentemente em contextos específicos, na maioria dos casos permanecem nele as características essenciais do individualismo. Todavia, na intenção de atender aos objetivos deste trabalho, decantaremos destas variações o que se nos apresenta como invariante: a concepção particular de pessoa como indivíduo dotado de autonomia, razão e direitos universais e igualitários. Sob este prisma, acompanhando Dumont, nos referiremos à pessoa como noção afim à de holismo, e relacionalmente oposta à de indivíduo e de individualismo. Embora a ideologia ocidental conceba o indivíduo como desvinculado de seu lugar social, procuraremos identificar o lugar da pessoa em nossa sociedade. Ao fazê-lo poderemos aprofundar e aprimorar nossa avaliação da construção legal e prática do universalismo e do igualitarismo no SUS. No item anterior explicitei que os princípios da universalidade e da igualdade no SUS se inserem numa ideologia individualista mais ampla. Agora pretendo sugerir que a cisão cosmológica entre corpo e pessoa, embora não seja explicitada pela legislação ou pelos projetos de ações em saúde do SUS, é necessária às suas operacionalizações. Entendo que, no caso do SUS, posta certa concepção de indivíduo, concretamente se lida, num certo sentido, por um lado com um “corpo exposto” e, por outro, com uma “pessoa suposta”. O que fica exposto no SUS, o que é constituído ideologicamente e viabilizado institucionalmente, é o indivíduo identificado com um corpo natural, enquanto o que não é tratado legalmente nem assumido nas ações práticas é a pessoa, a inserção do sujeito na organização social. O instrumento básico possibilitador de tal procedimento reside na comunhão da operacionalização dos ideais do SUS com certa concepção médica de corpo. A partir dela entende-se haver um corpo dado e constituído pela natureza, um corpo que existe independentemente do lugar social da pessoa que o “possui” e que, consequentemente, assim pode ser apreendido. Tal perspectiva, comumente designada como “fisicalismo”, ou como “paradigma mecanicista”, possui íntimas afinidades com certo positivismo, e em boa medida engendrou conceitualmente as políticas públicas de saúde ao longo do século XX (Queiroz, 1986). Mas é sobretudo Foucault (1972) quem nos esclarece o aparecimento da relação entre o conhecimento médico e a realidade dos pacientes que possibilita a sustentação de tal perspectiva. Em O Nascimento da Clínica ele analisa o surgimento da clínica, não enquanto a emergência de uma técnica ou a evolução de outra anterior, mas como o nascimento de um novo olhar, de uma nova relação entre os médicos e seus 13 objetos de conhecimento. Segundo o autor, ao final do processo de emergência deste novo campo discursivo o corpo se tornaria o foco privilegiado pela clínica – é ele que irá explicitar a verdade da doença, que tornará visível sua já anteriormente conhecida estrutura. Devedora desta relação de saber cunhada séculos antes, é estruturante da organização dos serviços do SUS, e possibilitadora da efetivação de seus princípios, a suposição de que o olhar médico é capaz de tomar um indivíduo como se composto apenas por um corpo e não por uma pessoa (também). Deste ponto de vista, o olhar médico garantiria a consecução dos direitos do indivíduo por meio da realidade natural dada pelo seu corpo. Independentemente dos lugares sociais dos pacientes, todos seriam tratados de maneira igualitária, pois se colocaria em questão unicamente seus corpos. Em acréscimo, presume-se que para além da atuação médica em sentido estrito, as inúmeras instâncias do SUS acompanhariam tal capacidade. A idéia é que os serviços de saúde lidariam apenas com indivíduos-corpos, e não com pessoas, ou seja, que na efetivação dos princípios do SUS não importaria a constituição da pessoa, o lugar social do paciente, mas tão somente sua individualidade, seus direitos plenos e iguais aos de qualquer outro indivíduo. As diferenças de tratamento seriam alocadas no plano da eqüidade, do tratamento diferenciado objetivando a produção da igualdade com vistas ao atendimento das necessidades corporais específicas. Não se imporia assim uma diferenciação por princípio, uma vez que o que seria dado por princípio seriam os indivíduos – iguais em direito e valor. A diferenciação seria prática, referente às variações regionais de saúde e às condições corporais particulares de cada paciente que procura o serviço de saúde. Em resumo, até aqui tentei descrever como o universalismo e o igualitarismo do SUS mantêm afinidades com a ideologia individualista ocidental, e que a operacionalização deles supõe a cisão cosmológica entre corpo e pessoa. Isto posto, com base na observação dos pressupostos destes princípios doutrinários, a seguir argumentarei que a efetivação deles encontra limites dados desde antemão, não constituindo apenas problemas de suas boas aplicações, mas sim dificuldades que derivam de suas próprias condições conceituais. A problemática do acesso As dimensões do acesso e da assistência constituem etapas centrais no que tange à prestação dos serviços de saúde no âmbito do SUS. Uma e outra são, a rigor, domínios indissociáveis, embora analiticamente possam ser concebidas como instâncias possuidoras de características próprias. Tendo tal distinção em mente, em vista dos 14 objetivos aqui definidos, nosso escopo de análise terá foco na problemática do acesso às instituições. Ela nos auxiliará a refletir sobre a efetivação dos princípios da universalidade e da igualdade na realidade das instituições de saúde do SUS. Atentando-nos a como se dá o acesso de pacientes às instituições públicas de saúde poderemos vislumbrar tais princípios em ação e efeito. No ano de 2007 pude aproximar-me da compreensão desta questão a partir de pesquisa que realizei com pacientes do Hospital de Base, localizado em Brasília. O Hospital de Base é a maior instituição de saúde do Distrito Federal, oferecendo inúmeros tipos de serviços e disponibilizando atendimentos primários, secundários e terciários. Em boa medida devido à sua complexidade e grande capacidade de atendimento, atrai pacientes de todo o Distrito Federal, mas também de várias regiões do país, especialmente centro-oeste, nordeste e norte. É essa diversidade de origens dos pacientes, aliada ao fato de que a maioria deles anteriormente passou por diversas outras instituições antes de chegarem ao Hospital de Base, que nos oferece uma relativa margem de generalização das suas experiências para com o conjunto dos pacientes do SUS. A pesquisa tinha como objetivo reconstituir itinerários terapêuticos de pacientes dos diferentes setores da instituição. Para tanto, fez-se uso de entrevistas semi-estruturadas, por meio das quais foi possível situar as experiências dos entrevistados numa linha temporal, entendendo-se que tal procedimento permite um melhor entendimento das mesmas. O pressuposto de tal perspectiva analítica é que os sentidos das ações ou eventos que compõem o itinerário terapêutico somente podem ser compreendidos se estiverem relacionados ao modo como o paciente os vivenciou quando de suas imediatas ocorrências. Por meio de tal estratégia pude então apreender a forma como os pacientes optam por procurar atendimento médico, a maneira como decidem se dirigir ao serviço público de saúde, além dos processos que advêm posteriormente a essa busca. Foi conclusivamente observado que a procura do serviço público de saúde por parte do paciente não encerra o processo de viabilização de seu tratamento. Sendo assim, posteriormente à procura de uma instituição de saúde segue o que denomino de busca por tratamento. Com esta expressão refiro-me à jornada trilhada pelo paciente e que envolve tentativas e estratégias para conseguir tratamento médico nas instituições de saúde. O que se impõe como questão é que, para conseguir tratamento médico nas instituições públicas, ao paciente não basta se dirigir a uma instituição, sendo preciso que se relacione com diversos processos centrados nos trâmites burocráticos que viabilizam seu tratamento. Mais além do que os passos previstos pelo sistema – tais como o 15 imperativo do diagnóstico para o avanço do tratamento, a necessidade de se ter uma receita médica para se conseguir um medicamento etc. –, está em jogo nesse contexto uma série de dinâmicas relativas às possibilidades dos pacientes se relacionarem com a organização dos serviços oferecidos8. Ao paciente do SUS não basta procurar o atendimento médico, é preciso buscar tratamento de maneira eficiente, acionando estratégias diversas que possibilitem que, num primeiro momento, o tratamento seja conseguido e, mais além, que ele se dê de maneira satisfatória. Conseguir bom tratamento, nesse sentido particular, não se refere apenas a conseguir tratamento com um bom médico, bons equipamentos, bons medicamentos etc. Além desses aspectos, é preciso ainda conseguir tratamento nos prazos indicados pelos médicos, não ser obrigado a vivenciar pequenas torturas (tais como dormir numa fila ao relento, deitar-se numa maca de metal sem estofamento etc.), não ser submetido a grandes deslocamentos geográficos devido a transferências entre instituições, obter respostas conclusivas por parte delas etc. Diante, por exemplo, do imperativo de se conseguir um diagnóstico, o paciente pode precisar se dirigir a mais de uma instituição para realizar exames, passar por mais de uma consulta, por consultas com mais de um médico, marcar retornos, aguardar uma oportunidade de atendimento numa lista ou numa fila etc. Ao longo deste percurso podem ocorrer desvios, paradas, retornos etc. Documentos são perdidos, prazos são reestabelecidos, exames perdem sua necessidade ou sua relevância etc. Nesse sentido, o paciente precisa contribuir para o melhor desenrolar do processo; para, por exemplo, fazer com que os médicos o analisem a partir de uma mesma perspectiva, com que os horários de suas consultas sejam compatíveis com sua disponibilidade etc. É fazer com que essas e outras coisas aconteçam que chamo de busca por tratamento. Para conseguir bom tratamento é preciso buscar tratamento de forma eficiente durante certo período de tempo – geralmente o tempo necessário ao tratamento. Desse modo, para se tratar não basta ao paciente se preocupar com as questões mais especificamente relacionadas ao seu problema de saúde e ao seu tratamento médico – ele precisa se relacionar com a dinâmica do sistema de saúde. Por exemplo, não basta ao paciente se ocupar em tomar seu medicamento no horário indicado pelo médico, é preciso viabilizar uma consulta médica, um diagnóstico, uma receita, um medicamento, um retorno, etc. Para que cada uma destas etapas tenha 8 Sendo assim, é interessante notarmos que, ao longo de sua busca por tratamento, o paciente não tende a aprimorar sua compreensão das questões mais estritamente relacionadas à sua perturbação de saúde, mas sim daquelas que envolvem o funcionamento das instituições. 16 sucesso ele precisará articular com êxito suas necessidades, possibilidades e interesses às necessidades, possibilidades e interesses das dinâmicas institucionais. No que aqui nos interessa mais de perto, é especialmente importante termos em mente que, de acordo com os pacientes entrevistados, para se conseguir buscar tratamento de forma eficiente a estratégia aparentemente mais eficaz é o acionamento de redes pessoais de relacionamento que alcancem a burocracia das instituições. Trata-se de tornar viável, por meio de relacionamentos pessoais, um encadeamento de elementos tais como favores, reconhecimentos, obrigações, conhecimentos etc. que façam com que o objetivo de um paciente encontre ressonância e seja recebido e atendido por parte da instituição. Entretanto, não há dúvida de que as jornadas das buscas por tratamento de um modo geral, assim como essas redes de relacionamentos de modo particular, são possíveis apenas porque nelas operam pessoas, ou seja, sujeitos socialmente localizados, e não indivíduos enquanto sujeitos dotados de direitos universais e igualitários. Outras pesquisas dedicadas ao estudo da realidade das instituições públicas de saúde apontaram processos semelhantes. Dentre estas, certamente uma das mais interessantes é a de Machado. Em artigo de 2003 a autora analisa o contexto do funcionamento de um pronto-socorro do Distrito Federal. Oferece então uma descrição dos relacionamentos estabelecidos entre pacientes, funcionários diversos e profissionais da medicina, bem como de suas diferentes visões acerca dos comportamentos alheios e das expectativas relacionadas aos serviços. No bojo dos desencontros entre as expectativas e ações destes personagens, a autora, ancorada na discussão maussiana sobre a dádiva, identifica um processo que denomina de “circulação da reciprocidade de formas de prestígio”, e que poderia se dar tanto em sua positividade quanto em sua negatividade9. 9 Enuncia Machado: "A invocação que aqui faço do modelo da dádiva como um dos princípios de organização social, apontado de forma brilhante por Mauss (1974), é clara. A novidade que trago é a de que este princípio pode se realizar tanto na sua positividade quanto na sua negatividade, onde se realiza através das formas de conflito exatamente estruturadas a partir do modelo positivo de circulação de dádivas. Parece-me que é exatamente a idéia da dádiva maussiana que propicia pensar com propriedade o compartilhar de um modelo de interação social de dádivas recíprocas, quer ela se dê positiva ou negativamente. Este modelo permite dar conta tanto da conflitualidade, como do compartilhamento de expectativas, diferentemente do modelo de uma relação médico-paciente pensada exclusivamente em termos de poder unilateral de imposição disciplinar, inspirada em Foucault (1992), muito embora, seus componentes autoritários aí estejam presentes, visíveis nas formas acima enunciadas de descrédito em relação ao saber dos usuários. Mas contra estas falas, muitos usuários insistem nos seus saberes e direitos. O modelo maussiano da reciprocidade permite pensar, ao mesmo tempo, a conflitualidade (ver, neste sentido Boileau, 1995) e a circulação positiva de expectativas, e, também, simultaneamente o exercício de regras de prestígio e de direitos" (2003: 7). 17 Apropriado nestes termos, o modelo maussiano permitiria, de acordo com Machado, pensar a condição hierárquica existente entre médicos e pacientes sem reduzila a um quadro tão somente de autoritarismo. Nesse sentido, “a hierarquia de prestígio entre médicos e pacientes que se centra nas diferenças de saberes da medicina oficial, pode, por sua vez, sustentar todo um desdobramento de valores hierárquicos em nome das diferenças de saberes entre classes, gêneros e raças/cores/etnias” (2003: 7). Machado aponta então para a transmutação das diferenças socialmente percebidas entre médicos e pacientes em diferenças de saber, justificando deste modo a distância entre eles e, consequentemente, legitimando a atuação médica em desconsideração aos conhecimentos dos pacientes. Ao fazê-lo explicita a importância da relação hierárquica para além da relação médico-paciente, situando a questão da hierarquia num contexto mais abrangente e que envolve a dinâmica institucional. Haveria assim certo confronto entre uma perspectiva que valoriza determinados saberes e outra que concederia maior valor à instância dos direitos aos serviços de saúde. Conquanto não explicitamente, a autora também demonstra, através de outro registro, o choque entre prismas valorativos diferentes. Na situação do pronto-socorro conviveriam, por um lado, uma centralidade do individualismo por parte dos médicos que focam suas atenções nos corpos dos pacientes, enquanto este mesmo individualismo se efetivaria na demanda de direitos por parte dos pacientes. Já por outro lado apareceria certo holismo tanto na legitimação da condição hierarquicamente superior do médico por meio da desqualificação que empreende – ancorado na sua condição social – da perspectiva do paciente, quanto seria certo holismo que possibilitaria toda a “circulação da reciprocidade de formas de prestígio”. Ademais, tal como afirma a autora, Se o imaginário social discriminativo afeta pouco a formulação discursiva das políticas públicas brasileiras, propondo continuamente inovações, afeta com muito mais força as práticas cotidianas institucionais que se organizaram e se constituíram num contexto social altamente hierarquizado. No Brasil, não são poucas são as inovações nas concepções dos modelos institucionais, mas a grande dificuldade parece estar enraizada nas práticas cotidianas. (2003: 18). Se tal assertiva vem corroborar nossas discussões anteriores em torno dos itinerários terapêuticos de pacientes do Hospital de Base, nos vemos mais uma vez diante do problema do intercâmbio entre formas de conceber a relação entre os indivíduos e a ordem social. Alternância entre individualismo e holismo que, tal como já deve estar claro, 18 a todo momento gera conflitos no cotidiano das instituições públicas de saúde, mas que também impõe limites à efetivação dos princípios doutrinários do SUS aqui debatidos. No âmago desta problemática encontra-se o fato de que, ao acessarem as instituições, os pacientes não o fazem tão somente na condição de indivíduos – tal como seria necessário à efetivação do universalismo e do igualitarismo –, mas especialmente na de pessoas. O que as pesquisas realizadas nos serviços do SUS observam é que neles não existe uma predominância absoluta do indivíduo enquanto valor estruturante, mas sim uma oscilação estruturada entre os valores do indivíduo e da pessoa de acordo com situações particulares concretas. Desse modo, o aparecimento da pessoa nesse contexto não representa uma subversão espúria ao sistema, mas a efetivação num plano diferencial de um aspecto do sistema socialmente estruturado que regula o funcionamento prático das instituições públicas de saúde. Não há, portanto, disputa ou incompatibilidade entre os valores individualistas e holistas, mas articulações e atualizações relacionais. Em síntese, enquanto o plano legal-doutrinário do SUS envolve apenas valores individualistas, o funcionamento das instituições concretas se vale de valores tanto individualistas quanto holistas. Acionar sua condição de pessoa não se trata, para o paciente, de um artifício ardiloso para a consecução de um benefício escuso, mas da capacidade de se relacionar de forma venturosa com a dinâmica das instituições. Nesse sentido, o uso da condição de pessoa não se faz uma ação secreta por parte dos pacientes, nem tampouco é rara no cotidiano das instituições. A pessoa é tão parte deste sistema socialmente estabelecido quanto o indivíduo o é da legislação. Sendo assim – deixando em suspenso qualquer avaliação moral acerca do modo como deve se constituir a relação ideológica entre indivíduo e totalidade social –, entendo que o holismo das relações mantidas pelos atores nas instituições públicas de saúde não vêm em acréscimo ao individualismo da lei. Ao contrário, creio que o singular individualismo da legislação é que fica aquém do sistema socialmente constituído no qual os princípios doutrinários do SUS são implementados. Limites do universalismo e do igualitarismo Poder-se-ia questionar se tal cenário não seria próprio de uma realidade social “imperfeitamente” ou “incompletamente” Ocidental ou moderna. Todavia, o próprio Dumont alertou que, embora de um modo geral o Ocidente se caracterize pela ideologia 19 individualista, a rigor em nenhum lugar dele o individualismo se efetivou plenamente10. Sob este prisma, em verdade não existiriam sociedades essencialmente individualistas, mas tão somente sociedades que teriam no individualismo seu eixo ideológico-valorativo principal. No caso da sociedade brasileira, quem melhor explorou esse tema foi DaMatta, sobretudo em seu famoso estudo sobre o “Você sabe com quem está falando?” (1978). Tratando tal forma de relacionamento enquanto um rito de autoridade, o autor demonstrou como ela representa um mecanismo de separação social que nos permite compreender a maneira como indivíduo e pessoa operam no sistema social brasileiro. Partindo da distinção elaborada por Dumont, à qual nos referimos anteriormente, onde se encontram três acepções para a idéia de “indivíduo” (como entidade empírica, como elemento no qual a parte é mais importante que o todo e como parte que se subjuga ao todo), DaMatta reafirma que todas estas noções estão presentes em qualquer sociedade, mas que em cada contexto uma destas acepções se torna central e mais relevante para o modo de operação do sistema social. Mais uma vez, a tese é que quando o todo predomina sobre a parte estaríamos no domínio da pessoa, já quando a parte predomina sobre todo estaríamos no domínio do indivíduo. Segundo o autor, se nos Estados Unidos haveria um privilégio do indivíduo, com conseqüente exclusão da pessoa, enquanto na Índia haveria um privilégio da pessoa, com conseqüente exclusão do indivíduo, no Brasil encontraríamos um código duplo no qual indivíduo e pessoa seriam acionados em situações diferentes, conjugando assim um sistema complexo. Em nenhuma destas sociedades indivíduo e pessoa desapareceriam por completo, estando em questão, por conseguinte, o modo de balanceamento dessas duas formas de localização do sujeito na realidade social. Centralidade da pessoa na Índia, centralidade do indivíduo nos Estados Unidos, dupla centralidade de pessoa e indivíduo no Brasil. 10 De acordo com Dumont, “para as sociedades modernas [...] o Ser humano é o homem “elementar”, indivisível, sob sua forma de ser biológico e ao mesmo tempo de sujeito pensante. Cada homem particular encarna, num certo sentido, a humanidade inteira. Ele é a medida de todas as coisas (num sentido pleno todo novo). O reino dos fins coincide com os fins legítimos de cada homem, e assim os valores se invertem. O que se chama ainda de “sociedade” é o meio, a vida de cada um é o fim. Ontologicamente a sociedade não existe mais, ela é apenas um dado irredutível ao qual se pede em nada contrariar as exigências de liberdade e igualdade. Naturalmente o que precede é uma descrição dos valores, uma visão do espírito. Quanto ao que se passa de fato nessa sociedade, a observação com freqüência nos remete à sociedade do primeiro tipo [tradicionais]. Uma sociedade tal como foi concebida pelo individualismo nunca existiu em parte alguma, pela razão a que referimos, a saber, de que o indivíduo vive de idéias sociais. Tira-se daí esta conclusão importante: o indivíduo do tipo moderno não se opõe à sociedade do tipo hierárquico como a parte ao todo (e isso é verdadeiro para o tipo moderno, em que não existe propriamente nada a se falar de um todo conceptual), mas como seu igual ou seu homólogo, um e outro correspondendo à essência do homem” (1992: 57-8). 20 Haveria assim no Brasil um mecanismo dual formado pela conjugação de um sistema legal moderno e individualista com outro de relações estruturais holistas. Por um lado teríamos o universal e o cordial, enquanto, por outro, teríamos o particular e o hierarquizado. Plano da lei anunciada, por um lado, plano da prática silenciada, por outro. Para DaMatta, o ponto a ser observado é que, antes de competirem e conflitarem, os dois sistemas se auto-alimentariam. Atuando sinergicamente, a junção dos dois sistemas permitiria a atualização diferencial de um dispositivo que pode, em determinadas situações, igualar os diferentes e, em outros, diferenciar os iguais. Na prática social brasileira poder-se-ia então, por meio da classificação hierarquizante fundada na noção holista de pessoa, criar modos de diferenciação que não aqueles assentados estritamente em planos igualitaristas, tais como o econômico ou o legal. Daí derivaria a dificuldade de se situar socialmente um sujeito qualquer, uma vez que ele poderia ser alocado diferentemente dependendo do sistema acionado. Todos poderiam manipular o acionamento destes vários sistemas classificatórios, porém aqueles passíveis de utilizar um número maior de eixos classificatórios seriam inevitavelmente beneficiados. Este seria o terreno do “Você sabe com quem está falando?”, um artifício relacionado à atualização de sistemas de posicionamento da pessoa na realidade social em contextos tais como o econômico, o estatal, o legal etc., enfim, naqueles onde a princípio apenas o indivíduo se faria presente. Na esteira dessa conexão entre holismo e individualismo, haveria no Brasil um convívio dialético entre duas éticas, a burocrática e a pessoal, uma oscilação entre cumprir a lei impessoal e respeitar a pessoa singular. Mais propriamente no âmbito das instituições estatais, a problemática recorrente seria a transformação de um espaço do indivíduo noutro da pessoa, quer isso passe pela aplicação rígida da lei, quer pela sua subversão. Apenas enquanto indivíduos os sujeitos se submetem aos artifícios impessoais e igualitários do Estado. Enquanto pessoas os sujeitos não podem ser tratados de forma indiferente, como se fossem iguais entre si. Estabelece-se assim um jogo circular entre nossa modernidade e nossa moralidade que, por sua vez, permite um reforço do nosso sistema hierárquico por meio da manutenção e reforço do eixo ideológico da igualdade. No Brasil, assim sendo, a redução da pessoa ao indivíduo em determinados espaços – tais como os da lei, do Estado ou das leis econômicas – seria prerrogativa de somente alguns. Esses são tratados como “massa”, como “povo”, são reduzidos à igualdade impessoal e, portanto, desvinculados de seus lugares sociais. É essa impessoalização relacional que permitiria sua exploração. Por conseguinte, a 21 manutenção do individualismo possibilitaria o reforço da situação holista da realidade social, de sua condição hierarquizada. Não pretendo aqui esgotar a análise destes mecanismos de transformação do indivíduo em pessoa, nem tampouco de suas conseqüências ou funcionalidades do ponto de vista social. Não obstante, almejo aproveitar do trabalho de DaMatta sua observação de que existe no Brasil um duplo código relacionado à atualização dos valores da igualdade e da hierarquia em contextos diferentes. O autor demonstra como não há entre nós um predomínio pleno nem do individualismo, nem do holismo, o que imediatamente nos aponta para as dificuldades que derivam da intenção de se estabelecer seus ideais associados. É nesse sentido que, ao se dirigir a uma instituição pública de saúde o paciente inicialmente se depara com uma situação na qual é colocado na condição de indivíduo. Todo o seu esforço posterior será então o de se reconstituir enquanto pessoa. Para isso utilizará de estratégias diversas, não para subverter o sistema, mas para fazer com que ele reconheça seu lugar social específico, seu valor diferencial. Sendo assim, tais ações e eventos não correspondem simplesmente a corrupções dos modelos de funcionamento institucionais, uma vez que o próprio terreno social no qual as instituições tomam lugar é constituído desde uma perspectiva também holista. Do mesmo modo é possível pensarmos que a própria concepção do nosso sistema de saúde contém instâncias às quais melhor se adaptam as pessoas do que os indivíduos. Haja vista que, para funcionar totalmente de acordo com os princípios da igualdade e da universalidade, o sistema público de saúde precisaria ser capaz de abarcar todos os processos das buscas por tratamento. Contudo, mesmo no plano conceitual o sistema nem sempre prevê, por exemplo, como se dará o trânsito de um paciente entre instituições – muito menos como e quando ele deverá procurá-las. Num mundo social predominantemente composto por pessoas, e não por indivíduos, nestes espaços abertos pelo sistema institucional o que irá vigorar será o holismo e não o individualismo universal e igualitário. Nessa sobreposição de ideais, expectativas e, sobretudo, possibilidades de ação é que se encontram as buscas por tratamento. O paciente que busca o sistema público de saúde tem de, a todo momento, lidar tanto com o registro da pessoa quanto do indivíduo. E quanto melhor souber aciona-los diferencialmente a depender do caso, maior sucesso alcançará em sua busca. Isso estabelecido, o que decorre é que em suas plenitudes o igualitarismo e o universalismo, na prática, não existem no SUS. Os pacientes não são tratados igualmente nas instituições de saúde, nem tampouco têm acesso universal a 22 todos os serviços. Em torno disso, o que precisa ser observado é que esta não é uma questão que passa apenas pela insuficiência de recursos, pela precariedade das instalações etc. Os limites do igualitarismo e do universalismo derivam também da inaplicabilidade da suposta possibilidade de se ter um corpo sem uma pessoa. Da impossibilidade de que esse corpo corresponda a um indivíduo, e que apenas os seus direitos individuais iguais e universais encontrem lugar nas instituições. O fato é que constituições diferenciadas das pessoas – quer sejam de gênero, classe, raça etc. – ressoam fortemente nas possibilidades de acesso dos pacientes ao SUS. Por outro lado, na prática da atenção e do acesso à saúde é difícil que os serviços de saúde recebam apenas indivíduos-corpos, mas é bastante provável que precisem lidar com pessoascorpos. Para compreendermos essa realidade não basta apontarmos sua inadequação frente a certos ideais. Tampouco é frutífero apenas medirmos a distância entre os princípios do SUS e seus contextos concretos. Universalismo, igualitarismo e individualismo são valores tanto quanto o são hierarquia e holismo. É imperativo percebelos enquanto tal, para então avaliarmos como se atualizam em cada agenciamento social. Não obstante, para além dos problemas econômicos, políticos, organizacionais etc. que envolvem (e/ou impedem) a efetivação dos princípios do universalismo e do igualitarismo, há que se considerar seus próprios limites ideológicos. É imperativo reconhecer-se que o igualitarismo e o universalismo só são possíveis no âmbito de uma ideologia individualista de matriz ocidental. Matriz que vem sendo questionada, ainda que não seja colocada nestes termos, desde há muito, dentro do campo da saúde pública e fora dele. Isso é percebido especialmente no deslocamento do privilégio da noção de igualdade para outras, especialmente para a de eqüidade, mas também de diversidade etc. A igualdade de – e entre – todos já não encontra consenso – se é que porventura já tenha encontrado. A diferença enquanto valor vem cada vez mais ganhando força e questionando o individualismo e o igualitarismo. Ademais, a redução dos sujeitos aos corpos – procedimento que deriva imediatamente da operacionalização do igualitarismo – tem implicações negativas variadas, que do mesmo modo impõem limites ao SUS. Por outro lado, há também um limite – associado ao primeiro, mas também distinto – da aplicação do modelo, e não da sua “boa” ou “plena” aplicação. Trata-se da incapacidade do sistema de ocupar todos os aspectos (dentro e fora das instituições) que envolvem o acesso dos pacientes aos serviços de saúde. O SUS não pode olvidar o fato de que se insere num mundo social que opera tanto com o registro do indivíduo quanto da pessoa, e que, não 23 sendo capaz de eliminar todas as dinâmicas da pessoa na sua efetivação, desde o princípio sua operacionalização se faz mediada por estes dois registros. Bibliografia citada: BRASIL. 1988. Constituição Federal. Título VIII – Da ordem social; Capítulo II – Seção II, Da Saúde – Artigo 196. _______________. 1990. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências. _______________. 1990. Lei n° 8.142, de 28 de Dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. _______________. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. 2000. 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