Reconstrução facial nos pacientes adultos com síndrome

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Raposo-do-Amaral CE et al.
ARTIGO ORIGINAL
Reconstrução facial nos pacientes adultos com
síndrome de Treacher-Collins Franceschetti
Facial reconstruction in adult Treacher-Collins Franceschetti syndrome
Cassio Eduardo Raposo-do-Amaral1, Cesar Augusto Raposo-do-Amaral2, Celso Luiz Buzzo3
RESUMO
SUMMARY
Introdução: A síndrome de Treacher-Collins Franceschetti (TCF) é descrita como a confluência bilateral das
fissuras raras de face número 6, 7 e 8 de acordo com a
classificação de Tessier. Método: Nove pacientes adultos
com diagnóstico de síndrome TCF foram submetidos à reconstrução facial, no período de janeiro de 2007 a junho
de 2009, no Hospital SOBRAPAR. Todos os pacientes foram
submetidos a enxerto ósseo do crânio da região parietal
para a região orbitária e zigomática. Foi realizado o avanço
horizontal do mento em todos os pacientes. Dois pacientes
foram submetidos à distração osteogênica do ramo vertical
da mandíbula. Resultados: Os pacientes submetidos à
distração osteogênica do ramo mandibular (n=2) melhoraram significativamente o padrão respiratório noturno.
Em um paciente com hipoplasia grave da região maxilar,
o enxerto ósseo da face teve que ser repetido. A média de
avanço horizontal do mento foi de 10 mm. Conclusões:
A reconstrução facial dos pacientes com diagnóstico de
síndrome TCF é complexa e desafiadora. Envolve múltiplos
estágios, sendo que o principal deles nos pacientes adultos é
a enxertia para a região orbitária e zigomática. O adequado
planejamento pré-operatório é essencial para a completa
reabilitação dos pacientes.
Introduction: Treacher Collins Franceschetti (TCF)
syndrome is described as bilateral confluent rare facial cleft
numbered 6, 7, and 8, using Tessier classification system.
Methods: Nine adult TCF syndrome patients underwent
facial reconstruction, from January 2007 to June 2009, at
SOBRAPAR Hospital. All patients have undergone to full thickness bone graft placed in the orbit and zygoma. Either sliding
or interpositioning genioplasty was performed. Mandibular
distraction osteogenesis was performed in 2 patients. Results: The 2 patients who underwent distraction osteogenesis
of the mandibular ramus had had their overnight breathing
and snoring improved. Malar bone graft was repeated in
one patient with severe maxillary hipoplasia. Average chin
advancement was 10 mm. Conclusions: Facial reconstruction in patients with TCF is complex and challenging.
Adult patients with TCF syndrome require multiples surgical
procedures, including bone graft to the orbit and zygomatic
regions. The preoperative planning is critical for complete
rehabilitation of patients with TCF.
Descritores: Mandíbula/anormalidades. Avanço mandibular. Disostose mandibulofacial/cirurgia. Osteogênese
por distração. Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos.
Descriptors: Mandible/abnormalities. Mandibular advancement. Mandibulofacial dysostosis/surgery. Osteogenesis, distraction. Reconstructive surgical procedures/methods.
1. Médico cirurgião plástico; Preceptor dos residentes; Vice-presidente do
Hospital SOBRAPAR.
2. Médico residente do Hospital SOBRAPAR.
3. Médico cirurgião plástico; Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica Crâniofacial do Hospital SOBRAPAR.
Correspondência: Cassio E. Raposo-do-Amaral.
Rua Alameda das Palmeiras, 25 – Bairro Gramado – Campinas, SP, Brasil
– CEP 13094-776.
E-mail: [email protected]
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Reconstrução facial nos pacientes adultos com síndrome de Treacher-Collins Franceschetti
A cirurgia iniciou-se com a incisão coronal e descolamento
subgaleal do retalho de couro cabeludo. Foi descolado todo o cone
orbitário e arco zigomático (ou seu resquício), com cuidado para
não lesar a periórbita. Foi demarcada com azul de metileno a área
da craniotomia a ser realizada, bem como as regiões da calvária
a serem enxertadas nas órbitas, arco zigomático e zigoma. Foi
realizada ampla craniotomia na região parietal e o osso foi bipartido, utilizando-se serra oscilante sob constante irrigação, com
objetivo de evitar a morte celular. Após a divisão do osso, a tábua
externa foi fixada na região de origem com fio de aço número 0.
A tábua interna foi dividida em 4 porções e fixadas nas regiões
maxilo-zigomática, têmporo-zigomática e fronto-zigomática e no
arco zigomático com parafusos de titânio.
Os retalhos cutâneos da pálpebra superior para inferior com
pedículo lateral proporcionaram amplo acesso para a fixação
óssea. Adicionalmente, o retalho da pálpebra superior “expandiu”
o grande déficit de tecidos moles do terço médio da face. Foi
realizada cantopexia lateral em todos os pacientes. Os retalhos
cutâneos foram suturados, bem como o couro cabeludo (Figura 1).
Genioplastia: Foi realizada osteotomia horizontal do mento
em todos os pacientes. Em 3 pacientes, foi utilizado enxerto ósseo
do crânio para interposição do retalho ósseo do mento avançado
INTRODUÇÃO
A síndrome de Treacher Collins Franceschetti (TCF) é uma
malformação craniofacial congênita derivada do primeiro e
segundo arco braquial e possui herança autossômica dominante1-3.
A doença apresenta um grande espectro clínico, sendo que os
pacientes graves apresentam ausência de osso na região zigomático-orbitária, retrognatia com oclusão classe II e/ou mordida
aberta anterior consequente à rotação da maxila no sentido antihorário. Adicionalmente, os pacientes com TCF apresentam grande
déficit de tecidos moles em terço médio da face.
Paul Tessier concluiu que a síndrome de TCF consiste na
associação das fissuras nas regiões maxilo-zigomática, têmporozigomática e fronto-zigomática. A ausência do osso zigomático é
a principal característica clínica da síndrome. A fissura 6 explica o
coloboma da pálpebra inferior. Os cílios da região do terço lateral
da pálpebra inferior estão ausentes. Um terço dos pacientes não
possui forame infra-orbitário. A fissura 7 leva à ausência do arco
zigomático e à hipoplasia e fusão do músculo masseter e temporal,
ao prolongamento da linha capilar na região malar e à hipoplasia
da mandíbula. A fissura 8 ocasiona ausência do rebordo orbitário4.
A ausência do osso zigomático leva à disposição alterada do
ligamento palpebral lateral e, como consequência, à característica antimongoliana da fissura palpebral. A microtia pode estar
presente nos casos graves, bem como a baixa implantação de
cabelo, tornando a reconstrução auricular complexa e desafiadora.
Os pacientes portadores de TCF podem apresentar apnéia
noturna em decorrência do retrognatismo importante2,5. A distração
vertical da mandíbula aumenta significativamente o espaço da via
aérea posterior e melhora o padrão respiratório noturno. A cirurgia
ortognática associada ao avanço horizontal do mento, após o
término do crescimento facial, também proporciona resultados
satisfatórios. O tratamento do paciente com TCF na fase adulta
envolve enxertia óssea da região craniana ou da região costal, para
reconstrução da região zigomática e orbital. Retalhos cutâneos da
pálpebra superior para inferior são utilizados com frequência. O
reposicionamento do ligamento cantal lateral se faz necessário para
a excelência do resultado estético final. A rinoplastia, na maioria
das vezes, está indicada para esses pacientes.
O objetivo do presente trabalho foi descrever as estratégias
cirúrgicas para o tratamento dos pacientes com diagnóstico de
síndrome Treacher Collins Franceschetti operados na fase adulta.
Figura 1 – A sequência de fotografias demonstra a marcação
com azul de metileno da região doadora dos enxertos ósseos do
crânio (A); o início da bipartição do osso craniano (B); o osso
completamente bipartido
(tábua externa e interna) (C).
A
MÉTODO
Nove pacientes com diagnóstico de Síndrome de TCF foram
submetidos à reconstrução facial com enxertos ósseos do crânio
da região parietal, no período de janeiro de 2007 a junho de 2009,
no hospital SOBRAPAR. Todos os pacientes apresentavam idade
entre 14 e 30 anos. O tempo médio de cirurgia foi de 5 horas. Os
pacientes receberam em média 1,5 unidades de concentrado de
hemácias.
B
Procedimento cirúrgico
O procedimento anestésico nos pacientes com TCF também é
um desafio. A intubação orotraqueal foi dificultada pela pequena
distância entre o mento e o pescoço e, principalmente, pela posição
extremamente anterior das vias aéreas. A intubação orotraqueal
foi realizada com fibroscopia em todos os pacientes6.
C
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e do segmento proximal. O enxerto ósseo proporcionou estabilidade ao avanço e também aumento vertical da face, tendo em
vista que estes pacientes apresentam a face curta como possível
característica clínica (Figura 2).
Distração osteogênica da mandíbula: O alongamento ósseo
gradual foi realizado com vetor vertical na região do ramo com a
razão de 1 mm por dia (n=2). As osteotomias realizadas foram a
sagital bilateral modificada, sendo esta um pouco mais curta do
que a tradicionalmente descrita por Obwegeser.
Cirurgia ortognática: A osteotomia sagital bilateral da mandíbula foi realizada em 2 pacientes na fase adulta para a correção
da mordida aberta anterior. Oito dos 9 pacientes operados foram
(ou estão sendo) submetidos a tratamento ortodôntico em nosso
Serviço.
Enxertia de gordura na face: A enxertia de gordura da região
abdominal para a face foi realizada em tempo cirúrgico separado
em 3 pacientes. A gordura livre foi incluída na região subcutânea
zigomática. O fator limitante ao enxerto de gordura na face foi o
baixo peso dos pacientes e a indisponibilidade de gordura corpórea.
Complicações
Um paciente apresentou absorção parcial dos enxertos ósseos
da região zigomático-orbital e o procedimento foi repetido 1 ano
e 6 meses após a primeira intervenção.
Todos pacientes foram submetidos a avanço horizontal do
mento. A média de avanço horizontal foi de 10 mm. A fixação do
mento foi realizada com uma placa de titânio em “L”. Não houve
recidiva da posição do mento no seguimento pós-operatório. A
tração horizontal do mento tornou o ângulo mento-pescoço mais
obtuso, facilitando a intubação orotraqueal para os procedimentos
anestésicos subsequentes (como exemplo: a enxertia de gordura
na face).
Na região doadora dos enxertos ósseos (parietal do crânio) não
houve depressão óssea. Nenhum paciente queixou-se de déficit de
sensibilidade em região de couro cabeludo. Em 2 pacientes foram
realizadas incisões em zig-zag no couro cabeludo. Nos demais, as
incisões foram retilíneas (n=7). Não foi observada diferença entre
o processo cicatricial das incisões retilíneas quando comparado
às incisões em zig-zag. Todos os pacientes permaneceram 1 dia
em unidade de terapia intensiva em decorrência craniotomia. O
volume ósseo enxertado não foi mensurado devido à falta de
instrumentos objetivos para quantificá-lo (Figuras 3 e 4).
Figura 3 – Fotografia lateral pré-operatória do paciente com
diagnóstico de síndrome de Treacher-Collins Franceschetti (A).
Fotografia lateral pós-operatória do mesmo paciente após a
cirurgia de reconstrução facial e avanço horizontal do mento (B).
RESULTADOS
Os pacientes submetidos à distração osteogênica do ramo
mandibular melhoraram significativamente o padrão respiratório e
os roncos noturnos. Em 1 paciente com hipoplasia grave da região
maxilar, o enxerto ósseo teve que ser repetido.
A
B
Figura 2 – Fotografia intra-operatória demonstrando o avanço
horizontal do mento e fixação com placa em “L” (A). Nota-se
a interposição de enxertos ósseos do crânio para garantir a
estabilidade óssea e o aumento
vertical da face (B).
A
Figura 4 – Fotografia frontal pré-operatória do paciente com
diagnóstico de síndrome de Treacher-Collins Franceschetti (A).
Fotografia frontal pós-operatória do mesmo paciente após a
cirurgia de reconstrução facial e avanço horizontal do mento (B).
B
A
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B
Reconstrução facial nos pacientes adultos com síndrome de Treacher-Collins Franceschetti
DISCUSSÃO
Figura 5 – A síndrome de Treacher-Collins Franceschetti
consiste na associação das fissuras nas regiões maxilozigomática, têmporo-zigomática e fronto-zigomática,
ocasionando ausência do osso zigomático, principal
característica clínica da síndrome.
A síndrome de Treacher Collins foi originalmente descrita, em
1846, pelo oftalmologista Edward Treacher Collins. Franceschetti
et al. utilizaram o termo disostose mandíbulo-facial em 19447-10.
Paul Tessier descreveu as fissuras raras da face em 1976, sendo a
síndrome de TCF a combinação das fissuras 6, 7 e 84 (Figura 5).
O tratamento da síndrome de Treacher Collins Franceschetti
é longo e exige abordagem multidisciplinar. A distração osteogênica da mandíbula pode evitar a traqueostomia nos pacientes
com retrognatia grave e dificuldade respiratória11. O alongamento
gradual vertical do ramo da mandíbula foi indicado para os
pacientes com mordida aberta anterior12. O processo de distração
foi acompanhado pelo ortodontista que simultaneamente tracionou
com elásticos o corpo mandibular no sentido anti-horário. Houve
durante o processo de distração 2 vetores distintos; um vertical
e outro oblíquo superior, proporcionando rotação anti-horária da
mandíbula. A oclusão classe I final obtida nos nossos pacientes
não teria sido conseguida sem o trabalho conjunto dos cirurgiões
plásticos e ortodontistas.
A região parietal do crânio é uma excelente área doadora de
enxertos, uma vez que possibilita a divisão do osso, devido a sua
espessura de 4 a 5 mm. Utilizamos a região interna da tábua óssea
como doadora. A tábua externa permaneceu na região doadora sem
causar nenhum defeito ou depressão. A tábua interna foi enxertada
nas regiões orbitárias e zigomáticas e fixada com parafusos de
titânio ao osso pré-existente.
Os retalhos locais da pálpebra superior para a pálpebra inferior (Fricke) foram muito úteis e resolveram parcialmente a falta
de tecidos moles do terço médio da face, característica destes
pacientes. O retalho TPF (retalho axial da fáscia temporal) é
normalmente muito utilizado para reconstrução de orelha em
casos secundários ou naqueles em que a implantação de cabelo
é muito baixa, portanto, antes de realizar a incisão coronal para a
reconstrução facial nos pacientes com TCF, realizamos um exame
com Doppler “de caneta” para a visualização da artéria temporal
superficial, pedículo da fáscia temporal. A lesão acidental da
artéria durante a incisão coronal inviabiliza a utilização desse
retalho axial.
O avanço horizontal do mento é um procedimento muito
importante nos pacientes com TCF, uma vez que este retalho
ósseo vascularizado aumenta o ângulo entre o mento e o pescoço,
melhorando o acúmulo de gordura nesta região, como também a
respiração noturna. A genioplastia pode ser realizada com interposição de osso da calvária, oferecendo grande estabilidade ao
avanço horizontal, que pode eventualmente ser repetido após 1 ano,
com intuito de obter-se projeção adicional13. A enxertia de gordura
livre da face oferece grande benefício estético a estes pacientes,
além de expandir parcialmente a falta de tecidos moles na região
do terço médio da face.
Os pacientes com TCF necessitam inúmeras cirurgias até a
fase adulta para a sua completa reabilitação. O planejamento préoperatório minucioso e estratificação dos procedimentos cirúrgicos
são extremamente importantes para o resultado final e reabilitação
destes pacientes.
REFERÊNCIAS
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Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica Crâniofacial do Hospital SOBRAPAR, Campinas, SP.
Artigo recebido: 2/9/2009
Artigo aceito: 12/12/2009
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