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Arlequim
aos molhos
Um dos maiores vultos do teatro mundial vem ao
Festival de Teatro de Almada. Aos 81 anos, Ferruccio
Soleri dá-nos a conhecer personagens da Commedia
deli' Arte. E a sua famosa interpretação de Arlequim
Rita Silva Freire'
CONTRA todas as expectativas, é grande a timidez de Ferruccio Soleri. As frases são
plena forma quando, na próxima quarta-feira, 13, subir ao palco do Teatro Nacional de São
pouco reveladoras.
Quando se deixa embalar pela
conversa e ri, olha para o chão,
envergonhado. É difícil acredi-
João, no Porto, em Retratos
tar. Aos 81 anos, Soleri é um
dos grandes actores mundiais,
Almada (que repete na quinta,
14, no CCB, em Lisboa, e no domingo, 18, na Escola D. António
da Costa, em Almada). Nesta
curtas,
que já perdeu a conta aos milhares de vezes que subiu ao
palco, ao número de países em
que representou e às distinções que recebeu.
Encontramo-lo na sua casa,
num terceiro andar de uma longa avenida milanesa. Apesar de
ter elevador, o actor prefere su-
bir as escadas (todos os dias
sobe três vezes quatro andares).
É assim que se mantém em forma para continuar a interpre-
tar a personagem
que o acompanha há 50 anos: o criado Arlequim. Já o representou para
lá de 2.500 vezes e, garante, continuará a fazê-lo enquanto o público o quiser ver. As cambalhotas e piruetas exigidas pela representação não o assustam.
Além das escadas que sobe, faz
alongamentos que mantêm os
músculos a funcionar. Até agora não lhe falharam.
Soleri espera, pois, estar em
Commedia
da
deli' Arte, peça
a
apresentada no âmbito da 28.
edição do Festival de Teatro de
edição,
o
Festival de Almada
presta homenagem ao actor.
Como ser Arlequim
Quando, em 1959, Ferruccio
Soleri, com 30 anos, foi convidado por Giorgio Strehler, director do Piccolo Teatro de
Milão para ser o substituto de
Marcello Moretti no papel de
Arlequim - em Servidor de
Dois Amos, escrita por Cario Goldoni em 1745 - estava
longe de imaginar como esses
dias viriam a definir a sua
carreira. O convite surgiu,
conta o actor ao SOL, quando
Ferruccio já integrava a companhia do Piccolo (onde se es-
treou em 1957 com Pirandello). A peça de Goldoni iria em
digressão
aos Estados Unidos
onde, pela lei sindical, os actores seriam obrigados a ter
um substituto uma vez por se-
mana. Soleri tinha interpretado Arlequim no espectáculo final do curso de Arte Dramática, e tinha sido visto por
Moretti que, por isso, sugeriu a Strehler que fosse o jovem actor a substituí-10.
Dois anos depois Moretti
morreu e, quando Strehler quis
levar à cena Arlequim, Servi-
dor de Dois Amos, em
convidou
Soleri.
Foi
1963,
com
Strehler (que morreu em 1997)
que Soleri aprendeu tudo.
«Queria sempre que eu desse
o máximo possível. Nunca estava satisfeito. Era um deus»,
diz ao SOL um Soleri emocionado. As saudades são muitas.
O elogio de Oli vier
Meio século depois da estreia,
Ferruccio já perdeu a conta às
vezes que interpretou a peça.
Mas há momentos que nunca
esquecerá. «Como quando
Laurence Olivier entrou no
meu camarim, depois de
uma apresentação no Old
Vic, em Londres, e me disse: 'Hoje queria ter sido tu'.
Eu é que queria ser ele».
Como ainda lembra os elogios
de Paul Newman, do realizador John Huston e tantos ou-
tros que lhe foram falar de-
pois dos espectáculos, encantados com o seu Arlequim.
Arlequim de quem Ferruccio tanto gosta pela sua ingenuidade e inocência. Qualidades que, considera,
fazem com
que Arlequim não possa existir nos dias de hoje. «Ele faz
tudo
apenas com a sua
enorme força, psicológica e
física. Hoje, sem a ajuda da
política ou do dinheiro, não
se obtém nada. Arlequim
deixou de ser uma personagem possível», constata.
A fusão entre actor e personagem está patente nas paredes
do apartamento de Soleri. Na
sala de estar, são muitos os quadros de arlequins pendurados
ao lado das máscaras que usa
em cena e diversos prémios e
distinções.
A ocupar lugar de
destaque está um certificado
do
Guiness World of Records que,
em 2007, atestava que Soleri de-
tinha o recorde do maior número de peças de teatro consecutivas no mesmo papel (2.064), pela
sua interpretação de Arlequim
em Servidor de Dois Amos,
desde 28 de Fevereiro de 1960,
em 32 países (continua a fazê-10. Este mês será em Itália, em
Setembro, estará a representar
na Sibéria).
Ao seu lado figura uma distinção que para Soleri é ainda
maior: a que lhe fez, em 2007, a
UNICEF, quando o convidou
para ser seu embaixador.
Os tesouros do actor continuam noutra divisão. Num pequeno quarto, as prateleiras estão cheias de estojos de veludo.
Soleri abre-as uma a uma, desvendando o seu conteúdo: medalhas e distinções atribuídas
yai ler um texto sobre a história da Commedia
deli' Arte, falando sobre as
suas várias personagens. E
Apoloni]
eu vou trocando de máscara
e roupas à medida que cada
personagem é referida. No
fim faço um monólogo, como
Arlequim. É um apanhado
de toda a história deste género teatral».
Soleri escreveu-a há quase 30
anos porque, diz, havia muita
por teatros de todo o mundo.
Uma lição de teatro
Mundo esse que Soleri tem
gente que queria saber o que é,
a Commedia
exactamente,
percorrido com as suas peças,
mostrando a todos a Comme-
perguntamos
dia deli' Arte, um género teatral
característico de Itália e Fran-
remptório:
ça (declarado pela UNESCO
como Bem Imaterial da Humanidade). Já esteve na China, na
deli' Arte. Aliás, quando lhe
importante
porque é ela tão
para si, o actor é pe-
«Porque é tão importante para o público».
Operário normalisssimo
Rússia, na América do Sul, no
Canadá. O que não lhe falta é
Depois de mais de metade da
vida partilhada com uma mesma personagem, a pergunta
impõe-se: não será esta uma
vontade de dar a conhecer um
obra absolutamente
esgotante?
teatro que lhe é tão caro e tão
estranho para tantos.
«É uma profissão.
E é tão es-
Por isso, o actor escreveu
gotante como qualquer outra. Os médicos também tra-
tam doentes todos
traz a Portugal, uma espécie
os dias».
Soleri recusa grandes reflexões
sobre a questão. Tal como não
de lição de teatro, que faz um
breve apanhado das mais im-
tece teorias ou respostas alargadas sobre como tornou sua
portantes personagens do género. Todas são interpretadas
esta personagem
Retratos da Commedia
deli' Arte, a peça que agora
por Soleri que, em palco, ao longo de uma hora, vai mudando
de máscaras e de roupa, dando
uma breve amostra do que de
melhor há para descobrir.
«Uma actriz portuguesa [Io
do cânone
universal, desempenhada por
tantos outros antes dele.
Para Soleri o trabalho de actor é um trabalho como outro
qualquer. Aliás, Ferruccio considera que actuar não é arte.
«Um actor não é artista. É
como um operário, um artesão. O artista cria. O actor
não cria nada. O texto está
escrito e há um encenador.
O actor representa. A arte
implica criar algo novo. O
actor não o faz. A personagem já foi criada. O Arlequim não é uma personagem minha. Aliás, seria injusto para com o seu criador
se a modificasse».
Artista, Soleri apenas se
sente em momentos de criação, quando escreve ou encena. É só então que se sente um
«Sinto-me
artista
quando enceno, quando esautor.
crevo. Eventualmente
quando
improviso.
quando represento».
Não
No entanto, é a sua arte de
representar que queremos
testemunhar nos próximos
dias, num dos três palcos que
vão receber este peso pesado
teatral, figura esguia de sor-
riso tímido, que se agiganta
em palco, que a todos nos faz
sentir pequenos.
Mas porque terá decidido,
este homem - que também fez
Brecht, Pirandello e outros
grandes clássicos-dedicar
toda
uma vida a um só género? «Não
foi eu que o decidi. Foi o mun-
que me pediu
fazer
Commedia
para
deli' Arte. Por isso, eu fiz».
do, o público,
*OsOLvb4oaacanvteda
Companhia de Teatro de Atanada
Laurence Olivier
entrou no meu
camarim, depois
de uma
apresentação
noOldVic,
e disse-me: Hoje
queria ter sido tu'.
Eu é que queria
ser ele»
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