O PROCESSO COGNITIVO DE CONSTRUÇÃO DA IRONIA NO

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O PROCESSO COGNITIVO DE CONSTRUÇÃO DA IRONIA NO ROMANCE,
CAIM, DE JOSÉ SARAMAGO
Giezi Alves de OLIVEIRA
Graduado em Letras Língua Portuguesa - UFRN
RESUMO
As discussões acerca dos efeitos de sentido, que norteiam os estudos contemporâneos da
linguagem, são marcadas por expressivas investigações referentes à metonímia e a
metáfora. Desse modo, a ironia se apresenta como outra construção conceptual pouco
discutida e analisada em seu processo de construção de sentido, sendo recorrente em
diferentes níveis de conhecimento e em contextos diversificados. Tendo em vista que tal
recurso está presentificado na linguagem cotidiana, escrita e falada, e por empregar
processos cognitivos complexos, nos trouxe à tona a ótica da Linguística Cognitiva para
compreender a dinâmica no processo de construção de sentido da ironia em textos
literários. O presente trabalho tem por objetivo analisar na obra Caim, de José
Saramago, os efeitos irônicos presentes nas diversas vozes imbricadas nesse texto, e o
modo como tal construção resulta de processos conceituais de categorização,
negociados intersubjetivamente entre o autor e os demais leitores da obra.
Palavras-chave: Ironia - Literalidade - Polissemia – Sociocognição
Introdução
Inicialmente, o foco da linguística cognitiva esteve ancorado na realização de
análise mentalista, retomando, assim, o modelo gerativista de Chomsky no modo de
pensar a linguagem. Chomsky, por meio de sua base teórica, inferia sobre aquisição,
processamento e desenvolvimento da linguagem humana numa perspectiva inatista.
Para essa corrente, a linguagem apresentaria um conjunto finito de regras
internalizadas na mente, sendo, desse modo, a mente um elemento modular, estrutural e,
portanto, dissociado de qualquer aspecto sociocultural.
Em contrapartida, os novos estudos revelam que a mente trabalha por meio de
esquemas criados com as experiências adquiridas com e no mundo. Para os cognitivistas
contemporâneos, a cognição humana não é um fenômeno meramente racional e
mentalista, como postula Chomsky, mas, também, social, cultural e contextual.
A cognição humana necessita da interação intersubjetiva e da cultura para poder
criar esquemas mentais para as nossas atividades de modo que possamos interagir
socialmente. Isso é o que Clark (1996) chamaria de língua como ação conjunta,
negociada em sociedade.
A concepção de mundo, para a teoria cognitiva, é construída a partir de nossa
interação, portanto, seria difícil imaginar cognição, linguagem e cultura de forma
estanque. A cultura resultaria de experiências esquematizadas na mente, sendo que tais
experiências não necessariamente advêm somente de nossa própria experienciação, mas
de experiências humanas anteriores criadas e formadas através de informações
recebidas, apreendidas e processadas na mente. Portanto, seriamos seres aculturados no
contexto em que estamos inseridos.
A verdade, por exemplo, seria uma construção social adquirida por intermédio de
formas simbólicas, cuja estrutura conceitual é manipulada de acordo com a nossa
vivência e intercâmbios sócio-culturais, o que nos faz construir cognitivamente novas
realidades.
Portanto, aquilo que os gerativistas dizem ser módulos fixados na mente, os
cognitivistas contemporâneos chamam de esquemas organizados socialmente, sendo a
forma como conceituamos as coisas resultado de um trabalho social. Desse modo, a
cultura direciona o comportamento do ser humano, impondo o que é ou não importante
para o indivíduo conviver em sociedade.
Sabe-se que a linguagem é construída na interação intersubjetiva. Com o avanço
dos estudos da ciência cognitiva, procura-se agora explicar não mais a linguagem como
fruto da cognição humana, mas um processo de construção. Com isso, surge uma teoria
precursora na tentativa de conceber uma resposta aos processos mentais de construção
de sentido: a corporificação da mente, postulada por Lakoff e Johnson (1980).
Partindo do referencial teórico suprarreferido, pretendemos discorrer sobre a
construção irônica no romance Caim, de José Saramago, a partir dos postulados teóricos
de Lakoff e Johnson sobre as metáforas conceptuais. As análises realizadas aqui se
constituem como dados preliminares para um futuro projeto de pesquisa, não sendo,
portanto definitivos.
Analisando o corpus
Para análise do corpus, utilizaremos, basicamente, duas teorias: a da Enunciação
(MAINGUENEAU, 2001) e da Linguística Cognitiva (LAKOFF E JOHNSON, 1980).
Para Maingueneau o texto não está dissociado do quadro social de produção e
circulação, por isso, em um primeiro momento, a Teoria da Enunciação nos servirá
para análise da produção discursiva de Saramago, de modo a mostrar as vozes
participantes no texto.
Em outro momento, analisaremos a construção da ironia ao moldes de Lakoff e
Johnson, por meio das Metáforas Conceptuais.
Lakoff e Jhonson rompe com a tradição milenar estilístico-literária da metáfora
para tratar de sua natureza conceptual. Nesse caso, a metáfora estaria inserida,
primeiramente, no domínio do pensamento e, posteriormente, no domínio da
linguagem, revelando-se um mecanismo importante na compreensão e explicação da
cognição humana. Vejamos o que Amaral (2006) diz sobre metáforas:
[…] As metáforas conceptuais são em larga medida responsáveis pela
nossa “topologia cognitiva”, influenciam a nossa maneira de agir e
realizam-se quer em obras de natureza artística quer em instituições,
mitos e práticas sociais. Estas realizações reflectem a estrutura do
nosso sistema conceptual e simultaneamente reforçam-na, oferecendo
novas bases, na experiência, para a validade destas metáforas (além da
experiência biológica, também as criações humanas podem
proporcionar uma base experiencial). (Amaral 2001: 246).
O enredo em Caim, de Saramago, poderia ser entendido como um evento em que
a narrativa se mescla em sua forma sincrônica e diacrônica por meio da linguagem do
narrador, ou seja, as vozes imbricadas no texto, parecem se fundirem em espaços e
tempos distintos. O narrador mescla a sua voz ao das personagens no decorrer das ações
e dos acontecimentos, hora fazendo uso de expressões e palavras do repertório culto; em
outras situações, discorre em linguagem coloquial, intencionalmente, para causar o
efeito irônico desejado.
Em determinadas situações dialógicas, entre as personagens envolvidas na trama,
ocorre, constantemente, compressões conceptuais (FAUCONNIER E TURNER, 2002),
ou seja, os espaços mentais que criamos para armazenar os conceitos podem ser
mesclados em um só espaço mental como resultado de uma compressão. Isso faz com
que o texto se torne dinâmico e mais próximo da interação verbal entre o narrador e o
leitor da obra. As personagens empregam em seus discursos a língua culta, construída
em segunda pessoa, típica de textos religiosos, contudo incorpora termos comumente
empregados em situações incompatíveis, talvez, com o contexto, espaço e tempo da
narrativa, o que traz a tona o efeito irônico desejado, como se pode perceber nesta
passagem:
[...] Que fizeste com o teu irmão, perguntou, E Caim respondeu com outra
pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o
primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses
destruído a minha [...] (SARAMAGO, 2009: 34)
A expressão “era eu o guarda-costas”, evidencia a ironia presente na discussão
entre as personagens Deus e Caim, de Saramago. Nesse diálogo, o interlocutor (Caim)
comprime a resposta na tentativa de desconsiderar o questionamento do seu adversário.
Ao comprimi-la, o outro logo percebe o sarcasmo com que é recepcionado, pois o termo
empregado quebra com a expectativa do locutor. Por outro lado, o questionamento da
personagem Deus quebra, também, com a expectativa de Caim, quando aquele
pergunta: “que fizeste”, haja vista que a ação ocorrida, momentos antes, em si mesma
trazia a resposta: afinal, havia ocorrido um homicídio.
Para causar o efeito irônico, o autor introduz a palavra “guarda-costas”, análoga
ao serviço de segurança dos tempos modernos em relação ao tempo daquela narrativa e
incompatível com o contexto da história.
Observe-se este outro momento em que Caim, questionando Deus, traz à tona
idéias contrafactuais por meio daquilo que Fauconnier e Turner (apud Duque e Costa,
no prelo) entendem por compressão conceptual: “[...] Quis pôr-te à prova, E tu quem és
para pores à prova o que tu mesmo criaste, [...]” (SARAMAGO, 2009: 34).
O efeito irônico se dá, justamente, pela contradição apresentada pelo locutor ao
afirmar que aquilo tudo era um teste, um jogo, cujo interlocutor havia sido reprovado.
Temos assim uma ideia contrafactual na medida em que se espera que o criador de todas
as coisas, onisciente e onipresente, não pusesse à prova algo cujo resultado deveria
saber. Desse modo, percebemos uma metáfora conceptual (LAKOFF E JOHNSON,
1980). alicerçando a construção do enunciado DEUS É O CRIADOR. O efeito irônico
se dá na quebra dessa metáfora conceptual.
Quando a metáfora expressa algo que representa o contrário do que
prototipicamente deveria ser apreendida, temos a ironia, ou seja, há uma contradição
entre a expectativa do que se diz e aquilo que se entende. A metáfora estaria edificando
a construção irônica. Nesses termos, pode-se dizer que a ironia apresenta estágios de
uso e apreensão. Por exemplo, pode-se analisá-la como sarcástica ou humorística
dependendo do efeito que se quer atingir: sarcástica quando pretende-se atingir o outro
diretamente, o desejo de colocar alguém para baixo; já a humorística é concernente a
piadas construídas por meio de ridícularização por meio de fatos imaginativos em que
se misturam espaços reais e não reais.
CONCLUSÃO
Ao analisarmos os dados acima, percebemos que os efeitos irônicos, num
primeiro momento, apontam para uma realização metafórica na base da construção da
ironia. Se a metáfora nos revela modos cognitivos de agir e pensar, a ironia quebra com
esses modos. O que nos leva a uma conclusão hipotética de que a metáfora seria um
elemento basilar na produção da linguagem e consequentemente na construção de
sentidos.
REFERÊNCIAS
AMARAL, P. Metáfora e Linguística Cognitiva, in A. S. Silva (org.), Linguagem e
Cognição: a Perspectiva da Linguística Cognitiva, Braga: Associação Portuguesa de
Linguística e Universidade Católica Portuguesa, 2001: 241-261.
CLARK, H. Arenas of language use. Chicago: Chicago Press, 1996.
DUQUE, P. H. E COSTA, M. A. Linguística Cognitiva: em busca de uma arquitetura
de linguagem compatível com modelos de armazenamento e categorização de
experiência. No prelo.
FAUCONNIER, G. E TURNER, M. The Way We Think: Conceptual Blending and the
Mind's Hidden Complexities. Basic Books, 2002.
LAKOFF, G., JOHNSON, M. Metaphors we live by. University of Chicago Press, 1980.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução Cecília Pérez de
Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
SARAMAGO, J. CAIM. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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