ENVOLVIMENTO DOS ESTUDANTES NA ESCOLA: REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS INTERATIVAS COM ALUNO SUPERDOTADO Joulilda dos Reis Taucei1, Tania Stoltz 2 1 Universidade Federal do Paraná (Brasil) Universidade Federal do Paraná (Brasil) E-mails: [email protected] , [email protected] 2 Resumo Há um reconhecimento crescente da necessidade de que estudantes de diversos níveis educacionais sejam estimulados a desenvolver um pensamento independente e criativo. Nesse sentido, o professor aparece como mediador fundamental para o planejamento de estratégias pedagógicas para o desenvolvimento dessas competências (Alencar, 1986; Freeman & Guenther, 2000; Maia-Pinto & Fleith, 2002; Virgolim, 1998). Tendo como referência esses pressupostos, a pesquisa teve como objetivo investigar as dinâmicas interativas desenvolvidas na escola para trabalhar com o aluno com alta habilidade/superdotação (AH/SD); assim como identificar como se estabelecem as relações do estudante com os sujeitos da escola (colegas, professores, pedagoga). Foi adotada metodologia de pesquisa qualitativa com coleta de dados baseada em entrevistas semiestruturadas, com enfoque em estudo de caso (FLICK, 2009). Participaram da pesquisa um aluno, seus pais, seis professores e uma pedagoga. O estudo evidenciou que o estudante, apesar de se relacionar bem com os professores, apresenta dificuldades em desenvolver vínculos de amizade com alunos de sua faixa etária. Com relação ao envolvimento na escola, ele desenvolve cálculos mentais com facilidade e se expressa matematicamente de forma criativa, propondo formas diferenciadas para as resoluções de problemas em sala de aula. Porém, confirma-se que alguns professores ainda sentem dificuldades em trabalhar com alunos superdotados (Taucei, Stoltz e Gabardo, 2012). Por outro lado, apesar das dificuldades alguns docentes têm se esforçado em desenvolver práticas pedagógicas baseadas na interação proporcionando a troca de conhecimento e habilidades entre os discentes, além de estimular os alunos a buscarem significado naquilo que estudam. Essas práticas assemelham-se à busca de significados que a pesquisadora Stoltz (2010) enfatiza, inspirando-se em Vygotsky (1994). Conclui-se que a estimulação e a consideração de atividades criativas tornam-se fundamentais para o desenvolvimento de significados em relação aos conteúdos escolares trabalhados. Palavras-chave: Envolvimento acadêmico, superdotação, criatividade, interação. Involvement of Students in School: Reflections on Interactive Educational Practices with Gifted Student Abstract There is growing recognition of the need that students of different educational levels are encouraged to develop a creative and independent thinking. In this sense, the teacher appears as essential mediator for planning pedagogical strategies for developing these skills (Alencar, 1986; Guenther & Freeman, 2000; Maia-Pinto & Fleith, 2002; Virgolim, 1998). Having as reference these assumptions, the research aimed to investigate the interactive dynamics developed at school to work with the gifted student, as well as identify how relationships are established between the student and the school's individuals (classmates, teachers, and pedagogue). It was adopted qualitative research methodology with data collection based on semi-structured interviews, focusing on a case study (FLICK, 2009). Participants were a student, his parents, six teachers and an educator. The study revealed that students, despite getting along with teachers, present difficulties in developing bonds of friendship with students their age. Regarding involvement in school, he develops mental calculations with ease and express himself mathematically creatively, proposing different ways to problem solving in the classroom. However, it is confirmed that some teachers still feel difficulties in working with gifted students (Taucei & Stoltz & Gabardo 2012). Moreover, despite the difficulties some teachers have struggled to develop teaching practices based on interaction in exchanging knowledge and skills among students, and encouraging students to seek meaning in what they study. These practices are similar to the search for meanings that the researcher Stoltz (2010) emphasizes, inspired by Vygotsky (1994). We conclude that encouragement and consideration of creative activities becomes critical to the development of meanings in relation with the school subjects worked. Keywords: Academic involvement, giftedness, creativity, interaction. 1. INTRODUÇÃO Entre os vários estudos sobre as Altas Habilidades/Supedotação (AH/SD) 1 observa-se um número crescente de pesquisas voltadas a identificação desses sujeitos, tendo em vista que apresentam perfis bastante heterogêneos distinguindo-se uns dos outros pelos seus estilos de aprendizagem, interesses diferenciados, habilidades motoras, sociais e artísticas e alto nível de motivação (Virgolim (2012); de modo geral, a AH/SD pode ser considerada um fenômeno multidimensional que envolve habilidades acadêmicas, motoras, artísticas e sociais, entre outras (Taucei, Stoltz & Gabardo, 2013). mas, para além da identificação desses indivíduos, torna-se relevante a investigação sobre o desenvolvido desse educando no ambiente escolar, e sobre as dinâmicas educacionais adotadas. Nesse sentido, o presente artigo visa discutir sobre fatores relacionados às práticas pedagógicas interativas desenvolvidas em sala de aula, para trabalhar com um estudante com indicadores de AH/SD2; assim como, identificar como se estabelecem as relações desse educando com os sujeitos da escola (colegas, professores, pedagoga). As questões educacionais têm sido amplamente discutidas em âmbito nacional e internacional. Uma das grandes discussões da contemporaneidade está relacionada à importância do desenvolvimento da criatividade nos educandos. Segundo Alencar (2001), há um reconhecimento crescente da necessidade de que estudantes de diversos níveis educacionais sejam estimulados a desenvolver um pensamento independente e criativo. Nesse sentido, o professor aparece como mediador fundamental para o planejamento de estratégias pedagógicas para o desenvolvimento dessas competências (Alencar, 1986; Freeman & Guenther, 2000; Maia-Pinto & Fleith, 2002; Virgolim, 1998). Entretanto, apesar desses pressupostos, em concordância com Alencar (2001), percebe-se que o sistema educacional brasileiro apresenta diversas fragilidades em suas propostas educacionais, e uma delas, contraditoriamente, é o não favorecimento do desenvolvimento de habilidades criativas em seus educandos. Ao encontro dessa constatação, Maia-Pinto & Fleith (2002) destacam que muitas das práticas pedagógicas adotadas nas escolas ainda estão presas a modelos tradicionais que enfatizam a apropriação passiva de conteudos. Assim, além de não estimular o potencial criativo do aluno, o sistema de ensino favoresce o perfil passivo e, muitas vezes, “desinteressado” com que alguns estudantes apresentam em algum momento de seu contexto escolar; consequentemente, pode ocorrer a falta de motivação, o aumento da alienação e as elevadas taxas de abandono escolar, principalmente, entre os jovens e adolescentes. Contraditoriamente ao que se observa, segundo os dados do Ministério da Educação e Cultura - MEC (2010) a taxa de evasão escolar vem sendo “reduzida” gradativamente, em 2007 encontrava-se em 13,2% e em 2010 reduziu para 10,3%. Contudo, apesar da aparente redução, pode-se perceber que ainda encontra-se em um patamá bastante alto; além disso, considera-se que o número de educandos que abandonam os estudos no Ensino Médio ainda é algo significativo, pois de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), um em cada dez jovens com 1 O termo Alta Habilidade/Superdotação (AH/SD) será adotado ao longo do artigo, por considerar-se que esta definição é mais abrangente podendo, no Brasil, ser utilizada também como sinônimo de superdotação e talento (PEREZ, 2004). Contudo, as autoras do referido artigo serão fiéis à nomenclatura que os diferentes referenciais teóricos adotaram para se referir a esses sujeitos. 2 Neste estudo, a definição do conceito de Alta Habilidades/Superdotação (AH/SD) nos remete a concepção de superdotação proposta por Renzulli (1978; 1984), que compreende três traços fundamentais: habilidade acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa. idade entre 15 e 17 anos, que deveriam está cursando o Ensino Médio, evadiram-se da escola. Essa situação pode torna-se mais abrangente e complexa, quando o jovem estudante caracteriza-se por fazer parte do grupo de pessoas com AH/SD. Freeman & Guenther (2000) destacam que, muitas vezes, um aluno com capacidade superior a média do grupo, seja em inteligência, criatividade, ou um talento específico, em sala de aula regular, pode ter dificuldades significativas em se adaptar a turma; assim como, provavelmente, terá poucas oportunidades de desenvolver todas as suas potencialidades. Ainda, segundo as autoras, um dos primeiros problemas do aluno superdotado em relação aos estudantes de uma turma regular é o tempo de espera, geralmente, o aprendizado desse alunado se dá de forma mais rápida do que a aprendizagem de seus colegas, contudo, frequentemente, este precisa aguardar e acompanhar o rítmo da turma, consequentemente, esse tempo de espera pode provocar aborrecimento e tédio fazendo com que esse aluno se desinteresse pela a escola. Apesar do sistema de ensino brasileiro, “muitos” alunos com indicadores de AH/SD têm se destacado pelo seu alto potencial. Pode-se refletir que talvez seja uma forma de pedirem para serem enxergados e reconhecidos. Com relação a essa discussão, Freeman & Guenther (2000) consideram que uma das grandes problemáticas dos alunos com AH/SD, em sala de aula, é que, geralmente, esses estudantes passam “despercebidos” pelo corpo docente. Em consonância com as pesquisadoras, pode-se inferir que alguns professores julgam que como o aluno superdotado quase sempre se sai bem nas atividades escolares não precisa, necessariamente, se preocupar com esse educando em especial. Contudo, tanto o estudante que se caracteriza por fazer parte do perfil com AH/SD acadêmica, quanto aquele com características de alto potencial produtivo-criativo, poderão apresentar dificuldades significativas na escola, pois esses estudantes devido à falta de desafios e incentivo a criatividade, poderão não conseguir obter desempenhos a altura de seus potenciais. 2. ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO E CRIATIVIDADE Neste artigo, não há a intenção de revisar as infindáveis teorias sobre a criatividade; pois, assim como ocorrem diversas definições sobre inteligência e sobre o conceito de AH/SD, verifica-se também na literatura estudada uma variedade de definições em relação a essa temática; mas, partindo-se da percepção de que a criatividade contribui para o desenvolvimento do potencial do indivíduo e trará relevantes contribuições ao nosso estudo, pretende-se discorrer sobre as ideias de alguns autores estudiosos desse tema. De acordo com Renzulli (2004), desde o final da década de 1960 e início da década de 1970, a literatura sobre os superdotados e talentosos já indicava que várias situações eram “gritantes” em relação à necessidade de que as instituições de ensino oferecessem atividades diferenciadas para os estudantes com elevado potencial, proporcionando, assim, oportunidades para um maior crescimento cognitivo e autorealização desses educandos em sala de aula. Essas necessidades consistem em fornecer aos alunos superdotados e criativos, desenvolvimento e aprimoramento de uma determinada área de desempenho e/ou minimizar eventuais dificuldades. Assim como, segundo o autor, favorecer o desenvolvimento de indivíduos que possivelmente poderíam contribuir para solucionar problemas da sociedade, tornando-se produtores de conhecimento e arte, e não apenas consumidores das informações já existentes. Ainda, segundo Renzulli (1978; 1984), um dos fatores entre tantos outros, que o ajudou a delinear o que veio a se tornar a sua teoria da superdotação3, foi a observação de numerosos casos de indivíduos com realizações incomuns e fortemente criativos, que não seríam identificados ou atendidos em programas especializados para pessoas com AH/SD, se continuassem a ser considerados apenas os casos de escores em testes de capacidade cognitiva. Outro ponto decisivo para a elaboração de sua teoria, de acordo com autor, foi à percepção de que para além da superdotação acadêmica, que é o tipo mais facilmente mensurado pelos testes psicométricos, há também a superdotação produtivo-criativa, que abrange aspectos da atividade e do envolvimento individual nos quais se incentiva o desenvolvimento de ideias criativas e inusitadas. 3 A teoria da superdotação desenvolvida por Joseph Renzulli (1978; 1984) refere-se à Teoria dos Três anéis, que compreende três traços fundamentais: habilidade acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa. Vygotsky (2008), um dos idealizadores da Teoria Histórico-Cultural, foi um dos primeiros psicólogos modernos a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa. E, em seu tempo, já expressava que a atividade criadora do sujeito é aquela em que se cria algo novo. Para o teórico, a imaginação criadora funciona de forma bastante peculiar, não importa se o que se cria é algum objeto do mundo externo ou se é uma construção da mente ou do sentimento. A criatividade não é um fenômeno raro, nem tão pouco natural do indivíduo, mas sim um processo presente na realidade do dia-a-dia, que se desenvolve a partir das experiências e mediações entre as pessoas e o ambiente (Vygotsky, 2009). Ao discutir sobre a criatividade, alguns pesquisadores (Csikszentmihalyi, 2000; Lubart e Mouchiroud, 2003; Runco, 1997; Sternberg e Lubart, 1996; Sternberg, 2008), a definem de forma ampla como sendo um processo de produzir algo singular e de valor. Todos concordam que uma pessoa criativa demonstra produções e invenções inusitadas, descobertas brilhantes, trabalhos artísticos, entre outros. Contudo, a atividade criadora não pode ser enxergada apenas como um produto de uma manifestação rápida de uma ideia genial; é muito mais do que isso, a criatividade se reflete na dedicação, na disciplina, no esforço consciente e na motivação para um estudo prolongado de uma determinada área do saber. Na perspectiva criativo-produtivo de Renzulli (2004), a confluência de inteligência, conhecimento, estilos de pensamento, personalidade, motivação e o fator ambiente formam o comportamento criativo. Por sua vez, Sternberg (2003), para além de sua Teoria do Investimento, destaca que: “Uma teoria integradora alternativa da criatividade sugere que muitos fatores individuais e ambientais convergem para que ocorra a criatividade” (Sternberg, 2003, p.403 apud Sternberg e Lubart 1991). Em Vygotsky (2009), o potencial gerador e transformador da atividade criativa possibilita o indivíduo planejar, projetar e construir suas próprias condições de existência. Em concordância com os autores acima, as pesquisadoras Bahia & Nogueira (2005) destacam que as ideias e as teorias atuais sobre a criatividade assumem diversos sentidos originais. A criatividade pode ser considerada como um processo multidimensional, onde o contexto em que ocorre também deve ser considerado. Nesse sentido, pode-se perceber que às ideias sobre criação e imaginação em Vygotsky (2009) coadunam com as concepções de criatividade dos autores contemporâneos, mantendo-se extremamente atuais. 3. MÉTODO A metodologia adotada para o andamento do estudo teve como referência princípios e métodos de pesquisa qualitativa, enfocando o estudo de caso (FLICK, 2009), os quais contribuíram para elaboração das questões que foram abordadas em entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas em duas escolas da rede publica estadual: uma, na qual o aluno (estudo de caso) estuda e a outra, onde ele recebe atendimento especializado na Sala de Recursos para as suas necessidades educacionais especiais; e, na residência do educando. A princípio foi feito um levantamento sobre quais escolas da rede pública do munícipio de Curitiba/Paraná – Brasil ofereciam atendimento especializado em Sala de Recursos para estudantes com AH/SD. A partir desse levantamento as pesquisadoras solicitaram autorização do setor responsável para que fosse iniciada a pesquisa empírica em uma das escolas. Após a autorização e a assinatura dos participantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, se iniciaram as entrevistas semiestruturadas. Além das entrevistas, que foram gravadas e posteriormente transcritas, realizaram-se observações e análise de material documental: o boletim do aluno e os Relatórios de Avaliação (Talento e Superdotação) e de Avaliação Psicoeducacional, adotando-se como um dos critérios para a participação do educando (estudo de caso), possuir esses documentos referentes às avaliações de AH/SD: .No presente estudo, as questões do questionário semiestruturado tiveram como foco identificar as práticas pedagógicas interativas e desenvolvidas na escola para trabalhar com o aluno especial, assim como identificar como se estabelecem as relações do estudante com os sujeitos da escola (colegas, professores, pedagoga). Especificamente, para a produção deste artigo, organizaram-se os dados coletados considerando, além dos objetivos iniciais, a temática da criatividade surgida a partir das próprias entrevistas. 2.1. Participantes Participaram deste estudo um adolescente de quatorze anos com AH/SD, seus pais, que têm formação educacional de nível médio, e sete profissionais da Educação pública estadual que atuam como professores do estudante (sujeito do estudo). Esses docentes têm idades entre 29 e 45 anos. Entre os entrevistados, um atua na função de pedagogo e possui especialização em Psicopedagogia, dois atuam na função de professores na Sala de Recursos para estudantes com AH/SD, sendo que o professor é formado em História e a professora graduada em Pedagogia, ambos têm especialização em Educação Especial. Quatro professores atuam no ensino regular nas seguintes áreas do conhecimento: Matemática, História, Geografia, Português e Inglês, sendo que as duas últimas disciplinas são ministradas pelo mesmo professor, desses docentes apenas o professor de Geografia possui especialização. Nos resultados e discussão a seguir, a fim resguardar a identificação dos envolvidos, adotou-se como critério a referência aos cargos e/ou grau de parentesco das pessoas entrevistadas: “pedagogo”, “professores da Sala de Recursos”, “professor”, de acordo com a respectiva disciplina, “pai”, “mãe”; e, para o estudante (sujeito do estudo) será utilizado o nome fictício de “Marcelo”. 3. RESULTADO E DISCUSSÃO A análise dos dados de pesquisa destaca que Marcelo tem quatorze anos, reside com a sua família em um munícipio metropolitano próximo a cidade de Curitiba/Paraná – Brasil. A sua família é composta por quatro pessoas: o adolescente, seu pai, sua mãe e uma irmã. De forma geral, segundo os seus pais no dia a dia ele é um jovem simpático, carinhoso com a família e bastante participativo nas atividades em casa. A família de Marcelo pertence a uma classe média humilde, seu pai trabalha com transporte de carga. Contudo, apesar do pouco recurso financeiro, seus pais buscam oferecer o máximo possível em termos de oportunidades educativas e culturais para seus filhos, pois acreditam que por meio da educação e das experiências culturais vivenciadas, seus filhos poderão alcançar uma nova realidade. Esse pensamento nos remete as ideias de Vygotsky (2008) sobre a importância da instrução, do aprendizado escolar e das experiências sociais e culturais. Para o teórico, esses fatores atuam como mediadores para que ocorra a internalização dos conhecimentos socialmente disponíveis, ampliando assim, as possibilidades humanas de desenvolvimento. Os pais de Marcelo destacam que seu filho sempre demonstrou ser muito inteligente, mas parecia ser muito diferente em relação às crianças de sua faixa de idade. Segundo a sua mãe, desde a mais tenra infância notava um elevado nível de curiosidade e alto senso de percepção para os detalhes que envolvessem objetos e/ou temas do seu interesse. Devido a possível precocidade de seu filho, os pais resolveram proporcionar estímulos variados como: jogos de quebra cabeça, da memória, dominó, xadrez, entre outros, que pudessem satisfazer os seus interesses. Ainda, de acordo com a mãe, o adolescente é muito estudioso nas disciplinas que lhe interessa, gosta muito de pesquisar, inventar e testar seus experimentos eletrônicos. Entretanto, a mãe declara em entrevista que, algumas vezes, fica um pouco preocupada com o filho porque ele é um jovem de “poucos amigos”, ou seja, prefere passar praticamente todo o dia em seu laboratório produzindo e testando suas invenções, a brincar com adolescentes de sua faixa etária; e, às vezes, seu filho parece um pouco chateado e insatisfeito por perceber suas dificuldades para desenvolver vínculos de amizade com jovens de sua faixa etária. O adolescente declara: “a maioria dos estudantes de minha sala de aula não me dão atenção; e parece que não entendem coisas simples que tento conversar com eles” (Marcelo). Com relação à dificuldade de socialização que ocorre com alguns educandos com AH/SD e com o aluno estudado, é possível refletir e buscar uma possível relação com os estudos de Hollingworth (1942) que, apesar de ter sido realizado há muito tempo, continua sendo relevante para tentarmos entender algumas das dificuldades de ajustamento de certos indivíduos superdotados. Esse teórico constatou em suas pesquisas que certos estudantes que apresentavam um QI (Quociente de Inteligência) muito elevado, beirando os 180, apresentavam dificuldades significativas em desenvolver vínculos de amizade com pessoas de sua faixa etária, pois segundo o pesquisador, o grupo de pessoas com idades semelhantes não compartilham os mesmos interesses dificultando a interação entre os pares. 3.1 Fragilidade do sistema educacional brasileiro O referido adolescente é estudante do 8º ano do ensino fundamental e estuda em uma escola da rede pública estadual, localizada em uma cidade metropolitana de Curitiba/Paraná – Brasil. Contudo, como a escola em que estuda não possui Sala de Recursos para o atendimento de pessoas com AH/SD e nem profissionais especializados nessa área, o estudante recebe atendimento para as suas necessidades educacionais especiais em uma Sala de Recursos em outra escola pública localizada na cidade de Curitiba, esse atendimento especializado ocorre duas vezes por semana no contra turno escolar. Segundo os professores especializados em Educação Especial, que atuam desenvolvendo o trabalho com Marcelo, a Sala de Recursos atende às mais variadas áreas de acordo com o interesse pessoal dos educandos, por exemplo: oficina de Produção Textual/Teatro; oficina de Literatura; Grande Grupo que aborda questões sobre “inteligência interpessoal e intrapessoal” (Gardner, 1983; 1993; 1998); oficina de Aeromodelismo; RPG I e II (Role Playing Game), entre outros. Contudo, ainda, de acordo com os professores, apesar do aluno expressar o desejo de frequentar a oficina de Robótica, ele ficou com a segunda opção e está frequentando a oficina de Aeromodelismo, isso devido ao fato de, no momento, a Sala de Recursos está sem orientador voluntário para a área de Robótica. Considerando-se as vozes dos professores, as observações do espaço físico e dos materiais utilizados, as vozes do próprio estudante Marcelo e de sua família, percebe-se que, apesar de existir Salas de Recursos para o atendimento especializado de estudantes com AH/SD, em alguns casos, esses atendimentos ainda encontram-se aquém do que se pode considerar necessário para a busca da qualidade da educação; e, do que muitos destes indivíduos almejam para avançar em seu desenvolvimento pessoal, seja pela falta de estrutura física e a falta de materiais específicos para a realização dos trabalhos, seja pelo pouco número de docentes especializados para trabalhar as reais necessidades desse alunado. Com relação a algumas dessas dificuldades, Piske e Stoltz (2013) destacam que o sistema educacional brasileiro ainda apresenta limitações para que seus estudantes consigam realizar suas atividades com qualidade e liberdade de expressão. Com posição semelhante, Alencar (2001) ressalta que várias razões poderiam ser apontadas para justificar a importância de se propiciar melhores condições à expressão do alto potencial dos alunos com AH/SD, assim como a todos os estudantes em sala de aula regular, proporcionando assim, as condições para o desenvolvimento de talentos criativos em todos os níveis de ensino. Apesar da percepção de vários pesquisadores da área sobre a necessidade de fortalecimento do atendimento especializado a esses estudantes especiais, Delou (2012) destaca que, contraditoriamente, não é isso que vem ocorrendo: O Brasil não avançou muito na oferta de atendimento educacional para alunos superdotados. As ações sempre se caracterizaram pela descontinuidade (Alencar & Fleith, 2001; Delou, 2001), contudo em todos os momentos em que a Educação Especial foi revista, optou-se pela manutenção do atendimento dos alunos superdotados na área da Educação Especial, muito mais pelo trabalho político junto aos especialistas mostrando o desperdício dos talentos escolares em virtude dos baixos níveis de ensino praticados do que por saber-se sobre a eficácia deste tipo de atendimento (DELOU, 2012, p.132 apud DELOU, 2001). Da literatura examinada, apesar de existirem problemas significativos que dificultam a qualidade de ensino no sistema educacional brasileiro, como por exemplo: as dificuldades políticas, investimento deficitário e carência de profissionais especializados, destacados por Alencar (2001); Delou (2012); Piske e Stoltz (2013). Com a pesquisa empírica, por outro lado, observou-se que os profissionais entrevistados que trabalham na Sala de Recursos para alunos com AH/SD, são extremamente comprometidos e envolvidos com o seu trabalho, isso nos leva a reflexão de que o recurso mais relevante e decisivo desses espaços é o recurso humano. 3.2 Práticas pedagógicas e alto potencial criativo na escola De acordo com a pedagoga da escola onde o aluno estuda, ele faz parte do grupo discente desde o 5º ano, mas somente no 8º ano é que o estudante fez as avaliações e recebeu a confirmação de AH/SD. Apesar de, a princípio, o estudante não ter o laudo comprobatório do seu alto potencial, alguns professores consideravam que Marcelo parecia diferente em relação ao outros alunos de sua turma e de mesma faixa etária, percebiam que o estudante apresentava um alto potencial cognitivo: raciocínio lógico apurado, expressiva habilidade e criatividade em articular informações de conteúdos e de disciplinas variadas, envolvimento com as atividades e significativo desejo de aprender sempre mais, destacando-se, principalmente, nas disciplinas de Matemática, Ciências e nas atividades de pesquisa, conforme destacam alguns professores entrevistados: Nós percebíamos o forte interesse dele pelas áreas que eu te falei [Matemática, Ciências e pesquisas/experiências], quando ele precisava apresentar trabalhos de pesquisa e trabalhos na Feira de Ciência, produzia sempre além do que tinha sido proposto pelo professor (pedagoga). [...] quando estou ensinando história geral, ele [Marcelo} articula com muita autonomia e rapidez os contextos geral/mundial com o contexto específico do Brasil; assim como, consegue fazer as relações temporais e associações entre uma época e outra da história (professora de História). [...] Marcelo é muito curioso e inteligente, consegue fazer algumas associações rápidas de conteúdos e sempre apresenta ideias diferenciadas e inovadoras para contribuir em sala de aula (professora de Geografia). O [aluno] tem bastante do raciocínio lógico, memorização imediata, consegue expressar-se matematicamente de forma criativa, muitas vezes resolve os exercícios de forma oral e com variadas propostas para a resolução dos problemas; por exemplo, na sala de aula, eu explico o conteúdo de uma determinada forma [...] o aluno olha, analisa e sempre apresenta outras formas diferenciadas para resolver o mesmo problema, e isso é uma constante (professora de Matemática). Percebe-se que muitas das características de Marcelo, destacadas pelo quadro docente de sua escola, são semelhantes às enfatizadas por Renzulli (1978; 1984; 2004; 2006) em sua concepção de superdotação, presente na Teoria dos Três anéis: habilidade acima da média, criatividade e comprometimento com a tarefa. Para esse autor a congruência desses fatores define o conceito de AH/SD, porém em consonância com o próprio teórico considera-se que essas características incluem, mas não limitam a identificação, pois assim como qualquer ser humano indivíduos com AH/SD têm características bastante distintas. Apesar do alto potencial do aluno Marcelo, vários professores afirmaram em entrevista que o educando apresenta dificuldades no relacionamento interpessoal com os colegas, mostrando-se extremamente crítico em relação a alguns adolescentes que estudam com ele. O aluno apresenta um perfil introspectivo e mesmo quando os professores propõem atividades em dupla ou em grupo o educando manifesta o desejo de realizá-las sozinho, se saindo muito bem quando isso é permitido. Porém, geralmente, os professores não abrem exceções, pois segundo a pedagoga a proposta pedagógica é justamente promover a interação entre os pares, proporcionando as trocas de conhecimento. Em concordância com Vygotsky (2005), entende-se que a partir do momento em que as práticas educacionais são propostas buscando-se a formação social e a formação individual do aluno, ligadas entre si por uma relação dialética, as trocas entre os estudantes adquirem fundamental importância. Contudo, apesar das afirmações da maioria dos professores sobre as dificuldades de interação do estudante com os outros alunos de sua idade, os docentes foram unânimes em afirmar que Marcelo é bastante solícito, participativo, respeitador e educado. Pode-se refletir que, provavelmente, esse traço de personalidade seja decorrente da educação recebida pela família, que certamente se reflete na vida em sociedade. No que se refere à questão sobre como se desenvolve as práticas pedagógicas dos professores para trabalhar com o aluno com AH/SD, de acordo com a pedagoga da escola, os docentes são orientados a trabalhar, sempre que possível, com práticas pedagógicas interativas explorando trabalhos em duplas e em grupos, de forma que haja uma troca de conhecimento entre os pares. As respostas de alguns professores frente às entrevistas semiestruturadas são transcritas a seguir: Procuro sempre trabalhar com os alunos de forma criativa, para assim alcançar o objetivo que é a aprendizagem dos estudantes. [...] trabalho sempre explorando e priorizando o campo visual e a realidade dos educandos, por exemplo: trabalho os conteúdos com gráficos, tabelas, cálculo de escala, mapas, etc. [...] Se vou trabalhar a densidade demográfica procuro trabalhar antes a densidade demográfica da casa dos alunos” (professora de Geografia). “Costumo trabalhar valorizando as potencialidades do educando, mesmo durante as avaliações, considero não só o que é escrito, mas também os cálculos expostos de forma oral” (professora de Matemática). [...] na medida do possível tento utilizar algumas práticas pedagógicas interativas conforme orientação de nossa pedagoga: proponho trabalhos em dupla e em grupo; ou seja, trocam conhecimentos, um aluno responde e o outro escreve. Procuro incentivar as crianças a buscarem significados naquilo que leem e escrevem (professora de Português). Essas práticas pedagógicas assemelham-se à busca de significados que a pesquisadora Stoltz (2010) enfatiza, inspirando-se em Vygotsky (1994). Para a pesquisadora: [...] O significado é culturalmente construído e partilhado e é nele que o pensamento e palavra se unem e originam o pensamento verbal. É pelo significado que temos a generalização e a possibilidade de transformação. O significado é a parte fundamental da palavra (STOLTZ, 2010, p. 176). Em análise, e considerando-se as respostas dos professores em entrevista, três dos quatro professores do ensino regular, de forma geral, afirmaram que sentem dificuldades em trabalhar com estudantes com AH/SD, declarando que não se sentem totalmente preparados, pois em seus cursos não receberam formação específica para trabalhar com alunos com perfil tão peculiar; sendo que, com este aluno (sujeito do estudo) em especial, não externaram essa problemática; pode-se refletir que talvez seja devido ao fato de lecionarem para o educando já há quatro anos e o conhecerem bem. Assim, confirma-se o já evidenciado de que alguns professores ainda sentem dificuldades em trabalhar com alunos superdotados (Taucei, Stoltz & Gabardo, 2012). 4. CONCLUSÃO As entrevistas semiestruturadas realizadas com os participantes da pesquisa, as observações de campo e o estudo da literatura disponível sobre as temáticas estudadas, promoveram subsídios para a análise da pesquisa desenvolvida. Os dados coletados com as entrevistas semiestruturadas sugerem que o adolescente (estudo de caso) apresenta um alto potencial cognitivo: raciocínio lógico apurado, expressiva habilidade e criatividade em articular informações de conteúdos e de disciplinas variadas, envolvimento com as atividades e significativo desejo de aprender sempre mais, destacando-se, principalmente, nas disciplinas de Matemática, Ciências e nas atividades de pesquisa, experimentos e invenções criativas. Assim, pode-se considerar que o estudante possui características de uma pessoa com indicadores de “superdotação acadêmica e produtivo-criativa”, características apresentadas e destacadas nos estudos e na Teoria dos Três Anéis, proposta por Renzulli (1978; 1984). Foi possível perceber uma forte motivação, comprometimento e envolvimento por parte do aluno em relação á escola, propondo sempre formas diferenciadas para as resoluções de problemas em sala de aula, contribuindo assim com discussões pertinentes para o enriquecimento das aulas. Contudo, o estudo evidenciou que o educando, apesar de se relacionar bem com os professores, apresenta sérias dificuldades em interagir e desenvolver vínculos de amizade com os alunos de sua faixa etária, que estudam com ele. No que tange as práticas pedagógicas desenvolvidas na escola, observa-se que apesar das dificuldades estruturais e de formação especializada de alguns professores, a pedagoga vem orientando um trabalho voltado a práticas pedagógicas interativas e criativas, valorizando a produção dos alunos. Contudo, apesar das práticas pedagógicas destacadas pelo quadro docente, analisandose o boletim do estudante, percebe-se que em algumas disciplinas nas quais foi enfatizado o alto potencial do aluno as notas aparecem como “insuficientes”; é possível considerar que talvez essa contradição seja decorrente das dificuldades que alguns professores expressaram em trabalhar com estudantes com AH/SD, pode-se concluir que isso se dá devido à falta de formação especializada e a complexidade do perfil desses alunos. Quanto as Salas de Recursos, os professores são extremamente comprometidos e envolvidos com o seu trabalho; entretanto, observa-se a necessidade de maior investimento por parte dos governos estadual e federal, no enriquecimento destes ambientes. Apesar do tema criatividade não ter sido o foco principal da pesquisa, percebeu-se em vários momentos das entrevistas semiestruturadas que os participantes se referiam a esse tema, principalmente, quando respondiam questões sobre o aluno. Além de se perceber que as práticas educacionais adotadas buscavam o favorecimento da criatividade e a valorização da produção do aluno. Conclui-se que a estimulação e a consideração de atividades criativas tornam-se fundamentais para o desenvolvimento de significados em relação aos conteúdos escolares trabalhados. REFERÊNCIAS Alencar, E. M. L. S. (2001). Criatividade e educação de superdotados. Petrópolis, RJ: Vozes. Alencar, E. M. L. S. (1986). Psicologia e educação do superdotado. São Paulo: E.P.U. Bahia, S. & Nogueira, S. I. (2005). Entre a teoria e a prática da criatividade. Rev. Crearmundo – Creatividad - Ética – Educación, n. 03, especial libros. Recuperada em: 22 mar. De 2013. De: www.crearmundos.net/primeiros/revista Csikszentmihalyim M. (2000). Creativity: Na overview. In. A. E. Kazdin (Ed.), Encyclopedia of psychology (Vol. 2, ), Washington, DC: American Psychological Association. Delou, C. M. C. (2012). 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