CONTRA * Doutora em Psicologia da Educação pela PUC/ SP Professora de Departamento e do Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Bolsista em produtividade do CNPq E-mail: [email protected] PSICOLOGIA (EM) CONTEXTOS DE ÇÃO FFORMAL: ORMAL: das ARIZA ESC OL ESCOL OLARIZA ARIZAÇÃO práticas de dominação à (re)invenção da vida PSYCHOLOGY AND (IN) CONTEXTS OF FORMAL SCHOOLING: practices of domination and (re)invention of life ** Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP Professora do Departamento de Educação e Ciências do Comportamento e do Programa de Pósgraduação em Educação Ambiental da Fundação Universidade Federal do Rio Grande - FURG E-mail: [email protected] Correspondência: Address: Andréa Vieira Zanella Rua Manoel Luíz Duarte, 235 - Lagoa da Conceição Florianópolis – SC Cep 88062-415 Susana Inês Molon Rua São Leopoldo, 320 - Cassino Rio Grande - RS Cep 96205-180 PONTOS Andréa Vieira Zanella* Susana Inês Molon** Resumo Este trabalho, eminentemente teórico, tem por objetivo demarcar a necessidade da produção de práticas psi potencializadoras da vida, comprometidas com a criação de formas novas de existência singulares e coletivas em contextos educacionais. Para tanto, parte-se de reflexões sobre o modo como as relações entre Psicologia e Educação vêm se processando historicamente no Brasil, destacando-se a crítica às interfaces que mascaram as condições históricas que (re)produzem relações sociais de dominação/submissão e suas variadas formas de discriminação e violência. Em contraposição, defende-se a necessidade de relações estéticas e éticas, pois estas se caracterizam pela experimentação e constituição de relações sociais mutuamente constitutivas cujo foco é a sensibilidade e o acolhimento à diversidade que caracteriza a condição humana. A bs tr act bstr tract Artigo recebido em: 19/06/2007 Aprovado em: 01/07/2007 The objective of this eminently theoretical work is to demarcate the need for the production of psi practices that empower life, committed to the creation of new forms of singular and collective existence in educational contexts. It starts with reflections on the way in which relationships between Psychology and Education have been Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 255 CONTRA PONTOS historically constructed in Brazil, highlighting the criticism of the interfaces which mask the historical conditions that (re)produce social relationships of domination/ submission and their various forms of discrimination and violence. In contraposition, it defends the need for aesthetic and ethical relationships, since these are characterized by experimentation and constitution of mutually constitutive social relationships, which focus on sensibility and embracing the diversity that characterizes the human condition Palavras-chave Psicologia e Educação; Psicologia escolar; práticas psi; relações éticas e estéticas. Keywords Psychology and Education; School psychology; Psi practices; Ethical and aesthetic relationships. É a partir do olhar sobre os modos como as relações entre Psicologia e Educação vêm se processando historicamente no Brasil que se inicia este trabalho, o qual tem por objetivo refletir sobre a produção de práticas psi potencializadoras da vida, comprometidas com a criação de formas novas de existência singulares e coletivas em contextos educacionais. Psicologia e Educação caracterizam-se como campos de saber e de intervenção que historicamente têm estabelecido relações diversificadas. No Brasil, há momentos em que as contribuições da psicologia assumiram preponderância na compreensão e explicação dos fenômenos educativos; em outras épocas, as reflexões psicológicas foram relativamente deixadas em segundo plano, sendo resgatadas em momento posterior, com nova ênfase. Esses afastamentos e aproximações explicitam o modo de construção dessa interface, bem como dizem respeito à maneira como cada uma das áreas estabelece relação com as demais e com ela própria. No afã de encontrar explicações sobre o ensinar e aprender e superar as dificuldades enfrentadas no processo de escolarização formal, a Educação buscou contribuições da Psicologia que, para superar essa demanda, produziu teorias, métodos e técnicas sobre os processos de desenvolvimento e aprendizagem humana. Em sua maioria, essas contribuições estiveram 256 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon CONTRA PONTOS comprometidas com a adaptação e o ajustamento social em uma determinada visão de um ser humano e de mundo que penetraram e interferiram na avaliação do desempenho escolar das crianças e dos adolescentes, sobretudo das classes subalternas. A inserção de profissionais psi em contextos escolares, ancorada nessas teorias, métodos e técnicas, também apresenta características que indicam relações complexas, em parcerias não necessariamente consoantes. Alguns profissionais de instituições escolares compartilham do ideário de ajustamento da ciência psicológica e demandam a intervenção psi daí decorrente, especialmente a função diagnosticadora adaptativa. Aliam-se assim a projetos sociais que mascaram as condições históricas que (re)produzem relações sociais de dominação/submissão e suas variadas formas de discriminação e violência, contribuindo para a reificação das instituições escolares como “espaço privilegiado de disciplinarização dos corpos mediante a articulação de estratégias de heterogestão dos pensamentos e atos: obsessão pela ordem, pontualidade, compostura, distribuição dos fazeres e dizeres dentro de uma regulada espaçotemporalidade, hierarquização entre saber formal e informal etc.” (HECKERT et al., 2001, p.240). Em contrapartida, outros educadores clamam por parcerias que contribuam para o redimensionamento das relações sociais travadas no contexto escolar, de modo a que a escola constitua-se efetivamente como espaço de múltiplos encontros, como lócus de socialização, produção e apropriação de saberes necessários à transformação da sociedade em direção a modos de vida solidários e dignos. Esses educadores engajam-se na construção de novos projetos educativos e buscam orientações teóricas que considerem as pessoas a partir das relações concretas que estabelecem, por cujo intermédio constituem-se cultural e simbolicamente na relação com o outro e em relação ao outro, nos campos da intersubjetividade face a face e anônima. Os processos de subjetivação e a afetividade, desse modo, são compreendidos em uma perspectiva ética e estética, potencializadora de vida. Da Educação à Psicologia à Educação: alguns r ecor t es his tór icos tóricos Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 257 CONTRA PONTOS A Psicologia enquanto ciência emerge juntamente com o projeto de modernidade. Essa afirmação se sustenta à medida que se toma como parâmetro não as datas oficiais, como a criação do primeiro laboratório, em Leipzig em meados do século XIX, por W.Wundt, mas evidências de “reflexões sistemáticas sobre termos de ordem psicológica” que produziram diferentes “camadas de discurso” (ZUQUIM, 2003, p.108). Essas reflexões, portanto, são marcadas pelas preocupações e discursos dominantes em determinados momentos históricos, e os primórdios da psicologia como ciência revelam a necessidade de afirmação do ser humano demiurgo de si mesmo que se revelava nas discussões que diferenciavam aspectos psicológicos e fisiológicos, corpo e mente, cultura e natureza. O debate sobre a temática explicitou a diversidade de explicações que vieram a configurar diferentes psicologias, ora defensoras da redução dos aspectos psicológicos aos fisiológicos à medida que tudo poderia ser explicado a partir da teoria dos reflexos, ou então as que separavam inexoravelmente os dois pólos, concebendo-os como oriundos de diferentes e inconciliáveis naturezas. Uma terceira via de explicação, que devido a motivações políticas só veio a ser conhecida no ocidente a partir de meados dos anos sessenta do século XX, foi proposta por Lev S.Vygotsky. Para este autor, processos psicológicos e fisiológicos constituem uma unidade no sentido de que não podem ser divididos, produzindo uma qualidade que caracteriza o propriamente humano. Alerta, no entanto, que “[...] assumir a unidade do psíquico e do físico reconhecendo, em primeiro lugar, que a psique surgiu em um determinado nível de desenvolvimento da matéria orgânica e, em segundo, que os processos psíquicos constituem uma parte inseparável de conjuntos mais complexos, fora dos quais não existem e portanto não podem ser estudados, não deve nos levar a identificar o psíquico com o físico” (VYGOTSKI, 1991, p.100). Na área da Educação - assim como na antropologia, ciência que se funda e firma com as reflexões sobre a temática - esse debate centrou-se na discussão sobre a relação natureza e cultura 1 . Diante de sucessos e insucessos no processo de escolarização formal, as explicações voltavamse predominantemente para a bagagem hereditária dos aprendizes, ou então, a partir do desenvolvimento das teorias ambientalistas nas primeiras décadas do século XX, para as características do meio ambiente que produziam diferenças e determinavam os destinos de milhares de crianças. 258 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon CONTRA PONTOS Aparentemente esse debate foi esquecido, na seara da Psicologia, à medida que a profissão de psicólogo(a) começou a ganhar visibilidade, pois com esta passaram então a predominar, nos discursos psi, conceitos relacionados às demandas dos contextos em que o(a) profissional se inseria. Dizemos aparentemente, pois o desenvolvimento de técnicas e perspectivas de intervenção em Psicologia, bem como de suas teorias, alicerça-se necessariamente sobre um determinado modo de conceber a relação natureza e cultura que foi transferido, de certa forma, para o debate sobre as relações entre processos de desenvolvimento e aprendizagem. Contextos escolares tiveram importante lugar na conformação das características e tendências da intervenção profissional, bem como no desenvolvimento da ciência psicológica. Segundo Yazzle (1990, p.14), “a bibliografia disponível nos diz que a psicologia enquanto instrumento aplicado à educação se origina justamente no final do século XIX, com o empenho dos educadores e psicólogos em classificarem crianças com dificuldades escolares e proporem a elas métodos especiais de educação, a fim de ajustá-las aos padrões de normalidade definidos por aquela sociedade”. Políticas públicas tiveram igualmente participação nesse sentido, como se constata com a demanda do governo francês, no início do século XX, que resultou no desenvolvimento de instrumentos psicológicos de mensuração, mais especificamente os primeiros testes de inteligência2 . Esses primeiros instrumentos psicológicos, por sua vez, e muitos dos produzidos ao longo do século XX e utilizados até hoje por profissionais da área, serviram como ferramentas de legitimação das teses eugênicas que buscavam combater, a partir de normatizações médicas que julgavam os corpos, suas funções e seus comportamentos, as diferenças reconhecidas como indicativas da degeneração da raça humana (LOBO, 2001). A utilização dessas ferramentas por psicólogos(as) que atuam na área da Educação era (e talvez continue sendo) uma constante. Não dispomos de dados que nos permitam afirmar essa prática nos dias de hoje, porém a dúvida se sustenta à medida que o Conselho Federal de Psicologia implementou, durante o ano de 2003, um trabalho de revisão dos testes psicológicos de modo a atestar os que poderiam continuar sendo utilizados pelos profissionais da área. Esse movimento veio ao encontro de necessidades da própria categoria como também do descrédito desses instrumentos, cuja eficácia em exames de seleção de pessoal passava a ser Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 259 CONTRA PONTOS questionada junto à justiça ou denunciada em revistas semanais de circulação nacional, voltadas para o grande público. A discussão necessária sobre os testes psicológicos, ao nosso ver, precisa centrarse não somente nos instrumentos em si, mas principalmente no uso que destes se faz e na lógica que os perpassa. Podem revelar informações sobre os sujeitos, sim, porém é preciso, certamente, conhecer as características desses testes e o que efetivamente permitem mensurar para que intervenções voltadas à promoção da vida sejam possíveis. Quanto à lógica que os perpassa, é claramente comparativa e classificatória, pois funda-se em uma concepção de normalidade e desvio que é avessa ao reconhecimento de diversidades culturais e das condições sociais e históricas que as (re)produzem. Essa lógica aparece por vezes em seu avesso, quando se defende que “[...]é preciso que convençamos a todos de que um desenvolvimento saudável na infância previne desajustamentos na idade adulta, ou melhor, que quando jovens aprendem a identificar e a lidar com seus “pesadelos”, eles previnem problemas futuros” (Jornal ABRAPEE Nacional, 1996, p.1). Essa chamada de jornal defende a inserção de psicólogos(as) em contextos escolares assentada em um olhar sobre as pessoas que se centra no desvio, no desajuste, na falta, entendidos em sua negatividade e como condições a serem superadas, a partir de uma intervenção psicológica profilática, em nome de uma sociedade igualitária. Como essa lógica se difunde? Através dos vários saberes e fazeres de profissionais de distintas disciplinas que fazem uso de seus conhecimentos como ferramentas de legitimação de um lugar social de saber/poder, como muitos(as) profissionais psi. A atuação do(a) pr of issional psi prof em contextos de escolarização formal: que práticas têm sido produzidas? As práticas de profissionais psi em contextos escolares brasileiros, para além das ferramentas e conceitos psicológicos, foram marcadas, nesses 260 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon CONTRA PONTOS 42 anos de reconhecimento da profissão, pela predominância das intervenções voltadas à manutenção da ordem escolar institucionalizada via ajustamento de alguns desviantes. Predominaram, não sem surpresa, o atendimento a alunos(as) encaminhados(as) para atendimento psicológico por apresentarem os ditos “problemas de aprendizagem” (SOUZA, 1997) com a decorrente intervenção do profissional psi no diagnóstico e avaliação desses “problemas”, geralmente vistos, apesar das rupturas com esse modo de atuar e dos avanços teóricos no campo psi, como sendo exclusivamente de responsabilidade de seus portadores – os alunos - e/ou suas famílias, consideradas “desestruturadas”3 . Como foi construída essa relação entre “problemas de aprendizagem” e modo de atuação psicológica? No Brasil, o surgimento da disciplina “Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem”, na década de 60, na Universidade de São Paulo, de acordo com Patto (1997), foi marcante no sentido de definir a atuação escolar dos psicólogos como avaliadores e medidores das capacidades e habilidades dos alunos, sobretudo das dificuldades de aprendizagem no que diz respeito à leitura e à escrita, causadas pelas deficiências intelectuais, sensoriais e pelos distúrbios neurológicos evolutivos. Essa orientação no atendimento de alunos(as) com problemas de lateralidade e dislexia manifesta o significado atribuído à disciplina: “Psicologia do Escolar e Problemas de aprendizagem”, tal como foi denominada em seus primórdios nos cursos de graduação da área. Herdeira dessa tradição, a atuação dos(as) psicólogos(as) em contextos de escolarização formal caracteriza-se pelo uso das ferramentas psicológicas - os testes; porém, mais significativo e preocupante, por ser construtora de uma prática psi, foi a importação e a imposição de conceitos desenvolvidos e ancorados em uma visão de ser humano e de mundo comprometida com o modelo científico da sociedade norteamericana, (PATTO, 1993). Com isso, as práticas psi sustentam-se em explicações e teorias que se tornam essencialmente questionáveis em termos dos parâmetros reconhecidos cientificamente bem como do seu caráter ideológico. Tal condição pode ser acompanhada por meio da “história não contada dos distúrbios de aprendizagem”, em que Moysés e Collares (1992) revelam as implicações da construção de modelos científicos Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 261 CONTRA PONTOS alicerçados em crenças e mitificação de autores, mas que articuladas a uma visão organista e funcionalista da realidade social proporcionou a formação acrítica de profissionais psi, tornando-os colaboradores da patologização do contexto escolar e da medicalização do processo ensino-aprendizagem. Segundo as autoras, os psicólogos – orientados pelo conceito de distúrbio de aprendizagem, visto como problema médico que diz respeito à doença neurológica – acreditam que os problemas no processo de escolarização referem-se a uma doença orgânica que afeta o(a) aluno(a), exclusivamente. Com isso, o conceito médico difundido é definidor da formação de psicólogos (SOUZA, 2000), sendo a intervenção psi daí decorrente individualizada, baseada na avaliação e na medição de habilidades na busca das alterações intrínsecas aos portadores desses distúrbios provocados por uma disfunção neurológica. Esse processo de biologização e, concomitante, de patologização da aprendizagem é concretizado tanto no uso da expressão “distúrbios da aprendizagem” quanto “dificuldades de aprendizagem” (preferida pelos psicólogos e educadores) assim como nos demais termos que surgem como a “disfunção cerebral mínima” e os “distúrbios por déficit de atenção e hiperatividade”, dentre outros que agregam manifestações comportamentais e/ou cognitivas, mas sem alterar o enfoque biológico e individual. Perpetuam-se, assim, práticas legitimadoras da dominação social e política, de amordaçamento de uma classe social sobre a outra em função de práticas psicologizantes e patologizantes do processo de escolarização formal. A denúncia da conivência e a crítica ao comprometimento ideológico da área psi com as formas de dominação, exploração, tortura e exclusão são necessárias (BOCK, 2003), mas não suficientes. É preciso recuperar outras histórias não oficiais e revelar/produzir outros modos de intervenção e atuação pautados por concepções que visam à valorização dos seres humanos em sua diversidade, à criação de uma outra sociedade e novos modos de subjetivação. É urgente assumir a potência de vida como eixo orientador das nossas idéias e nossas ações, aliando práticas psi às perspectivas ontológicas, éticas e estéticas, para além dos horizontes epistemológicos e psicológicos do modelo científico da modernidade (SAWAIA, 1998). 262 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon CONTRA PONTOS Práticas psi potencializadoras de vida e contextos escolares: algumas anotações A abordagem histórico-cultural e os enfoques sócio-históricos desenvolvidos no cenário educacional e na Psicologia Social, compartilhados e construídos por profissionais de diversos e múltiplos campos do conhecimento, mostram-se extremamente profícuos e promissores no sentido das rupturas, das transformações e da constituição de referenciais teóricos, metodológicos, filosóficos, estéticos e éticos, que contemplam e promovam superações das determinações externas e internas do ser humano e da sociedade, bem como possibilitam resistência às diversas formas de dominação e submissão que os sujeitos estão e são submetidos particular e coletivamente. Assim, a estética e a ética, implicadas às dimensões epistemológicas, filosóficas e políticas, não são artefatos normativos e morais nem questões formais epistêmico-axiológicas e valorativas, mas sim dimensões praxiológicas, constitutivas da vida, potencializadoras e (re)criadoras de novos modos de existência. Na Psicologia e na Educação não há como negar essas dimensões, seu caráter transformador que estabelece relações com a criação e com a arte, oportunizando o diálogo e a solidariedade com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Esses referenciais têm procurado explicitar a lógica perversa da inclusão e exclusão humana na desigualdade social, possibilitando enfrentar os desafios teóricos e metodológicos e os dilemas éticos e políticos na elaboração e compreensão de novos modos de ser e devir para o porvir. São projetos revolucionários que nascem comprometidos com as transformações sociais, em direção a uma existência digna para todos em uma perspectiva que acolhe diferentes campos de saber, atualizado as inovações tecnológicas e tendências contemporâneas, transitando entre as diferentes abordagens e a diversidade de atuação e de intervenção, sobretudo de invenção e criação. Essas orientações permitem a superação da visão fragmentada e dicotomizada da realidade social e da concepção do fenômeno psicológico como algo cindido e retalhado e, ao mesmo tempo, homogêneo e imutável. As indagações em torno do sujeito e da subjetividade tornamContrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 263 CONTRA PONTOS se mais intensas e, não por acaso, mais distantes da ciência psicológica hegemônica, oportunizando a realização de reflexões que superem a disciplinarização característica das ciências modernas e se voltem para a compreensão dos processos de constituição do sujeito e de produção da subjetividade, essencialmente culturais. Nesse sentido, em contextos de escolarização formal, abre-se espaço para refletir e analisar aquilo que era visto como o incômodo e o estranho, pois dizia sobre o que deveria ser o não freqüente, o impróprio e o impertinente (SMOLKA, 2000) nas práticas educativas, já que fazia parte das interferências subjetivas, portanto algo não observável nem dizível nem inefável para os encontros harmônicos da escolarização brasileira idealizada. Abre-se espaço para a produção, juntamente com os diferentes atores/ autores que instituem os contextos escolares, de possibilidades de emergência do novo, de criação, sendo que [...] produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer [...] A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum” (PELBART, 2003, p.23). Nas escolas pulsam vidas que clamam por espaços de escuta e vazão para que possam eclodir. Pulsam desejos, recolhidos e abafados em razão das normas e ameaças de punição freqüentes, que podem contribuir para a transformação daquele lugar que aprisiona em lugar de invenção. Práticas psi podem ser grandes parceiras nesse movimento se atentas estiverem ao que ali pulsa, às possibilidades de criação e (re)invenção dos espaços, das regras, das formas de ser, de falar e silenciar que, acolhidas e desnaturalizadas, podem vir a ser transformadas, assim como os modos de ser e estar ali cristalizados. Trabalhar-se-ia, nesse sentido, na transformação estética de espaços, saberes e fazeres historicamente avessos ao novo, com disponibilidade de abertura à pluralidade de cores, sabores, saberes e texturas com que a vida é tecida. A experimentação da vida que pulsa, da subjetividade que resiste e cria, ao mesmo tempo, motiva encontros de corpos potentes e afetivos, do fogo que arde e repõe a paixão. 264 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon CONTRA PONTOS Busca-se o inusitado do imediato, o estranhamento do posto, imposto, que ao invés de ser reposto descristaliza-se e modifica-se em um salto revolucionário que provoca irrupções, descontentamentos e novas sensações e percepções do que está posto provocando paisagens e passagens de novas produções de subjetivação e possibilidades de objetivação, de outras fantasia, novos desejos e sonhos. Consider ações f inais Considerações Compreendendo que as possibilidades de dominação, de resistência e de criação são histórica e culturalmente produzidas, bem como o são os sujeitos que as constroem e as reproduzem, destacamos a necessidade e a urgência do redimensionamento das práticas psi, principalmente as que se objetivam na interface com a Educação, o que foi foco das reflexões aqui apresentadas. Para esse movimento é mister que a própria formação em Psicologia seja problematizada, pois é fundamental que profissionais comprometidos com a potencialização da vida sejam ética e esteticamente outros de si mesmos, no sentido de que possam estranhar em si o que é fruto de um modo de subjetivação pautado pela lógica de inclusão e exclusão, e empreendem movimentos de abertura ao acolhimento das diferenças que sinalizam a pluralidade da existência humana, porém atentos às violências que aviltam essa mesma vida. Vimos tecendo reflexões sobre formação estética a partir dos resultados de um projeto integrado de pesquisa do qual participam pesquisadoras4 da região Sul do País, todos educadoras e psicólogas que trabalham com os referenciais do materialismo histórico e dialético. O projeto integrado iniciou com um estudo sobre o perfil socioeconômico e cultural dos professores das redes municipais das cidades de Rio Grande-RS, ItajaíSC e Florianópolis-SC (ver MOLON, ALVES, ANÇA, SCANAGATTA, 2004; e ZANELLA, DA ROS, URNAU E CABRAL, 2004). A partir desses resultados, elaboramos uma proposta de formação continuada de professores por meio de oficinas estéticas que estão possibilitando a resignificação das relações entre os próprios professores e deles consigo mesmos. Na continuidade da pesquisa, a relação dos professores com os(as) alunos(as) será foco de análise e intervenção de modo a oportunizar Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 265 CONTRA PONTOS o diálogo sobre as possibilidades das práticas educativas de invenção e de criação em contextos de escolarização formal. Buscamos com essa proposta experimentar e refletir junto com os professores e os alunos a respeito da elaboração criadora da realidade cotidiana, introduzindo a discussão sobre a atividade criadora e a imaginação enquanto formas de objetivação e subjetivação dos sujeitos implicados nas relações pedagógicas e nas práticas sociais, para que, a partir das teias tecidas na vida diária, possam multiplicar os fios e as tramas ousando novas conjugações e combinações, transcendendo limites, inventando e re(criando) novas formas de existência singular e coletiva, e estabelecendo, assim, relações estéticas e éticas com a realidade social, com os outros e consigo mesmos. Entendemos que as relações estéticas e éticas diferenciam-se das práticas de dominação e de disciplinarização presentes no contexto de escolarização formal, pois se caracterizam pela experimentação e constituição de relações sociais mutuamente constitutivas cujo foco é a sensibilidade e a diversidade da complexa atividade humana. E sensibilidade para o reconhecimento das infinitas possibilidades de criação que caracterizam a realidade é o fundamento que permitirá a todos e a cada um de nós a (re)invenção das relações das quais ativamente participamos, das condições concretas que nos circundam, dos espaços e tempos. Essa sensibilidade, portanto, é condição para o redimensionamento das práticas sociais, dentre essas as práticas psi, produtoras que são de sujeitos e histórias, de modos de vida. Referências BOCK, A.M.B. Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites. In: ______ . (org.) Psicologia e o compromisso social social. São Paulo: Cortez, 2003, p.15-28. 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Notas Sobre o debate natureza e cultura na antropologia e as contribuições de Vygotsky para a temática ver Nuernberg e Zanella (2003). 1 Contrapontos - volume 7 - n. 2 - p. 255-268 - Itajaí, mai/ago 2007 267 CONTRA PONTOS Ficaram conhecidos como testes de inteligência as provas elaboradas a partir dos currículos das escolas francesas que voltavam-se à classificação de sujeitos a partir de uma concepção estrita de cultura. Na verdade, à medida que se privilegiou um determinado tipo de saber – o científico - e este foi instituído como sinônimo de inteligência, saberes outros foram desconsiderados e a seus sujeitos negado toda e qualquer possibilidade de serem reconhecidos enquanto culturais e ao mesmo tempo produtores de cultura. As aspas utilizadas no texto vêm justamente demarcar o descompasso entre aquilo que os testes mensuram e o que pode vir a ser considerado inteligência. 2 3 A crítica à concepção de família desestruturada encontra-se em Brant e Melo (1995). As pesquisadoras envolvidas no projeto integrado de pesquisa intitulado “Constituição do sujeito e atividade criadora: investigando professores das séries iniciais do ensino fundamental em contextos de formação continuada” são: Andréa Vieira Zanella (UFSC), Cássia Ferri (UNIVALI), Kátia Maheirie (UFSC), Luciane Schlindwein (UNIVALI), Silvia Zanatta Da Ros (UFSC) e Susana Inês Molon (FURG). 4 268 Psicologia (em) contextos de escolarização formal:... Andréa Vieira Zanella; Susana Inês Molon