EmilSobottka O Trabalho

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33º Encontro Anual da Anpocs
26 a 30 de outubro de 2009, Caxambu (MG)
GT 27: Para conde vai a teoria social contemporânea...
O trabalho na discussão sobre bem-estar e
reconhecimento
Emil A. Sobottka, Pucrs
Texto preliminar
O trabalho na discussão sobre bem-estar e
reconhecimento
Emil A. Sobottka1
Resumo: A centralidade das relações de trabalho para organizar toda a vida
social e para acessar direitos sociais foi questionada por autores
como Habermas e Offe. Variações sobre este diagnóstico podem
ser encontradas em diversos autores, que constroem a respeito
uma ampla gama de proposições teóricas – antevendo até mesmo
o fim do trabalho como estruturador de biografias e relações
sociais. A grande dificuldade nestes diagnósticos é responder com
fundamento teórico a pergunta: qual a outra instituição social
poderia ter hoje a centralidade que as relações de trabalho tinham
outrora? Ao invés de seguir por esta via de encontrar um sucessor
para o trabalho, Honneth, em texto recente, manifesta a pretensão
de extrair desta instituição critérios éticos que permitam a crítica da
realidade sem recorrer ao auxílio de critérios externos. A presente
comunicação pretende discutir esta proposição.
Discussões sobre o lugar das relações de trabalho tem uma tradição
longa nas ciências sociais – tão longa quanto a própria área do conhecimento.
Esta importância é reforçada pela existência constante de subseções dedicadas
ao tema nas principais sociedades científicas e nos principais eventos da área.
Em décadas recentes, contudo, vozes tem se levantado para relativizar esta
importância, ou, no mínimo, para convidar a uma reavaliação dela.
Marx tem se dedicado muito à questão do trabalho; na impossibilidade de
rastrear suas concepções e as mudanças que foram ocorrendo, aqui me
limitarei a retratar suas reflexões fundantes, tal como se encontram nos
manuscritos de Paris (Marx, 2004; Magnis, 1975). Para o jovem Marx, o ser
1 Doutor em Sociologia e Ciência Política, professor na Pucrs e bolsista do CNPq. O presente trabalho
acolhe resultados parciais da pesquisa: Reconhecimento, cidadania e democracia, que conta com apoio
do CNPq e das fundações Humboldt e Thyssen.
humano realiza sua humanidade no trabalho; como ser livre, ele dispõe da
totalidade da natureza não humana para realizar nela sua essência humana.
Nisso ele difere dos animais, pois entre esses cada espécie supre suas
necessidades mediante atividades determinadas e inscritas na espécie. A
realização da essência do ser humano na natureza pelo trabalho leva a que o
produto do trabalho humano contenha uma parte da natureza humana em si.
Nesse sentido, há um movimento duplo: o ser humano, um ser livre, se realiza
no trabalho de um lado porque assim expressa sua humanidade e, de outro,
porque projeta esta humanidade no produto. Ele separa/aliena parte de sua
natureza e a recebe de volta ao reapropriar-se dela suprindo com o produto
suas necessidades.
Marca-se aqui uma diferença fundamental em relação à economia política
clássica: para ela, o trabalho gera valor, logo, quanto mais o homem trabalha,
mais ele produz riqueza, mais ele enriquece. Em Marx, o trabalho absorve
natureza humana, portanto, quanto mais o homem trabalha, mais ele se esvazia
de sua humanidade, ficando, pois, mais pobre. A alienação, num primeiro
momento, é parte inerente a este ciclo: o ser humano separa-se de si e se
projeta no produto de seu trabalho; sua natureza se materializa no produto do
trabalho. Apenas quando o homem é separado do fruto do seu trabalho, a
alienação é também desumaniza o homem. Nesta circunstância, não basta
aumentar o salário, pois o dinheiro é uma mercadoria que não contém a
natureza humana que se materializou.
Dito de outra forma: Como ser livre, o homem se realiza no trabalho.
Quando este trabalho é feito por necessidades externas, o homem que trabalha
é utilizado como meio para um fim. O produto não volta a ele, mas é separado,
tornando o trabalho alienado. Como o produto do trabalho, agora alienado,
contém parte da natureza do homem, o trabalho alienado torna o homem que
trabalha em trabalhador alienado. Tanto para o homem livre, como para homem
alienado através de relações capitalistas, o trabalho está no centro de sua
natureza como ser humano.
A teoria crítica colocou inicialmente as relações sociais de trabalho no
centro de sua reflexão. Depois concentrou-se na relação do homem com a
natureza. Como é sabido, ela enfrentou dificuldades teóricas com esta ênfase,
dificuldades estas que Horkheimer e Adorno não conseguiram superar
teoricamente.
Na década de 1960, Habermas, em seu texto Trabalho e interação
(Habermas, 2003, p. 9-47), separa a esfera da reprodução material da esfera da
reprodução cultural, e passa a dedicar-se a uma teoria na qual o trabalho recebe
um lugar totalmente secundário, porquanto as relações sociais que a ele dizem
respeito, na visão do autor, seriam coordenadas no interior de um sistema que
prescinde da linguagem.
Alguns anos mais tarde, Claus Offe (1989) colocou a questão, se o
trabalho ainda pode ser considerado uma categoria chave da Sociologia.
Segundo ele, há pelo menos três razões que levaram os cientistas sociais
clássicos a considerar o trabalho como central para suas respectivas teorias.
Primeiro, porque no século 19 emergiu em grande quantidade o trabalho
separado de outras esferas da vida e o trabalhador como uma categoria social,
cujas atividades eram reguladas pelo mercado e pela coação estrutural que a
obrigava a vender sua força de trabalho para poder sobreviver. Segundo, a
racionalidade técnica ou instrumental passou a orientar a relação do homem
com a natureza, e a busca de objetivos calculados em termos monetários
passou a reger a relação entre os agentes econômicos. Por fim, estabeleceu-se
um segmento especializado na gestão destas relações.
À época em que escreve seu texto, no entanto, para Offe haveria “ampla
evidência” de que tanto o trabalho como a posição dos trabalhadores na
produção não são mais tratados como “o princípio organizador das estruturas
sociais”. Uma diversidade de temas, alguns inclusive derivados distantes da
esfera do trabalho, tomaram seu lugar, porquanto a heterogeneidade das
situações de vida tornou menos plausível que aquela condição pudesse ser a
estruturadora central das diversas facetas da vida. Nas palavras de Offe:
A contínua diferenciação interna do conjunto dos trabalhadores
assalariados, assim como a erosão das fundações políticas e culturais
de uma identidade coletiva centrada no trabalho ampliaram estes
dilemas das formas contemporâneas de trabalho assalariado a tal ponto,
que o fato social do trabalho assalariado, ou a dependência em relação
ao salário, não constitui mais o foco da identidade coletiva e da divisão
social e política. Com relação a seus conteúdos objetivos e subjetivos de
experiência, muitas atividades remuneradas pelo salário têm pouca
coisa em comum além da palavra “trabalho” (p. 9).
O autor então conclui que o trabalho “foi não só objetivamente deslocado
de seu status de fato da vida, central e auto-evidente; como conseqüência desta
evolução objetiva, mas inteiramente contrária aos valores oficiais e aos padrões
de legitimação desta sociedade; o trabalho está sendo privado também de seu
papel subjetivo como a força motivadora central na atividade dos trabalhadores”.
O trabalho normativamente sancionado como dever e sistemicamente colocado
como necessidade perderam seu poder de convencimento, tanto no sentido de
uma pluralidade de experiências ocupacionais como pela cada vez mais
generalizada experiência da falta de trabalho. Esta convicção, que já vinha
desde inícios da década de 1970 (Offe, 1973), pode ser encontrada ainda em
escritos recentes (Offe, 1998).
No campo específico da sociologia do trabalho, por alguns anos ainda
prevaleceram os estudos que buscavam enfocar e compreender esta
transformação (Castro e Leite, 1994). De um lado, estudos sobre o movimento
sindical, com seus altos e baixos, inicialmente empolgada com emergência
localizada de movimentos fortes, mas culminando em processos de longo prazo
que mudaram sua face da combatividade à resistência. De outro, estudos sobre
os distintos modos de reestruturação da produção, da organização da empresa
e das relações de trabalho, crescentemente vinculados à anonimização e
desterritorialização do capital, com a correlata emancipação do lado empregador
face às regras e ao controle legal e social, desequilibrando em favor do capital
as relações sociais implicadas no mundo de trabalho. Para além destes estudos,
muitos autores deram conjuntura à crítica global do modo capitalista, tomando
principalmente como foco o ressurgimento do liberalismo em nova roupagem e
como referência de crítica imaginários advindos do marxismo.
Ao lado dos autores que têm reiterado diagnósticos de época nos quais
ao trabalho é negado o potencial para estruturar centralmente biografias e,
sobretudo, relações sociais, há crescente atenção dedicada aos empecilhos
interpostos aos acesso ao trabalho e à exclusão dele (Kalleberg, 2009). Comum
à quase totalidade dos estudos do campo da sociologia do trabalho ou daquilo
que dela derivou é, no entanto, sua dificuldade para encontrar critérios que
possam fundamentar uma crítica social. O apelo ao imaginário marxista ou a
sentimentos humanistas de solidariedade para com pobres, desempregados ou
excluídos é claramente insuficiente para permitir uma crítica legítima dos
processos sociais em questão (cf. Löwy e Bensaïd, 2000).
Recentemente, em face desta lacuna e dentro de uma proposta de
reconstruir categorias centrais da Teoria Crítica, Honneth (2008) lançou uma
tentativa de resgatar a importância desta categoria e de encontrar critérios que
permitam fazer uma crítica da realidade social tomando como base as relações
de trabalho. Nesta iniciativa ele segue o propósito da teoria crítica de encontrar
critérios que sejam imanentes ao próprio processo social tanto para orientar a
crítica da situação concreta como para indicar horizontes de transformação
social. Para isso ele se apoiará basicamente em Hegel e Durkheim, para ao final
indicar como, em sua ótica, seria possível submeter o mundo do trabalho hoje a
uma crítica social na perspectiva de uma teoria crítica do reconhecimento.
Tal como foi mencionado acima, para os autores clássicos das ciências
sociais a moderna sociedade capitalista se estrutura centralmente em torno da
economia e tem na organização do trabalho um centro nevrálgico. A ênfase
neste sentido foi dada anteriormente dada também por Hegel. Na Filosofia do
Direito (1997), ele defende que o suprimento das necessidades das pessoas
mediado pelo mercado não pode ser reduzido unicamente a um aumento na
produtividade, pois isto seria um ganho apenas externo. Numa argumentação
que lembra o contratualismo, Hegel vê nesta nova forma de organização um
impulso ético, que legitima a expectativa normativa de que o indivíduo restrinja o
seu egoísmo e sua inclinação pessoal ao ócio, e se disponha a cooperar para a
satisfação das necessidades dos outros também.
Passa, pois, na visão de Hegel, a ser uma obrigação do indivíduo
desenvolver suas habilidades e dons para assim contribuir com a satisfação das
necessidades de todos. Em troca, ele pode ter a justificada expectativa de
receber o necessário para o sustento adequado dele de sua família. Honneth
(2008) aponta aqui uma “conquista normativa da nova forma da economia”
(capitalista), que cria “um sistema de dependência recíproca que assegura a
subsistência econômica de todos seus membros”. Com essa releitura de Hegel,
Honneth não apenas dá o primeiro passo para encontrar critérios internos para
uma crítica da economia capitalista a partir do trabalho, mas coloca em
destaque como na visão liberal-moderna daquele autor o trabalho se constitui no
locus originário da integração do indivíduo com vontade livre em relações
eticamente orientadas.
Em um grau menor de centralidade, também Durkheim em seu texto A
divisão do trabalho social (1984) coloca a organização do trabalho como um
fator importante na estruturação das relações sociais e na criação de um
sentimento de solidariedade e pertinência social. Com isso, ele substitui a
tradição moral-religiosa pela economia como fonte da força integradora na
moderna sociedade capitalista. Enquanto já em Hegel estava colocada a
fundamentação para a expectativa legítima de uma recompensa ao trabalhador
por seu trabalho capaz de suprir as necessidades suas e de sua família nas
condições socialmente dadas, a análise de Durkheim, como é sabido, dá
destaque à dimensão integradora do trabalho na forma de solidariedade
orgânica.
A dimensão que Honneth, no entanto, vai destacar da contribuição de
Durkheim para o estabelecimento de critérios éticos não será esta. Sua atenção
se volta antes para outra exigência que seria inerente à divisão do trabalho
social e que foi assim expressa: “A divisão do trabalho pressupõe que o
trabalhador, bem longe de permanecer curvado sobre a sua tarefa, não perca de
vista os seus colaboradores, aja sobre eles e receba a sua influência. Não é
portanto uma máquina que repete movimentos de que não apercebe a direção,
mas sabe que tendem para algum lado, para uma finalidade que ele concebe
mais ou menos distintamente. ele sente que serve alguma coisa.” (Durkheim,
1984, v. 2, p. 167) O que a nova forma de organização do trabalho exige é que
suas etapas sejam de tal modo constituídas, que o indivíduo possa não apenas
com seu cumprimento suprir as necessidades dele e de sua família, mas que
possa perceber nelas uma contribuição dotada de sentido no contexto do
conjunto das tarefas socialmente distribuídas.
À diferença de Marx – e isso é bem destacado por Honneth (2008) -,
tanto Hegel como Durkheim buscaram nas próprias relações de trabalho os
critérios éticos que legitimassem as expectativas normativas orientadoras das
relações sociais constitutivas da sociedade moderna. A pesquisa recente sobre
o mundo do trabalho mostra que o mercado capitalista de um modo geral, e o
mercado capitalista de trabalho de modo bem particular, depende de condições
normativas que ele próprio tem dificuldade em reproduzir. Na visão de Honneth,
o próprio pesquisador da área é hoje colocado diante da seguinte alternativa: ou
ele se contenta em analisar o trabalho tão somente como uma forma de
integração sistêmica, capaz de aumentar a produtividade e multiplicar a riqueza
e, então, relativamente destituído de significado moral – ou então opta por
analisá-lo sob a ótica da integração social, dependente de princípios morais
ancorados no mundo social da vida; neste caso os dois critérios reconstruídos a
partir de Hegel e de Durkheim permitem a crítica social e uma melhor explicação
da realidade. Contudo, como bem destaca o autor, a escolha não é arbitrária: “a
decisão se face ao mercado capitalista de trabalho deva ser dado preferência à
perspectiva da integração sistêmica ou à da integração social não pode
simplesmente ser relegada à arbitrariedade do teórico individualmente; ao
contrário, ele precisa justificar sua escolha com vistas à questão sobre qual das
duas perspectivas é mais apropriada para a explicação do objeto de análise”
(Honneth, 2008).
Quando surgem as primeiras políticas sociais, elas são tributárias da
convicção de que o trabalho seja o (principal) centro organizador das relações
sociais na sociedade capitalista moderna e também centro irradiador de conflito
em torno da apropriação da riqueza produzida solidariamente. As regras de
acesso geralmente tomam como referência o trabalho ou sua ausência e
definem benefícios estratificadamente; só excepcionalmente libertam o indivíduo
de sua submissão ao preço de seu trabalho no mercado. Tomadas em seu
conjunto, em países onde melhor se desenvolveram, as políticas sociais
formaram aquilo que Esping-Anderson denominou regimes de bem-estar,
conformados como resultado de uma série de fatores internos de cada
sociedade, com destaque para as relações entre as classes sociais. Sobre
essas políticas paira desde então também uma ambigüidade: de potencialmente
representarem tanto uma conquista emancipatória das classes trabalhadoras
como uma resposta às exigências da reprodução capitalista, e podem resultar
em temor da ou apoio à democracia (cf. Esping-Anderson, 1990).
A prevalência crescente da visão liberal desde as últimas décadas do
século 20, que pretende mercantilizar ao máximo as relações sociais, diminuiu a
legitimidade da vinculação ética de expectativas normativas com o trabalho e
fortaleceu seu caráter de commoditie. Com isso, gradativamente foi sendo
minado tanto o efeito emancipatório como redistributivo das riquezas nas
políticas sociais. Ao mesmo tempo, a precarização das relações de trabalho e o
aumento do número de pessoas cuja trajetória biográfica não se baliza por sua
profissão levou a que política social passasse a assumir uma conotação cada
vez mais próxima de assistência aos pobres – com a agravante de estigmatizar
a desocupação e a ocupação informal, sem influenciar na criação de
oportunidades formais no mercado de trabalho.
Sem dúvida o debate sobre o trabalho nas ciências sociais está carente
de novas perspectivas. A via da tradicional sociologia do trabalho, que ou
envereda por caminhos que a levam tão profundamente ao interior do mundo do
trabalho e de seus processos, que se lhe torna difícil encontrar uma perspectiva
a partir da qual possa fundamentar uma crítica, ou dele tanto se distancia que
prefere ocupar-se tão só dos sobrantes do pós-festum, tem dificuldades para
tornar crível sua relevância social.
Sem querer/poder voltar ao estudo da formação identitária em contextos
de integração, a tentativa de Honneth de reconstituir critérios éticos a partir do
próprio trabalho para, com eles, possibilitar a crítica social no marco de uma
teoria crítica do reconhecimento é sem dúvida um passo importante. De
particular importância parece, no entanto, uma pequena indicação do final de
seu texto, ainda por ser elaborada melhor, onde o autor diz: “Em todo o caso, as
reações daqueles que povoam os mercados de trabalho capitalistas
contemporâneos somente podem ser explicadas apropriadamente se ao invés
da perspectiva da integração sistêmica for assumida a da integração social; pois
o fato de que nas condições dadas há sofrimento e não apenas predomínio da
indiferença, que há luta e exigências e não apenas reações de apatia
estratégica só pode ser compreendido se o mercado seguir sendo analisado
como parte do mundo social da vida.” Se o sofrimento dos que são
desrespeitados no mercado de trabalho, e por isso sofrem, for transformado em
impulso para novas lutas por reconhecimento nos termos dos dois critérios
éticos propostos, uma teoria crítica da sociedade terá encontrado nestas lutas e
em seus agentes um novo e fértil campo temático.
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