comunidades tradicionais e perspectivas atuais em são

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
COMUNIDADES TRADICIONAIS E PERSPECTIVAS ATUAIS EM SÃO
MATEUS DO SUL – PR: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS
FERRAMENTAS QUALITATIVAS
WAGNER DA SILVA1
ALCIMARA APARECIDA FÖETSCH2
RESUMO:
O presente trabalho objetiva discutir a organização das comunidades de faxinal na fase pósreconhecimento do sistema faxinal no estado do Paraná. A análise se baseia em duas comunidades
faxinalenses, Emboque e Água Branca de Baixo, ambas localizadas no município de São Mateus do
Sul. Os resultados combinados de pesquisas realizadas nas comunidades no período de 2011-2013
embasam tal discussão. A análise parte das reflexões teóricas acerca das comunidades tradicionais
que se estruturam no chamado Sistema Faxinal e se operacionaliza através de pesquisa de campo,
fazendo uso de contribuições e ferramentas próprias da pesquisa qualitativa. O intuito é analisar de
que forma o reconhecimento estadual, ou a ausência dele, interfere no modo de produção do espaço
nessas comunidades.
PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa qualitativa, Comunidades tradicionais, Sistema faxinal, São Mateus
do Sul/PR.
ABSTRACT:
The present work aims to discuss the organization of faxinal communities in the post-recognition stage
of faxinal system in the state of Paraná. The analysis is based on two faxinal communities, Emboque
and Água Branca de Baixo, both located in the city of São Mateus do Sul. Combined results from
surveys conducted in the communities in the period of 2011-2013 based the discussion. The analysis
comes from theoretical reflexions concerning the traditional communities structured in the Faxinal
System and is made operational through field research, making using of contributions and proper tools
of qualitative research. The purpose is analyse how the state recognition, or the absence of it, affects
the space production in these communities.
KEYWORDS: Qualitative research, Traditional communities, Faxinal system, São Mateus do Sul/PR.
1 – Introdução
O objeto de estudo do presente ensaio são as comunidades tradicionais e
seus modos de produção do espaço. Tomam-se como pano de fundo para a
discussão, duas comunidades estruturadas no sistema faxinal - Emboque e Água
Branca de Baixo - no município de São Mateus do Sul, estado do Paraná. O objetivo
principal é analisar a relação entre estas comunidades tradicionais e o espaço em
que estão inseridas, observando a forma com que o reconhecimento legal ou a falta
1
Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Nível: Mestrado. E-mail de contato: [email protected]
2
Doutora em Geografia (UFPR, 2014). Docente do Curso de Geografia da Universidade Estadual do
Paraná (UNESPAR), Campus de União da Vitória. E-mail de contato: [email protected]
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dele interferiu e/ou interfere na construção e na preservação de seus modos de
produção do espaço.
Justifica-se esta reflexão a partir da relevância das comunidades tradicionais
em função do Decreto Federal nº. 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 que institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais. Neste sentido, compreender a forma de manutenção dos modos
característicos dentro de uma realidade cada vez mais individual e que objetiva o
alcance de lucros sem precedentes torna-se um campo fértil de análise. A
problemática assenta-se no afunilamento que houve nas comunidades tradicionais,
que com a expansão do agronegócio passaram a sofrer desagregações em seus
territórios e, consequentemente, foram perdendo grande parte de seu modo de vida
e população.
Os métodos qualitativos foram utilizados para coleta de informações nas
pesquisas de campo no período de 2011-20133. Trata-se de uma proposta voltada
ao espaço rural, que na sua configuração apresenta uma essência metodológica
voltada para uma forma de pesquisa que não se limita apenas ao olhar quantitativo
(não o desmerecendo!), mas que enfatiza a qualidade/essência dos dados e sua
coleta trazendo para a evidência os indivíduos e seus particulares modos de vida.
Para tanto, elaboram-se discussões conceituais, selecionaram-se ferramentas de
utilidade e, por fim, partiu-se para a aplicabilidade prática e a análise dos resultados.
2 – Aspectos conceituais do sistema faxinal
A expressão “Faxinal” é originalmente descrita por Horácio Martins de
Carvalho, em 1984, sendo o criadouro comunitário seu elemento de maior
importância. O autor destaca que segundo o uso regional, Faxinal quer dizer criador
grande, provavelmente se referindo às pastagens naturais existentes na região e
que facilitavam, pelas condições da vegetação, “a criação extensiva de animais, em
particular suínos e grandes animais” (p. 16) e era preservado para “práticas
³ Projetos de pesquisa financiados pela Fundação Araucária, como bolsista de Iniciação Científica.
Título dos projetos: Caracterização Sócioespacial do Faxinal do Emboque, São Mateus do Sul,
Paraná (2011-12) e Comunidade Tradicional de Água Branca, São Mateus do Sul-PR: Identidade,
Território e Espacialidade (2012-13).
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extrativistas da madeira e da erva, além de servir de espaço para a criação
extensiva de animais” (p. 14).
Mais tarde, em 1988, a economista Man Yu Chang em seu relatório técnico
ressalta que popularmente o termo “Faxinal” significa mata densa, porém, ao buscar
sua etimologia a palavra significa mata rala com vegetação variada e faixas de
campo penetrando nas matas. Para a autora, nestas áreas de mata mais densa é
que se formaram os criadouros comunitários para o aproveitamento desses espaços
conjugados, cuja característica peculiar se assenta na criação extensiva e no
extrativismo da erva-mate, se constituindo na forma histórica de organização social
que mais preservou as condições ambientais locais. Portanto, de acordo com Chang
(1988), o sistema faxinal possui as seguintes características: produção animal para
tração e consumo, produção agrícola para comercialização e consumo e extração da
erva-mate nos ervais nativos (renda complementar).
Em termos de legislação, no estado do Paraná, em 1997, através do Decreto
Estadual nº 3446/97 que cria as Áreas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR),
o sistema faxinal passa a ser reconhecido formalmente. Dessa forma, os municípios
que contavam com o sistema em seus territórios passaram a receber um maior
percentual na distribuição do ICMS Ecológico (Lei Complementar nº 59/91). No § 1
do Art. 1º consta:
[...] entende-se por Sistema Faxinal: o Sistema de produção camponês
tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná, que tem como
traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a
conservação ambiental. Fundamenta-se na integração de três
componentes: a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros
comunitários; b) produção agrícola – policultura alimentar de subsistência
para consumo e comercialização; c) extrativismo florestal de baixo impacto
– manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas.
Nota-se nesta definição uma aproximação quanto aos elementos identitários
do sistema propostos por Chang (1988). Marques (2004) no Relatório Final de
Consultoria Técnica, elaborado para o Instituto Ambiental do Paraná, destaca que
“Considerou-se, para a execução das atividades, a definição apresentada no texto
do Decreto Estadual nº 3.446/97, tendo em vista que o mesmo é a referência oficial
que foi considerada para os objetivos desse levantamento”, portanto, o IAP
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compreende o sistema faxinal a partir dos elementos destacados no Decreto
Estadual que os reconheceu no estado do Paraná.
Pela Portaria nº 34, de 25 de fevereiro de 2011, o IAP complementa:
I) FAXINAL: território tradicional onde é praticado o sistema de produção
camponês tradicional, estratégico para reprodução social de grupos
culturalmente distintos dotados de identidade própria e reconhecidos como
comunidades tradicionais Faxinalenses. É um sistema típico da região da
Floresta Ombrófila Mista (Floresta da Araucária), que tem como traço
marcante o manejo coletivo da terra e de seus recursos naturais, de modo
interdependente à conservação ambiental. (IAP, 2011, Art. 1º, fl. 02).
Da mesma forma, Löwen Sahr e Cunha (2005) ao analisarem o significado
social e ecológico dos faxinais na região da Mata com Araucária no Paraná definem
esse sistema como sendo “um sistema de uso integrado da terra que abrange, além
da atividade silvopastoril comunitária, a extração de madeira, a produção de ervamate e também a agricultura de subsistência” (p. 90). Segundo os autores, o sistema
encontra-se dividido em dois espaços: “criadouro comum” e “terras de plantar”.
Löwen Sahr (2005) destaca que se trata de comunidades “caboclas que
praticam, sobretudo ao longo dos vales dos rios, um sistema de uso integrado da
terra que abrange a atividade silvopastoril comunitária, a extração de madeira e
erva-mate e também a agricultura de subsistência”. Essa organização também
pertencia ao passado nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas que
ainda são presentes no território paranaense.
Inseridos na Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, o próprio grupo
contribui oferecendo sua própria concepção do sistema. De acordo com o
depoimento de Antônio Miguel Rodrigues de Lima, morador do Faxinal dos Seixas,
município de São João do Triunfo/PR, tem-se que:
No meu entender acho Faxinal é um lugar onde tem a criação solta, onde
você pode trabalho em comunhão, tudo junto, tudo unido, faz o puxirão pra
trabalhar na cerca, onde é tudo cercado, você tem cabrito, porco, gado,
galinha ali é tudo solto, então acho que isso aí pra mim é um Faxinal onde
tem união, você pode trabalhar unido, todo mundo tem sua criação, tem sua
terra ali, chegar ser isso aí um Faxinal. (sic). (LIMA apud ARTICULAÇÃO
PUXIRÃO, 2008, p. 02).
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Dessa forma, dentre tantas possibilidades conceituais possíveis, convém
destacar que, na presente pesquisa trabalha-se com o conceito de “sistema faxinal”,
inicialmente proposto por Chang (1988).
b) Faxinais e ferramentas qualitativas de pesquisa
Buscando compreender a espacialidade de duas comunidades faxinalenses
no município de São Mateus do Sul/PR, delineou-se enquanto metodologia de
análise as contribuições da pesquisa qualitativa. Compreende-se enquanto pesquisa
qualitativa aquela que considera não a quantidade de sujeitos na análise e sim a que
valoriza a particularidade de cada sujeito – a qualidade, abrangendo um extenso,
complexo e importante histórico nas disciplinas humanas. Este método de pesquisa,
segundo Pessôa (2012) sofreu modificações de acordo com os conflitos sociais,
políticos, econômicos e ambientais. Sua relevância dentro das áreas sociais e
humanas é expressa por Godoy (1995) quando afirma que tal abordagem possui
uma considerável importância de âmbito investigativo quando se pretende estudar
os processos que envolvem pessoas e suas relações sociais em qualquer forma de
ambiente.
Segundo Richardson (1985), num contexto geral, tal prática não emprega
uma base estatística para reflexão de um problema, não tem a intenção de
quantificar ou limitar em unidades tornando uma amostragem homogênea, pois:
Os estudos que empregam uma Metodologia Qualitativa podem descrever a
complexidade de determinado problema, analisar a interação de certas
variáveis, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos
sociais, contribuir no processo de mudança de determinado grupo e
possibilitar, em maior nível de profundidade, o entendimento das
particularidades do comportamento dos indivíduos. (RICHARDSON, 1985,
p. 39).
Nesta proposição, definiram-se alguns métodos para a análise das
comunidades tradicionais estudadas partindo da pesquisa de campo, que, segundo
Marconi e Lakatos (2002) é aquela utilizada com o objetivo de conseguir
informações e/ou conhecimentos acerca de um problema para o qual se procura
uma resposta. Sendo assim, foram definidas as técnicas utilizadas para a pesquisa
de campo:
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1. Estudo de caso: oferece uma contribuição de suma importância para
compreensão de que temos casos sociais, individuais, políticos e organizacionais,
conserva os elementos holísticos e significativos dos acontecimentos da vida (YIN,
2001).
2. Entrevistas: são fundamentais quando se precisa/deseja mapear práticas,
crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou
menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente
explicitados (DUARTE, 2004).
A escolha destas duas ferramentas partiu de uma análise das comunidades
eleitas. Definiu-se a metodologia dos “estudos de caso” pelo motivo de serem
situações específicas, que mesmo sob a mesma política e município se
desenrolaram de formas diferentes; e, a metodologia das “entrevistas” foi definida
com objetivo do resgate de informações que possibilitaram as discussões, pois
muitas questões estavam desconexas visto que não havia nenhuma outra referência
própria destas comunidades. Estas entrevistas foram realizadas com as lideranças
de cada comunidade, com pessoas que estiveram envolvidas diretamente no
processo de reconhecimento de ambas, residem há bastante tempo nestes locais e,
portanto, conhecem muito e podem falar com propriedade sobre a história, a
evolução sócioespacial da comunidade e as questões de conflito que as envolve.
Neste sentido, partindo do sistema faxinal e das contribuições da pesquisa
qualitativa, apresentam-se a seguir, os resultados das análises das comunidades
selecionadas.
3 – Os faxinais e suas transformações recentes
O espaço agrário paranaense e brasileiro de modo geral, neste caso mais
especificamente o ator social do campo sofreram várias modificações e
interferências com a modernização agrícola, que incentivou o giro de capitais
baseado na monocultura e concentração de terras através de grandes propriedades.
Neste
cenário,
as
comunidades
tradicionais
e
os
pequenos
produtores,
marginalizados neste processo, precisaram buscar alternativas para se manter.
Sendo assim, apresenta-se a seguir as transformações recentes em duas
comunidades com destinos distintos.
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a) O Faxinal do Emboque
Dentre os 44 faxinais apontados por Marques (2004) reconhecidos
oficialmente pelo estado do Paraná, encontra-se em São Mateus do Sul, segundo
levantamentos obtidos através dos projetos de pesquisa mencionados em rodapé, o
Faxinal do Emboque surge a partir da desagregação de uma grande fazenda
existente na região, a qual depois de desmembrada deu lugar a lotes menores
repassados para seus ex-funcionários, começando com os caboclos. Porém,
inicialmente eram poucos os que viveram dentro desse sistema, tendo em vista que
usufruíam apenas temporariamente dos espaços (chamados de passageiros). Mais
tarde, com a chegada de imigrantes poloneses que vieram para a região centro-sul
do Paraná motivados por doações de lotes pelo governo, este sistema tradicional
que separa as terras de criar das terras de plantar foi mantido e aperfeiçoado.
Estima-se que o criadouro comunitário se aproxima dos 100 anos de
existência, sendo construídas as cercas que caracterizam o sistema faxinal na
década de 1930. As famílias pioneiras da comunidade do Emboque foram:
Prizivitowski, Janoski, Javorski, Wenglarek, Pacheco, Grabowski, entre outras e, de
início este espaço possuía uma extensão muito maior da que possui hoje, relata-se
aproximadamente 2000 alqueires de mata densa e da criação de animais à solta,
abrangendo as localidades de Emboque, Rosas, Costão, Fartura do Potinga, Turvo,
Paiol Grande. A agricultura era praticada somente para o autoconsumo, já que os
recursos
econômicos
principais
eram
oriundos
do
extrativismo
vegetal,
principalmente a erva-mate, e criação de porcos no sistema do criadouro coletivo
(FÖETSCH, 2014).
Segundo relato coletado por entrevistas com as lideranças da comunidade 4,
houve uma série de fatores que desencadearam a desagregação de parte do
território do Faxinal do Emboque, dentre eles destacam-se: seu reconhecimento
legal tardio (2007), a expansão do agronegócio, a construção da BR 476 (rodovia do
xisto) que cortou os campos abertos e a chegada de fazendeiros e chacareiros do
4
Estas informações sobre o Faxinal do Emboque foram coletadas em campo durante a execução do
Projeto de Iniciação Científica intitulado: “Caracterização sócioespacial do Faxinal do Emboque, São
Mateus do Sul, Paraná”, desenvolvido pelo autor deste artigo e financiado pela Fundação Araucária.
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extremo sul do Brasil, desabituados com tal sistema, cercando suas terras
adquiridas dentro do criadouro, descaracterizando-o.
Evidentemente o reconhecimento
já citado no presente ensaio
e
sistematização dos faxinais como comunidade tradicional por parte do governo do
estado foi tardio (1997), o que retardou também a elaboração de uma política
municipal de legalização, realizada através da Lei Municipal 1.780 de 2008,
reconhecendo a Comunidade do Emboque
e seus acordos comunitários
característicos de faxinal, além de proibir a construção de tapumes, cercas ou
fechos dentro das áreas de uso comum de tal comunidade, o que lhe deu também o
direito do repasse dos incentivos estaduais (ICMS Ecológico5), posteriormente, ainda
resultado do reconhecimento municipal, houve a montagem de três mata-burros nas
entradas principais, onde ainda existiam portões, fazendo com que ocorresse uma
série de fugas dos animais soltos no criadouro; houve ainda a instalação de duas
placas de identificação, contendo as informações legais de tal sistema e
identificando sua localização. A demora para tais reconhecimentos básicos que
incentivou a descaracterização de parte do sistema dentro dessa comunidade
No tocante ao aspecto ambiental, o reconhecimento facilitou a preservação
das espécies nativas dentro do criadouro, incentivando o uso racional dos recursos
disponíveis: erva-mate, pinhão e outros. Facilitou também levantamentos de
pesquisadores, interessados em plantas medicinais, análise da mata nativa, entre
outros.
No âmbito social e cultural, a integração entre comunidade e sociedade em
geral aumentou consideravelmente, ocorrendo aulas de campo de escolas de
educação básica, oficinas e aulas práticas de Instituições de Ensino Superior e
Técnico, além de pessoas de outras cidades, geralmente maiores. Esses se dirigem
por iniciativa própria buscando sanar a curiosidade pelo conhecimento de um
modelo de produção que um dia já tomou conta do espaço agrário paranaense e
hoje em dia sobrevive penosamente. A força política aumentou, a comissão montada
depois do processo oficial, possibilitou melhores condições na luta por seus ideais,
5
Com a parcela correspondente aos recursos oriundos do ICMS ecológico são realizadas melhorias
na estrutura do criadouro (cercas, estradas, conservação dos mata-burros, compra de sementes
crioulas, etc.).
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evitando inclusive o abate sem recompensa dos suínos que apresentavam indícios
de “aujezky” (doença que assola os suínos), expandindo a representatividade local
frente aos poderes executivos e legislativos municipais.
As tradições repassadas por gerações sofrem reinvenções depois do
reconhecimento. Com a volta de alguns ex-moradores que tentavam a vida na área
urbana, o faxinal torna-se o destino daqueles que estavam desacreditados no futuro
dentro da comunidade. As formas de relações entre a própria comunidade ganham
destaque: puxirões ganham uma força renovada, tradicionais novenas natalinas e de
páscoa reaparecem. Tem-se ainda a atuação da Pastoral da Família que realiza o
acompanhamento frequente da saúde das crianças da localidade.
Porém, nem todos os pontos são positivos, algumas disputas territoriais,
contestação de terras e não concordância da criação aberta por parte de alguns
vizinhos da comunidade acabaram no sacrifício dos animais que fugiam do criadouro
quando algum passageiro deixava a porteira das carroças ao lado do mata-burro
aberta. A burocracia presente em todos os processos do poder público retarda os
repasses dos incentivos ambientais, o que impossibilita ou atrasa parte das ações,
além da fragilidade da legislação, principalmente na parte de fiscalização voltada
para as comunidades tradicionais.
b) O Faxinal de Água Branca de Baixo
A comunidade de Água Branca de Baixo não possui um território faxinalense
oficialmente reconhecido
e uma série de acontecimentos culminaram na
desagregação total de seu espaço de uso comum. Nesta localidade, além do
reconhecimento ocorrer tardiamente, se deu de forma errônea, pois o poder público
municipal estabeleceu uma lei onde reconheceu apenas os moradores como
faxinalenses, deixando de lado seu espaço físico que hoje é tomado por
propriedades cercadas pela iniciativa privada e com imensas monoculturas.
A incógnita que baseou os levantamentos de campo foi aguçada pelo
“quase”
desfecho
positivo,
uma
vez
que
placas
de
identificação
foram
confeccionadas, a comunidade ganharia dois mata-burros e o IAP e outros órgãos e
instituições envolvidas já tinham dado seu aval. No entanto nenhum desses itens foi
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viabilizado. As placas estão armazenadas no barracão da família Kovalski e o tempo
para instalação dos mata-burros expirou, fazendo com que a comunidade perdesse
tal direito. O fato é que a série de desencontros políticos, de organização estrutural e
burocracia resultou na frustração das famílias, que buscavam o reconhecimento de
seu território como sendo um faxinal.
O levantamento histórico6 mostra que antes da chegada dos colonizadores,
principalmente poloneses, a comunidade era conhecida como „Faxinal dos Ferreira‟
e habitada totalmente por caboclos, onde a criação de animais no potreiro (campo
aberto) era comum à todas as famílias, separado por cercas das terras destinadas
para agricultura. Após a colonização de cunho eslavo, a comunidade passou a
adotar popularmente a nomenclatura de Água Branca. Não se sabe ao certo o
motivo do nome atual da comunidade. Havia ritos como mutirões de trabalho,
novenas e festas religiosas. A economia era baseada no extrativismo da erva-mate,
beneficiamento
do
milho
nos
monjolos
e
policultura
para
autoconsumo,
compartilhada entre as famílias.
O desfecho de tal situação caracterizou a Água Branca de Baixo como uma
comunidade rural como tantas outras existentes no espaço agrário, apesar de que,
quando se lança um olhar mais atento, percebe-se que ainda existem alguns traços
oriundos desse sistema tradicional, principalmente nos costumes: algumas famílias
ainda realizam os mutirões conhecidos como “troca de dias” de trabalho, seja em
colheitas, plantio ou algum outro trabalho que necessite de uma mão-de-obra
grande, as novenas são realizadas nos períodos de festas religiosas, como natal e
páscoa, além do reconhecimento de algumas pessoas da comunidade que ainda se
intitulam como faxinalenses.
4 – Considerações Finais
Com o processo de reconhecimento, à medida que uma comunidade se
encaixa dentro das políticas dos povos e comunidades tradicionais muitas mudanças
6
As informações sobre a comunidade de Água Branca foram coletadas em campo durante a
execução do Projeto de Iniciação Científica intitulado: “Comunidade Tradicional de Água Branca, São
Mateus do Sul/PR: identidade, território e espacialidade”, desenvolvido pelo autor deste artigo e
financiado pela Fundação Araucária.
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ocorrem em seu espaço. Da pouca ou total ausência de visibilidade, tornam-se foco
de ações do poder público e de discussões científicas de vários cunhos. Muito se
tem discutido sobre a importância das comunidades tradicionais nos âmbitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais. O aumento de visibilidade, se de um
lado amplia a esperança desses povos e comunidades, intensificando suas lutas,
por outro lado, acirram também seus processos de desintegração e desestruturação,
pois aguçam os interesses daqueles que passam a ver suas terras como áreas
potenciais de expansão de atividades econômicas diversas e acúmulo de capital. O
reconhecimento oficial, portanto, não é a resolução de todos os problemas, é fato
que auxilia na melhor administração destes espaços, porém as dificuldades
permanecem mesmo depois da elaboração das políticas públicas voltadas para
estes atores sociais.
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6058
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