VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP História e progresso: Voltaire contra pascal Maria Lúcia Rizzetto Patrocínio1 Resumo: O espírito moderno associa-se, decididamente, a um espírito histórico, aqui entendido como um assumido interesse pela história enquanto experiência e percurso dos homens responsáveis por si próprios e por fazer a diferença entre o passado, que abandonaram, e o presente, que tentam construir pensando num futuro. Dessa maneira, forma-se um conjunto de ideias capaz de reconhecer no homem uma realidade autônoma construída no tempo. Espírito moderno e espírito histórico se complementam e distinguem-se de outras épocas, também conscienciosas da importância da história, pela interpretação dada aos fatos a partir de uma nova posição frente ao tempo e ao mundo. Neste sentido, o interesse filosófico do pensamento de Pascal e da reflexão de Voltaire emerge como filosofia, como filosofia propriamente moderna, amparada no entendimento de um discurso polêmico do qual brota as proposições filosóficas enquanto instrumentos espirituais servindo a intento bem preciso: a história torna-se matéria de especulação filosófica. O objetivo do trabalho é apresentar o confronto entre Voltaire e Pascal, levando em consideração o nexo história e progresso, tendo em vista perceber a singularidade das propostas pascalina e voltairiana. Pretende-se, ainda, entender que, ao propor uma história secular da civilização distinta de uma história sagrada, Voltaire dissolve a unidade que havia na perspectiva teológica da história. Palavras-chave: História. Progresso. Voltaire. Pascal. Abstract: The modern spirit is definitely associated to a historical spirit, here understood as an assumed interest in history as an experience and the journey of the men responsible for themselves and to make the difference between the past, they left, and the present, they try to build when thinking on the future. Thus, they form a set of views able to recognize in the man an autonomous reality built in time. Modern spirit and historical spirit complement each other and distinguish themselves from other eras, also conscientious of the importance of history, because of the interpretation of the facts from a new position in relation to the time and to the world. In this sense, the philosophical interest of Pascal and Voltaire emerge as a modern philosophy itself, supported by the understanding of a controversial discourse from which springs the philosophical propositions as spiritual instruments with a clear intent: the history becomes a field for philosophical reflection. The aim of this paper is to present the clash between Voltaire and Pascal, taking into account the link between history and progress, in order to realize the uniqueness of the Pascaline and Voltairian ideas. It is also aimed to understand that when a secular history of civilization that is different from the sacred history is proposed, Voltaire dissolves the unity that was in the theological perspective of history. Keywords: History. Progress. Voltaire. Pascal. *** De Santo Agostinho a Pascal, a teologia da história apresenta-se como uma reflexão na qual a noção de progresso é despotencializada e, em alguns casos, 1 Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Estudos de História da Filosofia Moderna NEPHEM/UFS. Bolsista PIBIC/CNPq. Orientador: Edmilson Menezes. Email. [email protected]. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 58 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP desprezada frente ao mistério contido no plano salvífico estabelecido por Deus para a humanidade. Segundo Béguin2, que se baseia justamente no pensamento cristão, a História se desenrola de Adão a Cristo e continua depois do evento da cruz. Conforme Agostinho, podemos dizer que a continuação da história se deve ao processo de recrutamento de alguns escolhidos, ao ato de Deus assumir uma natureza humana, e à existência de um Corpo Místico - ou uma igreja que estaria em formação. Esses elementos possibilitariam a ideia cristã de história, sendo assim, não é somente o tempo anterior à encarnação que temos como história, mas também o tempo após Cristo, como preparação do reino intemporal e a realização daquilo que Deus designou aos homens. Como a doutrina teológica do Corpo Místico é central em Pascal, poderíamos identificá-la com a concepção agostiniana de história, mas Béguin afasta os dois autores por meio da noção de progresso. Enquanto Agostinho fala de uma marcha do progresso espiritual, através de uma “pedagogia divina”, que gradativamente nos aproximaria da perfeição moral e religiosa, em Pascal, não haveria noção de progresso na descrição do Corpo Místico, excluindo, assim, os aspectos referentes ao mundo, como o tempo e o crescimento espiritual. Béguin baseia sua leitura de Agostinho em Henri-Irénée Marrou3, que viu duplo caráter no tempo da história agostiniana. Caráter ambivalente, no qual o tempo é segmento de esperança e desespero, salvação e perdição; isto ocorrendo, devido a uma dupla linhagem de interpretações da história. Interpretações estas que viriam de São Paulo, e de sua divisão da história em três períodos: o domínio da lei natural, da lei escrita e o da graça. No primeiro, estávamos todos sob a tutela da Lei Mosaica aguardando a fé que haveria de se revelar, já no período da lei escrita evoluímos espiritualmente frente à etapa anterior, mostrando certo progresso no tempo, uma fase de purificação que tem seu auge com a chegada de Cristo, e no período posterior a Cristo, através da igreja, continua-se preparando o homem para o fim dos tempos. Desta forma, na interpretação de Béguin, Agostinho se utiliza da imagem da história da humanidade como a de um só homem que progride com o passar dos séculos. “Há um processo de educação, através das épocas da história de um povo como através dos estágios da vida de um homem, processo designado para elevá-los do 2 BÉGUIN, A. Pascal par lui même. Paris: Seuil, 1964. MARROU, Henry-Irénée. L’ambivalence du temps de l’histoire chez Saint Augustin. Paris: J.Vrin, 1950. 3 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 59 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP temporal e do visível para uma apreensão do eterno e do invisível”4. Podemos ser tentados a entender tudo isso com otimismo temporal, como um desenvolver-se com o decorrer dos séculos, mas se nos basearmos nos textos da Epístola aos Romanos, 7, 710, e em Agostinho, não poderemos dizer que houve um progresso espiritual, mas que o caminho temporal se tornou proliferação do pecado por onde o homem caminha para a morte. O contexto nos faz perder esse otimismo histórico como um progresso, pois o tempo da igreja convive com o mesmo tempo das desgraças, e, segundo Marrou, devemos nos lembrar de que Agostinho como um pensador da tradição platônica, desta forma, para ele o ser verdadeiramente só pode ser eterno, portanto, sentimos em sua filosofia uma permanência, uma imutabilidade característica, resultando-se em um tempo que não pode ser somente positivo. No entanto, para Béguin é apenas no caráter positivo do tempo agostiniano que se vê o lugar da história cristã, e que a negatividade estaria no campo da Cidade Terrena, o que não interessa para o cristão, pois ele não se concentra na história de eventos exteriores, mas na história da manifestação da graça, que só pode ser positiva5. Voltando a Béguin, percebemos que ele valoriza o caráter positivo do tempo histórico, e ao mesmo tempo, exclui do pensamento pascalino a ideia de historicidade, pois segundo o intérprete, Pascal atém-se ao lado negativo da temporalidade, e que o progresso seria algo meramente intelectual, limitando-se à ciência. Então, cada homem avançaria dia-a-dia nas ciências e aprenderia continuamente, mas apesar da passagem dos séculos, podemos considerar que há um mesmo homem que sempre permanece, sendo assim, a imagem que em Agostinho servia para o povo de Deus, em Pascal serve para o desenvolvimento da ciência. Nesse sentido, é preciso estabelecer parâmetros e limites para as diversas ciências capazes de atestar o progresso. De acordo com o autor dos Pensamentos, história, geografia, jurisprudência, teologia e o estudo das línguas pertencem ao número das ciências que “dependem da memória e são puramente históricas”. Elas têm como princípio “o fato puro e simples ou a instituição divina ou humana”. Sobre seus assuntos “só a autoridade podem iluminar-nos” e delas “pode-se ter um conhecimento total ao 4 AGOSTINHO. A Cidade de Deus (X, 14). Trad. De Oscar Paes Leme. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990. Cf. OLIVA, L. C. G. A história e a crítica ao progresso em Pascal. In: SANTOS, A. C. dos. Variações filosóficas: entre a ética e a política. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2004. 5 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 60 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP qual não seja possível acrescentar nada”. Outras ciências, como a geometria, a aritmética, a música, a física, a medicina, a arquitetura, “dependem do raciocínio” e têm por objetivo “a pesquisa e a descoberta de verdades ocultas”. As matérias dessas ciências “desembocam nos sentidos e no raciocínio”. Aqui “a autoridade é inútil”, e só a razão pode conhecer; aqui o espírito encontra liberdade para estender as suas capacidades “e suas invenções podem ser sem fim e sem interrupção”. Trata-se, na situação presente, “de dar coragem àqueles tímidos que não ousam inventar nada em física e de confundir a insolência daqueles temerários que produzem novidades em teologia”6. Consequência: aperfeiçoamento, crescimento e progresso caracterizam só as ciências do segundo grupo. A ausência da pedagogia divina em Pascal, portanto, acaba por situar a teologia no terreno das ciências nas quais tudo o que se pode saber está contido nos livros autorizados. Ali tudo já foi dito e não se pode acrescentar nada. Quando se incumbe de analisar a história, essa mesma teologia recorrerá à autoridade para mostrar-nos a relativização do progresso. Com efeito, não nos encontramos diante de um simples discípulo de Agostinho, apesar de aceitar a interpretação do tempo corrompido, nem, tampouco, de um pensador moderno que assume in totum os “novos tempos”, não obstante perfilhar o avanço mundano das ciências que dependem do raciocínio. A singularidade de Pascal encontrase no fato de propor uma meditação sobre a história no qual a noção de progresso é relativizada como categoria analítica para o todo da trajetória humana. É contra essa teologia da história, cuja ideia de progresso precisa ausentar-se do plano central de seu interesse, que Voltaire dirige o seu arsenal crítico. O procedimento voltairiano consistirá em suprimir todo elemento fabuloso da história. A pretensão dos teólogos beira a tagarelice, ao pretender determinar na história as minúcias do plano divino. Comumente os comentários afirmam: somente depois que se deslocou a ideia de providência pode-se instituir uma ideia de progresso. Todavia, a teologia da história elaborada até Pascal não afirma a providência como o ponto fundamental de sua estrutura analítica. A fundamentação desse modelo estriba-se num conjunto maior de elementos fundantes, a saber: o nexo entre tempo e redenção, a pedagogia divina, o 6 PASCAL, B. Préface sur letraité du vide. In: Oeuvres Complètes. Paris: Éditions Du Seuil, 1963, pp. 230 e segs. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 61 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Cristo como centro da história e o corpo místico. A providência é apenas um entre esses elementos fundamentais. Na verdade, a teologia da história começada por Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes e que segue até o século XVII é muito diversa em suas posições. Talvez só uma coisa pudesse agregá-la: o homem é decaído e, por essa razão, foi condenado ao tempo e, assim, à história. Ao contrário, o que propõe Voltaire é que, se a história é digna de estudo (e, por isso, digna de possuir uma interpretação filosófica) é porque, precisamente, ela é obra única dos humanos. Através do embate entre Pascal e Voltaire, levando em consideração o nexo história e progresso, é possível perceber dois traços importantes da proposta moderna para a história: por um lado, Pascal distingui uma espontaneidade criativa da inteligência humana movendo-se num domínio específico da história, isto é, o progresso das ciências do raciocínio, porém não encontra-se inclinado a transpor a noção de progresso para um plano analítico global da situação do homem e de sua destinação, pois as mesmas encontram-se fora do alcance do poder humano; por outro lado, Voltaire concebe o avanço da humanidade como produto exclusivo, justamente, do poder humano, da capacidade da inteligência em superar entraves e propor metas. Aqui configura-se um dos grandes embates do pensamento moderno sobre a história; o nexo entre progresso moral e progresso científico. Não é verdade que o pensamento cristão moderno não se interesse pela história. Se o mesmo lhe impõe determinados traços, de forma a estabelecer contornos próprios, ao minimizar um progresso ali pressuposto, distinguindo-se, desse modo, de outros pensamentos, isso não significa uma marginalização do tema história, como pensa Rivera de Ventosa: A queixa brota ao constatar que são muitos os séculos nos quais o pensamento cristão havia quase marginalizado o tema da história do campo de suas investigações. Isto, lamenta-se mais ainda, quando vemos que o gênio de Santo Agostinho já havia modelado um magnífico programa em sua De Civitate Dei. Mesmo o despertar da consciência moderna para história não consegue animar esse tema no pensamento cristão. 7 O autor excetua Joaquim de Fiori e São Boa Ventura, na idade média. Quanto à sequencia vindoura, não se pode dizer a mesma coisa. Com efeito, a afirmação do nosso autor deixa de levar em consideração as reflexões sobre a história de Leibniz, Bérulle, 7 In: RIVERA de VENTOSA, E. Presupuestos filosóficos de la teología de la historia. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1975, p. 16. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 62 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Bossuet (que Rivera não aprecia!) e mesmo Pascal, que se não tem propriamente uma filosofia ou uma teologia da história, não passou indiferente à matéria8. Para a teologia cristã, a história arrasta-se como uma longuíssima espera, a qual será bem sucedida apenas para alguns. Espera-se que o número desses escolhidos esteja completo para que, desse modo, cheguemos ao fim dos tempos e, por conseguinte, ao fim da história. A grande vitória se passará, efetivamente, fora da história: sair do ciclo do tempo, eis o que tanto anseia o cristão. O futuro está atrelado irremediavelmente a um passado de culpas que ocasionou o decreto divino da salvação de poucos; a história, nessa acepção, é o reino de uma incerteza visível e, ao mesmo tempo, o campo em que o mistério comanda, de fora, os acontecimentos, unindo-os em um significado invisível só compreendido pela fé. O homem cristão deve ocupar-se do presente, porque se o passado, determinado pelo pecado, não pode ser mudado e selou nosso destino, tampouco o nosso futuro, sobre o qual não temos o controle efetivo, pode ser transformado pelo trabalho humano disjunto da graça divina. A história da redenção é uma história em que o futuro não representa verdadeiramente um avanço para a humanidade. Para Voltaire, é tempo de silenciar essa cantilena perniciosa que acompanha os destinos da humanidade: É preciso, ao invés de lastimar-se, agradecer ao autor da natureza por ter-nos dado esse instinto que nos impulsiona, sem cessar, para o futuro. O tesouro mais precioso do homem é essa esperança que nos ameniza as tristezas, e que nos esboça os prazeres futuros na posse dos prazeres presentes. Se os homens fossem tão miseráveis a ponto de só se ocuparem do presente, ninguém semearia, construiria, plantaria nem proveria; tudo faltaria no meio desse falso gozo9. Esse comentário acerca de um dos pensamentos de Pascal, nos revela outra face da ofensiva voltairiana: se Bossuet representa o exemplo a ser fustigado no exercício de historiador, Pascal é o alvo da crítica à filosofia subordinada à teologia. O pensamento pascalino elimina a possibilidade de uma história concebida como progresso, pois não há a menor garantia de que a corrupção diminua enquanto estivermos fora do alcance da graça, e isso é uma incógnita; nela reside todo o mistério 8 Sobre Pascal e o problema da história ver ainda: GOLDMANN, L. Le Dieu caché. Paris: Gallimard, 1959. SELLIER, Ph. Pascal et saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1970. (Cap. V. “La théologie de l’histoire”) 9 VOLTAIRE. Lettres Philosophiques (Lettre XXV). In: Mélanges. Paris: Gallimard, 1961. (Bibliothèque de la Pléiade), p. 118. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 63 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP da história. A imobilidade é a melhor posição para aquele que tem fé e submete-se aos ditames providenciais, pois vivemos e viveremos ainda tempos tenebrosos: Se Jesus Cristo, ao prometer à Igreja que sua verdade e seu espírito repousariam eternamente sobre ela, tivesse, ao mesmo tempo, anunciado uma sequência de calma e tranquilidade, de verdade e de paz, estaríamos sujeitos a nos espantar ao ver a mentira e o erro aparecerem com tanta insolência10. O certo é que a mentira e a intranquilidade campeiam e fazem da esperança, junto com outras formas do pecado, uma virtude que não reside num esforço propriamente humano, mas depende totalmente de Deus; ela é uma virtude sobrenatural. Unida à fé e à caridade, a esperança compõe o conjunto das virtudes teologais. A designação teologal é suficiente para indicar que Deus intervém imediatamente para especificar essas virtudes em seu objeto, em sua causa e no meio pelo qual nos é dado conhecê-las. As virtudes teologais têm Deus por objeto formal imediato porque, por meio delas, nossa natureza é dirigida e ordenada diretamente para Ele; elas são infundidas na alma pelo próprio Deus; e não chegam à nossa consciência, senão pela via da revelação divina.11 O mistério resume perfeitamente a perspectiva em que se coloca a história teológica: esperamos por algo que está sempre envolto pelo secreto e pelo insondável, portanto, somente a fé pode nos impulsionar nessa direção intangível que se subordina à providência e ao seu amor aos peregrinos. A esperança, por conseguinte, não pode ser um ato, mas somente uma virtude infundida. Como a promessa de redenção é condicionada a um decreto oculto de Deus, tudo permanece suspenso, a história permanece um mistério e um abismo se interpõe entre o homem e os planos salvíficos divinos. Assim, a filosofia pascalina busca na teologia os subsídios para compor a sua visão de homem: incapaz de conduzir-se após o pecado, esse homem apresenta-se aos fatos, mas é tragado por uma força irresistível que não lhe deixa nenhum tipo de iniciativa própria e eficaz. Ele progride na ciência do mundo12 e o saber oriundo dessa atividade incide diretamente na coletividade; todavia, esse aperfeiçoamento não diz do 10 PASCAL, B. Projet de Mandement contre l’ “Apologie pour les casuistes”. In: Oeuvres complètes (I). Paris: Gallimard, 1998, p. 946. (Bibliothèque de la Pléiade). Ver ainda: Paulo Primeira Epístola aos Tessalonicenses 5, 8; Epístola aos Romanos 5, 2-5. 11 MICHEL, A. Vertu - Vertus Théologales. In: Dictionnaire de théologie catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1950. 12 PASCAL, B. Préface sur le Traité du vide, Loc. cit., p.231. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 64 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP verdadeiro problema humano, ou seja, sua redenção.13 Para Pascal, a marcha do tempo é ascendente no plano do conhecimento experimental e da experiência do mundo criado, a história válida confunde-se com os degraus do saber físco-matemático. No entanto, o homem deve ser visto, primordialmente, num confronto com seus riscos sobrenaturais, e ele não se resume, de modo algum, ao plano do progresso e do conhecimento científico, ao contrário, tais inconsiderações equivalem a chaves interpretativas que elucidam as incoerências e desacertos com os quais o progresso científico se vê com frequência ameaçado. A razão, para os casos dos mistérios religiosos, não é uma boa companheira. Não há como querer enxergar, numa história planificada, nenhum tipo de investigação racional, de forma a estabelecer uma compreensão autônoma. É preciso crer. Tudo é mistério. As duas fórmulas são as pilastras de uma teologia que se interessa pelos acontecimentos humanos e suas consequências. Se no século da razão elas ainda estão de pé, a filosofia de Voltaire fará tudo para colocá-las a baixo. “Nós estamos bem longe de querer descer a esse abismo teológico”14, diz Voltaire. As pretensões não vão além do “cuidar do nosso jardim”, isto é, abdicando da investigação acerca do insondável, a racionalidade é capaz, apesar de seus limites, de uma avaliação segura de vários setores da realidade. No que respeita à história, a razão esclarecida é o antídoto contra os preconceitos ali instalados, ao abdicar do prodígio e do inefável como recursos explicativos: Poderíamos fazer [essas] questões e mil outras ainda mais embaraçosas, se os livros dos Judeus fossem, como os outros, uma obra dos homens; mas, sendo de uma natureza inteiramente diferente, eles exigem veneração, e não permitem críticas. (...) Assim, não se admite dúvida sobre a história do povo de Deus; tudo aí é mistério e profecia, porque esse povo é o precursor dos cristãos. Tudo aí é prodígio, porque Deus se encontra à frente dessa nação sagrada; em uma palavra: a história judia é aquela do próprio Deus, e não tem nada em comum com a fraca razão de todos os povos do universo. É necessário, quando se lê o Antigo e o Novo Testamento, começar imitando o Padre Canaye15 [Nada de razão, diz esse sacerdote na Conversation du marechal d’Hocquincourt; isso é a verdadeira crença, nada de razão];16 13 PASCAL, B. Lettre à Fermat, 10/08/1660. In: Oeuvres complètes (II), Paris: Gallimard, 1998, p. 43. (Bibliothèque de la Pléiade). 14 VOLTAIRE. Le pyrrhonisme de l’histoire. In: Oeuvres complètes (vol. 27). Paris: Garnier Frères, 1879, p.242. 15 Étienne de Canaye (1694-1782), teólogo francês. 16 VOLTAIRE. Le pyrrhonisme de l’histoire, p. 243. Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 65 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Pensar a história diferente desses moldes é pensá-la filosoficamente, isto é, usar de um instrumento que não reconhece nenhuma autoridade senão aquela retirada da evidência racional. A filosofia pretende, pois, esclarecer a existência do homem a partir do próprio homem e de sua trajetória concreta. Assim, para Voltaire, não há sentido na aceitação de uma história santa, de “uma sequencia de operações divinas e miraculosas pelas quais aprove a Deus conduzir um dia a nação judia, e confirmar, hoje, nossa fé”17. Tudo na história pertence ao reino profano, ou seja, ao domínio do que não é consagrado, ou do que não é mais sagrado.18 O pressuposto voltairiano é de que no homem a razão é concedida para que ele próprio possa chegar às verdades que orientam sua trajetória no mundo. Por esse motivo, a filosofia faz constante apelo à história e vice-versa, e uma reflexão sobre a história não se apresenta apenas como mais uma disciplina no conjunto das matérias filosóficas ou mesmo uma interpretação metafísica da trajetória dos humanos, ela representa, na verdade, a junção, tão insistentemente buscada por Voltaire, entre a filosofia e a utilidade. A filosofia da história torne-se útil quando contribui para o entendimento do próprio gênero humano ao fazê-lo enxergar os erros que conduziram à barbárie e à ignorância ou os progressos alcançados pela razão bem orientada. Cabe à filosofia da história esclarecer os homens através de uma avaliação desses momentos de avanço ou de recuo da razão. Mas, antes de qualquer coisa, filosofia da história parte de um conceito de homem, de sua condição, definidos pelo uso que, no tempo, o gênero humano faz de seus instrumentos espirituais. Por ser um discurso racional sobre a trajetória dos humanos em vista de um sentido que lhe ordene e torne inteligível, a reflexão sobre a história carece de um conceito que lhe sirva de núcleo referencial interpretativo. Dito de outra forma: a razão possui a necessidade de pensar, sob a categoria de totalidade, a história. Sem embargo, é incontestável que qualquer tentativa de explicação da história precisa fazer uso de uma noção que lhe possa orientar o discurso. Em Voltaire, essa noção é a de humanidade ou de espírito humano. 17 VOLTAIRE. Article Histoire. Dictionnaire philosophique. Profanus, aquilo ou aquele que vem antes de algo ou de alguém consagrado (pro fano), ou aquilo ou aquele que não é mais sagrado. Cf. CICERO. Partitiones Oratoriae X, 36. In: Divisions de l’art oratoire (latin-français). Paris: Les Belles Lettres, 1990. 18 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 66 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP Tudo nos envia ao homem e recorrer a Deus como um refúgio para ampliar uma “zona misteriosa” que envolve a humanidade em nada contribui para o seu aperfeiçoamento. Pascal é um inimigo capital, porque, ao colocar o homem no mais absoluto opróbrio, inviabiliza a história enquanto campo privilegiado para o conhecimento do próprio homem e da responsabilidade que esse deve assumir para o seu aperfeiçoamento. Em nada é útil mostrar o homem apenas sob uma luz odiosa, malvado e infeliz. Voltaire ousa tomar partido da humanidade.19 O homem não é um enigma, ele parece estar em lugar apropriado no reino da natureza: superior aos animais, aos quais se aparenta pelos órgãos, inferior a outros seres, aos quais se assemelha provavelmente pelo pensamento. Como tudo o que se vê, está mesclado de bem e mal, de prazer e de dor. Está munido de paixões para agir e de razão para o governo das ações. Se perfeito fosse, seria Deus, e as pretendidas contrariedades a que chamais contradições são os ingredientes necessários que entram na composição do homem, que é aquilo que deve ser20. Definitivamente, a história cristã não é aquela dos homens, ao menos quando os pensamos como atores. Assim sendo, a razão desses homens não possui plena capacidade, nem para compreender, nem para se posicionar como guia de interpretação. Num século ilustrado, qualquer barreira que se interponha entre o fato e a razão merece a denúncia e o alerta do filósofo. Amigo dos homens, ele propõe, para ocupar o lugar do mistério, o esforço do espírito confirmado em sua universalidade pela consciência de seu aperfeiçoamento. A certeza histórica tem por objeto o trabalho de fazer triunfar uma verdade amadurecida pelos séculos e fruto de uma razão que se quer livre em suas próprias regras, “uma razão que esclarece lentamente, mas infalivelmente, os homens”21. Com efeito, ao procurar uma coerência para a história e as condições nas quais ela implica, o filósofo não precisará do respaldo de Deus. As relações entre o absoluto – como sinônimo da coerência buscada racionalmente – e o relativo – oriundo da ação livre –, que exprime a história dos homens, não exclui a complexidade. Deus tanto mais é importante quanto mais longe se encontrar. Estranho à história, sua interferência significaria a anulação da autonomia. Da mesma forma que o universo se abre ao exame da razão, porque ele já é razão, também a história do homem se abre a 19 VOLTAIRE. Lettres Philosophiques (Lettre XXV). In: Mélanges, p. 104. Id. ibid., p. 107. 21 VOLTAIRE. Traité sur la tolérance (Cap. V). In: Mélanges, p. 581. 20 Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 67 VII Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP uma explicação racional, porque é animada de uma aspiração racional, a saber, a afirmação do homem enquanto senhor de si e administrador do mundo. Referências AGOSTINHO. A Cidade de Deus (X, 14). Trad. De Oscar Paes Leme. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990. BÉGUIN, A. Pascal par lui même. Paris: Seuil, 1964. GOLDMANN, L. Le Dieu Caché. Paris: Gallimard, 1959. MARROU, Henry-Irenée. Ambivalence du temps de l’histoire chez Saint Augustin.Paris, J.Vrin, 1950. MICHEL, A. Vertu - Vertus Théologales. In: Dictionnaire de théologie catholique. Paris: Letouzey et Ané, 1950. OLIVA, L. C. G. A história e a crítica ao progresso em Pascal. In: SANTOS, A. C. dos. Variações filosóficas: entre a ética e a política. São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2004. PASCAL, B. Oeuvres complètes (I e II). Paris: Gallimard, 1998. (Bibliothèque de la Pléiade). ______. Préface sur letraité du vide. In: Oeuvres Complètes. Paris: Éditions Du Seuil, 1963. RIVERA de VENTOSA, E. Presupuestos filosóficos de la teología de la historia. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1975. SELLIER, Philippe. Pascal et saint Augustin. Paris: Albin Michel, 1970. VOLTAIRE. Lettres Philosophiques (Lettre XXV). In: Mélanges. Paris: Gallimard, 1961. (Bibliothéque de La Pléiade). ______. Oeuvres complètes. Paris: Garnier Frères, 1879. ______. Dicionário filosófico e Cartas Inglesas. Trad. de Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção “Os Pensadores”). ______. Lettres Philosophiques (Lettre XXV). In: Mélanges. Paris: Gallimard, 1961. (Bibliothéque de La Pléiade). Vol. 5, 2012. www.marilia.unesp.br/filogenes 68