scott stossel Meus tempos de ansiedade Medo, esperança, terror e a busca da paz de espírito Tradução Donaldson M. Garschagen Renata Guerra 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 3 9/23/14 4:10 PM Copyright © 2014 by Scott Stossel Todos os direitos reservados. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Título original My Age of Anxiety: Fear, Hope, Dread and the Search for Peace of Mind Capa e ilustração Wendy Birch Preparação Cacilda Guerra Índice remissivo Luciano Marchiori Revisão Huendel Viana <completar> Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Stossel, Scott Meus tempos de ansiedade : Medo, esperança, terror e a busca da paz de espírito / Scott Stossel ; tradução Donaldson M. Garschagen, Renata Guerra. — 1a ed. — São Pau­lo : Com­pa­nhia das Letras, 2014. Título original: My age of anxiety ; fear, hope, dread, and the search for peace of mind. isbn 978-85-359-2503-6 1. Ansiedade 2. Ansiedade - Quimioterapia 3. Ansiedade Transtorno - Epidemiologia 4. Stossel, Scott - Saúde mental 5. Tranquilizantes 4. Aspectos sociais i. Título. 14-09602 Cdd-616.8522 Índices para catálogo sistemático: 1. Transtorno de ansiedade : Medicina 616.8522 [2014] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532‑002 — São Paulo — sp Telefone: (11) 3707‑3500 Fax: (11) 3707‑3501 www.­com­pa­nhia­das­le­tras.com.br www.blogdacompanhia.com.br 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 4 9/23/14 4:10 PM Sumário parte i — o enigma da ansiedade. . . . . . . . . . . . . . . 9 1. A natureza da ansiedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 2. Do que estamos falando quando falamos de ansiedade?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 parte ii — uma história de meu estômago nervoso 3. Um ronco na barriga. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 4. Ansiedade de desempenho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 parte iii — remédios 5. “Uma sacola de enzimas”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 6. Uma breve história do pânico (ou Como medicamentos criaram um novo transtorno). . . . . . . . 245 7. A medicação e o significado da ansiedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 7 9/23/14 4:10 PM parte iv — criação versus natureza 8. Ansiedade de separação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313 9. Atormentados e guerreiros: a genética da ansiedade. . . . 356 10. Eras de ansiedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 400 parte v — redenção e resiliência 11. Redenção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 425 12. Resiliência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 446 Agradecimentos. . . . . . . . . . . . Notas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referências bibliográficas. . . . . . Índice remissivo. . . . . . . . . . . . 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461 465 489 515 9/23/14 4:10 PM parte i o enigma da ansiedade 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 9 9/23/14 4:10 PM 1. A natureza da ansiedade E nenhum Grande Inquisidor tem à sua disposição torturas terríveis como tem a ansiedade, não existe um espião que, com mais mestria, saiba atacar o homem de quem suspeita, escolhendo o momento em que está mais fragilizado, ou saiba como melhor dispor armadilhas com que detê-lo e capturá-lo como faz a ansiedade, não existe juiz sagaz que interrogue ou interpele o acusado como sabe fazer a ansiedade, que jamais o deixa escapar, seja por desvio de atenção, seja por arrocho, quer por trabalho, quer por recreação, já de dia, já de noite. Søren Kierkegaard, Begrebet Angest [O conceito de ansiedade] (1844) É certo que o problema da angústia configura um ponto nodal para o qual convergem questões as mais diversas e importantes, um enigma cuja solução haverá de lançar luz abundante sobre o conjunto de nossa vida psíquica. Sigmund Freud, Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917 ) (1917) 11 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 11 9/23/14 4:10 PM Tenho uma lamentável tendência para vacilar em momentos cruciais. Por exemplo, no altar de uma igreja em Vermont, esperando minha noiva percorrer a nave para se casar comigo, começo a sentir um mal-estar horrível. Não apenas apreensão, mas muita náusea e tremores — e, sobretudo, transpiração. Faz calor na igre‑ ja nesse dia, pois estamos no começo de julho, e muitas pessoas suam, mesmo com ternos de verão e vestidos leves. Mas não como eu. À medida que o cortejo avança, o suor começa a se acumular em minha testa e sobre meu lábio superior. Nas fotos do casamen‑ to, apareço tenso no altar, com um meio sorriso sinistro, acom‑ panhando o percurso de minha noiva pela nave, de braço dado com o pai. Nessas fotos, Susanna resplandece de alegria, enquan‑ to eu brilho de suor. Quando ela se junta a mim, filetes de suor correm para meus olhos e pingam em meu colarinho. Viramo-nos de frente para o pastor. Atrás dele estão nossos amigos, a quem pedimos que leiam textos, e percebo que estão olhando para mim com evidente preocupação. O que está havendo com ele? Imagino que estarão pensando: Será que vai desmaiar? Só de pensar nessa possibilidade, passo a transpirar ainda mais. Meu padrinho, três passos atrás de mim, dá uma batidinha em meu ombro e me pas‑ sa um lenço de papel para eu enxugar a testa. Minha amiga Cathy, que está num banco no meio da igreja, me contará depois que pensou seriamente em me levar um copo d’água. E a impressão que eu dava, dirá ela, era de ter acabado de correr uma maratona. A expressão no rosto de meus amigos já não exprime preo‑ cupação, mas indisfarçado horror. Será que ele vai morrer? Eu mesmo já passo a pensar nisso. Porque começo a me sacudir. Não me refiro a um estremecimento, o tipo de tremor leve que só seria percebido se eu estivesse segurando uma folha de papel. Eu me sinto prestes a entrar em convulsão. Concentro-me em impedir que as pernas bambeiem como as de um epiléptico e em confiar 12 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 12 9/23/14 4:10 PM que a calça seja larga o bastante para não deixar o tremor se tornar demasiado visível. Estou agora me apoiando em minha noiva, e ela faz o que pode para me segurar. O pastor fala, fala e fala. Não tenho ideia do que ele está di‑ zendo. (E, como se diz, não estou vivendo o momento.) Estou é rezando para que ele acabe logo com isso, para que eu possa fugir ao suplício. O pastor faz uma pausa e olha para minha noiva e para mim. Ao me observar — o brilho do suor que escorre, o pânico em meu olhar —, ele se alarma. “Você está bem?”, pergun‑ ta baixinho. Sem saber o que fazer, indico com a cabeça que sim. (O que ele faria se eu dissesse que não? Interromperia a cerimô‑ nia? A vergonha seria insuportável.) No momento em que o pastor retoma a prédica, estou lutan‑ do ativamente contra três coisas: o tremor das pernas e dos braços, a ânsia de vômito e a perda de consciência. E só penso numa coisa: Me tirem daqui. Por quê? Porque quase trezentas pessoas — amigos, parentes e colegas — vieram a nosso casamento e estou na iminência de um colapso. Perdi o controle do corpo. Este devia ser um dos momentos mais felizes e importantes de minha vida, e estou passando muito mal. Tenho medo de não sobreviver. Enquanto suo, quase desfaleço e tremo, esforçando-me para cumprir o ritual (dizer “sim”, pôr a aliança no dedo da noiva, beijá-la), preocupo-me com o que as pessoas (os pais de minha mulher, os amigos dela, meus colegas) estarão pensando ao olhar para mim: Será que ele está mudando de ideia sobre o casamento? Será que isso é uma prova de sua fraqueza inerente? De sua covardia? De sua inadequação como marido? Parece que tomei uma ducha vestido. Minhas glândulas sudoríparas — minha debilida‑ de física, minha débil fibra moral — foram reveladas ao mundo. A indignidade de minha própria existência foi desmascarada. Felizmente, a cerimônia acaba. Ensopado de suor, saio pela nave, agarrado, grato, à minha mulher, e ao sair da igreja os in‑ 13 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 13 9/23/14 4:10 PM tensos sintomas físicos somem. Não vou ter convulsões. Não vou desmaiar. Mas na fila dos cumprimentos, e depois, quando bebo e danço na festa, o que faço é uma pantomima de felicidade. Sor‑ rio para as câmeras, aperto mãos — e desejo morrer. Por que não? Falhei num dos mais básicos deveres masculinos: casar-se. Como foi que consegui ferrar com isso também? Durante as 72 horas seguintes, suporto um desespero brutal e autodestruidor. A ansiedade mata relativamente pouca gente, porém um número bem maior de pessoas aceitaria de bom grado a morte como alternativa à paralisia e ao sofrimento decorrente da ansiedade em suas formas mais graves. David H. Barlow, Anxiety and Its Disorders [A ansiedade e seus transtornos] (2004) Meu casamento não foi a primeira ocasião em que sucumbi, nem a última. Durante o nascimento de nosso primeiro filho, as enfermeiras, por algum tempo, tiveram de parar de cuidar de mi‑ nha mulher, em trabalho de parto, para cuidar de mim, que em‑ palideci e desmaiei. Já fiquei paralisado, de forma mortificante, em palestras e apresentações públicas, e em várias ocasiões fui obrigado a desistir delas. Já renunciei a encontros com moças, fugi de exames e tive colapsos nervosos durante entrevistas de emprego, ou em aviões, trens e automóveis, ou simplesmente an‑ dando na rua. Em milhares de ocasiões, fazendo coisas normais — lendo um livro, deitado na cama, falando ao telefone, sentado numa reunião ou jogando tênis —, fui dominado por uma sensa‑ ção difusa de temor existencial e tomado de náuseas, vertigens, tremores e diversos outros sintomas físicos. Nesses casos, às vezes me convenci de que a morte (ou outra coisa de algum modo pior) era iminente. Mesmo quando não acometido por esses episódios agudos, 14 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 14 9/23/14 4:10 PM sou invadido por preocupações com minha saúde ou a de pessoas de minha família, finanças, trabalho, um ruído no carro ou um gotejamento no porão, a chegada da velhice e a inevitabilidade da morte — preocupações com tudo e nada. Às vezes essa apreensão se transforma num desconforto físico — dor de estômago, dor de cabeça, tontura, dores nos braços e nas pernas — ou num mal‑ -estar generalizado, como se eu tivesse mononucleose ou gripe. Muitas vezes enfrentei dificuldades, induzidas pela ansiedade, para respirar, engolir e até andar. Essas dificuldades tornam-se então obsessões, ocupando todo o meu pensamento. Sofro também de vários medos específicos ou fobias. Cito algumas: de espaços fechados (claustrofobia), de altura (acrofo‑ bia), de perder os sentidos (astenofobia), de ficar preso longe de casa (uma variedade de agorafobia), de germes (bacilofobia), de queijo (tirofobia), de falar em público (uma subcategoria de fobia social), de voar (aerodromofobia), de vomitar (emetofobia) e, cla‑ ro, de vomitar em aviões (aeronausifobia). Quando eu era criança e minha mãe fazia o curso de direito à noite, ficava em casa com uma babá, sentindo um medo terrível de que meus pais tivessem morrido num acidente de carro ou me abandonado (o termo clínico para isso é “ansiedade de separa‑ ção”). Aos sete anos eu tinha criado sulcos no tapete do meu quar‑ to, de tanto andar de um lado para o outro, tentando fazer com que, pela força do meu desejo, meus pais voltassem para casa. No primeiro ano do curso primário, passei quase todas as tardes, du‑ rante meses, na enfermaria da escola, com dores de cabeça psicos‑ somáticas, suplicando que me deixassem voltar para casa. No terceiro ano, as dores de cabeça tinham sido substituídas por do‑ res de estômago, mas minhas visitas diárias à enfermaria conti‑ nuavam. No ensino médio, eu faltava de propósito às partidas de tênis e squash para fugir à agonia de ansiedade que as situações competitivas me causavam. Na única vez em que saí com uma 15 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 15 9/23/14 4:10 PM garota no colégio, fui dominado pela ansiedade e tive de me afas‑ tar, com medo de vomitar, quando ela se aproximou para um beijo num momento romântico (estávamos ao ar livre, contem‑ plando constelações pelo telescópio dela). Minha vergonha foi tanta que deixei de atender os telefonemas dela. Em suma, desde mais ou menos dois anos de idade, tenho sido um depósito inquieto de fobias, medos e neuroses. E desde os dez, quando pela primeira vez fui levado a um hospital de doenças mentais para avaliação e passei a ser tratado por um psi‑ quiatra, tentei de várias formas vencer minha ansiedade. Uma lista do que tentei: psicoterapia individual (durante três décadas), terapia familiar, terapia de grupo, terapia cognitivo‑ -comportamental (tcc), terapia racional-emotiva (tre), terapia de aceitação de compromisso (tac), hipnose, meditação, repre‑ sentação de papéis [role-playing], terapia de exposição interocep‑ tiva, terapia de exposição in vivo, terapia suportivo-expressiva, dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares [eye movement desensitization and reprocessing] (emdr), livros de exercícios de autoajuda, massoterapia, oração, acupun‑ tura, ioga, filosofia estoica e fitas de áudio que comprei num in‑ fomercial na tv. E medicamentos. Muitos medicamentos. Amplictil. Imipra‑ mina. Pertofran. Clorfeniramina. Fenelzina. Buspar. Prozac. Zo‑ loft. Paxil. Wellbutrin. Efexor. Citalopram. Lexapro. Cymbalta. Luvox. Trazodona. Levoxyl. Propranolol. Oxazepam. Prazepam. Erva-de-são-joão. Zolpidem. Valium. Librium. Lorax. Frontal. Rivotril. Também: cerveja, vinho, gim, bourbon, vodca e uísque. O que funcionou: nada. Na realidade, isso não é inteiramente verdadeiro. Alguns re‑ médios ajudaram um pouco, durante períodos limitados. Em combinação, o Amplictil (um antipsicótico, que era classificado 16 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 16 9/23/14 4:10 PM como sedativo) e a substância imipramina (um antidepressivo tricíclico) ajudaram a me manter fora do hospital psiquiátrico no começo da década de 1980, quando eu estava no fim do curso fundamental e devastado pela ansiedade. A desipramina, outra substância da classe dos tricíclicos, me segurou quando tinha vin‑ te e poucos anos. O Paxil, um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (isrs), proporcionou-me cerca de seis meses de redu‑ ção substancial da ansiedade quando eu estava perto dos trinta, antes que o medo voltasse a toda. Grandes quantidades de Frontal, propranolol e vodca me permitiram chegar ao fim (mal e mal) da turnê de lançamento do meu primeiro livro, com várias palestras públicas e entrevistas na tv, quando tinha trinta e poucos anos. Um uísque duplo, ajudado por um comprimido de Frontal e ou‑ tro de Dramamine, antes da decolagem, às vezes consegue tornar tolerável uma viagem de avião — e dois uísques duplos, em rápi‑ da sucessão, conseguem obscurecer o pavor existencial, fazendo com que ele pareça mais vago e mais distante. No entanto, nenhum desses tratamentos reduziu de forma fundamental a ansiedade subjacente que parece entretecida em minha alma e conectada fisicamente a meu corpo, tornando mi‑ nha vida um tormento. Com o passar dos anos, a esperança de ver minha ansiedade curada se transformou num desejo resignado de chegar a um acordo com ela, de encontrar alguma qualidade re‑ dentora ou um benefício atenuante no fato de eu ser, com muita frequência, uma ruína trêmula e neurótica. A ansiedade é o traço mental preponderante da civilização ocidental. R. R. Willoughby, Magic and Cognate Phenomena [Magia e fenômenos cognatos] (1935) A ansiedade e os transtornos a ela associados constituem ho‑ je em dia a forma mais comum de doença mental classificada 17 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 17 9/23/14 4:10 PM oficialmente nos Estados Unidos, mais comum até que a depres‑ são e outros transtornos do humor. Segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, cerca de 40 milhões de ame‑ ricanos, quase um em sete, sofrem algum tipo de transtorno de ansiedade em qualquer momento, o que consome 31% dos gastos com assistência de saúde mental no país.1 De acordo com dados epidemiológicos recentes, a incidência do transtorno de ansieda‑ de entre os americanos é superior a 25%, o que, se o dado for verdadeiro, significa que um em quatro americanos pode esperar ser atingido por uma crise de ansiedade incapacitante em algum momento da vida. E a ansiedade incapacita mesmo: estudos aca‑ dêmicos recentes afirmam que a debilitação psíquica e física as‑ sociada a uma vida marcada pelo transtorno de ansiedade equi‑ vale a viver com o diabetes — em geral controlável, às vezes fatal, mas sempre doloroso.2 Um estudo publicado em The American Journal of Psychiatry em 2006 constatou que os americanos per‑ dem, em conjunto, 321 milhões de dias de trabalho em função de ansiedade e depressão a cada ano, o que custa à economia 50 bi‑ lhões de dólares anuais;3 e um trabalho publicado em 2001 pelo Departamento de Estatísticas do Trabalho dos Estados Unidos estimou em 25 o número médio de dias de trabalho perdidos a cada ano por trabalhadores americanos que sofrem de transtornos de ansiedade ou depressão.4 Em 2005 — três anos antes do início da recente crise econômica —, os médicos americanos passaram 53 milhões de receitas de dois medicamentos contra ansiedade: Lorax e Frontal, sem contar os demais.5 (Durante as semanas que se seguiram ao Onze de Setembro, as prescrições de Frontal cres‑ ceram 9% nos Estados Unidos — e 22% na cidade de Nova York.)6 Em setembro de 2008, a crise econômica fez com que o número de receitas disparasse: enquanto os bancos desabavam e a bolsa entrava em queda livre, as prescrições de antidepressivos e ansio‑ 18 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 18 9/23/14 4:10 PM líticos aumentaram 9% em relação ao ano anterior, enquanto as receitas de soníferos cresceram 11%.7 Embora haja quem diga que a ansiedade é uma doença típica dos Estados Unidos, ela não acomete apenas os americanos. Se‑ gundo um relatório divulgado em 2009 pela Fundação de Saúde Mental da Inglaterra, 15% da população do Reino Unido sofre de transtorno de ansiedade hoje em dia, e os índices vêm aumentan‑ do: 37% dos britânicos declaram que se sentem mais assustados do que antes.8 Um artigo recente de The Journal of the American Medical Association afirma que a ansiedade patológica é o trans‑ torno emocional mais comum em muitos países.9 Uma ampla revisão global publicada em 2006 em The Canadian Journal of Psychiatry concluiu que nada menos que uma em cada seis pes‑ soas em todo o mundo sofrerá um transtorno de ansiedade du‑ rante pelo menos um ano em algum momento da vida;10 outras pesquisas chegaram a resultados semelhantes.11 É claro que esses números se referem apenas a pessoas que, como eu, segundo os critérios de diagnóstico um tanto arbitrários definidos pela Associação Americana de Psiquiatria (apa), são classificadas, em termos técnicos, como patologicamente ansiosas. Entretanto, a ansiedade acomete muito mais pessoas além das que oficialmente apresentam doença mental. De acordo com médicos de atenção primária, a ansiedade é uma das queixas que com mais frequência levam pacientes a seus consultórios — com mais fre‑ quência, segundo certos relatos, que o resfriado comum.12 Uma pesquisa em grande escala, divulgada em 1985, constatou que a ansiedade era responsável por mais de 11% de todas as consultas a médicos de família;13 um estudo do ano seguinte determinou que um terço dos pacientes queixavam-se de “ansiedade grave” a seus médicos de família.14 (Outros estudos informam que 20% dos pacientes de atendimento primário nos Estados Unidos tomam um benzodiazepínico, como Valium ou Frontal.)15 E quase toda 19 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 19 9/23/14 4:10 PM a população do planeta experimentou em algum momento os su‑ plícios da ansiedade — ou do medo, do estresse ou da preocupa‑ ção, que são fenômenos diferentes mas relacionados. (As pessoas incapazes de experimentar ansiedade apresentam, de modo geral, uma patologia mais profunda — e são mais perigosas para a so‑ ciedade — do que aquelas que a sofrem de forma aguda ou irra‑ cional: são sociopatas.) Poucas pessoas hoje em dia poriam em dúvida a afirmativa de que o estresse crônico é uma marca de nosso tempo, ou que a ansiedade tornou-se um tipo de doença cultural da modernidade. Vivemos, como tem sido dito desde a alvorada da era atômica, numa era de ansiedade — e isso, por mais lugar-comum que seja, só parece ter se tornado mais verdadeiro nos últimos anos, quan‑ do os Estados Unidos foram agredidos, num breve espaço de tem‑ po, por terrorismo, calamidade e perturbação econômica e por uma profunda transformação social. No entanto, há apenas trinta anos, a ansiedade em si não existia como categoria patológica. Em 1950, quando o psicanalis‑ ta Rollo May publicou O significado da ansiedade, observou que até então só dois outros autores, Søren Kierkegaard e Sigmund Freud, haviam produzido obras extensas sobre o tema. Em 1927, de acordo com a listagem em Psychological Abstracts, publicaram‑ -se somente três trabalhos acadêmicos sobre a ansiedade; em 1941 foram apenas catorze e, ainda em 1950, não mais que 37. A pri‑ meira conferência acadêmica dedicada unicamente à questão da ansiedade só teve lugar em junho de 1949. Foi apenas em 1980 — depois de criados e lançados no mercado novos remédios para tratar a ansiedade — que esses transtornos foram, enfim, inseridos na terceira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders] (DSM ), da Associação Americana de Psiquiatria, em lugar das neuroses freudianas. Num sentido importante, o tratamento 20 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 20 9/23/14 4:10 PM antecedeu o diagnóstico — isto é, a descoberta de medicamentos ansiolíticos determinou a elevação da ansiedade a uma categoria diagnóstica. Hoje, publicam-se a cada ano milhares de trabalhos sobre a ansiedade, e há várias revistas acadêmicas dedicadas apenas a ela. A pesquisa sobre a ansiedade vive levando a novas descobertas, não só sobre suas causas e tratamentos como também, de modo mais geral, sobre a maneira como a mente funciona — sobre as relações entre a mente e o corpo, entre os genes e o comportamen‑ to, e entre as moléculas e a emoção. Graças à tecnologia de ima‑ gens por ressonância magnética funcional[functional magnetic resonance imaging] (fmri), podemos hoje mapear várias emoções experimentadas subjetivamente em partes específicas do cérebro e até distinguir vários tipos de ansiedade com base em seu efeito visível sobre a função cerebral. Por exemplo, a preocupação gene‑ ralizada com fatos futuros (digamos, meu temor de que a indús‑ tria editorial não sobreviva tempo suficiente para que este livro seja publicado, ou de que eu não tenha como custear os estudos universitários de meus filhos) tende a aparecer como hiperativi‑ dade nos lobos frontais do córtex cerebral. A intensa ansiedade que certas pessoas sentem ao falar em público (como o terror, abrandado por remédios e álcool, que experimentei ao fazer uma palestra dias atrás) ou que algumas pessoas extremamente tímidas sentem em situações sociais tendem a aparecer como intensa ati‑ vidade no giro cingulado anterior. Já a ansiedade obsessivo-com‑ pulsiva pode manifestar-se, numa tomografia cerebral, como uma perturbação no circuito que liga os lobos frontais aos centros ce‑ rebrais inferiores nos gânglios basais. Sabemos hoje, graças à pes‑ quisa pioneira do neurocientista Joseph LeDoux, na década de 1980, que as emoções e os comportamentos mais terríveis são, de uma forma ou de outra, produzidos, ou pelo menos processados, pelas amígdalas, órgãos minúsculos, em forma de amêndoa, si‑ 21 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 21 9/23/14 4:10 PM tuados na base do cérebro. Nos últimos quinze anos, as amígdalas tornaram-se alvo de grande parte das pesquisas neurológicas so‑ bre a ansiedade. Sabemos também, muito mais do que Freud ou Kierkegaard sabiam, sobre a forma como diferentes neurotransmissores — como a serotonina, a dopamina, o ácido gama-aminobutírico, a norepinefrina e o neuropeptídio Y — reduzem ou aumentam a ansiedade. Sabemos também que a ansiedade tem um forte componente genético e já começamos até a descobrir, com cer‑ tos detalhes, em que consiste esse componente. Em 2002, para citar só um exemplo entre muitas centenas, pesquisadores na Universidade Harvard identificaram um gene que a imprensa logo chamou de “gene Woody Allen”, porque ele ativa um gru‑ po específico de neurônios nas amígdalas e em outros locais nas partes cruciais do circuito neural que governa o comportamen‑ to de medo.16 Hoje, vários pesquisadores concentram a atenção em inúmeros “genes candidatos” dessa espécie, medindo a asso­ ciação estatística entre certas variações genéticas e certos trans‑ tornos de ansiedade, ao mesmo tempo que exploram os meca‑ nismos químicos e neuroanatômicos que “medeiam” essa associação, tentando descobrir o que é, precisamente, que con‑ verte uma predisposição genética numa emoção ou distúrbio de ansiedade real. “O grande interesse nesse caso, tanto no estudo da ansiedade como no da emoção e no que se enquadra na categoria dos trans‑ tornos”, diz o dr. Thomas Insel, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, “é que se trata de um dos pon‑ tos onde podemos começar a fazer a transição entre o entendi‑ mento das moléculas, das células e do sistema até a emoção e o comportamento.17 Enfim, somos capazes de traçar as linhas entre os genes, as células e o cérebro e os sistemas cerebrais.” 22 12628 - Meus tempos de ansiedade.indd 22 9/23/14 4:10 PM