O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC GILSON SCHWARTZ Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Articulista e Editorialista da Folha de S.Paulo. Autor do livro Decifre a economia, entre outros pragmática, na Secretaria de Política Econômica, no Planejamento, na Casa Civil e, last but not least, no Ministério da Reforma do Estado. O terceiro núcleo de poder econômico e capacidade de formulação poderia ser descrito como carioca. Malan e principalmente Gustavo Franco são os defensores da estabilidade, conquistada depois de um laboratório social de tentativa e erro conduzido durante quase uma década (1986-1994) pelos cientistas oriundos da PUC-RJ. O fato é que a mágica desindexante dos cariocas finalmente deu certo quando o país pôde contar com uma conjuntura de abundância no mercado financeiro internacional. Diga-se de passagem que, já em 1993, os fluxos de capitais para o Brasil davam um salto mesmo sem ter o país domado o dragão inflacionário. Era, mais uma vez, o fenômeno da liquidez excessiva que, como nos anos 70, tem horror ao vácuo e ocupa até mesmo os espaços “emergentes”. Diplomatas sociais-liberais, paulistas e cariocas compartilham assim o centro decisório da vida nacional. É através da articulação entre esses grupos que parecem surgir, ao menos entre as elites, as possibilidades e os limites de formulação e execução de políticas sociais no país. “Há um certo equívoco compartilhado por Kant e Weber. A certa altura eles tendem a superestimar a consistência e a lucidez humana (...) As sociedades modernas não são sistemáticas e consistentemente secularizadas; crenças luxuriantes, auto-indulgentes, da moda ou extáticas estão presentes em mil formas, novas, velhas ou retrôs.” Ernest Gellner (1974) H á um núcleo de inteligência em torno da presidência da República no Brasil que, há algumas décadas, freqüenta os salões da corte federal. Sobretudo a partir dos anos da transição democrática, esse núcleo de elaboração e execução de políticas de Estado ficou ainda mais próximo da presidência. Originário da geração San Tiago Dantas no Itamaraty e tendo em José Guilherme Merquior uma de suas vertentes, esse grupo constitui uma geração que resistiu às tentações tanto do marxismo quanto do liberalismo estrito. Diplomatas pragmáticos, talvez. Merquior formulou uma versão tupiniquim de socialliberalismo, uma amarração meio social-democrata, meio liberal, que pelo menos desde o final dos anos 80 premonitoriamente casava no mundo das idéias a aliança político-partidária que consagraria Fernando Henrique Cardoso na presidência. É conhecida a aproximação entre Collor e FHC, bem como, para quem tem os olhos suficientemente desembaçados, a continuidade entre algumas das suas políticas de governo. Uma diferença, entretanto, sobretudo na área econômica, vem de São Paulo. No governo FHC, paulistas comandam o BNDES e agem, igualmente de forma ECONOMIA PAULISTA O processo de transição de uma economia inflacionária com baixo investimento para uma economia estabilizada com altas taxas de investimento é, na teoria e na prática, talvez até mais difícil que a eliminação da inflação e da indexação em si mesmas. Boa parte da teoria econômica desenvolvida na época dos “grandes economistas clássicos” (a era da Economia Política) ocupava-se do “exame de padrões de mudança 65 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997 econômica de longo prazo” (Nelson e Winter, 1982). Na teoria neoclássica que veio depois, o foco concentrou-se cada vez mais na empresa competitiva produzindo em condições de tecnologia oferecidas. Na teoria do desenvolvimento econômico, que se formulou depois, respeitando os limites metodológicos impostos pela hipótese de parâmetros tecnológicos dados, criou-se imagens de take off e big push. Como ensina Mário Henrique Simonsen, entretanto, esses modelos continham “boa dose de fantasia”: “o grande impulso (big push) parecia um exercício de desenvolvimento com oferta ilimitada de capital, precisamente o fator escasso nos países subdesenvolvidos”(Simonsen e Cysne, 1989). A suposição de um parâmetro tecnológico e o exame do processo de crescimento como uma questão de disponibilidade de recursos ou dotação de fatores constituem a essência da visão neoclássica de desenvolvimento. Tratase de uma visão estática. Todo modelo dinâmico, entretanto, remete à questão do “motor” do dinamismo ou, em última análise, do sujeito histórico capaz de liderar um processo de inovações econômicas, institucionais e políticas. Na economia política do desenvolvimento, pode ser necessário abandonar o aparato conceitual estático que, em última análise, fundamenta a macroeconomia da estabilização. O “grupo paulista” vem portanto implementando medidas de estímulo à retomada do desenvolvimento, políticas industriais e comerciais, além de reformas financeiras capazes de resgatar a capacidade de liderança do Estado na condução do desenvolvimento econômico. Trata-se, portanto, de uma reforma econômica do Estado, em que privatização não equivale necessariamente à perda de soberania e passividade estatal na sinalização e gerenciamento da retomada dos investimentos. Nesse processo, os paulistas contam com o apoio pragmático dos diplomatas sociais-liberais, que recuaram no projeto de abertura da economia e deram continuidade à vocação estratégica continental do Brasil. De certa forma, a política econômica do governo FHC aposta também num processo de substituição de importações. Porém, enquanto no caso clássico a substituição de importações ocorria por imposição de um estrangulamento externo, em que o capital nacional expandia a capacidade produtiva para contornar a ausência de investimento externo, no caso atual o governo acredita que o próprio capital estrangeiro, através de um novo ciclo de investimentos diretos, vai ampliar a produção local e substituir importações. Um processo de substituição de importações, com apoio financeiro, tarifário e fiscal do Estado (inclusive de governos estaduais), mas amparado sobretudo na entrada de capital estrangeiro, é o núcleo do modelo de desenvolvimento que aos poucos se esboça no período posterior à estabilização. Para os formuladores do atual governo, essa substituição de importações será capaz, a médio e longo prazos, de reverter os déficits na balança comercial, assegurando uma trajetória sustentável de financiamento do balanço de pagamentos. Aquilo que para Simonsen era, por definição, a escassez fundamental do país subdesenvolvido, a escassez de capital, torna-se a solução “ab ovo” do problema, no modelo atual. O problema que continua em aberto, entretanto, é o da tecnologia. A mudança tecnológica dos últimos 20 anos foi tão dramática que os modelos tradicionais, tanto neoclássicos quanto clássicos ou de substituição de importações, tornam-se insuficientes. Por ser tecnologicamente mais avançado, o investimento direto da nova geração tem um conteúdo de importações maior, por definição (e mesmo de fluxos futuros de royalties por patentes e propriedade intelectual). Além disso, nos grandes grupos mundiais, criou-se uma estrutura produtiva globalizada em que o balanço de pagamentos do grupo multinacional não será, necessariamente, consistente com o de cada país hospedeiro de parte do seu ciclo produtivo. O investimento estrangeiro na era da globalização reforça a conhecida estatística que mostra a predominância, nos fluxos de comércio internacionais, do comércio intra-firmas, um sistema “quase administrado”. Da mesma forma como, no auge do desenvolvimentismo, a verticalização total da produção era uma utopia ingênua, a atração de investimento direto estrangeiro hoje, como justificativa para a crença num modelo sustentável (sobretudo do ponto de vista do balanço de pagamentos), é ilusória. Entretanto, não há como resolver conceitualmente a questão. Seria necessário saber com precisão quanto do investimento estrangeiro destina-se à produção (para consumo local e para exportações), à aquisição de capacidade produtiva existente (como na privatização, em larga medida), à modernização de sistemas adquiridos (por exemplo, informatização de ferrovias privatizadas), aos serviços cuja eficiência tem impactos gerais sobre a produtividade do sistema (telecomunicações, energia elétrica), aos setores em que há grande concentração de investimentos em bens finais de consumo sem impacto substitutivo relevante (caso de alimentos e bebidas, varejo, logística, lazer e turismo e empreendimentos imobiliários). O mínimo que se pode dizer é que um processo de substituição de importações, num contexto de abundância de capitais externos (financeiros e produtivos) e de mudança tecnológica, tem desfecho menos previsível, em termos de impactos sobre o balanço de pagamentos, do que um mo- 66 O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC delo tradicional em que o ponto de partida é uma restrição de balanço de pagamentos. Operar com a hipótese de ajustes virtuosos na balança comercial e no balanço de pagamentos, como no atual modelo econômico, é uma aposta de alto risco. e das tendências apontadas por indicadores de risco, nas suas mais variadas formas (riscos políticos, comerciais, creditícios, soberanos, ambientais, etc.). Pode-se dizer que o espírito do capitalismo ainda é aquele: buscar no diferencial entre compra e venda um fator de alavancagem no desenvolvimento. No mercado financeiro globalizado, essa taxa é um diferencial construído a partir de representações simbólicas de risco. A ALTA FINANÇA CARIOCA O Rio de Janeiro, depois de perder a posição de capital federal, mergulhou num processo de centrifugação social e cultural do qual ainda não saiu. É, por excelência, ainda o melhor retrato do Brasil atual: a conjugação contígua da favela e do Teleport, da praça financeira e da Praça 15, do “triângulo das Bermudas” onde se erguem as pirâmides do auge estatal (Petrobrás, BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal) e as ruínas da cultura do samba urbano nas encostas da Lapa. De certa forma, o Rio de Janeiro desempenha também, ainda, a interface mais tradicional da sociedade brasileira com as cortes do Primeiro Mundo. A formulação dos modelos de inflação inercial tem sido alvo de disputas de paternidade, mas o monetarismo heterodoxo que inspira os modelos de estabilização vem sem dúvida das gerações que passaram por Mário Henrique Simonsen, na EPGE-FGV-RJ. A verdade é que desenvolvimentismo e liberalismo predominaram alternadamente em várias fases da história econômica brasileira. Corresponderam igualmente a fases na economia internacional, em que cada tipo de ideologia tornava-se praticamente universal (liberalismo final do século 19 e euforia anterior à crise de 29, ciclos de desenvolvimentismo nos anos 30, 50 e 70). É curiosa a correlação entre liberalismo, sobretudo em finanças, e abundância de capitais. Para ser irritantemente marxista, pode-se até mesmo dizer que essas euforias liberalizantes corresponderam “grosso modo” a períodos de aparentemente ilimitada disponibilidade de capitais no circuito financeiro internacional. Os países “emergentes” de hoje são apenas a transfiguração histórico-dramática das “colônias”, com graus variados de superação do subdesenvolvimento. É interessante, por isso mesmo, examinar esse núcleo produtor de crenças que é o sistema financeiro globalizado. Tradicionalmente liberal, sempre na vanguarda dos projetos de dominação, o sistema financeiro sempre foi constituído, muito antes da knowledge economy, como centro processador de informação e de formação de expectativas. A combinação dessa vocação milenar ao networking com o networking cibernético característico da revolução digital dos últimos 20 anos resulta numa fabulosa máquina panóptica, em que a definição de ganhos e perdas depende da avaliação correta dos benchmarks, das médias de opinião A DESCONSTRUÇÃO DO NÚMERO O que buscar então “por trás” do número, uma realidade aparentada à coisa em si do idealismo transcendental? Wittgenstein, que foi filósofo não só da linguagem mas também da matemática (repudiando sempre a filosofia profissional), foi um dos que lançou o alerta contemporâneo contra a pressuposição de um objeto ideal, tanto na vida quanto na matemática. Para Wittgenstein, o “acordo num julgamento” já não é mais um julgamento, mas uma “forma de vida”. O sistema de processamento de informações que se realiza através da “esfera financeira” é uma máquina de produzir juízos que pressupõe a maximização da lógica capitalista como ideal. O consenso pró-capitalista, ideal liberal, torna-se portanto naturalmente a essência da ideologia financeira. É a partir desse ideal que se distanciam mais ou menos as opiniões. Nos extremos do espectro, há heréticos de esquerda e heterodoxos de direita. A avaliação de riscos e oportunidades de acumulação de capital obviamente não se limita a uma questão ideológica. É possível examinar o campo das representações econômicas através de uma infinidade de modelos matemáticos de comportamento de variáveis em diferentes contextos informacionais, culturais e psicológicos, assim como cambiais, fiscais, financeiros e tecnológicos. As crises financeiras mais recentes, aliadas a crises cambiais, em países asiáticos ou no México, são rapidamente descartadas (às vezes no próprio dia em que ocorrem) como fenômenos transitórios, efêmeros. Celebra-se a superação da crise do México em vários países subdesenvolvidos, quando o que ocorreu foi uma normalização das operações financeiras, o estabelecimento de um novo benchmarking, a criação de um novo consenso sobre a sustentabilidade dos processos correntes de acumulação de capital. Ao focalizar suas análises no espaço da macroeconomia da estabilização e do crescimento, os economistas cariocas tradicionalmente refutaram como pura ideologia a formulação e execução de políticas industriais. O próprio Gustavo Franco escreveu prolixamente sobre o tema e 67 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997 combateu idéias heterodoxas enquanto diretor da área internacional do Banco Central. A âncora cambial é, em última análise, um sinal que pode ser imediatamente compreendido pelo sistema de processamento de informações financeiro global e, dessa forma, aparece como uma condição necessária tanto para a estabilização dos preços domésticos quanto para a recuperação da capacidade de endividamento externo do país. Porém, o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Se foi a abundância de crédito internacional que viabilizou o lançamento da âncora, como acreditar que a âncora em si mesma é condição necessária para a preservação da estabilidade dos fluxos externos de capitais? Naturalmente, trata-se de um círculo vicioso que se sustenta ao longo do tempo enquanto perdurar um certo estado de confiança na capacidade do país de melhorar os vários indicadores que servem de benchmark de risco. O problema, como se viu nos episódios recentes (México e Ásia), está exatamente na capacidade dos mercados de destruírem regimes cambiais quando ocorre uma reversão de expectativas. TABELA 1 PIB per Capita Países Selecionados – 1996 Países PIB per capita (US$ de 1993) Hong Kong Cingapura Coréia do Sul Chile Venezuela Argentina México Uruguai Tailândia Colômbia Brasil 21.560 19.350 9.710 8.900 8.360 8.350 7.010 6.550 6.350 5.790 5.500 Fonte: PNUD, 1996. TABELA 2 Evolução do PIB per Capita Países Selecionados – 1993/1960 Países Selecionados TUDO PELO SOCIAL % Coréia do Sul Hong Kong Cingapura Indonésia Tailândia Malásia Brasil Colômbia Chile Argentina México Filipinas Venezuela Peru Uruguai O primeiro presidente civil na transição democrática, José Sarney, lançou o mote do “tudo pelo social”. Depois de dez anos e de vários planos de estabilização fracassados, a percepção de condições sociais insatisfatórias aumentou, assim como a capacidade de organização dos setores populares. Assim, a democratização brasileira continua convivendo com um paradoxo fundamental: enquanto aos poucos se reconstrói a economia e se reformam as instituições, com uma gradual revisão de políticas públicas, a organização social é submetida a tensões crescentes. Também nesse terreno a revolução tecnológica impõe uma mudança de perspectiva, pois a tecnologia da informação requer infra-estrutura educacional e social ampla para operar com eficiência. Enquanto a sociedade brasileira apresentar uma “dívida social” elevada, os indicadores de risco do país continuarão altos, inclusive os de risco político. As instituições de monitoramento internacional aos poucos incorporam também indicadores de risco institucional cada vez mais complexos, com destaque para questões como corrupção, destruição do meio ambiente e liberdade empresarial. Entretanto, como ilustram os indicadores apresentados nas Tabelas 1 a 3, a proteção social oferecida pelos países “emergentes” tem sido declinante exatamente no período de maior efervescência de capitais e confiança na integração aos mercados globais. 14,1 9,3 8,0 6,7 6,4 4,7 3,9 3,1 2,8 2,5 2,4 2,2 2,1 1,6 1,5 Fonte: PNUD, 1996. TABELA 3 Gastos Públicos de Proteção Social Países Selecionados – 1980-1991 Em porcentagem do PIB Países Selecionados América Latina (média) Argentina Brasil Chile México Coréia do Sul Cingapura 1980-81 4,1 7,1 7,4 9,7 3,0 0,3 0,3 1985 3,5 5,8 5,9 8,8 2,4 0,4 0,4 Fonte: FMI, Government Finance Statistics, apud Mila, Miotti, Quenan (1996). 68 1990-1991 3,9 3,7 7,5 6,5 2,1 0,5 0,5 O ‘SOCIAL’ NO SOCIAL-LIBERALISMO DE FHC QUADRO 1 Os Quatro Modelos de Reforma Social Ideologia Modelo Eqüidade x Eficácia Estado liberal social-liberal social-democrata radical flexibilização do mercado de trabalho reformas operacionais nas políticas de Estado reformas patrimoniais reconstrução social complementares compatíveis independentes antagonismo mínimo compensatório intervencionista máximo Evidentemente, proteção social não é sinônimo de gasto público em proteção social. Em vários casos, a redução na rubrica deve-se à privatização de sistemas de previdência social, processo que de todo modo continua lento e sob fogo cruzado, sobretudo no Brasil. Curiosamente, a expressão “tudo pelo social” permite uma segunda leitura, em que se destaca menos a prioridade das políticas sociais e mais um tom justificatório, em que no “tudo” cabem principalmente os sacrifícios, a contenção do crescimento, os custos sociais da reforma produtiva e institucional. É como se, apesar de tudo isso ou ainda que tendo que suportar tudo isso, em última análise, o resultado viesse a confirmar-se como melhoria social. O “social”, no modelo “social-liberal” que aos poucos vai se delineando através das ações da inteligência diplomática brasileira, de paulistas e de cariocas, assume um papel entre compensatório e intervencionista que o pragmatismo das nossas elites admite na ação do Estado. NOTA E-mail do autor: [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GELLNER, E. Legitimation of belif. Cambridge University Press, 1974. NELSON, R.N. e WINTER, S.G. An evolutionary theory of economic change. Harvard University Press, 1982. SCHWARTZ, G.J.M. Keynes, um conservador autocrítico. São Paulo, Brasiliense, 1984. ___________ . Decifre a economia. São Paulo, Saraiva, 1993. SIMONSEN, M.H. e CYSNE, R.P. Macroeconomia. Ao Livro Moderno, 1989. 69