X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis A IDENTIDADE DA MULHER NOS CAMPOS DE FUTEBOL: O CASO DA BANDEIRINHA “GATA”. Yordanna Colombo Mestranda Pós-Graduação Letras – Bolsista Capes Centro Universitário Ritter dos Reis [email protected] Orientadora: Dra. Vera Lúcia Pires (Centro Universitário Ritter dos Reis) Resumo: Este trabalho objetiva pesquisar a identidade da mulher no futebol brasileiro, por meio de um estudo de caso de uma notícia sobre a bandeirinha “gata” (expressão usada pelos principais portais de notícias), Fernanda Colombo Uliana. Os gêneros discursivos têm estreita relação com o contexto, sendo apreendidos pelos participantes de um determinado grupo social ou comunidade por meio de sua participação ativa em diferentes esferas comunicativas. As diversas esferas de atividade da vida social, tais como, a escola, o jornal, a fábrica, as relações de amizade, etc, implicam na utilização da linguagem na forma de enunciados determinados pelas condições e pelas finalidades de cada esfera. O gênero discursivo evidencia uma determinada realidade, estabelece relações sociais e atribui certas representações identitárias às pessoas. Assim, mediante os gêneros discursivos midiáticos, é possível que identidades sejam construídas via discursos veiculados nesses gêneros. Nosso corpus baseia-se em uma notícia do principal portal do Brasil, o G1, tendo como recorte a editoria de esportes e a notícia que se referia especificamente à bandeirinha, Fernanda Colombo Uliana, na sua atuação no clássico Atlético e Cruzeiro no dia 11 de maio de 2014. A finalidade é verificar como a mulher é identificada no futebol brasileiro e se a imagem feminina apresentada mostra uma representação estereotipada associada à fragilidade, sensualidade e futilidades, corroborando o preconceito na sociedade. 1 Introdução No dia 11 de maio de 2014, Atlético e Cruzeiro disputaram o clássico mineiro pelo campeonato brasileiro com vitória da equipe do Atlético por 2 X 1. Em campo, um erro da bandeirinha, Fernanda Colombo Uliana (que marcou indevidamente um impedimento), foi o destaque da partida. No mesmo dia, após o jogo, saíram notícias em diversos portais, enfatizando o erro de Fernanda e sua beleza. A partir daí, ficou evidente o preconceito presente na sociedade, ainda mais quando se fala de um esporte predominantemente masculino. A fim de buscar as marcas presentes nos discursos dos gêneros midiáticos, selecionamos como suporte o principal portal de notícias do Brasil, X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014 X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis o G11. Dentro do G1, recortamos a editoria esportes e selecionamos uma notícia com título “Bandeira musa erra feio e irrita jogadores e dirigentes do Cruzeiro”. A escolha desta notícia deu-se pelo fato de ela conter hipertextos2 que remetem a outras duas notícias, estabelecendo, também, uma relação dialógica. Para embasar o trabalho, serão abordados aspectos conceituais sobre identidade, gênero cultural e gêneros discursivos midiáticos. Esses pressupostos são importantes na medida em que serão aplicados para a análise da notícia e seus hiperlinks. A problematização acerca das representações identitárias do gênero feminino pela mídia é fundamental, considerando o seu papel na construção do imaginário social e na transmissão de valores que produzem conceitos e preconceitos na sociedade. 2 Fundamentação Identidade Na tentativa de elucidar a sociedade da modernidade tardia, o teórico Stuart Hall (2004, p. 7) afirma que se vive “uma crise de identidade”, que abala as referências que outrora proporcionavam certa estabilidade aos indivíduos. No âmbito da cultura, percebe-se que está havendo o que Laclau (apud HALL, 2004, p. 16) chama de “deslocamento” das identidades tidas como padrão, originando uma sociedade distinta, que se desfaz das certezas sólidas, da tradição, e se liquefaz em busca de novas fronteiras (BAUMAN, 2001). Tais transformações são profundas e originam novas concepções, rompendo com as estruturas estáveis e estáticas das velhas identidades. Nessa perspectiva, Hall (2004) trabalha com o conceito de identidades múltiplas da modernidade para se referir ao quadro contemporâneo da cultura. O velho sujeito cartesiano, centrado e estável, perdeu lugar a partir de vários eventos descentralizadores: o pensamento marxista, que se opõe ao racionalismo de Descartes, a teoria do inconsciente de Freud, a linguística estrutural de Saussure, a teoria das relações de poder de Foucault, além de movimentos político-sociais como o feminismo, que no âmbito deste estudo tem grande relevância. Todas essas transformações desestruturam o sujeito, 1 Segundo dados da ComScore (empresa que fornece Análises para o Mundo Digital http://www.comscore.com/por/) no final de 2013, o portal da Globo recebeu cerca de 49 milhões de acessos por mês. 2 Hipertexto é o termo que remete a um texto, ao qual se agregam outros conjuntos de informação na forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons, cujo acesso se dá através de referências específicas, no meio digital são denominadas hiperlinks, ou simplesmente links. Esses links ocorrem na forma de termos destacados no corpo de texto principal, ícones gráficos ou imagens e têm a função de interconectar os diversos conjuntos de informação. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis fazendo surgir dúvidas de toda a ordem. Tal processo termina por deslocar e fragmentar o indivíduo, que passa a assumir “identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2004, p. 13). O feminismo figura como um dos novos movimentos sociais que surgiu no decurso dos anos 60. De acordo com Hall (2004), esses grupos tinham uma forte política de identidade, sendo que cada um apelava para os seus sustentadores: o feminismo às mulheres, as lutas raciais aos negros, etc. O movimento feminista teve especial relação com a ruptura com o pensamento racional cartesiano, pois tornou públicas questões internas, abrindo para reflexão e contestação “arenas inteiramente novas da vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc.” (HALL, 2004, p. 45). Gêneros discursivos Pressuposto básico para o entendimento dos gêneros discursivos é o argumento de que a comunicação só é possível através dos gêneros, que são tão diversificados na sociedade quanto às possibilidades de comunicação humana que estão, por sua vez, vinculadas às esferas de atuação dos sujeitos. Há, assim, estreita vinculação entre os gêneros discursivos e a interação social humana, sendo que um não se estabelece sem o outro, de modo que, os gêneros podem mostrar o próprio funcionamento da sociedade. Tal panorama os situa na perspectiva dialógica. A definição bakhtiniana comumente utilizada para descrever gêneros discursivos é a de que são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2010, p. 262). Tal conceituação genérica é mais bem elucidada por Silveira, Rohling e Rodrigues (2012, p. 49), que definem que os gêneros surgem “através de enunciados individuais, que materializam uma situação de interação e que se movimentam em direção a uma regularidade”. Gêneros midiáticos Entendem-se os gêneros midiáticos, segundo Wolf (1999), como sistemas de regras aos quais se faz referência, explícita ou implicitamente, para realizar processos comunicativos, seja do ponto de vista da produção ou da recepção. O gênero midiático permite que um texto realize facilmente o processo comunicativo. Dentro do jornalismo, os gêneros, divididos em informativos, opinativos, utilitários ou prestadores de serviços e ilustrativos ou visuais, servem para orientar os leitores e jornalistas, permitindo a identificação de formas e conteúdos. Neste trabalho, nosso corpus insere-se no gênero informativo notícia. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis Para Nilson Lage (1999), notícia é o fato redigido a partir do dado mais importante ou capaz de gerar maior interesse, seguindo-se as demais informações em ordem decrescente de importância. 3 Metodologia Nosso principal objetivo é identificar a construção imaginária da mulher no futebol. Para atingir essa finalidade adotaremos a análise dialógica do discurso como procedimento metodológico, considerando as duas esferas da enunciação: a dimensão social e a verbal. Na dimensão social, considera-se o sujeito como histórico e social, levando-se em conta o seu contexto de desenvolvimento. Com relação à esfera verbal, compreende-se a descrição e análise das ocorrências linguísticas em textos midiáticos impressos. Por fim, são realizadas interpretações das representações discursivas verificadas nesses textos. Por se tratar de um estudo sob a perspectiva enunciativa bakhtiniana, considera-se que todo texto ou discurso estabelece uma relação dialógica constitutiva com outros textos ou discursos que o antecederam e também com os precedentes. Faraco (2009, p. 60-61) explica que o princípio dialógico designa um grande simpósio universal, o qual define o existir humano e que deve ser visto em termos de relações dialógicas, ou seja, relações semânticas tensionadas, envolvendo valores axiológicos entre sentidos diversos de enunciados anteriores em contato. Na “ordem metodológica” sugerida por Bakhtin (2006), é focalizada, primeiramente, a esfera social ou o domínio discursivo de interação, assim como as condições concretas em que as peças foram produzidas, ou seja, focaliza-se a esfera midiática que, entre outras funções como informar ou convencer, na análise aqui desenvolvida tem a função de intercessora entre os meios de comunicação de massa e os outros componentes da comunidade que não possuem a mesma disponibilidade de acesso aos meios (WOLF, 1999). O segundo passo volta-se para o estudo dos enunciados e de seus respectivos gêneros discursivos, bem como, às avaliações ideológicas (horizonte axiológico) ali formalizadas. Neste estudo analisamos uma notícia e num terceiro passo descrevemos os enunciados que remetem a imagem da bandeirinha Fernanda Colombo Uliana. Por fim, é realizada a interpretação do material, com base nas categorias teóricas estudadas. Um campo de machistas Neste estudo de caso, a notícia selecionada foi (a) “Bandeira musa erra feio e irrita jogadores e dirigentes do Cruzeiro” (G1, 2014). Selecionamos esta notícia porque ela possuiu dois links para outras duas notícias: (b) “Mattos detona arbitragem de musa em clássico: "Ela não tem preparo"”(G1, 2014) e X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis (c)“Muricy elogia beleza da auxiliar, mas critica atuação: "É bonita, mas errou"” (G1, 2014). Nos textos das notícias e seus links, buscamos identificar marcas que indicassem alguma representação que reforçasse o estereótipo de gênero. Para análise selecionamos os seguintes períodos de cada notícia: (a) “... Arrancou gritos dos torcedores, que elogiaram sua beleza, mas cometeu um grave erro, que prejudicou o Cruzeiro.”; (b) “O diretor de futebol Alexandre Mattos também pegou pesado nas críticas a Fernanda. Disse que a beleza da bandeirinha não é importante no mundo do futebol e chegou a sugerir que ela pose para uma revista masculina, em vez de trabalhar no esporte. - Essa bandeira é bonitinha, mas não está preparada. Os caras gritam, e ela erra. Provavelmente ela vai ganhar de presente outro clássico na semana que vem. Ela é bonitinha, mas tem que ser boa de serviço. O erro dela foi muito anormal. Se é bonitinha, que vá posar para a (revista) "Playboy", não trabalhar com futebol.”; e (c) “...O técnico do São Paulo, Muricy Ramalho, elogiou a beleza da auxiliar, mas criticou sua atuação. Ele chiou, principalmente, de dois impedimentos no primeiro tempo: um de Luis Fabiano e outro de Pato. – Ela é bonita, mas errou muito. Tem de bandeirar melhor – afirmou o treinador após a vitória por 3 a 0, resultado que garantiu o Tricolor na terceira fase da Copa do Brasil.” Seguindo a perspectiva dialógica bakthiana na dimensão verbal, nas três frases observamos a conjunção adversativa “mas” ligando duas orações ou palavras, expressando ideia de contraste ou compensação: (a) beleza contrastando com grave erro; (b e c) bonitinha compensando falta de preparo. No período (b), encontramos a conjunção adversativa “se” mostrando uma condição: bonitinha então pode posar nua. Na dimensão social, considerando o contexto e colocando em tensão as relações semânticas entre os enunciados, temos as seguintes representações: bonitinha, mas não pode ser inteligente, e bonitinha, então está no lugar errado (campo de futebol). Percebemos que as representações estabelecem relações dialógicas de concordância entre os sentidos do enunciado. É possível averiguar expressões preconceituosas, mostrando que a mulher não serve para este esporte tipicamente masculino que é o futebol. 4 Considerações As notícias analisadas contribuem para o processo de desigualdade na medida em que se apropriam de características ditadas pela sociedade como pertencentes ao universo feminino. Confirmamos que a mídia atua como uma instituição social e discursiva refletindo conceitos e ideias que circulam na sociedade e no cotidiano social, neste caso, realizando um desserviço a sociedade. X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. 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