ic2008-0076 - cultura e vida social no brasil contemporâneo

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CONVÊNIOS CNPq/UFU & FAPEMIG/UFU
Universidade Federal de Uberlândia
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
DIRETORIA DE PESQUISA
COMISSÃO INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
2008 – UFU 30 anos
Cultura e vida social no Brasil contemporâneo
Roberto Camargos de Oliveira∗
Universidade Federal de Uberlândia. Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121. Bairro Santa Mônica.
Uberlândia – MG. 38400-098.
[email protected]
Resumo: O objetivo deste artigo consiste em investigar de que forma é percebida a sociedade
brasileira, hoje, com toda a sua carga de problemas sociais crônicos, lançando mão, para tanto,
das músicas rap e hardcore. Por meio de um arsenal teórico e metodológico que vem se
desenvolvendo nos domínios das relações entre música, sociedade, história e cultura, buscarei
analisar e discutir como alguns setores sociais encaram/vivenciam a realidade brasileira e
constroem significados que a interpretam/criticam a partir de suas experiências cotidianas, seja
como músicos, como trabalhadores, como sujeitos sociais marginalizados etc. Num momento de
marcada hegemonia neoliberal, trata-se de articular texto e contexto, privilegiando, no caso, as
vozes dissonantes que emergem de diversos setores sociais como um emblema sonoro de parcelas
da juventude, sobretudo das classes populares.
Palavras-chave: Música, sociedade brasileira (1990-2005), estudos culturais.
1.
Procuro, aqui, desenvolver algumas reflexões acerca de produções culturais específicas
presentes no contexto do Brasil contemporâneo a fim de tentar explorar possíveis diálogos entre
cultura e história social. Este texto, desse modo, se encontra nos domínios da convergência entre
cultura e sociedade e busca percorrer os caminhos de relações sociais vividas no dia-a-dia,
envolvendo as relações de poder que permeiam a vida social, as tensões que emergem da nãohomogeneidade das práticas culturais, as dissonâncias e os entrecruzamentos no plano dos
comportamentos culturais e políticos.
As análises que faço têm por objeto/documento privilegiado as músicas rap e hardcore
(embora contemple, também, materiais em vídeo, filmes, gravações de shows, reportagens em
jornais e revistas, entrevistas divulgadas em meios diversos, livros, dissertações de mestrado e teses
de doutoramento) produzidas no país entre os anos 1990 e 2005, ou seja, em um momento de clara
reestruturação e reorganização da hegemonia burguesa operada sob os governos de Fernando Collor
de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva e com iniciativas
sociopolíticas que vão além da intervenção do Estado, como aquelas postas em prática pelo
segmento empresarial.
Pesquisas nesse sentido, que tomam produções musicais para pensá-las como vestígios
inseridos em contextos sociais mais amplos, como pistas que possibilitem repensar a sociedade e/ou
pensá-la de outro ângulo são relativamente novas. Isso porque a música nem sempre foi vista como
um documento legítimo para se refletir sobre questões relativas à vida em sociedade, e só passou a
cumprir, até certo ponto, tal função quando os historiadores (e demais pensadores sociais)
começaram a enveredar por outras trilhas de pesquisa.
Assim, as práticas culturais, inclusive a música, se revelaram como lugar de experiências
sociais, políticas e econômicas dos homens, carregadas de elementos para abordagens históricas,
sociológicas, antropológicas etc. Por extensão, a abertura para novos objetos de análise no campo
das pesquisas históricas e sociais possibilitou a formação de quadros teóricos híbridos, com
Aluno do curso de graduação em História (Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia – UFU) e bolsista
de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob a orientação do
prof. dr. Adalberto Paranhos. <[email protected]>.
∗
2
contribuições de diversas disciplinas, como uma decorrência da necessidade de abordagens
interdisciplinares.
Ademais, para focar especificamente meu objeto, é pertinente esclarecer que a música não
deve ser tomada em si, como algo fechado. Ela deve, isso sim, estar articulada ao seu contexto mais
amplo, fazendo-se necessário “mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical, bem
como suas formas de inserção na sociedade e na história” (NAPOLITANO, 2002, p. 77). Ao se
explorar essa dimensão social do objeto cultural, abre-se para todos nós um caminho que aproxima
a cultura e os aspectos sociais, o que, no caso do trabalho com música, significa fugir do enfoque
puramente biográfico da vida e da obra dos compositores para direcionar os esforços com vistas a
uma história social da música.
A metodologia de trabalho empregada está atenta às particularidades do objeto. No caso, ela
recomenda atenção para com a complexidade dos vários elementos que se articulam na produção
musical: letra, instrumentação, tecnologias, entonação, vozes, suporte, performance etc. Embora
seja necessário o cuidado para não inflacionar determinados aspectos em detrimento de outros,
quero deixar claro que, para os fins desta pesquisa, foram privilegiados os componentes discursivos
(letra) das músicas examinadas, sem que isso implique fechar os olhos ou tapar os ouvidos para
tudo o mais que está presente em uma obra musical.
A partir dessas balizas, estas reflexões sobre o rap e o hardcore percorrem algumas
inquietações, tais como: qual a importância de dada produção musical para os debates sobre a
sociedade brasileira contemporânea? Como ela se insere nesse debate?
Logo de cara, de modo sucinto, pode-se dizer que essas composições expõem visões de
mundo, práticas, representações, posicionamentos e comportamentos que estão relacionados com o
poder social e político dominante, seja servindo aos seus interesses ou questionando-os. Interessame particularmente a segunda dimensão, porque busco ressaltar as vozes destoantes em relação aos
valores sociais hegemônicos.
Para identificar algumas dessas vozes, parti para a análise do corpus documental constituído
para os fins desta reflexão, valendo-me de contribuições teóricas e metodológicas de vários autores.
Antes, entretanto, abrirei espaço para situar, resumidamente, os fenômenos culturais rap e
hardcore.
2.
Falar do hardcore, de sua gênese e desenvolvimento histórico, é extremamente difícil pela
escassez de uma bibliografia específica a respeito desse tipo de música. O pouco que se tem escrito
está disperso em livros mais gerais que tratam do rock, de culturas juvenis e, sobretudo, acerca do
punk1. Há, também, alguns documentários2 que podem ser úteis para recuperar parte dessa prática
cultural por contar com muitos testemunhos de pessoas que tiveram envolvimento com o hardcore
nos seus primeiros anos.
Seu nascimento está ligado ao fazer musical dos punks, que surgiram nos Estados Unidos da
América (apesar de constar em boa parte da bibliografia que sua origem é inglesa), no inicio da
década de 1970, como “uma forma de expressão da juventude da classe trabalhadora”
(ORTELLADO, s/d, s/ ind. de p.). O fenômeno cultural do qual o hardcore é um desdobramento foi
designado com o nome de punk por Legs McNeil ao referir-se ao som produzido pelas bandas que
despontavam em Nova Iorque como inicio de um pequeno movimento underground que tinha
referências no rock. Suas experiências iniciais estão na prática de uma cultura de rua, influenciadas
pelas vivências e experiências cotidianas: violência, solidariedade, gangues, amizades, literatura
marginal, estética visual, imprensa alternativa (fanzines) etc. são a matéria-prima da sensibilidade
punk.
1
Ver: BASTOS, 2005; CAIAFA, 1989; HARDCORE, s/d; HOME, 2004.
American hardcore, 2006; Botinada, 2006; N.Y. hardcore, sem data; Punk na cidade, 2003; A História do Rock'
n' Roll, 1995, esp. o DVD 5 (que traz dois episódios: o primeiro adentra o universo punk, e o segundo que trata do
punk, do rap e outros estilos musicais contemporâneos e suas relações com a industria cultural – mainstream e
underground.).
2
3
A explosão do punk aconteceu em meados dos anos 1970, com base em bandas que
produziam um rock simples, sem grandes pretensões artísticas, com letras que abordavam o
cotidiano urbano dos jovens envolvidos com essa prática cultural. Era uma maneira nova de se fazer
as coisas, e os jovens envolvidos nisso conseguiram diminuir as fronteiras entre o mundo da cultura
e o mundo da política. Nas palavras de Pablo Ortellado (Idem),
o punk podia falar com uma verdade inédita sobre o amor adolescente, sobre o desemprego, sobre os
problemas sociais e sobre a estupidez das regras estabelecidas sem repetir clichês dos discursos políticos – ou
seja, sem ter como parâmetro positivo o amor livre, a sociedade alternativa, a revolução ou o socialismo.
No final daquela década, o chamado punk rock já havia sido parcialmente absorvido pelo
mercado fonográfico, e algumas bandas seguiam com experimentações musicais e comportamentais
(que mais tarde também seriam incorporadas pelo capital como mais um veio econômico), algumas
com músicas mais rápidas, mais violentas, mais altas e com letras mais diretas, associadas a um
comportamento mais “duro”. Era o hardcore, uma espécie de segunda geração do punk, seu
desdobramento direto na conjuntura dos anos 1980. Paralelamente a muitas bandas do punk rock
que ingressavam no circuito comercial, havia outras que continuaram dentro de uma subcultura,
radicalizando sua postura com aquilo que seria mais duro, mais radical, o hardcore-punk. Segundo
Yuriallis Bastos (2005, p. 384) tratava-se de um
ritmo bem mais acelerado e distorcido, cantado com o vocal gritado, como modo de expressar a radicalização
de sua postura anticomercial e o seu repúdio à industrial cultural, ao movimento da new wave e toda a
sociedade de consumo.
Dessa forma, evidencia-se uma vez mais que nenhuma cultura é estática: as manifestações
culturais se desenvolvem, se transformam, se mesclam com outras, acabam, originam novas
formações culturais etc. Durante a década de 80, o hardcore foi sofrendo mudanças, passando por
processos de incorporações e apropriações, ao passo que se consolidou como gênero musical de
variadas ramificações, a ponto de se desprender em muitos casos do punk (nos seus aspectos mais
amplos) e/ou do hardcore original, inclusive perdendo sua característica de veículo de expressão
das classes trabalhadoras à medida que passou também a transmitir valores, opiniões e experiências
de outros setores sociais.
No Brasil, o punk e, conseqüentemente, o hardcore, apareceu com experiências
primeiramente juvenis no final da década de 1970 e, tal qual no resto do mundo, passou por
transformações significativas. As mudanças ocorridas na área do hardcore resultaram em
subgêneros como o crossover, o trashcore, o moshcore, o metalcore, o old school, o hardcorepunk, o hardcore melódico, o grindcore, dentre outros. Nesse sentido, a designação do que é
hardcore perpassa todo um contexto cultural, e não apenas estritamente musical, como talvez tenha
ficado subentendido até aqui. A propósito, veja-se um fragmento de entrevista realizada com a
banda I shot Cyrus (2004):
Acho que o hardcore é uma família de vários estilos musicais. No começo, o hardcore era um punk rápido,
hoje em dia vários estilos fazem parte desse modo de fazer as coisas, tem umas bandas que tocam metal, mas
têm um espírito hardcore, tem umas bandas que fazem punk rock, mas também fazem isso de uma maneira
hardcore. E também tem o hardcore tradicional.
Agressividade, não conformidade e velocidade extrema é hardcore, apesar de eu achar que tem banda que é
lenta e é hardcore também, não precisa ter velocidade extrema.
Música para ser feliz não é nem fodendo, muito pelo contrário, é música pra você ficar com raiva do mundo,
mas ao mesmo tempo ver tudo que tem de ruim e ter uma perspectiva positiva em relação a isso, de mudança.
Mas não é música pra você esquecer a realidade e ficar relaxado. Nem fodendo, é o contrário disso.
A melhor forma para se expressar? Não é a melhor forma, é apenas uma forma.
Amor não é nem fodendo, sei lá, tem amor pelo hardcore. Mas é mais ódio do que amor, e ódio pode ser
positivo também. E amor pode ser uma bosta.
Pulando de galho, a origem do rap também não é das mais claras, apesar de neste caso
existir uma considerável bibliografia a respeito. De modo geral, uma vez que o meu objetivo não é
4
constituir uma história dessas músicas, pode-se dizer que o rap – um dos elementos de uma prática
cultural mais densa, o hip hop – surgiu por volta da década de 1970 em Nova Iorque como braço de
uma cultura vivenciada, tanto quanto o hardcore, no ambiente das ruas.
Tal gênero musical tem parentesco direto com as tradições culturais jamaicanas (e, por
extensão, africanas) que chegaram aos bairros pobres de Nova Iorque em meados dos anos 1960
com a migração de jamaicanos para essas regiões. Entre eles se encontravam os DJs que
dominavam a técnica dos sound sistems, ou seja, dois toca-discos e um microfone conectados
simultaneamente a uma mesma saída de som, o que propiciou as primeiras experimentações dos
DJs manipulando discos durante a discotecagem em festas.
Dessas experiências os “tocadores de discos” criavam e realizavam técnicas de produção
sonora através da manipulação dos long-plays e dos toca-discos, desenvolvendo-as constantemente:
apareceram o scratch, o sampler, o back to back, punch-phrasing etc. Conforme a música rolava,
começaram a estabelecer diálogos, de assuntos variados ligados à vida local, com o público por
sobre a base musical: nasciam os primeiros raps, a união do ritmo produzido pelas pick-ups com a
poesia falada e livre.
De inicio, conforme constataram alguns pesquisadores, não havia uma separação entre o DJ
(disk jockey), que é responsável pelo som, e o MC (mestre de cerimônias), responsável pelo
microfone, aquele que fala/canta por sobre a base rítmica. Essa distinção foi aparecendo aos poucos
à medida que os DJs se aprimoravam e se dedicavam com exclusividade à dimensão sonora e os
MCs, como personagem distinto, foram se encarregando dos microfones, das mensagens.
Desse modo, as experiências musicais de jovens pobres, marginalizados, e que na maioria
das vezes não tinham formação musical formal, iniciaram-se com a manipulação do vinil, ao se
sobrepor uma música a outra no momento da execução, girar o disco no sentido anti-horário, tocar
dois discos iguais aproveitando apenas fragmentos de cada um deles para criar uma base rítmica
“nova”, introduzindo sons, ruídos, texturas e falas que remetiam diretamente ao seu viver cotidiano.
Uma experiência cultural resultante, portanto, de uma prática musical não usual naquele contexto,
associada a uma prática poética distinta da aceita pela cultura dominante.
Como se percebe, fazer música para esses jovens significava manipular os registros musicais
de outros artistas, o que não implica a inexistência de técnicas próprias, como atesta o relato dos
DJs KL Jay e Fresh, dois dos precursores desse tipo de produção no Brasil:
Enquanto na pick-up (toca discos) executava-se a música e seleciona-se o ritmo, o deck (gravador) vai sendo
utilizado para gravação e corte das partes da música sempre que o ‘pause’ é apertado. O ciclo rítmico recomeça
novamente na pick-up, o deck é novamente acionado na tecla do pause cortando mais uma vez o fragmento
desejado da música no tempo exato. A repetição do processo é seguida até a base rítmica preencher todo o
espaço necessário para o canto falado (SILVA apud. AZEVEDO, 2000, p. 133).
Ademais, acrescentamos que o rap (e o hip hop como um todo) é uma formação cultural
permeada por conflitos e disputas, o que o torna uma prática plural: rap gospel, rap underground,
rap político, gangsta rap, rap romântico, rap alternativo etc3.
No Brasil o rap foi incorporado à atmosfera cultural de jovens residentes nas periferias
(pelos menos inicialmente) das cidades mais populosas em meados dos anos 1980, momento a
partir do qual começou a conquistar adeptos em todo país e a se consolidar como música produzida
e ouvida por pessoas pobres (na sua maioria) que se valeram de sua cultura como prática e como
representação de suas experiências na sociedade contemporânea.
Decorre daí que os estilos musicais hardcore e rap, cada um à sua maneira, são elementos
de uma cultura marginal. No contexto pesquisado, temporalmente demarcado entre 1990 e 2005,
3
No hardcore essas divisões são, geralmente, mais rígidas que no rap. Um grupo de rap pode transitar do gangsta para
o gospel e destes para o romântico de uma canção para outra ou ter todas essas dimensões em uma mesma composição,
enquanto uma banda de hardcore geralmente tem sua produção musical voltada para as características desse ou daquele
subgênero específico. Um dos motivos dessa particularidade se deve ao fato dos subgêneros no rap obedecerem à
temática das músicas, enquanto no hardcore a classificação é definida por critérios musicais (em ambos os casos,
porém, isso não é uma regra inflexível).
5
constituem a expressão de vozes que podem ora reforçar as orientações e valores políticos, sociais e
culturais hegemônicos, ora questioná-los, no todo ou em parte.
Como minha proposta é analisar o discurso emitido através dessas práticas culturais,
buscarei captar nessas composições quais os fatos narrados, os usos e costumes que se podem
perceber no dito e no não-dito, qual o juízo dos emissores diante do assunto que abordam para
“identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16 e 17).
3.
A chamada história social não guarda definição precisa, mas se pode salientar que ela é
portadora de um forte apelo para considerar todas as esferas da atividade humana. A tentativa de
abarcar a experiência humana numa perspectiva mais ampla impôs aos historiadores uma
abordagem interdisciplinar, valendo-se de construções teóricas de diversas áreas do pensamento.
Essa prática historiográfica resultou, entre outras coisas, naquilo que importantes historiadores
chamaram de história a partir dos de baixo, ou seja, “empresa dedicada à recuperação do ponto de
vista das pessoas comuns” (BURKE, 2002, p. 59).
Como já foi dito, as músicas com que trabalho são, na sua maioria, formas de expressão
associadas às classes trabalhadoras e às pessoas comuns. Sob este prisma, revela-se uma interface
entre história, cultura, sociedade, protesto social, vida cotidiana e movimentos sociais.
Nessa ótica que abrange a diversidade das atividades humanas cabe a produção musical,
porque ela também pode ser vista como “termômetro, caleidoscópio e espelho não só das mudanças
sociais, mas sobretudo das nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas”
(NAPOLITANO, 1998, p. 199). Destaco que, embora as metáforas utilizadas remetam mais à
dimensão da representação nas canções, elas têm, também, uma dimensão prática muito importante.
Aí está a importância do hardcore e do rap para os debates acerca da sociedade contemporânea, no
caso a brasileira, pois constituem práticas culturais marginais em relação à ordem dominante e
freqüentemente engajadas no protesto e crítica social.
A ordem vigente é fruto de um processo histórico de modernização capitalista do país que
teve características “selvagens” ao intensificar as desigualdades e as inclusões sociais perversas na
sociedade. Os “moderninhos” dos anos 90 iriam acertar os ponteiros nacionais com o relógio que
regia a vida mundial através de suas propostas que configuraram a adesão ao neoliberalismo. Nesse
período observou-se, como demonstra Silvio Machado (2005, p. 9),
a emergência, na diplomacia brasileira, de um discurso de modernidade, no qual o alinhamento com as
prescrições da política neoliberal seria o caminho para uma maior inserção do país no sistema internacional e
através desta poder-se-ia negociar a obtenção dos meios para o desenvolvimento nacional.
Era o início de cortes nos gastos públicos com assistência social, do ajuste fiscal, de
reformas comerciais e patrimoniais com largas vantagens para as “forças do mercado”. Embora as
experiências neoliberais começassem a aparecer na década de 1970, sua aplicação em nosso país,
por razões políticas, só teve êxito nos anos 1990, conforme assinala Juarez Guimarães (2001, p.
136): “o caráter retardatário da aplicação do programa neoliberal no Brasil tem raiz política: a crise
do regime militar e a ofensiva democrática e popular dos anos 80 fecharam o espaço para o domínio
neoliberal”.
Assim, o Brasil adentraria definitivamente na órbita neoliberal durante os anos 1990, e essa
nova orientação política e ideológica marcou uma reestruturação da hegemonia burguesa nas esferas
sociais de maneira geral (econômica, política e cultural), acarretando a reforma do Estado
capitalista no país. Tal reforma criou as condições para um novo ciclo de acumulações – sobretudo
no que diz respeito ao mercado financeiro –, que aumentou ainda mais as disparidades econômicosociais4. Além disso, ela contribuiu para gerar um elevado o índice de desemprego, a precarização e
4
Giovanni Alves, em seu balanço sobre a “década neoliberal”, frisa: “... o Brasil continuou apresentando a pior
distribuição de renda do mundo industrializado. O ‘choque de capitalismo’ da década passada tendeu a concentrar mais
ainda a riqueza social... [e] na década de 1990 cresceu a distância salarial entre os 10% mais ricos e os 40% mais
6
flexibilização negativa das atividades profissionais e o aprofundamento da agonia das classes
trabalhadoras5, que são constantemente golpeadas nas suas conquistas, costumes e dinâmica de
vida.
O impacto da reestruturação do capitalismo na vida das pessoas comuns foi imenso,
agudizando problemas sociais crônicos e aumentando as tensões presentes das relações de
poder/sociais. Não por acaso presenciamos a eclosão de muitos movimentos sociais na década de
1990, alguns deles claramente orientados por uma posição contrária à globalização, ao
neoliberalismo e às suas conseqüências, como é o caso dos zapatistas, do movimento dos
trabalhadores rurais sem terra, do movimento dos sem teto etc.
Como se isso já não bastasse ainda houve – o que, evidentemente, persiste até os dias de
hoje – uma tentativa de cooptação ideológica, pensada em termos amplos, já que, além da prática
neoliberal, produziu-se uma convergência de discursos que visam favorecer a identificação com a
ordem hegemonicamente estabelecida. Afinal, a construção de uma hegemonia neoliberal não se
realiza apenas com medidas de reformas do Estado. É necessário, igualmente, atacar a subjetividade
das pessoas, transformando valores compartilhados etc. Trata-se, portanto, de uma tentativa de
conquistar corações e mentes para a defesa do modelo que se torna hegemônico, uma vez que a
hegemonia funciona, como ressalta Dominic Strinati (1999, p. 163), com base nas formulações de
Gramsci, recorrendo-se a
meios cultural e ideológico com os quais os grupos dominantes na sociedade – incluindo especialmente mas
não de forma exclusiva a classe dominante – preservam seu domínio, assegurando o “consentimento
espontâneo” dos grupos subordinados, inclusive a classe operária, através da construção negociada de um
consenso político e ideológico, que incorpora tanto o grupo dominante como o grupo dominado.
Essas novas maneiras políticas e ideológicas de reforçar o capitalismo contemporâneo, num
momento de reorganização do capital e de um redimensionamento das contradições entre capital e
trabalho, buscam, no fundo, formar um bloco hibrido de apoio ao ideário neoliberal, constituído
inclusive pelas classes “remediadas” e pobres. Na esteira desses acontecimentos a nova
configuração societária promoveu um deslocamento na concepção de cidadania, desmontando as
antigas referências para substituí-las por outras que nenhuma segurança oferecem ao sujeito social
que vê direitos adquiridos sendo transformados em serviços, ou seja, “o conceito de consumidor
substitui o de cidadão” (SANTOS, 2002, p. 35).
O que isso tudo tem a ver com a discussão sobre cultura, sobre música e a aspectos não
estritamente ligados à economia ou à política no seu sentido mais tradicional? Ora, tais
transformações do mundo social atingiram – e atingem –, mesmo que em níveis diferentes, todos os
homens e trouxeram mudanças para suas vidas, seu cotidiano, sua maneira de se portar e de
enxergar a sociedade e de se enxergar na sociedade. Obviamente, nem todos abraçaram e/ou
convivem pacificamente com a nova ordenação social, e os descontentes se fizeram – e se fazem –
presentes de diversos modos, aparecendo aqui e ali em situações distintas e com ações diferentes.
Nesse contexto surgiram formas de produção cultural que interpretam/criticam as
experiências sociais individuais e coletivas, dentre os quais estão o rap e o hardcore, que mostram
com clareza uma das dimensões da cultura, qual seja dialogar com o mundo em que se vive
tentando dar a ele um significado, ou, segundo Raymond Williams (1969, p. 305), reagir “em
pensamento e em sentimento à mudança de condições por que passou a nossa vida”.
4.
Muitos músicos envolvidos com o rap e o hardcore vêm reagindo em pensamento e
sentimento, com sua produção musical, às mudanças que os afetam. Parte considerável de suas
músicas veicula referências diretas e indiretas acerca do viver na sociedade contemporânea, dos
homens que padecem em condições precárias (e os seus antagonistas), dos conflitos que presenciam
pobres. Em 1992 a diferença entre o pico e a base da pirâmide nacional de rendimentos era de cerca de treze salários
mínimos”. ALVES, 2002, p. 71.
5
Esse aspecto do capitalismo contemporâneo é bem visualizado em Working man’s death. Direção: Michael
Glawogger. Alemanha: Lótus Film / Quinte Film, 2005. 2 DVD’s (122 min.), son., color., documentário.
7
e/ou daqueles dos quais são protagonistas. Para além do mero entretenimento, articulam em seu
discurso – musical e poético – questões como violência (física e simbólica), preconceito (de gênero,
étnico, cultural, de classe e outros mais), problemas sociais, políticos etc.
Assim, mesmo sob a hegemonia neoliberal, não se eliminaram os discursos que interpelam o
funcionamento da sociedade capitalista. Esse tipo de postura, no meu entendimento, marca certo
engajamento desses músicos, um posicionamento que é político (apesar de que, em alguns casos, os
próprios músicos não concordem com isso). Político, sim, porque concebo política numa acepção
mais ampla, como “algo que atravessa o nosso cotidiano na medida em que as relações de poder se
manifestam, inclusive em circunstâncias e lugares por vezes insuspeitados” (PARANHOS, 2006, p.
54), o que nos permite visualizar um comportamento político onde ele normalmente não aparece,
pelo menos não de forma explícita.
O caráter político das composições é, mesmo que inconsciente por parte dos autores, um dos
elementos de identificação de engajamento.6 Para exemplificar, fixo-me no caso do 7”EP
Orquestrando os rastros da miséria humana! (s/d, 1 7”EP) da banda brasiliense Naûzo (split com
Contraste Bizarro), que faz um hardcore crust, muito rápido no estilo de tocar os instrumentos e no
canto “rasgado” e gritado.
Tal disco é de lançamento independente, prensado em vinil e tem por capa um envelope
postal de papel pardo, estampado com duas figuras tristes, em um ambiente sombrio – intensificado
pela impressão em preto e branco –, às voltas com seus instrumentos musicais: um violoncelo e um
instrumento de sopro, algo como uma clarineta. Na parte de dentro do envelope, além do disco, há
um livreto com as letras das músicas, pequenos textos e algumas imagens. É um artefato cultural
para ser analisado na sua totalidade, haja vista que as imagens, os pequenos textos inseridos, o
modo como as letras são transcritas no papel, o fato de aparecerem em português e em inglês, tudo
ajuda a pensar o registro musical.
O engajamento da banda se exprime nas suas músicas como uma extensão/elemento da
existência de seus membros, enquanto sujeitos sociais, adeptos de uma cultura marginal em
constante conflito com a cultura dominante e com o contexto social como um todo.
Nas quatro músicas que compõem o disco é perceptível um engajamento de caráter crítico
que entrelaça a banda, a temática das letras e a composição do encarte/livreto, tudo produzido pelos
três integrantes da Naûzo: Vampirus (“guitarra e backing-vocal estridente”), Marcos Bones (“baixo
e nada mais”) e Rafinha Milla (“bateria e vocal irritante”). Quando do lançamento do disco, eles
estavam ligados à cena cultural anarco-punk, que durante os anos 1990 foi a “facção” punk que, na
maior parte do mundo, concentrou os punks pobres e teve na música seu principal veículo de
expressão.
Em uma das composições eles verbalizam sua revolta antiburguesa. “Ruído de rabia” tem
seus significados construídos nas relações entre letra e música: o ruído dos instrumentos, o ruído
quase indecifrável do vocal e um posicionamento claro na letra, que diz
Ruído de rabia/ Somos um espelho/ Refletindo toda essa decadência/ Somos a conseqüência/ Fruto desse
sistema capitalista/ Ruído de rabia (6x)/ Agora vamos incomodar/ Toda essa podre sociedade/ Que nos violenta
todos os dias/ Pois todo ataque tem sua reação/ Viemos tumultuar/ Toda estrutura burguesa/ Viemos começar/
O caos por toda cidade/ Ruído de rabia/ Somos a parte podre da madeira/ E vamos contaminar a todos que nos
contaminou (sic)/ Somos o seu medo, somos sua raiva/ Somos sua desgraça, só queríamos poder viver/ Somos
punx (3x)/ Somos seu medo, seu nojo (NAÛZO, s/d).
Fica claro que quem fala por meio dessa música fala de dentro da ordem estabelecida,
vivendo e se alimentando dela, como fica explícito no verso que diz – as letras não são assinadas
individualmente – serem eles “fruto desse sistema capitalista”. Embora falem de uma posição de
sujeitos inseridos na sociedade (“somos a parte podre da madeira”), não se coadunam com posições
moderadas, encarando-a como uma experiência social negativa, decadente. Olham a realidade que
os cerca, denunciando a violência estrutural marginalizadora de parte dos “cidadãos”, o que os
impeliu à “necessidade de tomar uma posição diante da catastrófica situação” (Idem).
6
Para uma discussão mais específica sobre o tema do engajamento, ver DENIS (2002), esp. cap. 2.
8
Tais fatos evidenciam que o desenvolvimento de um processo tenso e conflituoso no âmbito
das relações sociais influencia a criação cultural que se produz a partir de baixo, mas que é uma
prática localizada dentro de um sistema social hegemônico e que se move com base em um delicado
e complexo equilíbrio entre dominação e resistência7.
Outra dimensão do protesto contido nessas músicas (tanto no caso do hardcore como no do
rap) encontra-se na sua forma estética, no seu fazer musical. Os jovens envolvidos nisso abriram
novos caminhos no campo das relações entre música e política no Brasil, que, em um momento
imediatamente anterior, estava mais sintonizado com a tradição mpbista. Esse tipo de protesto –
incompreendido por muita gente – desatou reações que qualificaram esses procedimentos musicais
como alienantes. A jornalista Bárbara Gancia, por exemplo, ainda recentemente, deixou no ar uma
pergunta para si e para os leitores: “mas eu pergunto: a que ponto chegamos? Desde quando hip
hop, rap e funk são cultura?” (GANCIA, 2007)
O caráter supostamente alienante da produção do hardcore e do rap por vezes também é
vinculada à sua origem “não nacional”. Ora, as maneiras de usar (expressão de CERTEAU, 1994)
constituem-se em um dos dados da produção nacional do hardcore e do rap, uma vez que, ao
tomarem emprestado um movimento social e cultural do centro do capitalismo, acabam por criar
algo novo no contexto do terceiro mundo e que diz respeito a essa realidade específica. O uso
dinâmico de certos elementos culturais levou a uma politização das práticas cotidianas vividas no
Brasil. Embora esses elementos também tenham uma característica contestadora em seus países de
origem, isso não quer dizer que os brasileiros simplesmente imitaram uma prática que lhes foi
imposta, digamos, pela indústria musical ou aderiram, alegremente, a manifestações miméticas.
Em 1988, o grupo de rap NWA (abreviação para Niggas With Attitude/ Negros com
atitude), do subúrbio de Los Angeles, lançou o LP Straight outta Compton (1988, 2 LP’s), que
conta com uma faixa homônima que posteriormente virou um videoclipe e, conseqüentemente,
adquiriu uma circulação mais ampla. A maioria das músicas desse disco são sobre a vida nos guetos
negros de Los Angeles, seu cotidiano, seus problemas. O disco adquiriu relativa notoriedade,
ganhou alguns prêmios, entrou no ranking da revista Rolling Stone e assinalou uma nova fase para o
rap com batidas mais fortes e um swing diferente do estilo predominante até então.
Dez anos após o sucesso do NWA, o rapper GOG, de Brasília, gravou o seu álbum Das
trevas à luz (1998, 1 CD), do qual consta a música “Matemática na prática”. Esta composição
revela uma apropriação de “Straight outta Compton” e escancara a influência que músicos de outros
países tiveram na formação do gosto musical de parcela dos brasileiros. Não quer dizer, entretanto,
que ela se impôs inexoravelmente aos jovens deste canto do mundo, como se estes estivessem
condenados a “macaquear” a produção alienígena.
O músico brasiliense, no caso, faz uma apropriação criativa portadora de um novo
significado, estritamente ligado às condições daquele que procede à apropriação, e não pautado pelo
apropriado. Em “Matemática na prática” GOG se vale de “Straight outta Compton” e a transforma a
partir de novos elementos sonoros e de uma nova letra, que, apesar de estar colada ao cotidiano
daqueles que se acham à margem da sociedade, como na composição original do NWA, não tem o
seu significado calcado naquela.
Ao lado dos outros músicos do grupo, GOG apresenta “cenas fortes, sem cortes”. Segundo
seu ponto de vista, “cenas que nada têm a ver com conto de fadas”. Eis a letra na integra:
Do fundão da Ceilândia/ Mais precisamente da expansão do setor Ó/ Onde tiros, tiras, pó/ Misturados dão um
problema só/ É de onde veio seu irmão Japão/ Acreditando que a mente é a mais farta munição/ Reféns da
miséria, não.../ Essa sina pro meu povo, não, então/ Injustiças, ira, meu sangue sobe/ Dia-a-dia esse jogo, não
há quem não jogue/ Dino Black, Mano Mix nos toca discos/ Completando o time meu chegado GOG/ Há-ha,
acionaram de novo o gatilho/ E o barulho ouvido deixou um pai sem seu filho/ Ou um filho sem pai/ A ordem
dos fatores aqui tanto faz/ Matemática na prática/ Subtração feita de forma trágica/ Onde a divisão é o
resultado/ E a adição são os problemas multiplicados/ Conduzindo rumo ao cemitério, outro ao submundo/
Minha voz é forte, sincera/ Minha casa, minha quebra, considerada riacho fundo/ GOG chega aí, sou da C.I./
E, eu, Riacho Fundo, enfim/ Todos da periferia juntos/ Moleque eu disse juntos/ É serio.../ Todas as noites
7
Sobre o assunto, ver WILLIAMS (1979), esp. p. 111-117.
9
quando acordo, olho o telhado do barraco/ E junto às orações que faço/ Imagina se o futuro fosse hoje, seria
complicado/ Muito complicado/ Minha mulher na beira do fogão, só cansaço/ Meu filho um moleque sem
espaço/ Eu a um passo do fracasso/ Com um salário que se colocado no papel, Ladrão/ Mal daria a cesta básica
e o aluguel/ Causa arrepios.../ Tudo isto é uma cadeia, uma grande teia, prepara a fuga/ Sou meu próprio
carcereiro e a chave minha conduta/ Caneta e papel na mão sai o rascunho/ O raciocínio comanda meu punho/
Cenas fortes, sem cortes, sou testemunho/ A matemática na prática é sádica/ Reduziu meu povo a um zero à
esquerda, mais nada/ Uma equação complicada/ Onde a igualdade é desprezada/ "a seguir cenas que nada tem
a ver com conto de fadas"/ Seu pai faxineiro, lava banheiros/ Salário mais gorjeta de terceiros/ De quebra faz
um bico revendendo jogos/ Feito numa lotérica/ Sua mãe com mais de sessenta/ Ainda trabalha de doméstica/
E assim se completa a renda da família/ Salário mais gorjeta, bico, aposentadoria/ Somando tudo dá a certeza
de lutar por melhores dias/ É, sua velha anda cansada/ A perna inchada cheia de varizes/ Que dificultam a
circulação sanguínea/ Um braço forte, lava, passa/ Há mais de quinze anos sem carteira assinada/ Alegria da
criançada/ Cozinha que é uma maravilha/ Na casa do patrão ela é a dona Maria/ Até hoje esquecem o nome
dela/ E Maria é como eles chamam a maioria/ Uma velha que traz no coração duas feridas/ Um filho
aprontando e uma filha trabalhando/ Em um puteiro de quinta categoria/ Periferia é periferia/ Relatos
dramáticos, desejos trágicos/ Meios violentos os mais usados/ E o sonhado 100% longe de se atingido/
Traduzindo, eu disse, traduzindo/ Ontem pipocaram seu vizinho, roubaram sua mãe/ Cena digna de cinema
desafia a lógica/ O corpo ali, ham/ Sua velha sem poder reagir/ Parecia querer desistir, mas, filhos netos/ A
fizeram prosseguir, já disse vou repetir/ Cara acorda olha nosso povo aqui/ Nessa UTI/ Louco pra sobreviver,
precisando de você, hein/ Cadê você?/ Só bebe, fuma, injeta, não conversa/ Qualquer induz e aperta/ Aperto
jogo deixo pra você tudo certo/ A vida do outro na sua mão um objeto e aí?/ Mude seu conceito do que é ser
esperto/ Eram três pretos de favela nessa porra/ Agora quatro, se liga malandro no som pesado/ Eram três
pretos de favela, meu compadre/ Agora quatro/ Eram três pretos, meu compadre, de favela/ Agora quatro, se
liga malandro no som pesado...
Esta música está em sintonia com tudo o que já foi dito até aqui e marca também um
posicionamento político/engajado ligado à consciência dos problemas urbanos, ao modo de vida, às
necessidades cotidianas etc. Os músicos/narradores nos transportam em sua composição para o
ambiente de vivências oprimidas, “onde tiros, tiras, pó / misturados dão um problema só”, onde as
condições básicas de cidadania são precárias e os direitos sociais sofrem uma “subtração feita de
forma trágica”.
Ao relatarem as carências que atingem parcela considerável da população, mostram que
estas se vinculam à configuração econômico-social de uma sociedade em que minguam, na prática,
oportunidades de vida digna para amplas parcelas da população: “Eu a um passo do fracasso / Com
um salário que se colocado no papel, Ladrão / Mal daria a cesta básica e o aluguel”.
Em certo sentido, os aspectos de uma experiência social conflitiva, tensa e profundamente
desigual parecem estar em cada verso, em cada voz, em cada ruído e nas notas musicais. Desse
modo, se considerarmos o neoliberalismo como realização política e social que exprime relações de
poder especificas, calcadas na superexploração do trabalho e na marginalização, temos em
“Matemática na prática” o contradiscurso, uma voz destoante das orientações político-sociais
dominantes.
5.
Estas reflexões preliminares sobre as músicas rap e hardcore constituem os primeiros
passos de minhas investigações acadêmicas. Aqui, quis mostrar que o modelo de organização social
consolidado durante os anos 1990, e que envolveu modificações nas concepções de Estado,
cidadania e mercado, deu margem a manifestações de música política que expressam as
experiências de dominação e resistência de certos segmentos sociais.
Ao examiná-las, ainda que por alto, evidenciou-se que elas foram além do mero
entretenimento ou das formas de socialização que proporcionam. Tais manifestações puseram em
movimento determinadas representações que permitem às pessoas verbalizar seu descontentamento
com a ordem vigente. São músicas que revelam aspectos de uma sociedade fraturada, expondo
conflitos, problemas, a precariedade (em suas mais variadas dimensões e formas) da vida cotidiana
das pessoas comuns.
Ademais, tentei inserir essas composições dentro de uma postura de engajamento que, no
entanto, não têm necessariamente um caráter militante (salvo se se pretender, no caso, falar em
militância dentro do hip hop ou no hardcore). A acepção de engajamento aqui adotada está, a meu
10
ver, associada a uma visão de relações de poder segundo a qual todos os homens são fatores de
poder na sociedade. Com isso me distancio de concepções que propagam certo fetichismo ou
coisificação do poder por se acreditar que há instituições que são depositárias do poder.8
Assim, as canções utilizadas neste artigo – tanto as que aparecem no corpo do texto como as
mencionadas nas epígrafes – são engajadas no sentido de fazerem-se presentes no mundo e de
inserirem num debate público com posições específicas, escolhas, intenções e reivindicações. Isso
implica não alienar-se da condição de sujeito que, oprimido e marginalizado, pertence a uma dada
organização social e que pode tentar mudá-la a partir do seu entendimento do que são seus
problemas e suas contradições.
Agradecimentos:
À FAPEMig, que concedeu uma bolsa de Iniciação Científica e viabilizou parcialmente,
portanto, o desenvolvimento do trabalho.
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neoliberal” (1990-2000). Revista de Sociologia e Política, n. 19, nov. de 2002, p. 71-94.
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Alegre, 2005.
8
Para a crítica de certas concepções tradicionais de poder e política, ver: PARANHOS (2006), FOUCAULT (1981 e
1977) e DUSSEL (2007).
11
NAPOLITANO, Marcos. História e música: história cultural da música popular. Belo
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Discografia:
GOG. Das trevas à luz. São Paulo: Zâmbia Fonográfica, 1998. 1 CD.
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Paulo: sem gravadora, sem data. 1 7” EP.
NWA. Straight outta Compton. E.U.A.: Priority, 1988. 2 LP’s.
Culture and social life in contemporary Brazil
Roberto Camargos de Oliveira
Universidade Federal de Uberlândia. Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2121. Bairro Santa Mônica.
Uberlândia – MG. 38400-098.
[email protected]
Abstract: The aim of this article is to investigate how Brazilian society and its social problems are
seen today through rap and hardcore. I search to analyze and discuss how some social sectors see
and experience with Brazilian reality and build significations which interpret and criticize it based
on these sectors everyday experiences, be it as musicians, workers or social marginalized
individuals. For that, I recur to theories and methodologies which have been developing in the field
of the relationships among music, society, history, and culture. In a time of neoliberal hegemony, it
means to articulate text and context, emphasizing the dissonant voices that emerge from diverse
social sectors as a youth sound symbol, above all of the working classes.
Keywords: Music, Brazilian society (1990-2005), cultural studies.
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