Cultura e vida social: um olhar sobre a produção musical

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Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar –
Nº 18 – mai./jun./jul./ago. 2009 – Quadrimestral – Maringá – Paraná – Brasil – ISSN 1519-6178
Cultura e vida social: um olhar sobre a produção musical rap e
hardcore no Brasil contemporâneo
Roberto Camargos Oliveira*
Resumo: O objetivo deste artigo consiste em investigar de que forma é percebida a sociedade
brasileira, hoje, com toda a sua carga de problemas sociais crônicos, lançando mão, para tanto,
das músicas rap e hardcore. Por meio de um arsenal teórico e metodológico que se desenvolve
nos domínios das relações entre música, sociedade, história e cultura, buscarei analisar e
discutir como alguns setores sociais encaram/vivenciam a realidade brasileira e constroem
significados que a interpretam/criticam a partir de suas experiências cotidianas, seja como
músicos, como trabalhadores, como sujeitos sociais marginalizados. Num momento de
marcada hegemonia neoliberal, trata-se de articular texto e contexto, privilegiando, no caso, as
vozes dissonantes que emergem de diversos setores sociais como um emblema sonoro de
parcelas da juventude, sobretudo das classes populares.
Palavras-chave: Música, sociedade brasileira (1990-2005), estudos culturais.
Abstract: The aim of this article is to investigate how Brazilian society and its social
problems are seen today through rap and hardcore. I search to analyze and discuss how some
social sectors see and experience with Brazilian reality and build significations which interpret
and criticize it based on these sectors everyday experiences, be it as musicians, workers or
social marginalized individuals. For that, I recur to theories and methodologies which have
been developing in the field of the relationships among music, society, history, and culture. In
a time of neoliberal hegemony, it means to articulate text and context, emphasizing the
dissonant voices that emerge from diverse social sectors as a youth sound symbol, above all of
the working classes.
Key words: Music, Brazilian society (1990-2005), cultural studies.
*
Mestrando em História da Universidade Federal de Uberlândia.
73
1.
Minha intenção é te ajudar
Não deixar você se conformar
Não aceitar esse sistema do jeito que está...
...Diante dessa problemática
Não vou me acomodar
Linha Dura (“Vanguarda hip hop”)
Procuro, aqui, desenvolver algumas
reflexões acerca de produções culturais
específicas presentes no contexto do
Brasil contemporâneo a fim de tentar
explorar possíveis diálogos entre cultura
e história social. Este texto, desse modo,
se encontra nos domínios da
convergência entre cultura e sociedade e
busca percorrer os caminhos de relações
sociais vividas no dia-a-dia, envolvendo
as relações de poder que permeiam a
vida social, as tensões que emergem da
não-homogeneidade
das
práticas
culturais, as dissonâncias e os
entrecruzamentos
no
plano
dos
comportamentos culturais e políticos.
A análise tem por objeto/documento
privilegiado músicas rap e hardcore
produzidas no país entre os anos 1990 e
2005, ou seja, em um momento de clara
reestruturação e reorganização da
hegemonia burguesa operada sob os
governos pós-1990 e com iniciativas
sociopolíticas que vão além da
intervenção do Estado, como aquelas
colocadas em prática pelo segmento
empresarial.
Pesquisas nesse sentido, que tomam
produções musicais para pensá-las
como vestígios inseridos em contextos
sociais mais amplos, como pistas que
possibilitem repensar a sociedade e/ou
pensá-la de outro ângulo são
relativamente novas. Isso porque a
música nem sempre foi vista como um
documento legítimo para se refletir
sobre questões relativas à vida em
sociedade, e só passou a cumprir, até
certo ponto, tal função quando os
historiadores (e demais pensadores
sociais) começaram a enveredar por
outras trilhas de pesquisa (ver, dentre
outros, MORAES, 2000).
Assim, as práticas culturais, inclusive a
música, se revelaram como lugar de
experiências sociais, políticas e
econômicas dos homens, carregadas de
elementos para abordagens históricas.
Por extensão, a abertura para novos
objetos de análise no campo das
pesquisas históricas possibilitou a
formação de quadros teóricos híbridos,
com
contribuições
de
diversas
disciplinas, como uma decorrência da
necessidade
de
abordagens
interdisciplinares.
Ademais, para focar especificamente
meu objeto é pertinente esclarecer que a
música não deve ser tomada em si,
como algo fechado. Ela deve, isso sim,
estar articulada ao seu contexto mais
amplo, fazendo-se necessário “mapear
as camadas de sentido embutidas numa
obra musical, bem como suas formas de
inserção na sociedade e na história”
(NAPOLITANO, 2002, p. 77). Ao se
explorar essa dimensão social do objeto
cultural, abre-se para todos nós um
caminho que aproxima a cultura e os
aspectos sociais, o que, no caso do
trabalho com música, significa fugir do
enfoque puramente biográfico da vida e
da obra dos compositores para
direcionar os esforços com vistas a uma
história social da música.
A metodologia de trabalho empregada
está atenta às particularidades do objeto.
No caso, ela recomenda atenção para
com a complexidade dos vários
elementos que se articulam na produção
musical:
letra,
instrumentação,
tecnologias, entonação, vozes, suporte e
performance. Embora seja necessário o
cuidado
para
não
inflacionar
determinados aspectos em detrimento
de outros, quero deixar claro que, para
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os fins desta pesquisa, foram
privilegiados
os
componentes
discursivos
(letra)
das
músicas
examinadas, sem que isso implique
fechar os olhos ou tapar os ouvidos para
tudo o mais que está presente em uma
obra musical.
A partir dessas balizas, estas reflexões
sobre o rap e o hardcore percorrem
algumas inquietações, tais como: qual a
importância de dada produção musical
para os debates sobre a sociedade
brasileira contemporânea? Como ela se
insere nesse debate?
Logo de cara, de modo sucinto, pode-se
dizer que essas composições expõem
visões
de
mundo,
práticas,
representações, posicionamentos e
comportamentos que estão relacionados
com o poder social e político
dominante, seja servindo aos seus
interesses
ou
questionando-os.
Interessa-me particularmente a segunda
dimensão, porque busco ressaltar as
vozes destoantes em relação aos valores
sociais hegemônicos. Inicialmente,
entretanto, abrirei espaço para situar,
resumidamente, os fenômenos culturais
rap e hardcore.
2.
A voz do morro grita
Grita de medo
Grita de raiva
Grita de ódio
Grita de mágoa
Faz o grito gritar na valsa
É um grito de liberdade
Inocentes (“A voz do morro”)
Falar do hardcore, de sua gênese e
desenvolvimento
histórico
é
extremamente difícil pela escassez de
uma bibliografia específica a respeito
desse tipo de música. O pouco que se
tem escrito está disperso em livros mais
gerais que tratam do rock, de culturas
juvenis e, sobretudo, acerca do punk1.
Há, também, alguns documentários2 que
podem ser úteis para recuperar parte
dessa prática cultural por contar com
muitos testemunhos de pessoas que
tiveram envolvimento com o hardcore
nos seus primeiros anos.
Seu nascimento está ligado ao fazer
musical dos punks, que surgiram nos
Estados Unidos da América (apesar de
constar em boa parte da bibliografia que
sua origem é inglesa), no início da
década de 1970, como “uma forma de
expressão da juventude da classe
trabalhadora” (ORTELLADO, s/d.). O
fenômeno cultural do qual o hardcore é
um desdobramento foi designado com o
nome de punk por Legs McNeil ao
referir-se ao som produzido pelas
bandas que despontavam em Nova
Iorque como início de um pequeno
movimento underground que tinha
referências no rock. Suas experiências
iniciais estão na prática de uma cultura
de rua, influenciadas pelas vivências e
experiências
cotidianas:
violência,
solidariedade,
gangues,
amizades,
literatura marginal, estética visual,
imprensa alternativa (fanzines) etc. são
a matéria-prima da sensibilidade punk.
A explosão do punk aconteceu
em meados dos anos 1970, com base em
bandas que produziam um rock simples,
sem grandes pretensões artísticas, com
letras que abordavam o cotidiano
urbano dos jovens envolvidos com essa
prática cultural. Era uma maneira nova
1
Ver: BASTOS, 2005; CAIAFA, 1989;
HARDCORE, s/d; HOME, 2004.
2
American hardcore, 2006; Botinada, 2006;
N.Y. hardcore, sem data; Punk na cidade,
2003; A História do Rock' n' Roll, 1995, esp.
o DVD 5 (que traz dois episódios: o primeiro
adentra o universo punk, e o segundo que trata
do punk, do rap e outros estilos musicais
contemporâneos e suas relações com a indústria
cultural – mainstream e underground.).
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de se fazer as coisas, e os jovens
envolvidos nisso conseguiram diminuir
as fronteiras entre o mundo da cultura e
o mundo da política. Nas palavras de
Pablo Ortellado (Idem),
o punk podia falar com uma
verdade inédita sobre o amor
adolescente, sobre o desemprego,
sobre os problemas sociais e sobre
a estupidez das regras estabelecidas
sem repetir clichês dos discursos
políticos – ou seja, sem ter como
parâmetro positivo o amor livre, a
sociedade alternativa, a revolução
ou o socialismo.
No final daquela década, o chamado
punk rock já havia sido parcialmente
absorvido pelo mercado fonográfico, e
algumas
bandas
seguiam
com
experimentações
musicais
e
comportamentais (que mais tarde
também seriam incorporadas pelo
capital como mais um veio econômico),
algumas com músicas mais rápidas,
mais violentas, mais altas e com letras
mais diretas, associadas a um
comportamento mais “duro”. Era o
hardcore, uma espécie de segunda
geração do punk, seu desdobramento
direto na conjuntura dos anos 1980.
Paralelamente às bandas do punk rock
que ingressavam no circuito comercial,
havia outras que continuaram dentro de
uma subcultura, radicalizando sua
postura com aquilo que seria mais duro,
mais radical, o hardcore-punk. Segundo
Yuriallis Bastos (2005, p. 384) tratavase de um
ritmo bem mais acelerado e
distorcido, cantado com o vocal
gritado, como modo de expressar a
radicalização de sua postura
anticomercial e o seu repúdio à
industrial cultural, ao movimento
da new wave e toda a sociedade de
consumo.
Dessa forma, evidencia-se uma vez
mais que nenhuma cultura é estática: as
manifestações culturais se desenvolvem,
se transformam, se mesclam com
outras, acabam, originam novas
formações culturais etc. Durante a
década de 80, o hardcore sofreu
mudanças, passou por processos de
incorporações e apropriações e se
consolidou como gênero musical de
variadas ramificações – a ponto de se
desprender em muitos casos do punk
(nos seus aspectos mais amplos) e/ou do
hardcore original, inclusive perdendo
sua característica de veículo de
expressão das classes trabalhadoras à
medida que passou também a transmitir
valores, opiniões e experiências de
outros setores sociais.
No Brasil, o punk e o hardcore
apareceram
como
experiências
primeiramente juvenis no final da
década de 1970 e, tal qual no resto do
mundo passou por transformações
significativas. As mudanças ocorridas
na área do hardcore resultaram em
subgêneros
como
o
crossover,
trashcore, moshcore, metalcore, old
school,
hardcore-punk,
hardcore
melódico, grindcore, dentre outros.
Nesse sentido, a designação do que é
hardcore perpassa todo um contexto
cultural, e não apenas estritamente
musical, como talvez tenha ficado
subentendido até aqui. A propósito,
veja-se um fragmento de entrevista
realizada com a banda I shot Cyrus
(2004):
Acho que o hardcore é uma família
de vários estilos musicais. No
começo, o hardcore era um punk
rápido, hoje em dia vários estilos
fazem parte desse modo de fazer as
coisas, tem umas bandas que tocam
metal, mas têm um espírito
hardcore, tem umas bandas que
fazem punk rock, mas também
fazem isso de uma maneira
hardcore. E também tem o
hardcore tradicional.
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Agressividade, não conformidade e
velocidade extrema é hardcore,
apesar de eu achar que tem banda
que é lenta e é hardcore também,
não precisa ter velocidade extrema.
Música para ser feliz não é nem
fodendo, muito pelo contrário, é
música pra você ficar com raiva do
mundo, mas ao mesmo tempo ver
tudo que tem de ruim e ter uma
perspectiva positiva em relação a
isso, de mudança. Mas não é
música pra você esquecer a
realidade e ficar relaxado. Nem
fodendo, é o contrário disso.
A melhor forma para se expressar?
Não é a melhor forma, é apenas
uma forma.
Amor não é nem fodendo, sei lá,
tem amor pelo hardcore. Mas é
mais ódio do que amor, e ódio pode
ser positivo também. E amor pode
ser uma bosta.
Ademais, a origem do rap também não
é das mais claras, apesar de neste caso
existir uma considerável bibliografia a
respeito. De modo geral, uma vez que o
meu objetivo não é constituir uma
história dessas músicas, pode-se dizer
que o rap – um dos elementos de uma
prática cultural mais densa, o hip hop –
surgiu por volta da década de 1970 em
Nova Iorque como braço de uma cultura
vivenciada, tanto quanto o hardcore, no
ambiente das ruas.
Tal gênero musical tem parentesco
direto com as tradições culturais
jamaicanas (e, por extensão, africanas)
que chegaram aos bairros pobres de
Nova Iorque em meados dos anos 1960
com a migração de jamaicanos para
essas regiões. Entre eles se encontravam
os DJs que dominavam a técnica dos
sound sistems, ou seja, dois toca-discos
e
um
microfone
conectados
simultaneamente a uma mesma saída de
som, o que propiciou as primeiras
experimentações dos DJs manipulando
discos durante a discotecagem em
festas.
Dessas experiências os “tocadores de
discos” criavam e realizavam técnicas
de produção sonora através da
manipulação dos long-plays e dos tocadiscos: scratch, sampler, back to back,
punch-phrasing. Conforme a música
rolava começaram a estabelecer
diálogos de assuntos variados ligados à
vida local por sobre a base musical:
nasciam os primeiros raps, a união do
ritmo produzido pelas pick-ups com a
poesia falada e livre.
De inicio, conforme constataram alguns
pesquisadores, não havia uma separação
entre o DJ (disk jockey), que é
responsável pelo som, e o MC (mestre
de cerimônias), responsável pelo
microfone, aquele que fala/canta por
sobre a base rítmica. Essa distinção foi
aparecendo aos poucos à medida que os
DJs se aprimoravam e se dedicavam
com exclusividade à dimensão sonora e
os MCs, como personagem distinto,
foram se encarregando dos microfones,
das mensagens.
Assim, fazer música para esses jovens
significava manipular os registros
musicais de outros artistas, o que não
implicava a inexistência de técnicas
próprias, como atesta o relato dos DJs
KL Jay e Fresh, dois dos precursores
desse tipo de produção no Brasil:
Enquanto na pick-up (toca discos)
executava-se a música e selecionase o ritmo, o deck (gravador) vai
sendo utilizado para gravação e
corte das partes da música sempre
que o ‘pause’ é apertado. O ciclo
rítmico recomeça novamente na
pick-up, o deck é novamente
acionado na tecla do pause cortando
mais uma vez o fragmento desejado
da música no tempo exato. A
repetição do processo é seguida até
a base rítmica preencher todo o
espaço necessário para o canto
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falado (SILVA apud. AZEVEDO,
2000, p. 133).
Acrescentamos ainda que o rap (e o hip
hop como um todo) é uma formação
cultural permeada por conflitos e
disputas, o que o torna uma prática
plural: rap gospel, rap underground,
rap político, gangsta rap, rap
romântico, rap alternativo3.
No Brasil o rap foi incorporado à
atmosfera cultural de jovens residentes
nas
periferias
(pelos
menos
inicialmente)
das
cidades
mais
populosas em meados dos anos 1980,
momento a partir do qual começou a
conquistar adeptos em todo país e a se
consolidar como música produzida e
ouvida por pessoas pobres (na sua
maioria) que se valeram de sua cultura
como prática e como representação de
suas
experiências
na
sociedade
contemporânea.
Decorre daí que os estilos musicais
hardcore e rap, cada um à sua maneira,
são elementos de uma cultura marginal.
No contexto pesquisado, temporalmente
demarcado entre 1990 e 2005,
constituem a expressão de vozes que
podem ora reforçar as orientações e
valores políticos, sociais e culturais
hegemônicos, ora questioná-los, no todo
ou em parte.
Como minha proposta é analisar o
discurso emitido através dessas práticas
3
No hardcore essas divisões são, geralmente,
mais rígidas que no rap. Um grupo de rap pode
transitar do gangsta para o gospel e destes para
o romântico de uma canção para outra ou ter
todas essas dimensões em uma mesma
composição, enquanto uma banda de hardcore
geralmente tem sua produção musical voltada
para as características desse ou daquele
subgênero específico. Um dos motivos dessa
particularidade se deve ao fato dos subgêneros
no rap obedecerem à temática das músicas,
enquanto no hardcore a classificação é definida
por critérios musicais (em ambos os casos,
porém, isso não é uma regra inflexível).
culturais, buscarei captar nessas
composições quais os fatos narrados, os
usos e costumes que se podem perceber
no dito e no não-dito, qual o juízo dos
emissores diante do assunto que
abordam para “identificar o modo como
em diferentes lugares e momentos uma
determinada
realidade
social
é
construída, pensada, dada a ler”
(CHARTIER, 1990, p. 16 e 17).
3.
Olhe ao seu lado, a senhora chega
ensangüentada
O médico diz não tem mais jeito, não tem
mais leito
Olhe a criança catando lixo
Olhe o abismo que separa o pobre e o rico
Face da Morte (“Fazendo escola”)
A chamada história social não guarda
definição precisa, mas se pode salientar
que ela é portadora de um forte apelo
para considerar todas as esferas da
atividade humana. A tentativa de
abarcar a experiência humana numa
perspectiva mais ampla impôs aos
historiadores
uma
abordagem
interdisciplinar,
valendo-se
de
construções teóricas de diversas áreas
do
pensamento.
Essa
prática
historiográfica resultou, entre outras
coisas, naquilo que importantes
historiadores chamaram de história a
partir dos de baixo, ou seja, “empresa
dedicada à recuperação do ponto de
vista das pessoas comuns” (BURKE,
2002, p. 59).
Como já foi dito, as músicas aqui
analisadas são na sua maioria formas de
expressão associadas
às classes
trabalhadoras e às pessoas comuns. Sob
este prisma, revela-se uma interface
entre história, cultura, sociedade,
protesto social, vida cotidiana e
movimentos sociais.
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Nessa ótica, que abrange a diversidade
das atividades humanas, cabe a
produção musical, porque ela também
pode ser vista como “termômetro,
caleidoscópio e espelho não só das
mudanças sociais, mas sobretudo das
nossas sociabilidades e sensibilidades
coletivas
mais
profundas”
(NAPOLITANO, 1998, p. 199).
Destaco que, embora as metáforas
utilizadas remetam mais à dimensão da
representação nas canções, elas têm,
também, uma dimensão prática muito
importante. Aí está a importância do
hardcore e do rap para os debates
acerca da sociedade contemporânea, no
caso a brasileira, pois constituem
práticas culturais marginais em relação
à ordem dominante e freqüentemente
engajadas no protesto e crítica social.
A ordem vigente é fruto de um processo
histórico de modernização capitalista do
país que teve características “selvagens”
ao intensificar as desigualdades e as
inclusões
sociais
perversas
na
sociedade. Os “moderninhos” dos anos
90 iriam acertar os ponteiros nacionais
com o relógio que regia a vida mundial
através de suas propostas que
configuraram
a
adesão
ao
neoliberalismo.
Nesse
período
observou-se, como demonstra Silvio
Machado (2005, p. 9),
a emergência, na diplomacia
brasileira, de um discurso de
modernidade,
no
qual
o
alinhamento com as prescrições da
política neoliberal seria o caminho
para uma maior inserção do país no
sistema internacional e através
desta poder-se-ia negociar a
obtenção dos meios para o
desenvolvimento nacional.
Era o início de cortes nos gastos
públicos com assistência social, do
ajuste fiscal, de reformas comerciais e
patrimoniais com largas vantagens para
as “forças do mercado”. Embora as
experiências neoliberais começassem a
aparecer na década de 1970, sua
aplicação em nosso país, por razões
políticas, só teve êxito nos anos 1990,
conforme assinala Juarez Guimarães
(2001, p. 136): “o caráter retardatário da
aplicação do programa neoliberal no
Brasil tem raiz política: a crise do
regime militar e a ofensiva democrática
e popular dos anos 80 fecharam o
espaço para o domínio neoliberal”.
Assim,
o
Brasil
adentraria
definitivamente na órbita neoliberal
durante os anos 1990, e essa nova
orientação política e ideológica marcou
uma reestruturação da hegemonia
burguesa nas esferas sociais de maneira
geral (econômica, política e cultural),
acarretando a reforma do Estado
capitalista no país. Tal reforma criou as
condições para um novo ciclo de
acumulações – sobretudo no que diz
respeito ao mercado financeiro –, que
aumentou ainda mais as disparidades
econômico-sociais4. Além disso, ela
contribuiu para gerar um elevado índice
de desemprego, a precarização e
flexibilização negativa das atividades
profissionais e o aprofundamento da
agonia das classes trabalhadoras5, que
são constantemente golpeadas nas suas
conquistas, costumes e dinâmica de
vida.
4
Giovanni Alves, em seu balanço sobre a
“década neoliberal”, frisa: “... o Brasil
continuou apresentando a pior distribuição de
renda do mundo industrializado. O ‘choque de
capitalismo’ da década passada tendeu a
concentrar mais ainda a riqueza social... [e] na
década de 1990 cresceu a distância salarial entre
os 10% mais ricos e os 40% mais pobres. Em
1992 a diferença entre o pico e a base da
pirâmide nacional de rendimentos era de cerca
de treze salários mínimos”. ALVES, 2002, p.
71.
5
Esse aspecto do capitalismo contemporâneo é
bem visualizado em Working man’s death.
Direção: Michael Glawogger. Alemanha: Lótus
Film / Quinte Film, 2005. 2 DVD’s (122 min.),
son., color., documentário.
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O impacto da reestruturação do
capitalismo na vida das pessoas comuns
foi imenso, agudizando problemas
sociais crônicos e aumentando as
tensões presentes das relações de
poder/sociais.
Não
por
acaso
presenciamos a eclosão de muitos
movimentos sociais na década de 1990,
alguns deles claramente orientados por
uma posição contrária à globalização,
ao
neoliberalismo
e
às
suas
conseqüências, como é o caso dos
zapatistas,
do
movimento
dos
trabalhadores rurais sem terra, do
movimento dos sem teto etc.
Como se isso já não bastasse ainda
houve – o que, evidentemente, persiste
até os dias de hoje – uma tentativa de
cooptação ideológica, pensada em
termos amplos, já que, além da prática
neoliberal,
produziu-se
uma
convergência de discursos que visam
favorecer a identificação com a ordem
hegemonicamente estabelecida. Afinal,
a construção de uma hegemonia
neoliberal não se realiza apenas com
medidas de reformas do Estado. É
necessário, igualmente, atacar a
subjetividade
das
pessoas,
transformando valores compartilhados.
Trata-se, portanto, de uma tentativa de
conquistar corações e mentes para a
defesa do modelo que se torna
hegemônico, uma vez que a hegemonia
funciona, como ressalta Dominic
Strinati (1999, p. 163), com base nas
formulações de Gramsci, recorrendo-se
a
meios cultural e ideológico com os
quais os grupos dominantes na
sociedade
–
incluindo
especialmente mas não de forma
exclusiva a classe dominante –
preservam
seu
domínio,
assegurando o “consentimento
espontâneo”
dos
grupos
subordinados, inclusive a classe
operária, através da construção
negociada de um consenso político
e ideológico, que incorpora tanto o
grupo dominante como o grupo
dominado.
Essas novas maneiras políticas e
ideológicas de reforçar o capitalismo
contemporâneo, num momento de
reorganização do capital e de um
redimensionamento das contradições
entre capital e trabalho, buscam, no
fundo, formar um bloco hibrido de
apoio ao ideário neoliberal, constituído
inclusive pelas classes “remediadas” e
pobres.
Na
esteira
desses
acontecimentos a nova configuração
societária promoveu um deslocamento
na
concepção
de
cidadania,
desmontando as antigas referências para
substituí-las por outras que nenhuma
segurança oferecem ao sujeito social
que vê direitos adquiridos sendo
transformados em serviços, ou seja, “o
conceito de consumidor substitui o de
cidadão” (SANTOS, 2002, p. 35).
O que isso tudo tem a ver com a
discussão sobre cultura, sobre música e
a aspectos não estritamente ligados à
economia ou à política no seu sentido
mais
tradicional?
Ora,
tais
transformações do mundo social
atingiram – e atingem –, mesmo que em
níveis diferentes, todos os homens e
trouxeram mudanças para suas vidas,
seu cotidiano, sua maneira de se portar e
de enxergar a sociedade e de se
enxergar na sociedade. Obviamente,
nem todos abraçaram e/ou convivem
pacificamente com a nova ordenação
social, e os descontentes se fizeram – e
se fazem – presentes de diversos modos,
aparecendo aqui e ali em situações
distintas e com ações diferentes.
Nesse contexto surgiram formas de
produção
cultural
que
interpretam/criticam as experiências
sociais individuais e coletivas, dentre os
quais estão o rap e o hardcore, que
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mostram com clareza uma das
dimensões da cultura, qual seja dialogar
com o mundo em que se vive tentando
dar a ele um significado, ou, segundo
Raymond Williams (1969, p. 305),
reagir “em pensamento e em sentimento
à mudança de condições por que passou
a nossa vida”.
4.
Mas se você acredita que nas nossas letras
Existe um bom texto político e social
Então atingimos nosso objetivo
Música de protesto com som atual
Sociedade Armada (“Tocar e protestar”)
Muitos músicos envolvidos com o rap e
o hardcore vêm reagindo em
pensamento e sentimento, com sua
produção musical, às mudanças que os
afetam. Parte considerável de suas
músicas veicula referências diretas e
indiretas acerca do viver na sociedade
contemporânea, dos homens que
padecem em condições precárias (e os
seus antagonistas), dos conflitos que
presenciam e/ou daqueles dos quais são
protagonistas. Para além do mero
entretenimento, articulam em seu
discurso – musical e poético – questões
como violência (física e simbólica),
preconceito (de gênero, étnico, cultural,
de classe e outros mais), problemas
sociais, políticos etc.
Assim, mesmo sob a hegemonia
neoliberal, não se eliminaram os
discursos
que
interpelam
o
funcionamento da sociedade capitalista.
Esse tipo de postura, no meu
entendimento, marca certo engajamento
desses músicos, um posicionamento que
é político (apesar de que, em alguns
casos, os próprios músicos não
concordem com isso). Político, sim,
porque concebo política numa acepção
mais ampla, como “algo que atravessa o
nosso cotidiano na medida em que as
relações de poder se manifestam,
inclusive em circunstâncias e lugares
por vezes insuspeitados” (PARANHOS,
2006, p. 54), o que nos permite
visualizar um comportamento político
onde ele normalmente não aparece, pelo
menos não de forma explícita.
O caráter político das composições é,
mesmo que inconsciente por parte dos
autores, um dos elementos de
identificação de engajamento.6 Para
exemplificar, fixo-me no caso do 7”EP
Orquestrando os rastros da miséria
humana! (s/d, 1 7”EP) da banda
brasiliense Naûzo (split com Contraste
Bizarro), que faz um hardcore crust,
muito rápido no estilo de tocar os
instrumentos e no canto “rasgado” e
gritado.
Tal
disco
é
de
lançamento
independente, prensado em vinil e tem
por capa um envelope postal de papel
pardo, estampado com duas figuras
tristes, em um ambiente sombrio –
intensificado pela impressão em preto e
branco –, às voltas com seus
instrumentos musicais: um violoncelo e
um instrumento de sopro, algo como
uma clarineta. Na parte de dentro do
envelope, além do disco, há um livreto
com as letras das músicas, pequenos
textos e algumas imagens. É um artefato
cultural para ser analisado na sua
totalidade, haja vista que as imagens, os
pequenos textos inseridos, o modo
como as letras são transcritas no papel,
o fato de aparecerem em português e em
inglês, tudo ajuda a pensar o registro
musical.
O engajamento da banda se exprime nas
suas
músicas
como
uma
extensão/elemento da existência de seus
6
Para uma discussão mais específica sobre o
tema do engajamento, ver DENIS (2002), esp.
cap. 2.
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membros, enquanto sujeitos sociais,
adeptos de uma cultura marginal em
constante conflito com a cultura
dominante e com o contexto social
como um todo.
Nas quatro músicas que compõem o
disco é perceptível um engajamento de
caráter crítico que entrelaça a banda, a
temática das letras e a composição do
encarte/livreto, tudo produzido pelos
três integrantes da Naûzo: Vampirus
(“guitarra e backing-vocal estridente”),
Marcos Bones (“baixo e nada mais”) e
Rafinha Milla (“bateria e vocal
irritante”). Quando do lançamento do
disco, eles estavam ligados à cena
cultural anarco-punk, que durante os
anos 1990 foi a “facção” punk que, na
maior parte do mundo, concentrou os
punks pobres e teve na música seu
principal veículo de expressão.
Em uma das composições eles
verbalizam sua revolta antiburguesa.
“Ruído de rabia” tem seus significados
construídos nas relações entre letra e
música: o ruído dos instrumentos, o
ruído quase indecifrável do vocal e um
posicionamento claro na letra, que diz
Ruído de rabia/ Somos um espelho/
Refletindo toda essa decadência/
Somos a conseqüência/ Fruto desse
sistema capitalista/ Ruído de rabia
(6x)/ Agora vamos incomodar/
Toda essa podre sociedade/ Que
nos violenta todos os dias/ Pois
todo ataque tem sua reação/
Viemos tumultuar/ Toda estrutura
burguesa/ Viemos começar/ O caos
por toda cidade/ Ruído de rabia/
Somos a parte podre da madeira/ E
vamos contaminar a todos que nos
contaminou (sic)/ Somos o seu
medo, somos sua raiva/ Somos sua
desgraça, só queríamos poder viver/
Somos punx (3x)/ Somos seu
medo, seu nojo (NAÛZO, s/d).
Fica claro que quem fala por meio dessa
música fala de dentro da ordem
estabelecida, vivendo e se alimentando
dela, como fica explícito no verso que
diz – as letras não são assinadas
individualmente – serem eles “fruto
desse sistema capitalista”. Embora
falem de uma posição de sujeitos
inseridos na sociedade (“somos a parte
podre da madeira”), não se coadunam
com posições moderadas, encarando-a
como uma experiência social negativa,
decadente. Olham a realidade que os
cerca,
denunciando
a
violência
estrutural marginalizadora de parte dos
“cidadãos”, o que coloca a “necessidade
de tomar uma posição diante da
catastrófica situação” (Idem).
Tais
fatos
evidenciam
que
o
desenvolvimento de um processo tenso
e conflituoso no âmbito das relações
sociais influencia a criação cultural que
se produz a partir de baixo, mas que é
uma prática localizada dentro de um
sistema social hegemônico e que se
move com base em um delicado e
complexo equilíbrio entre dominação e
resistência.7
Outra dimensão do protesto contido
nessas músicas (tanto no caso do
hardcore como no do rap) encontra-se
na sua forma estética, no seu fazer
musical. Os jovens envolvidos nisso
abriram novos caminhos no campo das
relações entre música e política no
Brasil, que em um momento
imediatamente anterior estava mais
sintonizado com a tradição mpbista.
Esse tipo de protesto – incompreendido
por muita gente – desatou reações que
qualificaram
esses
procedimentos
musicais como alienantes. A jornalista
Bárbara Gancia, por exemplo, ainda
recentemente, deixou no ar uma
pergunta para si e para os leitores: “mas
eu pergunto: a que ponto chegamos?
7
Sobre o assunto, ver WILLIAMS (1979), esp.
p. 111-117.
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Desde quando hip hop, rap e funk são
cultura?” (GANCIA, 2007)
O caráter supostamente alienante da
produção hardcore e rap por vezes
também é vinculada à sua origem “não
nacional”. Ora, as maneiras de usar
(expressão de CERTEAU, 1994)
constituem-se em um dos dados da
produção nacional do hardcore e do
rap, uma vez que ao tomarem
emprestado um movimento social e
cultural do centro do capitalismo
acabam por criar algo novo no contexto
do terceiro mundo e que diz respeito a
essa realidade específica. O uso
dinâmico de certos elementos culturais
levou a uma politização das práticas
cotidianas vividas no Brasil. Embora
esses elementos também tenham uma
característica contestadora em seus
países de origem, isso não quer dizer
que os brasileiros simplesmente
imitaram uma prática que lhes foi
imposta ou aderiram a manifestações
miméticas.
Em 1988, o grupo de rap NWA
(abreviação para Niggas With Attitude/
Negros com atitude), do subúrbio de
Los Angeles, lançou o LP Straight outta
Compton (1988, 2 LP’s), que conta com
uma
faixa
homônima
que
posteriormente virou um videoclipe e
adquiriu uma circulação mais ampla. A
maioria das músicas desse disco são
sobre a vida nos guetos negros de Los
Angeles, seu cotidiano, seus problemas.
O disco adquiriu relativa notoriedade,
ganhou alguns prêmios, entrou no
ranking da revista Rolling Stone e
assinalou uma nova fase para o rap com
batidas mais fortes e um swing diferente
do estilo predominante até então.
Dez anos após o sucesso do NWA, o
rapper GOG, de Brasília, gravou o seu
álbum Das trevas à luz (1998, 1 CD),
do qual consta a música “Matemática na
prática”. Esta composição revela uma
apropriação
de
“Straight
outta
Compton” e escancara a influência que
músicos de outros países tiveram na
formação do gosto musical de parcela
dos brasileiros. Não quer dizer,
entretanto,
que
ela
se
impôs
inexoravelmente aos jovens deste canto
do mundo, como se estes estivessem
condenados a “macaquear” a produção
estrangeira.
O músico brasiliense faz uma
apropriação criativa portadora de um
novo significado, estritamente ligado às
condições daquele que procede à
apropriação, e não pautado pelo
apropriado. Em “Matemática na
prática” GOG se vale de “Straight outta
Compton” e a transforma a partir de
novos elementos sonoros e de uma nova
letra que apesar de estar colada ao
cotidiano daqueles que se acham à
margem da sociedade, como na
composição original do NWA, não tem
o seu significado calcado naquela.
Ao lado dos outros músicos do grupo,
GOG apresenta “cenas fortes, sem
cortes” (GOG, “Matemática na prática”,
1998). Segundo seu ponto de vista,
“cenas que nada têm a ver com conto de
fadas” (idem). Eis a letra na integra:
Do fundão da Ceilândia/ Mais
precisamente da expansão do setor
Ó/ Onde tiros, tiras, pó/ Misturados
dão um problema só/ É de onde
veio seu irmão Japão/ Acreditando
que a mente é a mais farta munição/
Reféns da miséria, não.../ Essa sina
pro meu povo, não, então/
Injustiças, ira, meu sangue sobe/
Dia-a-dia esse jogo, não há quem
não jogue/ Dino Black, Mano Mix
nos toca discos/ Completando o
time meu chegado GOG/ Há-ha,
acionaram de novo o gatilho/ E o
barulho ouvido deixou um pai sem
seu filho/ Ou um filho sem pai/ A
ordem dos fatores aqui tanto faz/
Matemática na prática/ Subtração
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feita de forma trágica/ Onde a
divisão é o resultado/ E a adição
são os problemas multiplicados/
Conduzindo rumo ao cemitério,
outro ao submundo/ Minha voz é
forte, sincera/ Minha casa, minha
quebra, considerada riacho fundo/
GOG chega aí, sou da C.I./ E, eu,
Riacho Fundo, enfim/ Todos da
periferia juntos/ Moleque eu disse
juntos/ É serio.../ Todas as noites
quando acordo, olho o telhado do
barraco/ E junto às orações que
faço/ Imagina se o futuro fosse
hoje, seria complicado/ Muito
complicado/ Minha mulher na beira
do fogão, só cansaço/ Meu filho um
moleque sem espaço/ Eu a um
passo do fracasso/ Com um salário
que se colocado no papel, Ladrão/
Mal daria a cesta básica e o
aluguel/ Causa arrepios.../ Tudo
isto é uma cadeia, uma grande teia,
prepara a fuga/ Sou meu próprio
carcereiro e a chave minha conduta/
Caneta e papel na mão sai o
rascunho/ O raciocínio comanda
meu punho/ Cenas fortes, sem
cortes,
sou
testemunho/
A
matemática na prática é sádica/
Reduziu meu povo a um zero à
esquerda, mais nada/ Uma equação
complicada/ Onde a igualdade é
desprezada/ "a seguir cenas que
nada tem a ver com conto de
fadas"/ Seu pai faxineiro, lava
banheiros/ Salário mais gorjeta de
terceiros/ De quebra faz um bico
revendendo jogos/ Feito numa
lotérica/ Sua mãe com mais de
sessenta/ Ainda trabalha de
doméstica/ E assim se completa a
renda da família/ Salário mais
gorjeta,
bico,
aposentadoria/
Somando tudo dá a certeza de lutar
por melhores dias/ É, sua velha
anda cansada/ A perna inchada
cheia de varizes/ Que dificultam a
circulação sanguínea/ Um braço
forte, lava, passa/ Há mais de
quinze anos sem carteira assinada/
Alegria da criançada/ Cozinha que
é uma maravilha/ Na casa do patrão
ela é a dona Maria/ Até hoje
esquecem o nome dela/ E Maria é
como eles chamam a maioria/ Uma
velha que traz no coração duas
feridas/ Um filho aprontando e uma
filha trabalhando/ Em um puteiro
de quinta categoria/ Periferia é
periferia/
Relatos
dramáticos,
desejos trágicos/ Meios violentos
os mais usados/ E o sonhado 100%
longe de se atingido/ Traduzindo,
eu disse, traduzindo/ Ontem
pipocaram seu vizinho, roubaram
sua mãe/ Cena digna de cinema
desafia a lógica/ O corpo ali, ham/
Sua velha sem poder reagir/ Parecia
querer desistir, mas, filhos netos/ A
fizeram prosseguir, já disse vou
repetir/ Cara acorda olha nosso
povo aqui/ Nessa UTI/ Louco pra
sobreviver, precisando de você,
hein/ Cadê você?/ Só bebe, fuma,
injeta, não conversa/ Qualquer
induz e aperta/ Aperto jogo deixo
pra você tudo certo/ A vida do
outro na sua mão um objeto e aí?/
Mude seu conceito do que é ser
esperto/ Eram três pretos de favela
nessa porra/ Agora quatro, se liga
malandro no som pesado/ Eram três
pretos de favela, meu compadre/
Agora quatro/ Eram três pretos,
meu compadre, de favela/ Agora
quatro, se liga malandro no som
pesado...
Esta música está em sintonia com tudo
o que já foi dito até aqui e marca
também
um
posicionamento
político/engajado ligado à consciência
dos problemas urbanos, ao modo de
vida, às necessidades cotidianas. Os
músicos/narradores nos transportam em
sua composição para o ambiente de
vivências oprimidas, “onde tiros, tiras,
pó/ misturados dão um problema só”,
onde as condições básicas de cidadania
são precárias e os direitos sociais
sofrem uma “subtração feita de forma
trágica” (Idem).
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Ao relatarem as carências que atingem
parcela considerável da população,
mostram que estas se vinculam à
configuração econômico-social de uma
sociedade em que minguam, na prática,
oportunidades de vida digna para
amplas parcelas da população: “Eu a um
passo do fracasso/ Com um salário que
se colocado no papel, Ladrão/ Mal daria
a cesta básica e o aluguel” (Idem).
Em certo sentido, os aspectos de uma
experiência social conflitiva, tensa e
profundamente desigual parecem estar
em cada verso, em cada voz, em cada
ruído e nas notas musicais. Desse modo,
se considerarmos o neoliberalismo
como realização política e social que
exprime relações de poder específicas,
calcada na superexploração do trabalho
e na marginalização, temos em
“Matemática
na
prática”
o
contradiscurso, uma voz destoante das
orientações político-sociais dominantes.
Ao examiná-las, ainda que por alto,
evidenciou-se que elas foram além do
mero entretenimento ou das formas de
socialização que proporcionam. Tais
manifestações puseram em movimento
determinadas
representações
que
permitem às pessoas verbalizar seu
descontentamento com a ordem vigente.
São músicas que revelam aspectos de
uma sociedade fraturada, expondo
conflitos, problemas, a precariedade
(em suas mais variadas dimensões e
formas) da vida cotidiana.
As canções utilizadas neste artigo –
tanto as que aparecem no corpo do texto
como as mencionadas nas epígrafes – se
inserirem num debate público com
posições
específicas,
escolhas,
intenções e reivindicações. Isso implica
não se alienar da condição de sujeito
que, oprimido e marginalizado, pertence
a uma dada organização social e que
pode tentar mudá-la a partir do seu
entendimento do que são seus
problemas e suas contradições.
5.
Não somos um bando de jovens
acéfalos tentando imitar o vocalista
mais doidão do momento. Somos
garotos e garotas revoltados com
um sistema injusto, que tem
tornado uma vida digna para todos
um sonho cada vez mais e mais
distante...
Point of no return (Encarte do
CD)
Aqui mostrei que o modelo de
organização social consolidado durante
os anos 1990, e que envolveu
modificações nas concepções de Estado,
cidadania e mercado deu margem a
manifestações de música política que
expressam
as
experiências
de
dominação e resistência de certos
segmentos sociais.
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